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Abuso de direito e venda de bens alheios no Direito português

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Academic year: 2022

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DR.ª JOANA LOPES PEREIRA

Sumário: I. Venda de bens alheios – aspetos gerais. II. Exegese do artigo 892.º do Código Civil: 2.1. Boa-fé e dolo; 2.2. Noção de boa-fé. III. Posição jurídica do comprador numa venda de bens alheios. IV. A questão da dupla alienação do mesmo bem: um problema de abuso de direito? Conclusões.

I. Venda de bens alheios – aspetos gerais

A venda de bens alheios, cujo regime se encontra consagrado nos artigos 892.º e seguintes do CC1, é tida pela lei civil como nula. Trata-se daquilo a que a Doutrina dá o nome de uma perturbação típica da compra e venda, e não uma forma de compra e venda especial. Menezes Cordeiro, nos casos de perturbações típicas da compra e venda, defende que estamos perante situa- ções de cumprimento defeituoso das obrigações do vendedor2. Com o devido respeito, penso que não se pode falar em cumprimento defeituoso em sentido técnico. Veja-se, a este respeito, a seguinte questão. Há uma obrigação para o vendedor, no sistema jurídico português, de transmitir um direito real, por meio da venda de um bem? Ou essa é um efeito, imediato ou mediato, de se celebrar um contrato de compra e venda?

1 No campo civil, pois no campo comercial existe igual consagração do instituto, no artigo 467.º CCom, orientado por uma linha de pensamento diferente, pois a venda de bens alheios é tida como válida, fi cando o vendedor adstrito a adquirir a propriedade da coisa vendida e a entregá-la ao comprador, sob pena de responder pelas perdas e danos que este veja a sofrer. Sobre a diferença de regime, Bártolo, Diogo, Venda de Bens Alheios, in Estudos em Homenagem ao Prof. Inocên- cio Galvão Telles, Vol. IV, Coimbra, Almedina, 2003.

2 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Volume III, 9.ª ed., 2014, pág. 89.

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Parece decorrer dos artigos 408.º, 874.º e 879.º al. a) do CC que estamos perante um efeito do contrato, sendo meramente necessário o acordo das par- tes para a celebração do contrato que o efeito translativo ocorre3. Isto é assim porque, no ordenamento jurídico português se encontra consagrado o sistema de transmissão de direitos do título4, só nos sistemas que consagram a venda obrigatória, em que da venda decorrem apenas obrigações para as partes, se pode falar no dever do vendedor transmitir o direito real.

A venda de bens alheios é tratada, entre nós, como um problema de falta de legitimidade do vendedor para alienar, como decorre do disposto no artigo 892.º do CC que refere que é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar.

Decorre da letra da lei qual é a problemática, a ausência de legitimidade.

Não está em causa uma situação de impossibilidade originária da prestação. Em primeiro lugar, porque não está em causa uma prestação mas a não produção de um efeito derivado do contrato, o efeito real. A impossibilidade, a ser, seria uma impossibilidade jurídica originária. A impossibilidade jurídica tem que ver com um obstáculo criado pela lei para que a prestação se gere validamente, sendo o negócio inválido, nulo, quando realizado nos termos do artigo 280.º n.º1 do CC5. Como já referi, o problema subjacente à venda de bens alheios não é o de formação inválida da prestação, mas da não produção do efeito real, derivado da celebração do contrato de compra e venda, muito embora ambas as situações gerem a mesma consequência jurídica, a nulidade do contrato.

Também não está em causa a ilicitude da prestação, mais uma vez porque em causa não está a assunção de uma obrigação contrária a lei e/ou a princí- pios do sistema jurídico6, mas a cominação, com a invalidade do negócio, da inexistência de um pressuposto geral necessário para a celebração de negócios jurídicos, para a vinculação negocial: a legitimidade.

A legitimidade é uma qualidade de um sujeito que o habilita a agir no âmbito de uma situação jurídica considerada7. A legitimidade tem que ver com o aspeto de as situações jurídicas só serem, em regra, atuáveis pelos sujeitos a que dizem

3 Na doutrina, alguns exemplos, de defensores desta posição, Ventura, Raúl, O contrato de com- pra e venda no código civil. Efeitos essenciais do contrato de compra e venda …, in ROA, 1983, Ano 43, III, Albuquerque, Pedro de, Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Volume I, Tomo I, Coimbra, 2008.

4 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Volume III, cit., págs. 20 e ss.

5 Neste sentido, Almeida Costa, Mário Júlio de, Direito das Obrigações, 5.ª ed., Coimbra, 1991, pág. 578.

6 Costa, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, cit., pág. 578.

7 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, Almedina, Coimbra 2011, pág. 16.

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respeito ou que detenham uma habilitação jurídica para tal. Só os sujeitos que se encontrem nessas posições detêm legitimidade para atuar8.

A legitimidade é um conceito jurídico cujo labor se deve à doutrina ita- liana, nomeadamente, Francesco Carnelutti e Emilio Betti, sendo que Carnelu- tti partiu do conceito de legitimidade processual transpondo-o com adaptações para o plano substantivo9. Neste período evolutivo, a legitimidade era tratada como uma fi gura entre a capacidade e a titularidade.

Em Portugal, a legitimidade chegou pelas mãos de Inocêncio Galvão Telles e Isabel Magalhães Collaço. Galvão Telles, ao longo dos anos, foi aprofun- dando a fi gura, considerando-a um refl exo da autonomia da vontade, ou, nas suas palavras, como sendo um limite a essa autonomia10, distinguindo-se do poder de disposição, pois a legitimidade transcende esse poder, pois não se res- tringe aos atos dispositivos, sendo extensível aos negócios jurídicos em geral11. Magalhães Collaço, por seu turno, veio a proceder a uma distinção entre legiti- midade, capacidade e licitude do objeto, considerando a legitimidade se defi nia por ser aquela relação entre o sujeito e o objecto que se requer para que esse sujeito possa praticar com perfeição determinado acto12. Esta A. na sua obra associava a legitimi- dade à autonomia privada, ao funcionamento do princípio da autonomia da vontade, considerando que o conceito jurídico da legitimidade andava colado à regra histórica res inter alios acta allis neque nocere neque prodesse.

A densifi cação do conceito de legitimidade foi mais profícua, na medida em que, o Código de Seabra, no seu artigo 645.º, deixava uma fresta sobre a questão. Na atualidade a discussão, em torno da legitimidade, não reside na sua associação apenas ao poder de disposição mas e, sobretudo, reside na questão de saber se a legitimidade é um conceito relacional, situacional ou posicional. Na verdade, há uma tendência para considerar a legitimidade situacional, ou seja, verifi cável quando esteja em causa o exercício de uma situação jurídica.

Menezes Cordeiro entende que a legitimidade é situacional, associando a legitimidade às pessoas e à sua liberdade de agir, às chamadas liberdades gerais de que as pessoas são benefi ciárias13. Para este A., a legitimidade distingue-se da

8 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, cit., pág.15

9 Sobre a evolução doutrinária, Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, A Autorização, 1.ª ed., Coim- bra Editora, Coimbra, 2012, págs. 31 e ss.

10 Telles, Inocêncio Galvão, Dos Contratos em Geral, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1962, págs. 286-278.

11 Telles, Inocêncio Galvão, Dos Contratos em Geral, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pág. 400.

12 Collaço, Isabel Magalhães, Da Legitimidade no acto jurídico, BMJ n.º10, 1949, págs. 20-112

13 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, cit., págs.15 e ss.

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titularidade, passiva e ativa, e da capacidade de gozo e de exercício. Constrói a fi gura a partir de factos legitimadores, que podem ser positivos, quando con- ferem legitimidade, e negativos, privativos de legitimidade. O facto positivo principal será a titularidade. Todavia, salienta-se o facto de ser necessário um juízo concreto de legitimidade, pois podem existir situações em que o titular não é portador de legitimidade14. Para este autor, a regra é a de que há legi- timidade, sendo necessário um facto legitimador negativo para que esta deixe de existir15. Nos casos em que não haja legitimidade, será necessário um facto legitimador, como a autorização, sendo que esta pode ser mesmo necessária para a protecção do próprio agente, para a protecção da contraparte ou de terceiros, e ainda perante uma pluralidade de interessados16.

