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VIAGENS DE MÁRIO DE ANDRADE: A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO BRASIL

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Academic year: 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

MARCELO BURGOS PIMENTEL DOS SANTOS

VIAGENS DE MÁRIO DE ANDRADE: A

CONSTRUÇÃO CULTURAL DO BRASIL

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

MARCELO BURGOS PIMENTEL DOS SANTOS

VIAGENS DE MÁRIO DE ANDRADE: A

CONSTRUÇÃO CULTURAL DO BRASIL

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais sob orientação do Prof. Dr. Miguel Wady Chaia.

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Banca Examinadora ________________________________

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AGRADECIMENTOS

Ao final de uma tese, deve-se registrar os agradecimentos às pessoas que auxiliaram no desenvolvimento do trabalho. É preciso ficar claro que o resultado da tese é um esforço combinado de pessoas que é muito maior e mais amplo que o “simples autor” destas linhas. Por isso, gostaria de agradecer às muitas pessoas e instituições que auxiliaram na realização deste estudo.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela concessão de bolsa no período entre julho de 2007 e dezembro de 2008, também responsável pela bolsa (PDEE) para estágio no exterior, que me permitiu realizar pesquisa durante um ano na Université Paris Ouest – Nanterre – La Défense, entre janeiro e dezembro de 2010. Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pela bolsa oferecida entre janeiro e dezembro de 2009 e no retorno da França entre janeiro e junho de 2011.

Na trajetória acadêmica vinculado à PUC-SP, tive o privilégio de encontrar pessoas que se tornaram amigos presentes para além das fronteiras universitárias, sobretudo no NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política). Agradecimentos especiais ao Eduardo Viveiros, Cristina Maranhão e Telmo Estevinho. À Syntia Alves, que sempre esteve disposta a esclarecer dúvidas e anseios. Silvana Martinho e Rose Segurado também têm sido importantes em diálogos acadêmicos e além destes. Claudio Penteado e Rafael Araújo, companheiros importantes de artigos, congressos, ideias e aprendizagens.

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Às professoras da banca de qualificação, Silvana Tótora e Ude Baldan, sou especialmente grato pela disponibilidade de, em final de ano, poderem ler meu trabalho e fazerem comentários elucidativos sobre os caminhos que deveria seguir. Depois da qualificação, ainda troquei indicações bibliográficas e esclarecimentos teóricos com a professora Ude Baldan. Se todas as sugestões não foram contempladas neste trabalho, não quer dizer que foram ignoradas mas sim, que estão guardadas para serem usadas em desdobramentos desta tese.

Na PUC, ainda sou muito grato às secretárias Katia Cristina da Silva, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e Soraia Félix dos Santos, da Secretaria de Bolsas. Foram elas que sempre me ajudaram com a burocracia e ansiedades inerentes aos doutorandos.

Durante a estada na França no CRILUS (Centre de Recherche Interdisciplinaires sur le monde lusophone) ligado à Université Paris Ouest – Nanterre – La Défense, encontrei algumas pessoas que foram importantes pelo apoio e recepção em um país estrangeiro. Agradeço em especial Vânia Oliveira, Bibiana de Sá, Anna Esteves e José Mauro Barbosa Ribeiro. Lá tive oportunidade de assistir às aulas do Prof. Dr. José Manuel da Costa Esteves no Master en Études Romanes que possibilitaram maior compreensão da literatura de viagens e, consequentemente, das viagens etnográficas de Mário de Andrade.

Ainda na França sou especialmente grato à professora Idelette Muzart – Fonseca dos Santos, minha “directrice de thèse”, que aceitou me receber sob sua orientação, mesmo sem me conhecer de antemão. Também abriu as portas de sua biblioteca particular para auxiliar minha pesquisa. Além disso, graças ao seu aceite, pude manter contato com universidade, pesquisa, bibliotecas e amigos franceses. Sou consciente que sem sua generosidade este trabalho teria tomado outro rumo.

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coordenadora do NASEB – Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros da UFPE, que dialoga comigo desde o seminário de doutorado na PUC-SP, sempre em companhia de Jarbas.

Nessa caminhada de pesquisa tive o privilégio de trocar colaborações e informações com Vera Lúcia Cardim de Cerqueira que também me auxiliou em pesquisas no Centro Cultural São Paulo no acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas. Silvinha Badim também foi uma grande incentivadora deste e outros trabalhos. Zé Garcez foi de suma importância enquanto estive na França, sem ele a vida aqui teria ficado muito mais desorganizada. Tatiana Travisani acompanhou o processo desde o início, estimulando e compartilhando o mesmo sentimento de “doutorandos”.

À Rosa Maria Ortiz Taleb devo agradecimentos pela paciência em rever o texto com todos os atrasos típicos de pesquisadores, com prazos a estourar. Além da revisão cuidadosa também sou grato pela leitura e observações pertinentes através de comentários críticos que ajudaram muito na redação final.

Minha família também foi importante apoio para a conclusão deste trabalho. Sou muito grato aos meus pais, Nelson e Regina Helena, pela ajuda em diversos momentos. Seria impossível elencar tudo o que fizeram. Meus irmãos Maurício, Fernando, Marinella e Julianna também estiveram sempre presentes. Maurício e Marinella sempre me receberam de portas abertas em suas casas quando precisei ficar hospedado em São Paulo e me auxiliaram bastante quando estive fora, assim como Julianna. Fernando tem sido um interlocutor atento e importante companheiro na vida acadêmica. Além destas pessoas, há outras que foram incorporadas à minha família com o passar dos anos e muito me incentivaram: Juliana Ikeda, Ana Cecília e Camilo Neira. Maria de Fátima Soares também colaborou muito enquanto estive fora.

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Por fim, o mais importante. Devo o agradecimento mais sincero ao orientador deste trabalho, Miguel Chaia. Desde o mestrado tem sido uma pessoa aberta e generosa que soube orientar os percursos da vida acadêmica e abrir horizontes fora dele. Tenho a impressão que jamais conseguirei retribuir tudo o que fez por mim.

Algumas pessoas não citadas nominalmente são igualmente importantes nessa trajetória pelos mais diversos motivos e momentos. Existem os amigos que sempre perguntam sobre a tese nos estimulando a desenvolver o trabalho e abrindo novas perspectivas de abordagens através de questionamentos “leigos” mas importantes. Outras pessoas são responsáveis por discussões mais acadêmicas em diversos pontos do desenvolvimento desta pesquisa. Outras são responsáveis pela convivência no país estrangeiro e apoio no Brasil. Como seria impossível citar todas estas pessoas deixo os meus agradecimentos gerais a eles e elas que muito significam para este doutorando.

Uma última ressalva. Apesar de considerar que a tese é na verdade um trabalho coletivo, pelas ajudas, estímulos e orientações recebidas neste caminho, as decisões são tomadas tão somente pelo autor. Assim, os erros e o que não foi obtido com a tese, devem-se totalmente às escolhas que fiz. E a mais ninguém.