Dado que o Código Civil não contempla um regime geral sobre a legiti- midade, Menezes Cordeiro, parte do artigo 892.ºdo CC, considerando a regra básica em matéria de legitimidade, retirando do preceito a nulidade dos atos de transmissão de bens inquinados com ilegitimidade17.

Pedro Pais Vasconcelos, também distinguindo legitimidade de capacidade, considera a legitimidade uma particular posição da pessoa perante um interesse ou situação jurídica que lhe permite agir sobre eles, resultando de uma relação privilegiada entre a pessoa que age e os concretos interesses ou situações sobre as quais ela está habi- litada a agir18. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos defende que a regra, para uma situação de ilegitimidade, é a da inefi cácia do ato19, a menos que a legitimidade seja um elemento essencial e, portanto, conduzindo a uma nulidade devido à falta de um elemento essencial substantivo. De facto subscrevo também a ideia de que, na falta de regime específi co, deve recorrer-se ao regime da represen- tação sem poderes e à venda de bens alheios, por analogia, quando se justifi que a aplicação desses mesmos regimes

Parece-me que a diferença entre estas duas posições reside no ponto de partida de cada entendimento. Menezes Cordeiro parte da ideia de que a legi- timidade é algo intrínseco, algo existente na esfera de cada um, uma liberdade geral, que é atuável perante uma dada situação jurídica. Já Pedro Pais Vascon- celos, a meu ver, entende que a legitimidade é apurada face a uma dada situação

14 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, cit., págs.15 e ss.

15 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, cit., págs.15 e ss.

16 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, cit., págs.15 e ss.

17 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, cit., pág.24

18 Vasconcelos, Pedro Pais de, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012.

19 Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, A Autorização, cit., pág. 60.

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jurídica, sendo a manifestação do seu poder de agir face aquela situação, em concreto. Claramente que, a diferenciação de pontos de vistas, tem refl exos nas consequências jurídicas da atuação sem legitimidade. Como Menezes Cordeiro encara a legitimidade como uma liberdade geral, entende que um ato praticado ilegitimamente tem a consequência mais gravosa do ordenamento jurídico, a nulidade, como dispõe o artigo 892.º do CC, relativo à venda de bens alheios, preceito que se refere, de forma evidente, à ausência de legitimidade. Pedro Pais Vasconcelos, como defende que a legitimidade deve ser apurada aquando da atuação de uma situação jurídica, criando uma tal relação privilegiada, vem defender que a consequência é a da inefi cácia do ato, todavia, para, na minha ótica, salvaguardar os casos de venda de bens alheios e outros de casos de con- tratos onerosos, em que se aplica o artigo 892.º do CC, por via do artigo 939.º do CC, quando surjam situações paralelas, entende que se poderá aplicar, ana- logicamente, o regime da venda de bens alheios, desde que a legitimidade seja um elemento essencial, sendo que aceita, também, a aplicação do regime da representação sem poderes, quando estejam em causa situações que se apro- ximem desse regime, penso que sejam as situações de falta de legitimidade indireta.

Tenderei a dizer que estes autores vêm a defender que a legitimidade pode consubstanciar um elemento essencial, nomeadamente, no que diz respeito aos atos de disposição. A mais saliento, que tendo a considerar que a regra, para os atos praticados sem legitimidade, é a da inefi cácia. A inefi cácia, em sentido estrito, signifi ca que o ato, o negócio, não padece de vícios, todavia, devido a fatores que lhe são extrínsecos, não produz efeitos na ordem jurídica20. Em regra, a legitimidade surge como um pressuposto para atuação de uma situação jurídica, a sua não verifi cação conduz, exatamente, a não produção de efei- tos jurídicos, repare-se a este propósito a cominação do artigo 268.º do CC.

Porém, há casos em que a legitimidade, para o sistema jurídico, é confi gurada como um elemento essencial e, dado a isso, a verifi cação de uma situação de ilegitimidade leva a que o ato seja inválido, e não produza também efeitos jurídicos, porque o que existe é a ausência de um elemento intrínseco. Isto verifi ca-se tanto na venda de bens alheios como no legado de coisa pertencente ao onerado ou a terceiro (artigo 2251.º do CC).

20 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, Coimbra, 2009, pág. 856.

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São requisitos da existência de uma venda de um bem alheio a venda como bem próprio de uma coisa alheia, coisa que é específi ca e presente, fora do âmbito das relações comerciais e a ausência de legitimidade para a venda21.

A explicação para este primeiro pressuposto resulta da consulta de todo o sistema jurídico. em primeiro lugar, não será uma verdadeira venda de bens alheios se a coisa for um bem futuro, desde logo, este aspeto resulta do disposto no artigo 893.º do CC, que considera que se o bem for tido como futuro pelas partes, então o regime dessa venda fi ca sujeitos às regras da venda de bens futuros, considerando-se a obrigação assumida o vendedor como válida (artigo 883.º do CC)22. Não poderá ser considerada nula uma venda de coisa genérica porque a qualidade de proprietário do vendedor não é necessária ao tempo da celebração do contrato (artigos 539.º e ss. do CC)23. Tratando-se de uma compra e venda comercial, a venda de um bem que não pertença ao vendedor é perfeitamente válida, como decorre do exposto no artigo 467.º, n.º 2 do CCom..24 Porém, o preceito relevante de onde resulta, de forma explícita, este princípio é o artigo 904.º do CC de onde resulta que só se considerará uma venda de bens alheios, com a aplicação do devido regime, quando se proceda à venda de coisa alheia como própria.

O preenchimento deste pressuposto não está dependente do conheci- mento, pelo vendedor, de que o bem é de terceiro, é aliás, independente desse conhecimento25.

Quanto ao segundo pressuposto, a falta de legitimidade do vendedor, este signifi ca que para haver uma venda de bens alheios, o vendedor não pode estar habilitado a dispor, válida e efi cazmente, do bem, isto porque, uma vez que a faculdade de alienar apenas é conferida ao proprietário, só, por vezes, essas prerrogativas são atribuídas a outras entidades26 – v.g. formas de legitimidade indireta. Assim, não se aplica o regime da venda de bens alheios quando esteja em causa uma venda realizada por um representante do proprietário, pois se este atuar dentro dos poderes que lhe são conferidos, os efeitos da venda reper- cutem-se na esfera jurídica do representado, sendo o proprietário considerado como o verdadeiro sujeito do negócio 27(artigo 258.º do CC). Mesmo que o representante atue sem poderes também não estaremos perante uma venda de bens alheios

21 Pressupostos segundo Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit., págs.

90 e 91.

22 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit, pág. 90.

23 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit, pág. 90.

24 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit, pág. 90.

25 Cunha, Paulo Olavo, Venda de bens alheios, ROA, n.º 47, 1987, pág. 451.

26 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit, pág. 91.

27 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit, pág. 91.

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(artigo 268.º do CC), nesta situação tem o vendedor a possibilidade de revogar ou rejeitar o negócio, enquanto o proprietário não o ratifi car, exceto se no momento da conclusão do negócio conhecia a falta de poderes do represen- tante (artigo 268.º, n.º 4 do CC)28. O mesmo se passa no mandato representa- tivo. No caso do mandato sem poderes de representação, atuando o mandatário como a coisa lhe pertencesse, se vender a coisa alheia como se fosse própria, aplicar-se-á o regime da venda de bens alheios2930.

Um outro pressuposto que costuma ser referido pela doutrina, e que, a meu ver é de isolar é da alienidade do bem, ou seja, do bem pertencer a terceiro31. Como defende Diogo Bártolo está aqui em causa a alienação de um bem que já existe no momento do contrato, mas que pertence a outra pessoa que não o vendedor32. Este A. acrescenta que é necessário que o bem pertença a alguém, pois se a coisa for res nullius, estar-se-á perante a venda de um bem futuro e não perante a venda de um bem alheio.

Este pressuposto leva-nos a excluir determinadas situações da aplicação do regime da venda de bens alheios. São elas:

– bens que estejam fora do comércio (vg. bens do domínio público)33; – venda de um bem na pressuposição de que o bem virá a entrar, a poste-

riori, na esfera jurídica do alienante (aplicar-se-á, neste caso, o regime da venda de bens futuros)34.

Posta esta pequena abordagem ao panorama do regime da venda de bens alheios, cabe fazer uma exegese do artigo 892.º do CC.

II. Exegese do artigo 892.º do Código Civil

Este preceito, embora tenha uma redação de fácil apreensão quanto à sua previsão e estatuição, levanta alguns problemas dogmáticos. Esses problemas

28 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit, pág. 91; Cunha, Paulo Olavo, Venda de bens alheios, ROA, n.º 47, 1987, pág. 451.

29 Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit, pág. 92.

30 Assim também o é na gestão de negócios não representativa (artigo 471.º do CC), a menos que o titular do direito venha a assumir as obrigações do vendedor ou a transmissão do bem. Neste sentido, Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, cit, pág. 92.

31 Cunha, Paulo Olavo, Venda de bens alheios, ROA, n.º 47, 1987, pág. 451.

32 Bártolo, Diogo, Venda de bens alheios, Estudos em Homenagem a Inocêncio Galvão Telles, vol. IV, 2003, pág. 396.

33 Bártolo, Diogo, Venda de bens alheios, Estudos em Homenagem a Inocêncio Galvão Telles, cit., pág. 396.

34 Bártolo, Diogo, Venda de bens alheios, Estudos em Homenagem a Inocêncio Galvão Telles, cit., pág. 396.

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dogmáticos prendem-se com a utilização, na lei, em simultâneo dos conceitos de boa-fé/má-fé e dolo, bem como, com a estatuição de inoponibilidade da nulidade da venda de bens alheios quando a parte contra quem é invocada esteja de boa-fé. São estas questões a que me proponho dar uma resposta.

Para se entender a origem do preceito, e dado que o Direito é um fenó- meno histórico-cultural, é necessário fazer-se uma breve ingressão pela história do regime da venda de bens alheios, sendo que a evolução deste regime se fez a par da evolução do efeito translativo da compra e venda.

O regime da venda de bens alheios que cabe analisar, sem querer remontar ao Direito Romano, que foi alvo de análise de apreciação em sede de outro relatório35, é o que estava plasmado nas Ordenações do Reino.

Nas Ordenações estava contemplada a separação da compra e venda, enquanto negócio obrigacional, de um ato translativo posterior (maxime a tra- dição). Sendo esta a postura assumida, por infl uência do Direito Romano e do Direito Comum, a venda de bens alheios era tida como válida, pois a venda era um mero negócio obrigacional.

As Ordenações Filipinas (Livro III, Tit. XLV) disponham que qualquer que vende cousa alheia será obrigado a compor a dita cousa ao seu comprador com seu inte- resse, salvo se o comprador era sabedor que a dita cousa era alheia porque em tal caso não será obrigado o vendedor a lha compor nem a lhe tornar o preço. Porém o preço se perderá para os cativos, sendo o vendedor disso mesmo sabedor ao tempo da venda que a cousa lhe era alheia.

Deste preceito se retiram algumas conclusões. A primeira delas é que a venda é validada, todavia comporta o surgimento de uma obrigação para o vendedor de cumprir o contrato. Só assim não seria se comprador soubesse do carácter alheio da coisa. Neste caso, o vendedor deixava de estar obrigado a cumprir o contrato e fi ca liberado de restituir o preço pago. O preceito con- templa, ainda, a hipótese de ambas as partes conhecerem a alienidade da coisa.

Nesta situação haveria uma penalidade para ambas as partes com a perda do preço.

2.1. Boa-fé e dolo

Esta dualidade de conceitos jurídicos usados no preceito leva a que haja uma disputa doutrinária sobre a sua interpretação, sendo que essa disputa não se verifi ca tanto na Jurisprudência a que tive oportunidade de ter acesso. Para a

35 A venda de bens alheios numa perspectiva de direito comparado, Relatório Cientifi co elaborado no âmbito dos Seminários de Direito Civil II – Compra e Venda de Mercadorias.

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Jurisprudência parece ser pacífi co que o artigo 892.º do CC acolhe uma ideia de dolo, próximo do conceito de dolo usado no artigo 253.º do CC.

Cabe fazer algumas referências ao entendimento seguido pela doutrina, para que se possa chegar a um porto fi rme.

Será necessário recuar um pouco na dogmática sobre a temática para se perceber o cerne da questão, pois como afi rma Menezes Cordeiro, a razão pela qual o artigo 892.º do CC utiliza a expressão dolo com um alcance que, normalmente, o Código atingiria com o termo má-fé, é de ordem histórica36.

O Código de Seabra, no seu artigo 1555.º, utilizava também os termos dolo e má-fé, em sentido alternativo. Os conceito de dolo e de má-fé apare- ciam defi nidos, no próprio Código, no artigo 663.º § único, como sendo qual- quer sugestão ou artifi cio que se empregue para induzir em erro, ou manter nele, algum dos contraentes, no caso do dolo, e, no caso da boa-fé, como sendo a dissimulação do erro do outro contraente, depois de conhecido.

Coelho da Rocha37 vinha defendendo que o dolo consistia num artifício malicioso, que se emprega para enganar, uma pessoa, e leva-la a practicar uma acção, que sem isso não praticaria. Este mesmo autor falava em duas subcategorias de dolo, dolo principal, aquele que sem o qual não seria praticado o ato, e dolo inci- dente, que sem o qual o ato teria sido realizado de outra forma. Mais à frente na sua obra, Coelho da Rocha afi rma que o dolo é um ânimo deliberado de não cumprir aquilo, a que se está obrigado. Quanto à boa-fé, esta surge, sobretudo, referida a propósito da posse. Coelho da Rocha entendia que a posse tida de boa-fé pressuponha que o possuidor detivesse razões plausíveis para considerar como sua a coisa, já a posse de má-fé seria aquela situação em que o possuidor conhece que a sua posse é viciada, por diversas circunstâncias. Assim sendo, a boa ou a má-fé teriam que ver com um fator interno, uma convicção do possuidor.

Verifi ca-se, aqui, que este doutrinador associava a boa-fé a um estado psi- cológico e a uma situação de desconhecimento, tal como vem refl etido na defi nição de má-fé presente no Código de Seabra supra mencionada. Não é de admirar este aspeto, dado que o Código de Seabra, em certa medida, traduziu a elaboração científi ca que o antecedeu, assimilando as posições de Coelho da Rocha e de Corrêa Telles38.

36 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1983, pág.499

37 Coelho da Rocha, M. António,  Instituições de direito civil portuguez, 1848.

38 Telles, José Homem Corrêa, Digesto portuguez ou Tratado dos modos de adquirir a propriedade; de a gozar e de a administrar, e de a transferir por derradeira vontade; para servir de subsídio ao novo Código Civil, III, 4.ª ed., Coimbra, 1853.

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Guilherme Moreira39, na sua obra, que tem por base o Código de Seabra, acaba por não explicitar, a propósito da venda de bens alheios, o signifi cado dos conceitos jurídicos de dolo e má-fé, usando-os em alternativa, isto a pro- pósito da garantia contra a evicção. Existe apenas uma referência, ao sentido dado ao conceito de dolo, a propósito da posição do adquirente, que conhece o direito de terceiro, evictor, face à coisa, exigindo-se que este conheça e oculte fraudulentamente ao alienante a existência desse direito, para que não haja res- ponsabilidade do alienante. Noutra parte da sua extensa obra, aprofunda esses conceitos.