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RESUMO

Esta tese analisa a relação entre literatura e ciências sociais sob dois aspectos cruciais: cultura e política. Para isto, analisamos a importância que duas viagens etnográficas – O Turista Aprendiz – tiveram em parte da obra e trajetória política de Mário de Andrade. Essas viagens ocorridas nos anos de 1927 e 1928-9 foram importantes por aguçar no escritor modernista o contato que sempre almejou com o Brasil “de dentro”. Uma das bandeiras do projeto estético de Mário de Andrade consistia em “olhar pra dentro do Brasil” na busca por suas verdadeiras origens. Em nossa hipótese, esse olhar foi responsável por desenvolver duas outras vertentes mariodeandradianas pois reverberaram em um projeto – Na Pancada do Ganzá – que podem ser explicado, num primeiro momento, como sua contribuição para o pensamento social brasileiro ao buscar uma interpretação da brasilidade a partir do campo cultural. Também ecoou em ações políticas, via institucional, quando assumiu e coordenou o Departamento de Cultura do Município de São Paulo. Para isso, observamos as ações de Mário de Andrade, a partir de três eixos básicos: o homem literato, o homem pesquisador e homem político. Todas essas vertentes estabelecem vínculos entre si que ajudam a dimensionar a contribuição que Mário de Andrade de para a Ciências Sociais e para a própria compreensão do Brasil. Além dos elos entre essas vertentes, anotamos como a colaboração e as redes de relacionamento foram ferramentas importantes nos projetos de Mário de Andrade seja, na suas concepções estéticas e ideológicas.

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ABSTRACT

This thesis examines the relationship between literature and social sciences in two crucial aspects: culture and politics. We analyzed the importance of two ethnographic travels named O Turista Aprendiz, in the work and political career of Mario de Andrade. These journeys, occurred in 1927 and 1928-9, were important for rousing the contact with “inside” Brazil that the modernist writer have always looked for. One of the main issues of the aesthetic project of Mario de Andrade was "to look inside of Brazil" searching for its true origins. In our view, this look was responsible for developing two other strands on Andrade's work since reverberated in a project – Na Pancada do Ganzá – that can be explained, at first, as its contribution to the Brazilian social thought in seeking an interpretation of Brazilianness from the cultural field. Also echoed in political actions, in a institutional way, when he took over and led the Department of Culture of the Municipality of São Paulo. For this, we observe the actions of Mario de Andrade, from three basic axes: the literary man, the researcher man and politician man. All these strands establish links among themselves to help the measurement of the contribution that Andrade gave to the Social Sciences and to understand Brazil. In addition to the links between these strands, we noted how collaboration and networking are important tools in Mário de Andrade's work in both its aesthetic and ideological conceptions.

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RÉSUMÉ

Cette thèse analyse la relation entre la littérature et les sciences sociales sur deux aspects cruciaux: de la culture et de la politique. Pour ça, nous analysons que deux voyages ethnografiques, nommées comme – O Turista Aprendiz – ont eu en partie de l'oeuvre et trajectoire politique de Mário de Andrade. Cettes voyages arrivées aux années de 1927 et 1928-9 avaient importantes à cause d'aiguiser au l'écrivain moderniste le contact que toujours a desiré avec le Brésil du l’interieur. Une des drapeaux du projet esthétique de Mário de Andrade consistait “en regarder au l’interieur du Brésil” dans la recherche par ses vraies origines. À notre hypothèse, ce regarde a éte le responsable pour développer deux autres versantes “mariodeandradianas” car ont réverbéré en autre project “Na Pancada do Ganzá” que peut être expliqué, au première moment, comme la contribuition par la pensée social brésilienne au rechercher un interprétation de la “brésilité” a partir du champ culturel. Aussi a résonné en actions politiques par le parcours institutionel, quand il a assumé et a coordonné le Département de la Culture de São Paulo. Pour ça, nous observons les actions de Mário de Andrade, a partir de trois essieux basiques: l'homme de lettres, l'homme rechercheur et l'homme politique. Tous ces versants étabient des liens entre soi qui aident a mesurer la contribuition que Mário de Andrade a donnée aux Sciences Sociales et à la propre compréhension du Brésil. Au-delà des liens entre ces versants, nous annotons comme la colaboration et les réseaux ont éte des outiles importantes dans les projets de Mário de Andrade, autant dans ses conceptions esthétiques, comme idéologiques.

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SUMÁRIO

Antecedentes

Apresentação...14

Capítulo 1 – O modernismo e Mário de Andrade...44

Parte I – O Turista Aprendiz Capítulo 2 – O Turista Aprendiz – discussão teórica...70

Capítulo 3 – O Turista Aprendiz – análise interna... 98

Parte II – Desdobramentos Culturais Capítulo 4 – Na Pancada do Ganzá...142

Capítulo 5 – Departamento de Cultura...170

Considerações Finais...189

Anexos...194

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“O importante não é ficar, é viver. Eu vivo. Meu destino não é ficar. Meu destino é lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas

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Rio Madeira / Retrato da minha sombra trepada na tolda do Vitória. Julho 1927/ Que-dê o poeta?

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APRESENTAÇÃO

A presente tese insere-se na discussão das relações entre literatura e ciências sociais, focando dois aspectos intimamente vinculados: cultura e política. Tem como objetivo analisar os significados e repercussões que duas viagens etnográficas realizadas por Mário de Andrade, na década de 20, tiveram em sua obra e trajetória pública. Essas viagens ficaram conhecidas através do livro O Turista Aprendiz.

Este trabalho, para isso, considera obras literárias e ensaios do autor que interpretam o Brasil e a cultura brasileira a partir dessas viagens. Também examina os papeis desempenhados por Mário de Andrade como ‘homem público’: ora a relevante figura do modernismo brasileiro, ora o agente de intervenções políticas, através da ocupação de cargos institucionais, sobretudo a frente do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, que dirigiu a partir de 1935.

As duas viagens etnográficas que compõem O Turista Aprendiz, e que pesquisamos, percorreram regiões do Norte e Nordeste do Brasil, em 1927 e, posteriormente, nos anos 1928-29, quando retorna ao Nordeste brasileiro. Foram batizadas pelo próprio autor como Viagens Etnográficas e ocorreram em períodos próximos, mas propósitos distintos. Na primeira, Mario de Andrade viajou mais descompromissadamente, querendo acima de tudo conhecer a região amazônica e o nordeste. Na segunda, seu intuito básico era, além de conhecer, entender melhor a Cultura Brasileira, compreendida aqui num sentido amplo. Assim, um pressuposto deste trabalho é que essas foram viagens deformação do autor.

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A análise terá como foco primordial o livro O Turista Aprendiz (2002) – fruto direto dessas duas viagens, publicado postumamente. Essa obra estrutura-se em duas partes distintas, que tratam de situações específicas vividas em cada uma das viagens.

Outra vertente da pesquisa analisa a importância das viagens para o projeto Na Pancada do Ganzá, seu projeto de ensaios interpretativos do Brasil pela abordagem cultural e, posteriormente, sobre suas ações à frente do Departamento de Cultura, na década de 30. Assim, a hipótese básica é que as viagens etnográficas já citadas foram fundamentais para os escritos literários e ensaísticos posteriores, e também para suas ações como ‘homem público’, agindo pelos meios institucionais.

Desde a preparação e, posteriormente, ao longo das viagens etnográficas, ele dialoga com interlocutores, já seus conhecidos, com quem se corresponde e com quem manteria contato ao longo de sua vida. Um desses parceiros é Câmara Cascudo, seu correspondente desde 1924, embora só fossem se conhecer pessoalmente em 1928-29 durante a segunda viagem etnográfica. Tais viagens serviram, igualmente, para estreitar laços com outros modernistas, principalmente os do Nordeste, e exemplificamos com dois importantes nomes da literatura brasileira: José Américo de Almeida e José Lins do Rego. Também mantém contato com o poeta pernambucano Ascenso Ferreira e com o escritor Joaquim Inojosa, ambos pertencentes ao movimento modernista do Nordeste. Foram, todas elas, relevantes interlocuções, já que Mário de Andrade discute com eles aspectos relacionados à cultura e artes brasileiras. Notamos aqui o ‘homem literato’ embasando-se na pesquisa. Enquanto preparava a edição de Macunaíma (1928), por exemplo, escrevia a Câmara Cascudo e a outros correspondentes, solicitando mitos e lendas para incorporar à obra.