Segundo Guilherme Moreira, o dolo contrapõe-se à falta de diligência e à culpa, sendo este a intenção de causar um damno ou prejuízo, compreendendo neste caso o dolo propriamente dicto a má-fé, isto é, tanto as hypotheses em que, por meio de falsas afi rmações ou artifícios, se induz uma pessoa em erro, como o silêncio, a inacção, nos casos em que haja o dever de elucidar a outra parte sobre qualquer erro em que ella elabore, para que não se realize em prejuízo desta o locupletamento de quem com ella contracta40.

Atendendo à posição de Guilherme Moreira, pode concluir-se que na dog- mática mais avançada começou a desenvolver-se o pensamento no sentido da assimilação dos conceitos, dando início ao declínio desta terminologia, que cul- minou com o Código Civil de 1966, em que reuniu os dois conceitos no seu artigo 253.º do CC. Todavia, como salienta Menezes Cordeiro, apesar desta evolução de entendimento, a confusão entre o que seja um comportamento doloso e um comportamento de acordo ou contrário à boa-fé persistiu, man- tendo-se no atual Código Civil41.

O aparecimento desta contraposição, como referi, surge no Código de Seabra. Este facto tem que ver com a infl uência do pensamento jusracionalista na obra do Visconde de Seabra, e que estava subjacente à primeira sistemática, cujo expoente máximo é o Código Civil napoleónico, tendo este sido fonte de inspiração da primeira codifi cação portuguesa.

Se se analisar o pensamento de Jean Domat e de Pothier42 verifi ca-se uma escassa referenciação à boa-fé. Domat usa este conceito indeterminado, sem procurar defi ni-lo, mas contrapondo-o ao dolo e a fraude, encarando-a como um valor a prosseguir, acrescentando que tanto o dolo como a má-fé são proi- bidos em quaisquer vinculações. Pothier, por seu turno, ocupa-se da boa-fé em

39 Moreira, Guilherme, Instituições de direito civil portuguez, Coimbra, 1901.

40 Moreira, Guilherme, Instituições de direito civil portuguez, Coimbra, 1901.

41 Idem nota n.º 23.

42 Sobre o pensamento destes autores, Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1983, págs. 241 e ss.

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várias instâncias. A propósito das obrigações aborda-a conjuntamente com o dolo, expressando uma distinção consoante se trate de boa-fé no foro interno ou no foro externo, esta última que se aproximaria do dolo. Quando dogmatiza sobre o contrato de compra e venda, exprime a ideia de que a boa-fé exclui das vinculações não só a mentira como também a omissão de qualquer questão em que a contraparte tenha um interesse em conhecer. Nesta última perspetiva, parece-me que Pothier se aproxima do conceito de dolo enquanto artifícios e engenhos que conduzam à criação de uma situação de engano na contraparte.

O Visconde de Seabra, na sua obra43, que expressa todo um pensamento imbuído do espirito jusracionalista, quando se refere ao dolo, integra-o como uma categoria de erro, sendo causa de nulidade do contrato, tomando os ensi- namentos do Direito Romano, não se isentando de apontar criticas ao pensa- mento romanístico, nesta sede. Não faz qualquer referencia à má-fé.

Creio portanto que o surgimento desta contraposição se deve à grande relevância que o direito francês e a dogmática francesa teve na elaboração da primeira codifi cação portuguesa. Como salienta Menezes Cordeiro a boa-fé, e a sua construção cientifi ca, não saiu fortalecida com o Código de Napoleão.

Dada a coloração jusracional nele patente, e depois patente no Código de Sea- bra, deu-se uma incapacidade de evoluir noutro sentido44.

Cunha Gonçalves45, a propósito do artigo 663.º do Código de Seabra, elo- giava a solução então vigente de separação dos conceitos jurídicos de dolo e má-fé defendendo que a terminologia do Código era superior à dos países estrangeiros, onde as leis e a doutrina, sob a palavra dolo, abrangem a má-fé.

Para este autor, o dolo pressupõe a intenção de enganar ou ludibriar o outro contraente, sendo que não haveria dolo quando se verifi que um simples exa- gero ou encarecimento das boas qualidades da cousa que se pretende vender, tal como não constitui dolo qualquer omissão involuntária.

Cunha Gonçalves, no seu comentário ao preceito, artigo 633.º46, afi rmava que se exigia um dolus malus, um engano intencional realizado por sugestões ou afi rmações mentirosas e aliciantes, e artifícios ou manobras fraudulentas, con- sistindo em disfarçar a realidade das cousas sob falsa aparência, ou em colocar a outra parte em condições de não dar fé, não ter consciência plena do que faz.

43 Seabra, António Luís de, A Propriedade, Filosofi a do Direito; para servir de introdução ao Comentá- rio sobre a lei dos forais, Coimbra, 1850; Resposta do autor do Projecto do Código Civil às Observações do sr. dr. Joaquim José Pais da Silva, Coimbra, 1859.

44 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., págs. 279 e ss.

45 Cunha Gonçalves, L., Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil Português, VIII, Coimbra, 1935.

46 Idem nota n.º 32.

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Já a má-fé ou reticência, na expressão usada pelo autor, consiste na dissimu- lação do erro do outro contraente depois de conhecido. Este A. via na má-fé uma atitude passiva, consistindo no silêncio voluntário e ilícito acerca dos defeitos das cousas expostas à venda, e que não podem ser facilmente verifi cados, ou sobre quaisquer facto, que infl uíram no consentimento do outro contraente. A má-fé distinguia-se da fraude, na medida em que a fraude seria aplicável aos actos, simulados ou verdadeiros, mas praticados para prejudicar terceiros, credores ou co-herdeiros, bem como à inexecução propositada do contrato. Tanto o dolo como a má-fé, para Cunha Gonçalves implicavam uma intenção de prejudicar o outro contraente, sendo que, existindo um artifi cio, uma mentira ou sugestão com um bom fi m, não haverá dolo, nem má-fé.

Outra questão que andava associada a este aspeto era a de saber se se estava perante uma nulidade relativa ou uma nulidade absoluta, na venda de bens alheios. Este era aliás um aspeto muito debatido. Cunha Gonçalves considerava que não se estaria perante uma verdadeira invalidade, mas sim perante a possibi- lidade de resolver o contrato47. Assim, a venda de bens alheios seria valida, mas resolúvel, dada a inexecução da obrigação do vendedor. Por outo lado, Paulo Olavo Cunha48 entendia que se estaria perante uma nulidade relativa, a que corresponde, segundo o mesmo autor, à atual categoria de invalidade designada por anulabilidade. A venda de bens alheios seria, portanto, válida, até que fosse, por alguma forma, posta em causa com a suscitação da sua invalidade.

Na elaboração do atual Código Civil o dilema que se verifi cava, até então, manteve-se de alguma forma, tendo sido e mantida a contraposição dolo e boa- -fé, entendendo-se que este dolo abrangeria a má-fé, que era a expressão usada no Código de Seabra. Embora se mantenha esta contraposição verifi ca-se que Galvão Telles, ainda a propósito dos Trabalhos Preparatórios, sempre se referiu à questão usando apenas o conceito de boa-fé49.

Apesar destas considerações a doutrina ainda se encontra dividida quanto à interpretação do artigo 892.º do CC, nomeadamente em saber o sentido da expressão dolo, neste contexto.

47 Gonçalves, Cunha, Da compra e venda no direito comercial português, 2.ª ed., Coimbra, 1924, pág. 229.

48 Cunha, Paulo Olavo, Venda de Bens Alheios, ROA n.º Ano 47-II, Lisboa, 1987.

49 Galvão Telles, I., Dos contratos em especial, I e II, compra e venda e locação. Anteprojecto de dois capí- tulos do futuro Código Civil português, separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, V, 1948;

Aspectos comuns aos vários contratos (Exposição de Motivos referente ao Título do futuro Código Civil português sobre contratos em especial), separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, VII, 1950; Contratos civis (Projecto completo de um título do futuro Código Civil Português e Respectiva Exposição de Motivos), separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, IX – X, 1953.

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Paulo Olavo Cunha50 defende que da contraposição boa-fé e dolo, cons- tante do artigo 892.º do CC, resulta que o sentido de dolo deve ser o de má-fé, com uma conotação aproximada da que resulta do artigo 253.º e não da que é consagrada no artigo 483.º (dolo-culpa). Esta é, aliás, a posição seguida também por Menezes Cordeiro, Carneiro da Frada e Romano Martinez.

Romano Martinez51 preconiza que os conceitos boa-fé e dolo, constantes do artigo 892.º do CC, devem ser entendidos em sentido subjetivo, como formas psicológicas. Assim, para este autor, está de boa-fé quem não sabe que o bem é alheio, e age dolosamente quem pretende causar prejuízo a outrem.

Saliento, contudo, que o entendimento de boa-fé defendido por Romano Martinez vai no sentido de se tratar de boa-fé em sentido ético, não havendo tutela do desconhecimento negligente.

Pires de Lima e Antunes Varela52 fazendo uma interpretação restritiva do conceito de dissimulação, que consta do artigo 253.º n.º1 do CC, entendem que para haver dolo do comprador não basta que este saiba que a coisa vendida não pertença ao vendedor e que este não tem legitimidade para a alienar, sendo necessário que o adquirente induza em erro o vendedor, e que o tenha man- tido nesse erro, ou mesmo que, tendo conhecimento do erro em que incorre o alienante, dissimule essa situação.

Galvão Telles53 defendia que para haver dolo do comprador, e portanto o signifi cado de dolo, neste contexto, apenas era necessário que o adquirente tenha celebrado o negócio tendo conhecimento de que a coisa era pertença de terceiro.

Diogo Bártolo54 entende que, a expressão dolo usada no artigo 892.º do CC, tem o mesmo sentido que é dado nos artigos 483.º, 898.º e 899.º do CC, sendo uma forma de culpa menos grave, portanto, negligência. Dolo, para este autor, tem a mesma signifi cância que a expressão dolo, no artigo 483.º do CC, exigindo portanto que haja uma intenção de praticar o ato ilícito ou, pelo menos, consciência de o praticar, sendo sufi ciente, portanto, o conhecimento por parte do comprador da alieniedade da coisa e da falta de legitimidade do vendedor, dispensando assim a prova da existência de um comportamento do

50 Cunha, Paulo Olavo, Venda de Bens Alheios, cit., pág. 452.

51 Martinez, Pedro Romano, Direito das obrigações (Parte especial). Contratos. Compra e venda. Loca- ção. Empreitada, 2.ª ed., Coimbra, 2001, págs. 115 e ss.

52 Lima, Pires de, e Varela, Antunes, Código civil anotado, II, 4.ª ed., Coimbra, 1997.

53 Contratos civis (Projecto completo de um título do futuro Código Civil Português e Respectiva Exposição de Motivos), separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, IX – X, 1953, pág. 128.

54 Bártolo, Diogo, Venda de bens alheios, Estudos em Homenagem a Inocêncio Galvão Telles, vol. IV, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 399 e ss.

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comprador no sentido de induzir ou manter em erro o alienante, ou mesmo da existência de uma dissimulação desse erro por parte do comprador.

O que pensar desta última posição, que como se pode verifi car, se afasta muito das anteriormente citadas.

Em primeiro lugar, há uma equiparação, no direito civil português, dos regimes do dolo e da mera culpa (negligência), exceto no que diz respeito à fi xação da indemnização, nos termos do artigo 494.º do CC. Signifi cando isto que a expressão culpa abrange ambas as situações, dolo e negligência. Posto isto, fará sentido entender-se que a expressão doloso, no caso do artigo 892.º do CC, tem a amplitude de abranger a negligência? Se assim for, qual o sentido a dar a outras referências, como culposamente, constante do artigo 798.º do CC?55

Há ainda que ponderar o regime de indemnização constante dos artigos 898.º e 899.º. Começando pelo artigo 899.º do CC. Se se entender que a expressão doloso equivale a culpa, no sentido dado pelo artigo 483.º do CC, qual o signifi cado do conceito culpa neste preceito?

Acresce que no artigo 898.º do CC existe uma limitação, quanto à fi xação da indemnização, quando um dos contraentes proceda de boa-fé e outro aja dolosamente, pois apenas é indemnizável o interesse contratual negativo. Con- trariamente, quando esteja em causa a indemnização de danos causados por dolo ou negligência, são indemnizáveis todos os danos causados pela conduta ilícita56.

Observando-se, ainda, o regime da venda de bens onerados, constante dos artigos 905.º e seguintes do CC, salienta-se que existe aqui também apelo à existência de um comportamento praticado com dolo. Este dolo aqui não é interpretado, pela maioria da doutrina, como sendo um dolo-erro, ou seja, o erro qualifi cado por dolo, nada tendo que ver com o dolo referenciado no artigo 483.º do CC, se é assim, porque não se deve entender o mesmo no caso da venda de bens alheios? Parece não fazer sentido dar soluções diferentes estamos perante situações similares, tratadas pela doutrina como perturbações típicas da compra e venda, e que no fundo correspondem a vícios de que a coisa padece quando adquirida pelo comprador, na sequencia da celebração de um contrato de compra e venda.

Por fi m, pode apontar-se um argumento histórico-doutrinário. Desde Coelho da Rocha, cultor supra citado, anterior a primeira codifi cação, que se faz uma distinção entre o dolo, para efeitos de erro e dolo para efeitos de res- ponsabilidade civil, sendo certo que o dolo, enunciado no regime da venda de

55 Neste sentido, Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 502.

56 Neste sentido, Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 502.

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bens alheios, era a designada má-fé, que corresponde agora ao dolo do artigo 253.º do CC, como já referido.

Pelo exposto, a expressão dolo ou doloso deve ser interpretada de acordo com o com o artigo 253.º, n.º1, in fi ne do CC. Todavia, essa interpretação deve atender à evolução histórica do conceito de dolo associado à venda de bens alheios. Assim, dolo ou doloso, neste âmbito, é aquele que age de má-fé, no sentido de conhecer a alienidade do bem e ocultar esse facto do outro contraente, assemelhando-se à ideia de dissimulação. Não parece ser possível dar uma dimensão mais vasta, pois creio que não está em causa uma remissão para o regime do erro, ou seja, problema de formação da vontade, pois caso contrário a solução não passaria pela nulidade, embora com particularidades, da venda de bens alheios, para além de que essa questão da aproximação ao regime do erro nunca foi colocada nos trabalhos que acompanharam a elaboração dos Trabalhos Preparatórios.

2.2. Noção de boa-fé

A boa-fé contemplada no regime civil da venda de bens alheios é a boa-fé em sentido subjetivo.

Como salienta Menezes Cordeiro, a contraposição boa-fé/má-fé, em todo o regime da venda de bens alheios, implica que para que haja aplicação do regime se verifi que uma ausência ou a presença do conhecimento da alienidade do bem, sendo que se assiste à atribuição de um papel sancionatório à má-fé, prejudicando, segundo Menezes Cordeiro uma perspetiva psicológica pura da má-fé , denotando-se pressões no sentido de uma boa-fé ética nítidas57.

É, portanto, necessário verifi car onde se denota o caráter sancionatório da má-fé, no regime da venda de bens alheios. A primeira mostra deste facto fi ca a dever-se ao regime da inoponibilidade da nulidade da venda, constante do artigo 892.º do CC. Estando uma das partes de boa-fé e, a contraparte no negócio, de má-fé, a parte que está de má-fé não pode opor a nulidade da venda ao contraente que esteja de boa-fé. Se se atender ao artigo 894.º n.º1 do CC é verifi cável, ainda, que só o comprador que esteja de boa-fé tem direito à restituição integral do preço, discutindo a doutrina a forma de restituição do comprador de má-fé58.