Alguns elementos ou inspirações provenientes das visitas às regiões Norte e Nordeste do Brasil surgiriam em suas obras mais famosas (poesias, crônicas e romances), mas também em obras menos conhecidas do público. Todo esse material, em nosso entendimento, é fundamental para compreender o que Mário de Andrade entendia e interpretava como aspectos e manifestações culturais do Brasil.

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Mário de Andrade não foi apenas o grande escritor de literatura ou o homem ligado às artes, embora talvez essa seja sua face mais conhecida. Há outra dimensão fundamental para entender sua importância: ele também foi um intelectual, pensador que viajou e estudou para melhor compreender o Brasil e os brasileiros, fundamentalmente no campo cultural.

Desde o início da primeira de suas viagens etnográficas, Mário de Andrade ensaiava uma pesquisa sobre a cultura brasileira, a já citada Na Pancada do Ganzá – que não concluiu devido ao seu precoce falecimento. Tal pesquisa buscava interpretar o Brasil a partir de sua cultura, tendo por base músicas populares, tradições artísticas, danças dramáticas, objetos folclóricos, mitos, lendas e manifestações culturais outras. Para esse projeto, grande parte da coleta de dados e materiais foi realizada por ele próprio, durante as viagens etnográficas e também em outras viagens aos arredores de São Paulo. O mesmo material forneceria inspiração para sua obra literária, caso de Macunaíma, e para algumas crônicas e poesias.

Anos mais tarde, a partir de 1935, Mário de Andrade coordenaria em São Paulo o Departamento de Cultura, onde dirigiu dois projetos de suma importância para esta tese: a Sociedade de Etnologia e Folclore (SEF) e a Missão de Pesquisas Folclóricas (MPF). A primeira incentivava a formação de pesquisadores na coleta de materiais, em áreas acadêmicas e científicas que surgiam no Brasil. A segunda foi responsável pela institucionalização da coleta de manifestações artísticas e folclóricas do Brasil. Assim, analisaremos o papel do autor modernista como ‘homem público’, aqui entendido como alguém que exerceu cargo político, desenvolvendo atividades que buscavam institucionalizar políticas culturais no município de São Paulo, e já com preocupações referentes à preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural brasileiro, material ou imaterial.

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outras obras importantes do final da década de 20, no momento mesmo em que ele está “redescobrindo”1 o Brasil através de suas viagens.

Além de Macunaíma, escrito entre as duas viagens etnográficas (e contém mitos e inspirações oriundas do contato com pessoas e lugares visitados durante a expedição à região amazônica), citamos, ainda, o livro de poesias Remate de Males (1930), publicado em 1930, que traz no título referência a uma cidade da Amazônia, visitada nessa viagem. Outro exemplo é o livro Os filhos da Candinha (1943), uma coletânea de crônicas publicada pelo autor, algumas delas inspiradas em episódios vividos nas viagens. Igualmente, nomeamos Dois poemas acreanos, publicado em Clã do Jabuti (1927), logo após o retorno da viagem à região amazônica, que exala sentimentos de fraternidade por seringueiros, conhecidos durante essa expedição.

Em seguida trataremos do poeta modernista que participa ativamente da vida política brasileira, do ‘homem público’ que assumiu a chefia do Departamento de Cultura, entre os anos 1935-38. Mário de Andrade foi o principal idealizador (ao lado de Paulo Duarte) e primeiro diretor daquele departamento, que 50 anos mais tarde inspiraria a criação do Ministério da Cultura (MinC) do Brasil. É nesse momento que Mário de Andrade, o homem ‘público’, coloca o Departamento de Cultura como um modelo de pesquisas sobre a cultura brasileira.

Como pilar de sustentação dessas duas facetas, também abordamos outro aspecto da obra mariodeandradiana, denominada aqui de ‘homem pesquisador’, pela tentativa de interpretação do Brasil. Como já mencionado, essa vertente, que o faz pesquisar material e livros sobre o Brasil, subsidiam sua produção literária e também suas ações de ‘homem público’. Aqui, especificamente, procuramos estudar as obras derivadas do material recolhido nas viagens etnográficas - o projeto Na Pancada do Ganzá. São quatro livros que procuram entender as manifestações artísticas e culturais do Brasil, buscando suas origens e formações. Tais obras promovem um diálogo entre a Academia – etnologia, antropologia, folclore, sociologia –, e as artes, mais especificamente as músicas e danças brasileiras. As obras estudadas são: Música de

1 Utilizamos aqui a expressão redescobrindo porque é com esta idéia que Mário de Andrade parte em

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Feitiçaria no Brasil (1963), Os Cocos (1984), As Melodias do Boi e Outras Peças (1987) e Danças Dramáticas do Brasil (1982)2.

Em suma, o que analisamos é a forma particular, com o viés cultural, que Mário de Andrade desenvolveu para entender o Brasil. Portanto, este trabalho é a tentativa de ver e entender as viagens etnográficas do autor como essenciais para a produção de uma parte significativa de sua escritura literária e também para fundamentar sua prática política, sobretudo as ações no Departamento de Cultura. Assim, além de inspiração, supomos que as viagens etnográficas foram importantes por fornecer ao escritor modernista uma maior dimensão da cultura brasileira através de práticas que ele pôde observar in loco e, igualmente, pelos diálogos estabelecidos com outros artistas e intelectuais brasileiros.

É necessário referir que os anos 20 e 30 do século XX foram significativos e importantes no Brasil, que passou por grandes processos de transformações sociais, culturais, políticas, urbanas e econômicas. E também que uma das inquietações do movimento modernista era com aspectos estéticos e ideológicos na busca por um outro Brasil: novo, mais verdadeiro, autêntico. Assim, é possível falar em um projeto modernista para o Brasil (ou, conforme a concepção, vários projetos). Afrânio Coutinho, em Introdução à literatura no Brasil (1988), afirma:

1922 foi mais que uma simples data, porquanto denota que a situação revolucionária chegara ao auge do amadurecimento, e não foi por certo casual a coincidência das revoluções estética e política, iniciada também com o levante dos 18 do Forte de Copacabana, no mesmo ano, o que mostra que a consciência do país atingira um estado agudo de revoltas com a velha ordem, em seus diversos setores. Não se trata de procurar precedência de um fator sobre os outros, o intelectual e artístico, o político, o econômico. Mas de reconhecer que era a estrutura da civilização brasileira, era o todo do organismo nacional, que mobilizava as forças para quebrar as amarras da sujeição ao colonialismo mental, político e econômico, entrando firme na era da maturidade e posse de si mesmo

(Coutinho: 1988, 265-6).

Sem a possibilidade de alhear-se dessas transformações multifacetárias da sociedade brasileira, o movimento modernista, não por acaso, dividiu-se em vários subgrupos divergentes tanto no campo estético como no político. Os grupos eram: Movimento Pau Brasil, Movimento Antropofágico, Movimento Verde-Amarelo, Movimento da Anta.

2 Essas datas referem-se ao ano de publicação da 1ª edição. Todas foram publicadas postumamente, com a

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Alguns modernistas e suas correntes possuíam características mais progressistas; outras colorações fascistas. Seus próprios idealizadores escancaravam seus posicionamentos políticos e ideológicos, além das respectivas práticas. O exemplo mais notório talvez seja Plínio Salgado e seu verde-amarelismo, que culminaria com a Ação Integralista Brasileira (AIB).

Assim, no campo político, alguns modernistas participaram e apoiaram a criação do Partido Democrático. Outros tinham maior contato com o velho Partido Republicano Paulista (PRP). Mais tarde, alguns aderiram ao Estado Novo de Getúlio Vargas. Mário de Andrade, com os companheiros, participou ativamente do debate político do momento. Nutria simpatia pelo Partido Democrático, onde colaborou como escritor no jornal partidário (o Diário Nacional) e sua atuação se particularizou no debate público (e portanto político), como o diretor do Departamento de Cultura, durante a gestão de Fabio Prado.

Acreditamos que Mário de Andrade foi um sujeito político sob duas perspectivas: a primeira, como participante ativo de um debate público (com o projeto modernista), que propunha reformulações e intervenções artísticas e culturais, com claros interesses estéticos, mas também ideológicos (discutiremos esses assuntos no capítulo 1). Também consideramos o autor como político no sentido da carreira institucional, como ‘homem público’ que institucionalizou o campo cultural na política brasileira. Propomos pensar a esfera do sujeito cultural atuando na política, pois Mário de Andrade sempre teve como preocupação, demonstrada em diversos momentos de sua obra, a função social do artista. Ou seja, o papel do artista no conjunto da sociedade. Assim, também como político observamos o pilar ‘homem pesquisador’, uma vez que sua atuação baseou-se em práticas metodológicas de cunho científico, que reverberaram na sua atuação institucional.

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Como ‘homem pesquisador’ são notórios e notáveis os diálogos e redes de contato que estabeleceu durante toda sua vida (ou parte dela) com artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros. Manuel Bandeira, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Vitor Brecheret, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Lasar Segall, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Câmara Cascudo, Paulo Prado, Blaise Cendrars, o casal Dina e Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide são alguns exemplos. Talvez possamos acrescentar que o traço comum de todos esses diálogos tenha sido, grosso modo, a ideia de brasilidade. Coutinho (1988) lembra que:

Será difícil apontar noutra cultura tão importante, vasta e substanciosa soma de estudos como a que oferece a nossa “brasiliana”, que ocupa um setor relevante de nossa história cultural, num plano em que se misturam e cooperam entre si a literatura, a filosofia, a história, a sociologia, a antropologia, a etnografia, a geografia, a linguística, a economia, etc., criando quase um gênero intelectual desconhecido de outros povos (...) é toda uma linhagem de pensamento e pesquisa acerca da terra e da gente brasileiras, para conhecer e revelar o país e o povo, a fim de dar aos brasileiros a consciência da sua civilização e cultura, e consolidar a sua fisionomia (Coutinho: 1988, 237).

Em outras palavras, estudamos a maneira como as ideias modernistas buscavam interpretar o Brasil e a forma como interagiam e influenciavam a sociedade brasileira da época, imersa em transformações. Em seguida, fazemos uma análise do movimento modernista através de seu(s) projeto(s) estético-ideológico(s), e em suas diversas manifestações, aproximações e divergências.

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Consideramos que o escritor recupera esse gênero literário, também inspirado em escritos semelhantes, como o livro Apontamentos de Viagem, escrito por seu avô, J. A. Leite, a partir de andanças pelo interior do Brasil. Esse gênero combina preocupações literárias e interesses específicos, retomando a ideia de brasiliana defendida por Coutinho (1988). Na literatura de viagens o real pode, por vezes, se sobrepor ao ficcional. As anotações técnicas e observações do real convivem com a figura do “criador literário”. É notável observar como as viagens propiciaram que a literatura de Mario de Andrade transitasse entre o sensível e o inteligível. A poeticidade da experiência aparece em alguns poemas e crônicas; e suas observações, calcadas na realidade e elaboradas pela racionalidade, dariam origem a outras narrativas, que surgem nos relatos da segunda viagem.

N’O Turista Aprendiz (2002), diversas passagens ficcionais remetem ao gênero depois associado à literatura latino americana do século XX – o realismo mágico – característica também presente em trechos de Macunaíma. Esse realismo mágico, em Macunaíma, aparece com a desterritorialização ou desgeografização do Brasil pelo herói sem nenhum caráter, cujas narrativas misturam lugares do Sul, do Norte e do Nordeste brasileiros, numa tentativa de recriar um novo espaço brasileiro, onde as fronteiras reais já não fazem mais sentido. Talvez fosse necessário recriar um novo espaço do Brasil.

Telê Porto Ancona Lopez (2002), na introdução do livro O Turista Aprendiz, afirma: Desde as primeiras declarações do escritor, ficam claras suas intenções quanto ao gênero do livro: um diário, cuja abertura para a narrativa da viagem visava não deixar escapar o peso de uma ótica impressionista, capaz de unir a referencialidade à poeticidade, transformando a experiência vivida (o sentido, o pensado, o biográfico – o real, enfim), em um texto com finalidade artística que é burilado em termos de distanciamento do arte-fazer. O confessional do diário e o referencial pertencente ao dado da viagem, embora filtrados pela arte, ainda permanecem com elementos do real, dado o hibridismo do gênero mas a seu lado, firme, intromete-se a ficção” (2002, p 31).

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Vai além, usando o vivido e o experienciado no exercício da criação literária. Em alguns momentos cria personagens que passam a viajar com ele; em outros, a partir do contato concreto com pessoas, desenvolve narrativas ficcionais sobre elas mesmas. Algumas experiências são retomadas em anos posteriores, quando o escritor volta aos seus diários e escreve novas crônicas, poesias e narrativas literárias.

Os exemplos dados pertencem ao universo literário, mas reafirmamos as referidas viagens do autor como instrumento de novas percepções da cultura brasileira. Ele observa e descreve manifestações culturais relativas a músicas e danças que o auxiliaram em suas pesquisas musicológicas. Também recolhe material artesanal e/ou artístico, que comporiam sua coleção particular de objetos brasileiros (hoje disponíveis nas coleções do IEB-USP). Mais tarde, no Departamento de Cultura, mantém a prática de recolhimento de artesanato, criando uma coleção pública.

Voltando ao recorte da literatura de viagens, aprofundaremos a análise dos significados das duas viagens etnográficas feitas por Mário de Andrade. A primeira ocorreu entre 7 de maio e 15 de agosto de 1927, e o escritor modernista viajou acompanhado por três mulheres, capitaneadas pela amiga D. Olívia Guedes Penteado – uma das mecenas do modernismo brasileiro. As outras duas eram sua sobrinha, Margarida Guedes Nogueira, e Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral. Essa viagem foi fruto da empolgação do grupo modernista com outra viagem, que ficou conhecida como “viagem da descoberta do Brasil”, em 1924 (Lopez: 2002, 16), pelo interior de Minas Gerais. Mais especificamente por suas cidades históricas e por Belo Horizonte, na companhia do poeta modernista francês Blaise Cendrars, que repercutiu tanto em concepções do modernismo brasileiro como na obra do escritor francês.

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É curioso saber que Mário de Andrade admitiria, nos diários que originaram o livro O Turista Aprendiz, que não gostava de viajar, por mais contraditório que isso possa parecer. No dia inicial do diário, antes da primeira viagem, anota: Não fui feito pra viajar, bolas! Estou sorrindo, mas por dentro de mim vai um arrependimento assombrado, cor de incesto (Andrade: 2002, 51). Mais adiante, quando se encontra em Belém reclama: É incrível como vivo excitado, se vê que ainda não sei viajar, gozo demais, concordo demais, não saboreio bem a vida (Andrade: 2002, 63). Alguns dias mais tarde, ao narrar um pesadelo, conclui mais uma vez: Não fui feito pra viajar, meu destino é viver em casa entre meus livros, sem lidar com muita gente estranha (Andrade: 2002, 129).