57 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 503.

58 Sobre a questão, Ventura, Raúl, “Contrato de compra e venda no Código Civil. Efeitos essenciais:

a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; a obrigação de entregar a coisa”, Revista

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Outra demonstração surge do artigo 897.º do CC, do qual resulta que ape- nas existe uma obrigação, para o vendedor, de convalidar o contrato de compra e venda nulo, por falta de legitimidade, quando o comprador esteja de boa-fé59. Ainda, nos termos do artigo 899.º do CC só haverá responsabilidade obje- tiva, ou seja, um direito a uma indemnização por parte do vendedor que haja sem culpa e sem estar de má-fé, quando o comprador esteja de boa-fé. Existem ainda mais duas mostras do regime sancionatório da má-fé que são o estabe- lecimento de uma responsabilidade solidária do vendedor, no pagamento de benfeitorias, face ao titular do direito de propriedade sobre a coisa, quando o comprador esteja de boa-fé.

Por fi m, a última nota vai para o facto de, embora existindo normas suple- tivas, afastáveis pelas partes mediante acordo (artigo 903.º do CC), em matéria de venda de bens alheios, nenhuma dessas normas afastáveis tem que ver com a proteção do contraente de boa-fé, signifi cando que as normas que impõe um regime favorável, diferenciador de um contraente de boa-fé, são injuntivas.

Salienta-se aqui um aspeto, com exceção do artigo 892.º do CC, existe uma proteção exacerbada do comprador de boa-fé, podendo isto signifi car que este detém uma posição jurídica com um tipo de tutela diferenciada, como veremos infra.

O sancionamento da má-fé tem que ver, como se comprova com as mos- tras acima enunciadas, com a criação de uma situação de desfavor perante o homem médio, colocado nas mesmas circunstâncias.

Verifi ca-se aqui, como em outras disposições do nosso Código uma dico- tomia entre boa-fé, tutelando-se a parte que se encontra neste estado e, má-fé, penalizando-se o agente neste estado jurídico, tendo o estabelecimento desta dicotomia de regimes fundamento num ou e alguns fatores, pois, citando Menezes Cordeiro60, a boa ou má-fé apenas constitui um fator de aplicação do sistema, visto no seu todo, não formando um subsistema próprio aplicável fora do sistema em si. É necessário ponderar que outros fatores concorrem no regime da venda de bens alheios. Esses fatores, no meu entender, têm que ver com a necessidade do sistema jurídico tutelar a segurança no comércio jurídico, na circulação e transmissão de bens, penalizando a dissimulação, o engano, as situações de ilegitimidade na alienação dos bens, e de vedar as intromissões na esfera jurídica alheia, para as quais não há autorização.

da Ordem dos Advogados, 1983, III, p. 587 ss; Leitão, Luís Menezes, Direito das Obrigações, Vol.III, cit., pág. 111; Bártolo, Diogo, Venda de Bens Alheios, cit., pág. 410.

59 Neste sentido, Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 503.

60 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 511.

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A boa-fé, referida a propósito deste regime jurídico, é uma boa-fé subje- tiva, devendo ser entendida em sentido ético. A boa-fé subjetiva, em sentido ético, postula que se cumpram deveres de cuidado e de indagação. Assim, estará de boa-fé, para efeitos do regime da venda de bens alheios, maxime, para efeitos do artigo 892.º do CC, quem se encontre numa situação de desconhecimento não culposo, ou seja, que desconheça, embora tenha cumprido os deveres de indagação e cuidado que se imponham para conhecer da alienidade do bem.

Não se deverá considerar que se está perante a boa-fé subjetiva, em sentido psi- cológico, porque, entre outras razões, não é possível provar o intuito da pessoa, o desconhecimento por si só de determinado facto, sendo que, uma decisão sobre o estado de ciência puramente psicológico, seria uma aparência, dado a inacessibilidade ao conhecimento obtido pelo agente, a não ser que se recorram a elementos externos e falíveis. A solução passaria sempre por recorrer a juízos de normalidade, de recorrer à ideia do homem médio, colocado naquelas cir- cunstâncias, se este poderia ou deveria conhecer a situação61.

A apreciação do cumprimento desses deveres de cuidado e de indagação tem de ser realizada no caso concreto, nada tendo que ver com o cumprimento de um dever geral de agir honestamente.

A grande questão que se coloca prende-se com este aspeto. Menezes Cor- deiro, de forma isolada na doutrina, considera que no artigo 892.º do CC contempla uma manifestação de abuso de direito, na modalidade de tu quoque, quando se estipula que o comprador doloso não pode opor a nulidade ao ven- dedor de boa-fé62.

Como se sabe o abuso de direito, enquanto instituto geral, com sede legal no artigo 334.º do CC, é uma concretização da boa-fé objetiva, no nosso sis- tema jurídico, não tendo que ver com fatores atinentes ao sujeito, com estados atinentes ao sujeito, mas sendo encarada como regra de conduta. A boa-fé objetiva consiste num modo de atuação coerente com os princípios e valores do sistema, sendo uma regra imposta do exterior que se impõe as condutas dos sujeitos jurídicos. É ainda considerada um corretivo de normas suscetíveis de comportar uma aplicação contrária ao sistema. Entenda-se que é um corretivo para aplicação dessas normas num dado caso concreto63.

O abuso de direito consiste num exercício disfuncional de posições jurídicas contrariando a boa-fé, que exprimir os valores fundamentais do sistema. Signi- fi ca que, para que exista uma conduta abusiva, é necessário que haja uma per-

61 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 515 e ss.

62 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 838.

63 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 661 e ss; Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo V, 2007, pág. 239 e ss.

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missão normativa especifi ca de aproveitamento de um bem64, e que, o sujeito exceda manifestamente os limites gerais que lhe são impostos pelo sistema, que são a boa-fé, os bons costumes e o fi m social e económico dessa permissão.

O problema, a meu ver, prende-se com a seguinte constatação. Como se referiu supra, no artigo 892.º do CC encontra-se uma manifestação de boa-fé subjetiva ética, e, o instituto geral do abuso de direito reporta-se à boa-fé, em sentido objetivo. Assim sendo, fará sentido dizer-se que se está perante uma manifestação de um exercício abusivo ou uma regulação típica de comporta- mentos abusivos? Qual a relação entre o artigo 892.º e o artigo 334.º do CC?

Menezes Cordeiro apela a uma distinção entre os chamados comporta- mentos típicos abusivos e a regulação típica de comportamentos abusivos65. Segundo Menezes Cordeiro a regulação típica de comportamentos abusivos traduz uma forma de solucionar todas ou algumas situações de abuso, dotada de uma certa unidade linguística e, por vezes dogmática, uma vez que são típicas as regulações não permitem uma classifi cação, uma vez que ora se sobrepõe parcialmente (pois o mesmo ato pode ser objeto de várias regulações), ora deixam por cobrir espaços abusivos pos- síveis. As formas de regulação típica se contrapõem os comportamentos típicos, ou seja, comportamentos que são formas disfuncionais de exercício do direito mas que encontram assento legal. Os comportamentos típicos abusivos têm subjacente a ideia de tentar uniformiza situações que ocorrem com frequência dotando as de uma regulação legal. As chamadas regulações típicas são a exceptio doli, venire contra factum proprium, tu quoque, suppressio e a surrectio.

O artigo 892.º do CC contempla, a meu ver, aquilo que será um compor- tamento típico, no caso do comprador doloso opor a nulidade ao vendedor de boa-fé. Perguntar-se-á o porquê desta restrição. Parece- me clara a justifi cação desta restrição se tivermos em conta que o regime da venda de bens alheios se destina a tutelar o comprador que, em virtude, do bem não pertencer ao comprador não adquire, de imediato, a propriedade sobre o mesmo. Tutela-se, refi ra-se, o comprador de boa-fé, como veremos em pormenor infra. São ilus- trativos disto mesmo os artigos 897.º, 899.º, 900.º, 901.º e 902.º do CC. A res- trição não é mais que a expressão do já enunciado, do sancionamento da má-fé, também na vertente de vedar o exercício disfuncional da permissão genérica de impugnação66 e de usar do direito potestativo de ex bona fi de, de invocar a tutela

64 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2007, pág. 335.