A segunda viagem etnográfica começa com a mesma reclamação: Se repetiu a mesma sensação desagradável do ano passado quando parti pro Amazonas. Está provado que não fui feito pra viajar (Andrade: 2002, 180). Aqui, cabe uma aproximação com o antropólogo e etnólogo francês Claude Lévi-Strauss, outro viajante como Mário de Andrade (eles se conheceriam anos mais tarde, com a vinda da Missão Universitária Francesa para lecionar na fundação da USP). Lévi-Strauss, no início do seu famoso livro Tristes Trópicos, num trecho bastante conhecido, afirma: Odeio as viagens e os exploradores (Lévi-Strauss: 2005, 15), embora também nunca tenha se furtado a realizá-las, e em roteiros muito mais amplos do que as viagens de Mário de Andrade. Fato é que a dificuldade de viajar sempre esteve presente na vida do escritor, e talvez explique porque não viajou para a Europa com parte dos amigos modernistas, e nem mesmo em possíveis missões oficiais, quando dirigia o Departamento de Cultura.

A primeira viagem etnográfica, que compõe a primeira parte do livro O Turista Aprendiz, foi denominada por Mário de Andrade como: O turista aprendiz: Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia por Marajó até dizer chega – 1927, e daria início ao seu projeto Na Pancada do Ganzá. O título irreverente brinca e faz alusão a nomes de outras obras literárias classificadas como literatura de viagens e que, normalmente, possuem longos títulos, numa tentativa de incorporar os lugares visitados por seus autores3.

3 Para mais detalhes, observar a obra de Fernando Cristóvão (1999), que enumera diversos títulos para

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O presente trabalho também analisa a 2ª parte do livro O Turista Aprendiz, que trata da segunda viagem, entre 28 de novembro de 1928 e 24 de fevereiro de 1929. Nessa expedição o poeta embarca sozinho rumo ao Nordeste, com a intenção de pesquisar, recolher, registrar e catalogar manifestações sonoras e visuais das expressões artísticas e culturais que ele considerava genuinamente brasileiras. Sua motivação quase que exclusiva, portanto, é pesquisar e estudar a cultura brasileira. Para isso, concentrou sua viagem a poucos estados nordestinos: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e, de passagem, Alagoas. Em Natal ficará hospedado na casa de Câmara Cascudo, com quem manterá intensa discussão durante toda a vida4.

Nessa segunda viagem reúne uma quantidade imensa de material, que deveria ser trabalhado e analisado com calma nos anos subsequentes, como parte do projeto Na Pancada do Ganzá. Telê Lopez (2002) afirma:

Além das crônicas de ‘O Turista Aprendiz’, a viagem ao Nordeste terá outros resultados também bastante significativos. Mário reunirá fartíssimo material de pesquisa sobre danças dramáticas, sobre melodias do Boi, sobre música de feitiçaria, religiosidade popular, crenças e superstições, poesia popular (Lopez: 2002, 21)

Observamos que a primeira viagem etnográfica, embora já com um intuito de trabalho e pesquisa, foi bem menos sistematizada, uma vez que Mário de Andrade viajava em companhia de outras pessoas e esteve sempre preso aos compromissos oficiais da Rainha do Café, apelido de D. Olivia Penteado, como ele mesmo salientou algumas vezes. A segunda viagem, ao contrário, é muito mais planejada para pesquisa e trabalho, não apenas em seu roteiro e contatos, mas também do ponto de vista econômico, para realizá-la de modo efetivo. Temos, aqui, a primeira diferença entre as duas viagens. Sobre a segunda, José Tavares Lira (2005) afirma:

Mário desta vez viaja só, portanto, isento dos compromissos de cavalheiro e protocolo, porém a trabalho: chama a expedição de “viagem etnográfica” e em parte será custeada pela função de cronista do Diário Nacional, em que era responsável pela coluna diária, que chamará durante a ausência de São Paulo de “O turista aprendiz”. Diferente no objetivo e na prosa, a viagem sofre uma mutação fundamental: as mediações com o destino não se dão agora pelas autoridades locais, mas pelos amigos, modernistas e simpatizantes, seus anfitriões, cicerones ou condutores pelas coisas populares (Lira: 2005, 150)5.

4 Mário de Andrade, na verdade, mantém contato com várias outras pessoas, sobretudo através de cartas,

constituindo sua epistolografia um importante material de pesquisa para compreensão de sua vida e obra. A relação entre Mário de Andrade e Câmara Cascudo, e outras pessoas, será melhor discutida no decorrer da tese.

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Essa viagem, então, envolve a publicação de artigos jornalísticos, crônicas que o autor enviava diariamente, como correspondente, para o jornal com o qual colaborava, o Diário Nacional6. Desempenha dupla função, portanto: além de pesquisar a cultura brasileira, tem o compromisso de escrever crônicas para seu jornal.

No intervalo entre as duas viagens, Mário de Andrade publica Clã do Jabuti (1927); Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928) e Ensaio sobre a música brasileira (1928). De acordo com Marta Batista (2004), Clã do Jabuti é um livro de “poesia experimental, exercício de seu projeto modernista – ‘tese de Brasil’” (p.35). Para Sérgio Miceli, em seu artigo: Mário de Andrade: a invenção do moderno intelectual brasileiro (2009), esse livro de poesias:

explora as tensões entre o litoral civilizado europeizado, e o sertão selvagem, valendo-se de expedientes de composição reminiscentes de Macunaíma: o apelo ao folclore, às manifestações de cultura popular, aos meneios da prática literária erudita, o intento era unificar esses polos de vibração da “alma nacional” por meio de um itinerário das expressões regionais do país; o poeta dividido entre o chão de experiência nativa e a cultura estrangeira, entre a conquista de um rosto autóctone e a alienação imposta pelo esquadro europeu (Miceli: 2009, 171).

Alguns dos poemas mais conhecidos de Mário de Andrade são publicados nesse livro, e tem origem em contatos e experiências com o Brasil nordestino e, sobretudo, com o nortista. Exemplificamos com a parte conclusiva de O Poeta Come Amendoim, poema de abertura do livro, que mostra claramente uma identificação com o Brasil e com a brasilidade.

Brasil...

Mastigado na gostosura quente de amendoim... Falado numa língua curumim

De palavras incertas num remeleixo melado melancólico... Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons... Molham meus beiços que dão beijos alastrados

E depois remurmuram sem malícia as rezas bem nascidas... Brasil amado não porque seja minha pátria,

Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der... Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço venturoso, O gosto dos meus descansos,

O balanço das minhas cantigas amores e danças

Brasil que sou porque é a minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento,

Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.7

6 O Diário Nacional foi um jornal ligado ao Partido Democrático, do qual Mário de Andrade sempre

esteve próximo. Seu redator-chefe foi Paulo Duarte, amigo do escritor modernista. Para saber mais, ver: Duarte (1976) e Miceli (2009).