65 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo V, cit., pág. 264, nota n.º 768.

66 Sobre a nulidade, Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I págs. 858 e ss.

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da confi ança, características que particularização as nulidades relativas, como no caso do artigo 892.º CC67.

Desta forma creio que entre o artigo 892.º CC, quando esteja em causa proibição de arguição da nulidade pelo comprador face ao vendedor, e o artigo 334.º CC existe uma relação de especialidade, sendo que a aplicação do artigo 892.º CC afasta a aplicação, enquanto regra especial, da regra geral (artigo 334.º do CC), naquelas situações em que regula uma situação particular68, não impli- cando o recurso ao critério da boa-fé subjetiva ética o afastamento da aplicação do principio geral d direito civil que é a boa-fé, em sentido objetivo, enquanto expressão dos valores fundamentais do sistema.

Uma das particularidades que aqui releva é o tipo de nulidade. A nulidade como foi referido, trata-se de uma permissão normativa genérica. Em regra, a nulidade opera ipso iure, independentemente da vontade de um interessado em a desencadear, e, pode ser invocada por qualquer interessado ou conhecida ofi ciosamente pelo Tribunal (artigo 286.º do CC).

No caso da venda de bens alheios estamos perante uma nulidade específi ca com características distintas, características essas que passam por haver uma res- trição à legitimidade para ser arguida, por parte dos contraentes, e, em conse- quência disto, não poderá ser declarada ofi ciosamente pelo tribunal, sob pena de se frustrar o efeito útil dessa limitação69, bem como pela existência de uma obrigação de convalidação, que funciona como um desvio à regra do artigo 286.º do CC. Em regra o artigo 289.º do CC não é aplicável, quando esteja em causa uma venda de bens alheios, dado o regime específi co consagrado entre os artigos 892.º e seguintes do CC, onde se consagra uma obrigação de convalidação e o próprio regime da restituição do preço é divergente (artigo 894.º do CC). apenas opera o recurso à regra geral se ambas as partes estiverem de má-fé70.

Os desvios são explicados por razões de justiça e de tutelar a boa-fé do contraente, neste caso, vendedor de boa-fé, que tem de manter o contrato e sujeitar-se às suas consequências.

O que se verifi ca, nesta situação, é uma paralisação da permissão genérica de arguir a nulidade de invocar a boa-fé para daí retirar a tutela que deriva

67 Cordeiro, António Menezes, Da inefi cácia civil: refl exões criticas, O Direito, n.º 140, 2008, págs.

239 e ss.

68 Ascensão, José Oliveira de, O Direito, 13.ª ed., 2005, págs. 528 e 529.

69 Cunha, Paulo Olavo, Venda de bens alheios, ROA, n.º 47, 1987, pág. 452; Ventura, Raúl, O contrato de compra e venda no Código Civil, cit., pág. 313; Cordeiro, António Menezes, Da inefi - cácia civil: refl exões criticas, cit.

70 Cunha, Paulo Olavo, Venda de bens alheios, ROA, n.º 47, 1987, pág. 453.

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desse estado jurídico de desconhecimento não culposo na alienidade do bem.

Trata-se de uma paralisação do direito consagrada expressamente, não sendo necessário invocar-se a cláusula geral do artigo 334.º do CC. É o próprio sis- tema interno que resolve, desde logo, a situação ao não permitir o exercício do direito por violar os ditames da boa-fé objetiva.

Como a questão em análise existem outras semelhantes no direito civil por- tuguês, sendo estas enumeradas por Menezes Cordeiro71. As situações elencadas por Menezes Cordeiro, muitas delas se reconduzem a este efeito de paralisação de um dado comportamento realizado por alguém que age com dolo/má-fé, comportamento esse que era tendente a ser oponível a alguém que se encontre de boa-fé. Veja-se alguns exemplos72:

1. artigo 647.º do CC, assim se a pessoa que obteve por meios ilícitos uma coisa ou que realize de má-fé determinadas despesas não tem direito de retenção, sendo que de outro modo teria esse direito;

2. artigo 275.º, n.º 2 do CC, contempla a situação do benefi ciário da con- dição não poder aproveitar-se da sua verifi cação quando, contra a boa- -fé, a tenha provocado; o prejudicado não pode benefi ciar da não veri- fi cação quando, contra a boa-fé, a tenha impedido;

3. artigo 756.º, als. a) e b) do CC, prescreve a situação de o devedor que, de boa ou má-fé, preste coisa de que lhe não seja lícito dispor, não poder impugnar o cumprimento sem oferecer nova prestação.

É possível dizer-se que nestas situações, como no artigo 892.º do CC, que estamos perante uma correção do sistemas às situações contrárias à boa-fé objetiva, prescrevendo assim a paralisação de uma prerrogativa que ele próprio confere.

Menezes Cordeiro entende que no caso do artigo 892.º do CC estamos perante uma manifestação de tu quoque, enquanto tipo abusivo.

A fi gura do tu quoque pressupõe que exista o aproveitamento, por parte de um sujeito, da violação de um comando jurídico, pretendendo vir a apro- veitar-se dessa violação para se frustrar ao cumprimento dos seus deveres jurí- dicos, para exigir de outrem o acatamento de deveres jurídicos e/ou para lhe impor determinadas consequências jurídicas que derivam do não acatamento do comando jurídico73. No fundo, está em causa o exercício de uma determi-

71 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, pág. 838.

72 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, pág. 838.

73 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 837 e ss; Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo V, 2007, pág. 326 e ss.

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nada posição jurídica, atribuída por uma norma jurídica, após o desrespeito de uma norma jurídica.

A construção do tu quoque, para Menezes Cordeiro, parte da ideia de direito subjetivo – permissão normativa especifi ca de aproveitamento de um bem74. Com o estabelecimento de um direito subjetivo surgem deveres para outros envolvidos, deveres correlativos, e não permissões para não benefi ciários.

Existe, portanto, a criação de uma regulação material querida pelo Direito.

Quando uma das partes crie um desequilíbrio nessa regulação material, agindo contrariamente à boa-fé, não pode querer aproveitar-se da sua posição jurí- dica, atribuída pela ordem jurídica, como se nada se tivesse passado, como não tivesse na origem do desequilíbrio da relação material estabelecida pelo sistema Tendo criado um desequilíbrio, no caso da venda de bens alheios, o com- prador doloso ter dissimulado o conhecimento da alienidade do bem, o sistema faz repercutir determinadas consequências jurídicas. Essas consequências passam pela cessação do direito de arguir a nulidade da venda de bens alheios, como dispõe o artigo 892.º do CC, bem como, pelo surgimento de um direito a uma indemnização para o vendedor de boa-fé, nos termos do artigo 898.º do CC, sendo que o vendedor não está adstrito a convalidar o contrato, nos termos do artigo 897.º do CC.

Verifi ca-se aqui uma manifestação do princípio da primazia da materiali- dade subjacente. Verifi ca-se, de forma clara, que o sistema procurou através de normas, obter soluções efectivas75, tutelando situações materiais concretas.

Nomeadamente, denota-se aqui um reforço da aplicação de normas constitu- tivas de uma situação, pois a propósito da boa-fé subjetiva penaliza-se a má-fé, sendo que esse reforço é acompanhado, por se estar perante boa-fé subjetiva, pela imposição de deveres de indagação e de cuidado à contraparte para que possa vir a ser tutelada. A realização deste princípio vai operar através da ido- neidade valorativa, ou seja, o sistema vem a afastar a utilização de uma situação jurídica, que surge por violação de um comando jurídico, contra outrem.