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O poema desenvolve algumas características de ritmo e sonoridade marcados pelo uso de palavras que se evidenciam, como: “num remeleixo melado melancólico”, ou ainda, “saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons”, “molham meus beiços que dão beijos alastrados”... Pode-se notar que a forma poética é utilizada para criar novos sentidos sonoros e rítmicos aos leitores. Também revela aspectos que ocuparão lugar importante na produção artística e intelectual do autor, como a questão da linguagem. Nota-se a preocupação com a língua falada no Brasil, e a nomeia no próprio poema: “falado numa língua curumim”. Essa língua curumim será buscada ao longo de toda a sua vida, a língua brasileira falada nas ruas, a língua popular. Mário de Andrade muitas vezes grafava o si ao invés do gramaticalmente correto se, pois era a forma que mais se parecia com a língua falada pelo brasileiro comum. Seus livros mostram a preocupação estética de escrever através de uma linguagem mais popular e menos erudita, buscando aproximar a oralidade da escrita.

Mesmo em suas relações pessoais essa questão estava presente: ele insistia em escrever para a amiga e uma das principais colaboradoras, Oneyda Alvarenga, grafando Oneida, trocando o y pelo i, por ser mais brasileiro. A inquietação com a língua nacional, sempre presente, também aparece aqui, no ritmo do poema.

O poema mostra aproximações com a antropologia, quando fala do “descansar”, uma

vez que revela as particularidades culturais dos muitos “brasis” (mesmo tratando de hábitos corriqueiros e naturais). O descanso, no Norte e no Nordeste, muitas vezes ocorre na rede, o que muito aprazia Mario de Andrade. “O balanço das minhas cantigas amores e danças”, um certo “sentimento pachorrento”, ou mesmo “meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir”.

A pesquisadora Telê Lopez em seu livro Mário de Andrade: Ramais e caminhos (1972) nos diz que esse poema foi escrito em 1924, e já é possívelnotar o interesse do escritor por um maior entendimento do que seria o povo brasileiro que faria parte de sua brasiliana. Quando analisa o referido poema, do ponto de vista da ideia “pátria”, pondera:

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representativo de seu povo (...) O interesse pela nacionalidade faz com que concentre suas preocupações na área do particular. Além disso, o nacionalismo serve para desgastar o conceito tradicional de pátria e reforçar a importância de pátria = consciência da realidade brasileira, sugerindo através da forma pela qual se situa, como brasileiro, a necessidade de caracterização crítica para a nação (Lopez: 1972, 47).

O que Mário de Andrade procura não é síntese da identidade nacional, e sim várias identidades, fundamentais para formar a cultura ou as culturas brasileiras. E no plural, pois não é possível falar de uma única cultura brasileira: nossos matizes são múltiplos. Quando faz suas próprias pesquisas ou dirige o grupo de pesquisadores incumbidos de realizar a Missão de Pesquisas Folclóricas, Mário de Andrade conceitua a identidade cultural brasileira no plural.

O último poema do livro, Dois Poemas Acreanos, cuja primeira parte – Descobrimento – reproduzimos, tenta falar dessa brasilidade multifacetada, dos infinitos “brasis”, dos infinitos brasileiros: intitulado como:

Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De sopetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim, Na escuridão ativa da noite que caiu,

Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,

Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu...8

Fica clara a identificação entre o escritor paulistano e seu “conterrâneo” acreano, dois brasileiros, sem que suas diferenças sejam significativas; o que importa são os traços de proximidade e similitudes. Essa percepção de outros brasileiros e outros “brasis” aparece durante sua primeira viagem etnográfica, na região amazônica. Em diversos momentos ele se mostra ansioso por conhecer os seringais amazônicos. Finalmente, na região do rio Madeira, consegue realizar a visita. No livro O Turista Aprendiz (2002), ele relata o contato com um seringueiro e o retrata (mesmo sendo portador de malária) com traços semelhantes aos mencionados no poema acima,:

Na proa, de-pé olhando o ‘Vitória’[nome do vapor onde viajavam], vem um rapaz, que idade? não é possível saber, a pele lisa, bem barbeada, boca fina, um risco apenas, olhos

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fundos, cinzentas olheiras profundas, onde se dispersa um olhar embaçado, que não vê coisa nenhuma, levemente mais claro que as olheiras. O cabelo encardido liso cai finíssimo. (...) Está claro que todos na amurada, olhando a lancha, comentando o caso, um rapaz novo assim nos cafundós dum seringal vivendo. É simpático. (...) A imagem do moço me persegue (Andrade: 2002, 142).

Na continuidade de Dois Poemas Acreanos, Mário de Andrade mostra preocupação com as condições sociais e de trabalho do seringueiro (e do trabalhador braçal, em geral), tema que será objeto de comentários e reflexões em outros textos, além de n’ O Turista Aprendiz. De acordo com estudiosos da obra de Mário de Andrade, nesse momento o escritor já se mostrava preocupado com a função social do artista. Para Telê Lopez (1972), nessa época ele já entrara em contato com algumas obras marxistas, cuja ótica será desenvolvida na segunda viagem etnográfica.

Para João Luiz Lafetá em seu livro 1930: a crítica e o modernismo (2001), o livro de poesias Clã do Jabuti consiste em:

Espécie de “repertório do Brasil inteiro”, em que a dança do “Carnaval carioca” se mistura à meditação do “Noturno de Belo Horizonte”, o “Coco do Major” Venâncio da Silva convive com a “Moda da cadeia de Porto Alegre” e com a cama paulista de Gonçalo Pires, ou, por fim, a escrivaninha da Rua Lopes Chaves descobre em assombro o acreano “pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos”(Lafetá: 2001, 187-8).

Esse livro traz poemas de 1924, como o “Noturno de Belo Horizonte”, certamente escrito sob o impacto da “viagem da descoberta do Brasil”. “Eu queria mostrar todas as histórias de Minas/ Aos brasileiros do Brasil...”9. Até sua publicação, em 1927, ele pareceu amadurecer visões do Brasil.

Finalmente, é outra pesquisadora da obra de Mário de Andrade – Telê Porto Ancona Lopez – quem organiza as pastas da viagem e publica o livro O Turista Aprendiz, que são seus diários de viagem. Ele mesmo revisou os escritos relativos à primeira viagem, com a intenção de publicação. A própria organizadora nos informa:

Pretendemos nesta edição de O Turista Aprendiz, reunir numa estrutura de diário os textos que narram as “viagens etnográficas” e que se apresentam marcados por uma elaboração destinada ao público: o diário de 1927, organizado como livro em 1943, e a série “O Turista Aprendiz”, do Diário Nacional (Lopez: 2002, 35)10.

9 Noturno de Belo Horizonte, in: Andrade, Mário de (2005). Poesias Completas, pg. 186.

10 Para mais detalhes ver A edição de “O Turista Aprendiz”, de Telê Lopez in: Mário de Andrade, O

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Observamos redações diferentes nas duas partes que compõem o livro, já que as crônicas nos dizem algo do cotidiano observado, e os outros textos do livro podem manter um maior distanciamento desse mesmo cotidiano. Exemplificamos com Vida do Cantador11, que fala sobre Chico Antônio, cantador de coco, que Mário de Andrade conheceu no Engenho Bom Jardim, próximo a Natal, onde fora levado por Câmara Cascudo. Encanta-se com ele, a ponto de afirmar que o cantor “vale mais que dez carusos” (o famoso tenor italiano Enrico Caruso que deslumbrou o mundo na passagem do séc. XIX ao XX). Aliás, Chico Antônio seria inspirador de uma das personagens de sua opereta inacabada, Café, que retratava a crise da economia cafeeira paulista, pós-crise econômica mundial de 1929. Também mencionamos Os filhos da Candinha, livro em que republica crônicas escritas anteriormente para jornais, algumas delas referentes ao período de suas viagens etnográficas. Essas crônicas, por vezes, recebiam uma nova redação.