A questão que se pode suscitar é se não terá, nesta sede, aplicação prática a fi gura do venire contra factum proprium.

Como salienta Menezes Cordeiro há casos de venire contra factum proprium que não são resolvidos satisfatoriamente com recurso à confi ança. Será que estamos perante uma dessas situações?

74 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 851.

75 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, cit.

pág. 415.

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Como refl ete Menezes Cordeiro76, tendo estado ligada à tradição canónica, funcionando aí como um princípio geral de Direito. O venire traduz-se no exercício de uma posição jurídica pelo particular, em sentido contrário, com a postura anteriormente assumida por este. Assim, estruturalmente, o venire pressupõe dois comportamentos tomados pelo mesmo agente, comportamen- tos lícitos, mas contraditórios entre si, existindo entre estes um lapso temporal.

Estes comportamentos revelam-se contraditórios uma vez que a primeira pos- tura tomada pelo agente (factum proprium) vem a ser contraditada pela segunda conduta deste (venire). Estas duas condutas em contradição direta fazem com que seja necessária a intervenção do Direito.

Doutrinariamente, entre nós, esta fi gura tem sido explicada através da dou- trina da confi ança. Baptista Machado77, por exemplo, entendia que o princí- pio da confi ança era um princípio ético-jurídico fundamental da nossa ordem jurídica, e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confi ança legí- tima baseada na conduta de outrem. Para Baptista Machado poder confi ar é uma condição básica de toda a convivência pacífi ca e da cooperação entre os homens, uma não correspondência do sistema com a confi ança minaria a inte- ração humana. Há para este A. uma associação entre comunicação, autovincu- lação e responsabilização pela conduta comunicativa assumida, encaixando-se aqui a fi gura do venire contra factum proprium. Todavia, para este A., a tutela da confi ança só tem razão de ser quando a conduta contrária à fi des causar ou for suscetível de causar danos a outrem. Para Menezes Cordeiro, a proibição de venire contra factum proprium também refl ete uma manifestação da tutela da con- fi ança, tendo a sua base legal no artigo 334.º do Código Civil e na boa-fé obje- tiva, funcionando a confi ança como um critério de decisão, dado que postula que um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confi ança das pessoas. Para que a confi ança seja tutelada, embora com contornos diferenciados, a doutrina tem apontado os seguintes pressupostos:

1. existência de uma Situação de Confi ança;

2. existência de uma Justifi cação para a Confi ança;

3. haja um Investimento de Confi ança;

4. que essa Confi ança seja imputada à pessoa que vai ser atingida pela pro- teção dada ao confi tente.

76 Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit., pág. 742 e ss; Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo V, 2007, pág. 275 e ss.

77 Machado, João Baptista, Tutela da confi ança e «venire contra factum proprium», Revista de Legisla- ção e Jurisprudência (RLJ), Ano 117, p. 229 ss., reproduzido na “Obra dispersa”, I, Braga, 1991, p. 384 ss.

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Estes pressupostos ou proposições articulam-se entre si, não existindo qual- quer hierarquia podendo perfeitamente não estar todas reunidas, desde que uma delas assuma uma intensidade especial, face às restantes78.

Perguntar-se-á se do artigo 892.º, quando paralisa o direito do comprador alegar a nulidade, estando de má-fé, se reconduz a fi gura do venire contra factum proprium, ou seja, se haverá aqui uma contradição entre dois comportamentos, lícitos entre si? A conduta do comprador doloso está em contradição com a postura anteriormente assumida?

Como referi supra é possível que o preenchimento dos chamados tipos tenha por base a mesma conduta. Assim, é possível abstratamente que o com- prador doloso crie no vendedor uma situação de confi ança, justifi cada, e que por isso o vendedor tenha realizado um investimento, praticando determinadas atividades jurídicas, que se reconduza à fi gura do venire contra factum proprium.

Porém, o cerne da questão, o que preside a esta paralisação do direito do comprador em invocar a nulidade quando esteja de má-fé, reside no facto do sistema pretender proibir o comprador de se aproveitar de uma ilícita para a qual, ele próprio, contribuiu ou fomentou. Ou seja, na sua pura vertente, não estamos perante comportamentos lícitos contraditórios, muito pelo contrário, a primeira conduta do comprador, que conhecia ou não podia ignorar a alie- nidade do bem é tida pelo sistema como desprezível. Deste modo, não se pode reconduzir à partida esta proibição do sistema à proibição de comportamentos contraditórios, mas sim à proibição de aproveitamento de condutas lícitas para daí retirar algum benefício.

Desta forma, vamos ao encontro do defendido por Menezes Cordeiro, pois a confi ança aqui revelar-se-ia insufi ciente para paralisar da arguição da nulidade pelo comprador doloso. Esta paralisação só é possível com recurso ao outro subprincípio da boa-fé – o princípio da materialidade subjacente.

Diferente é quando nos colocamos na posição do vendedor. Nesse caso é possível que ele atue em desconformidade com o sistema abusando de direito, nas suas diferentes modalidades79.

78 Sobre a concretização destes pressupostos, Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo V, cit., págs. 292 e ss.

79 Sobre os tipos abusivos, em concreto, Cordeiro, António Menezes, Da Boa fé no Direito Civil, cit, págs. 719 e ss.

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III. Posição jurídica do comprador numa venda de bens alheios A posição jurídica do comprador numa venda de bens alheios é uma ques- tão que não tem merecido a atenção da doutrina. Penso que é uma questão que merece refl exão.

Creio não estarmos perante um direito subjetivo, pois não se identifi ca, nesta sede qualquer permissão normativa específi ca de aproveitamento de um bem80,81 ou seja, não existe um comando de atuação dado por uma norma jurídica que permita ao particular atuar. Também não identifi co a existência de um direito potestativo, pois ao particular, neste caso o comprador de um bem que não pertence ao vendedor, contraparte no contrato que os adstringe, não é atri- buído qualquer poder de alterar, de forma unilateral a ordem jurídica82. Não existe, na realidade, qualquer norma jurídica que confi ra um poder de atuar ao particular, sendo que esse poder é exercido se assim o particular o entender.

Não se esgotando nos direitos subjetivos todas as situações jurídicas ativas existentes83, penso que será de ponderar se estaremos perante uma expecta- tiva jurídica, muito embora, estas situações ativas sejam marcadas por alguma imprecisão quanto ao seu conteúdo.

Primeiramente, será de refl etir se estamos verdadeiramente a referir-nos a uma situação jurídica ou a uma mera esperança de aquisição84, também desig- nada por expectativa de facto. A expectativa de facto representa um estado de espírito, nas palavras de Galvão Telles, trata-se de uma mera aspiração a um certo facto ou efeito jurídico, não benefi ciando de proteção jurídica85. Já a expectativa jurídica, em sentido estrito, benefi cia da proteção do sistema jurí- dico86. Esta é um facto de formação complexa e sucessiva87, sendo considerada

80 Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Vol.I, Coimbra, Almedina, 2009, pág. 330. Para este autor, para que exista um direito subjetivo é necessário que haja uma norma que confi ra um poder de atuação, sendo um direito subjetivo uma derivação, um produto de normas, não resultando do poder da vontade, como era defendido por Savigny.

81 O direito subjetivo pressupõe uma permissão normativa específi ca, plena e exclusiva de apro- veitamento de uma coisa corpórea. Assim, Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, cit., pág. 335.

82 Sobre a temática, Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, cit., pág. 336.

83 Neste sentido, Cordeiro, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, cit., pág. 343.

84 Telles, Inocêncio Galvão, Expectativa Jurídica, algumas notas, in Direito, Ano 90, lisboa, 1958, pág. 2.

85 Rei, Maria Raquel, Da Expectativa Jurídica, in Revista da ordem dos Advogados, Vol. I, 1994

86 Rei, Maria Raquel, Da Expectativa Jurídica, cit.

87 Telles, Inocêncio Galvão, Expectativa Jurídica, algumas notas, cit.

Referências

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