Em outro livro, igualmente não finalizado, Balança, Trombeta e Battleship – ou o descobrimento da alma (1994), suas personagens principais são as companheiras da primeira viagem à região amazônica, onde Balança é o apelido dado a Margarida Guedes Nogueira e Trombeta, o de Dulce do Amaral Pinto.

Mário de Andrade acreditava que o processo de industrialização que então se iniciava no Brasil, mais especificamente em São Paulo, era fomentador de grandes mudanças sociais, culturais e políticas. Envolvia, por exemplo, a onda migratória de brasileiros para o Sudeste – principalmente para São Paulo. O município deveria, então, buscar os registros culturais de outras regiões e colocá-los à disposição de toda a população que seria cada vez mais miscigenada. Esses registros, se constituiriam assimem memória do local de origem, para esses migrantes.

A partir desta concepção inicial, coordena a Missão de Pesquisas Folclóricas, montando uma equipe com 4 pesquisadores – Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedito Pacheco e Antônio Ladeira – preparados para registrar, catalogar e, na medida do possível, trazer para São Paulo, objetos culturais e artísticos de todo o País. Esse grupo parte para as regiões Norte e Nordeste do país, com intenção de gravar músicas, e

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danças dramáticas brasileiras, que seriam mais tarde disponibilizadas a toda população paulista.

Flavia Camargo Toni (2004) nos informa que, após anos de estudos, Oneyda Alvarenga organizou 4378 fichas de material catalogado nessa viagem, organizadas sob diversos rótulos: “fonogramas, notações, filmes, textos, Folclore Nacional – discos, gêneros, regiões e fotografias – permitem recuperar as informações coletadas” (Toni: 2004b, 9)12.

Para desempenhar suas novas atividades e projetos, Mário de Andrade permanece em São Paulo enquanto a equipe viaja e coleta materiais da cultura popular brasileira. Este trabalho só se encerraria – sem conclusão definitiva – com a demissão de Mário de Andrade do Departamento de Cultura, por conta das divergências provocadas pela nova situação política nacional, iniciada com o golpe de Getúlio Vargas, que deu origem ao Estado Novo.

No desenvolvimento desse projeto, a ideia de cultura brasileira, na visão mariodeandradiana, é considerada mais brasileira e menos paulista, pois a MPF parte para as regiões que Mário de Andrade já havia visitado. E, mais que tudo, foi um projeto político de preservação da cultura brasileira.

Nesse período Mário de Andrade mantém contato e diálogo com muitas pessoas, principalmente franceses que residiam em São Paulo, o que também o auxiliou no desenvolvimento do pensamento social brasileiro. Citamos os pontos de convergências estabelecidos entre Mário de Andrade e o casal Lévi-Strauss – sobretudo com Dina Lévi-Strauss, na sua passagem pelo Brasil, quando colaboraram na fundação e formação da Sociedade de Etnografia e Folclore, e também com Roger Bastide e com o poeta Blaise Cendrars. Recordamos que a proximidade com o casal Lévi-Strauss foi importante também para eles, pois foi o Departamento de Cultura que financiou parte da primeira viagem do antropólogo francês para o interior do Brasil auxiliando-o no desenvolvimento de suas pesquisas etnológicas, como ele retrata em Tristes Trópicos e em outros trabalhos.

12 As peças coletadas pela MPF estão disponíveis no Centro Cultural São Paulo (CCSP) e Instituto de

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Buscamos, ao fim, realizar uma análise cartográfica dos contatos e convergências que Mário de Andrade criou em torno de si, com brasileiros e estrangeiros, reiterando que foram contatos de mão dupla, em que ambos os lados se retro-alimentam de inspirações e ideias. O mesmo processo de reciprocidade ocorreu com Mário de Andrade e Câmara Cascudo. Na correspondência do escritor modernista com colegas e amigos fica nítida a rica troca de informações e opiniões, cujas trocas ocorreram durante toda a vida do escritor.

Para esclarecer e melhor entender o escopo desta pesquisa, elaboramos um quadro com as datas e roteiros das duas viagens etnográficas que fazem parte do livro-base deste doutorado: O Turista Aprendiz.

Além desse quadro, que mostra datas e roteiros, outro foi elaborado, relacionando momentos das duas viagens com obras literárias e ações políticas que Mário de Andrade desempenhou como homem público.

Manaus Recife

Itacoatiara Igaraçu

Manicoré Olinda

Tonantins Mamanguape

S. Paulo de Olivença Catolé do Rocha Tabatinga Capital da Paraíba Remate de Males Natal

Tefé Macaú

Parintins Caicó

Belém Redinha

Santarém Engenho Bom Jardim

Óbidos Rio de Janeiro

Marajó Bahia

Porto Velho Maceió

Madeira-Mamoré Guajará-Mirim Seringal Nanay San Pablo Letícia I quitos Bahia Salvador Alagoas Maceió Pernambuco Recife Ceará Fortaleza

Rio Grande do Norte Areia Branca Natal

Vitória Rio de Janeiro

São Paulo Viagens

analisadas

Viagem 1 - O Turista Aprendiz (viagem pelo Amazonas até o Perú, pelo M adeira até a

Bolívia e por M arajó até dizer chega) Viagem 2 - O Turista Aprendiz (viagem etnográfica)

Período/datas 1927 1928-1929

07/05/1927 a 15/08/1927 28/11/1928 a 24/02/1929

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Essas categorias não são estanques: o livro de poesia Remate de Males, publicado em 1930, por exemplo, é o nome de uma cidade visitada na região amazônica, portanto na primeira viagem etnográfica. Da mesma forma, algumas observações presentes nos livros do projeto Na Pancada do Ganzá também fazem parte da viagem amazônica. Possivelmente as análises e escritos literários precisaram de mais tempo (e outra viagem) para que fossem gestados e retrabalhados para publicação.

Remate de Males traz ainda uma série de poemas publicados sob o título Poemas da Negra, onde aparece a figura religiosa de Mestre Carlos (A jurema perde as folhas derradeiras/Sobre Mestre Carlos que morreu...)13 que Mário de Andrade tanto retratou em O Turista Aprendiz, assim como a jurema, planta típica do nordeste que é utilizada em rituais religiosos observados por Mário de Andrade na sua segunda viagem etnográfica. Nesse livro aparecem também os poemas líricos de Tempo de Maria. Telê Lopez (2002) lembra ainda que nesse poema aparece o conceito de perfil duro, também presente na Uiara de Macunaíma. Além é claro, da constatação do próprio autor quando percebe o “Grito imperioso de brancura em mim”14. Na realidade, o livro está repleto de citações, passagens e referências sobre a cultura brasileira e, por vezes, retoma situações já colocadas em Macunaíma.

Metodologia

Para realizar este trabalho, buscamos uma abordagem multidisciplinar, trazendo para as Ciências Sociais, mais especificamente, para a compreensão do pensamento social brasileiro, aspectos da Sociologia, da Ciência Política, e ainda contribuições de áreas afins: Literatura e Filosofia. Assumimos que o conhecimento dessas outras áreas, que tangenciam as Ciências Sociais, permite maior entendimento e compreensão do tema desta tese.

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Também realizamos um estudo bibliográfico sobre a contextualização histórica do Brasil durante o momento analisado, início do século XX. Esse histórico auxilia no entendimento do papel do modernismo e, mais especificamente, do papel de Mário de Andrade nessas discussões sobre o Brasil.

Antonio Candido, em Literatura e Sociedade (2000), fala da importância da literatura como forma de compreensão do país, o que justifica o intento desta pesquisa, que tem a literatura como um de seus pilares de fundamentação. Candido (2000) lembra que essa busca pelo Brasil já fazia parte de nossos escritores e intelectuais bem antes do Movimento Modernista:

A literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar a consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel importantíssimo do romance oitocentista como exploração e revelação do Brasil aos brasileiros. (Candido: 2000, 121).

Em O Turista Aprendiz percebe-se a tentativa de Mário de Andrade em “refletir sobre a consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas Brasil”, principalmente na segunda viagem etnográfica, quando as crônicas se aproximam de relatos, a partir das impressões causadas pela observação cotidiana, e reverberam na coluna assinada por ele no Diário Nacional.

Ainda pensando na relação entre literatura e ciências sociais, Octavio Ianni em Sociologia e Literatura (1998) afirma:

Sob vários aspectos, o sociólogo e o escritor narram. O mesmo se pode dizer do historiador, antropólogo e outros cientistas sociais; assim como do poeta, pintor, cineasta e outros artistas. Também o filósofo narra. Narrar é algo comum a todos, como a dimensão mais geral do processo de elaboração, produção, criação ou realização de uns e outros. Em todos os casos, a despeito das diferenças de linguagens, todas as realizações traduzem-se em textos ou narrativas nas quais há sempre algo de exorcismo, sublimação ou fabulação (Ianni: 1998, 38).

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Sua análise aprofunda-se ao estabelecer ligação entre narração e história enquanto formas de registro dos acontecimentos:

O historiador é obrigado a explicar de uma maneira ou outra os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representa-los como modelos de história do mundo. É exatamente o que faz o cronista, especialmente através de seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna (Benjamin: 2008, 209).

Essa função de narrador da história fica latente nos escritos da segunda viagem etnográfica, constituída basicamente por crônicas elaboradas a partir das observações que Mário de Andrade fazia da realidade brasileira. Afrânio Coutinho (1988) recorda que a crônica e o cronista têm a mesma origem etimológica na palavra grega cronos e “relacionavam-se com o relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar” (pg. 306). Por sua vez, Antonio Candido, no texto, A vida ao rés-do-chão (1992) classifica-a como um gênero brasileiro “pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu” (pg.15) além de buscar a oralidade na escrita, o que, sabemos, foi algo constante nas obras de Mário de Andrade.

Em suma, analisamos aqui o papel de Mário de Andrade no processo constante de entender o Brasil, ao mesmo tempo em que o apresenta e representa aos brasileiros. Pesquisamos suas diversas faces seja a do poeta e escritor modernista (homem literato), do intelectual (homem pesquisador) ou de agente da política-institucional (homem público). Vemos em Mário de Andrade uma polifonia que ele mesmo observa em alguns momentos de sua poesia, como no poema Eu sou trezentos... escrito em 07/06/1929, pouco depois do retorno de sua segunda viagem etnográfica, e publicado como poema de abertura do livro Remate de Males. Pode ser considerado como uma, das diversas autodefinições de Mário de Andrade, pelos múltiplos interesses presentes em sua obra e na sua vida.

Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta,

As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh Pirineus! Ôh caiçaras!

Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios; Eu piso a terra como quem descobre a furto

Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

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Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo.15

Essa poesia exprime todas as gamas de interesse do universo mariodeandradiano abordadas no decorrer desta tese. Mesmo que esses trezentos ou trezentos e cincoenta personagens sugiram algo de arrogância e ironia, como definiu Gilda de Mello e Souza (1984: pg. XV), não deixam de refletir seus interesses multifacetados. Outro poema que revela os muitos interesses do universo do escritor modernista foi publicado em 1944, no livro Lira Paulistana, que, como o próprio nome indica, está mais centrado nas percepções do seu ser paulistano. Esse é o enfoque principal do livro, composto por poemas urbanos ou poemas de São Paulo, como definidos por ele.

Quando eu morrer quero ficar, Não contem aos meu inimigos, Sepultado em minha cidade, Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paiçandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido Direito, o esquerdo nos Telégrafos, Quero saber da vida alheia, Sereia.

O nariz guardem nos rosais, A língua no alto do Ipiranga Para cantar a liberdade. Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá Assistirão ao que há-de vir, O joelho na Universidade,

Saudade...

As mãos atirem por aí, Que desvivam como viveram, As tripas atirem pro Diabo, Que o espírito será de Deus. Adeus16

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Neste poema a repetição do último verso mantem a memória e qualifica aquilo que já foi dito/vivido por seu autor. Começa com a expressão do morrer em contradição com o quero ficar. Embalado pelo desejo de se manter sepultado em São Paulo, sua cidade. Além da presença da saudade, que também é expresso pelo sentimento dos rosais, Ipiranga, Jaraguá e a própria Universidade, no caso a USP (com o qual manteve vínculo). O poema continua como um passar pelo centro de São Paulo na rua Aurora, no largo do Paiçandu e a Lopes Chaves, seu próprio endereço residencial, onde a cabeça (memória) se mistura com o esquecimento. O passeio segue pelo Pátio do Colégio onde deveria ser guardado seus dois corações: um coração vivo e um defunto/Bem juntos. O Correio e Telégrafos demonstram seu interesse e mesmo sua prática “antenada” com o mundo e saber da vida alheia. Não à toa é ali que aparece a Sereia, presença importante no folclore brasileiro e em outras culturas longíquas, assim como, em Macunaíma e algumas poesias. Por fim que sua unidade seja divida em dois: diabo e deus. Mesmo que diabo fique com as tripas e o espírito (supondo que seja a melhor parte) fique com Deus.

Valentim Facioli (1992) analisa este poema através da perspectiva das danças dramáticas do Boi, cujo enredo também trata da própria partilha do animal:

O corpo do poeta deve ser dilacerado como num ritual popular das tradições do boi, o boi Paciência, ou o boi Estácio, para integrar em suas partes as partes da cidade, fragmentos integrativos de corpo a corpo, em busca da realização de uma totalidade pela qual o poeta sempre ansiou e que afinal restou produzida em sua obra, não como harmonia do mundo, senão como enorme problema cultural e poético, dos mais relevantes da moderna cultura letrada no Brasil (...). Finalmente, viu-se que há um fio condutor da obra de Mário de Andrade que me parece ser a relação amorosa do poeta com sua cidade natal, moderna-arcaica, em torno da qual se agregam os inúmeros problemas implicados por sua vasta e variada produção (Facioli: 1992, 78-9).

Outra fonte de estudo importante neste trabalho são os arquivos do CCSP e do IEB-USP, onde estão guardados os materiais e coleções do próprio Mário de Andrade, das suas duas viagens etnográficas e parte do material recolhido pela Missão de Pesquisas Folclóricas.

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registros sonoros obtidos e coletados na MPF, que pertencem à discoteca pública Oneyda Alvarenga, do CCSP. Por outro lado, o acervo do IEB-USP possui documentos, livros e diversos objetos artísticos e pessoais que pertenciam à coleção particular de Mário de Andrade, hoje disponíveis aos pesquisadores e demais interessados. É a principal fonte de pesquisa sobre a vida e obra desse autor.

Observamos que a obra literária tem um significado em si mesmo, a construção de uma realidade própria que possui significado estético. Ao manter essa ideia germinal, essa tese é um esforço de deslocar a obra de Mário de Andrade para as Ciências Sociais. Essa tarefa de interpretação sociológica tem em vista as atividades práticas do escritor e a institucionalização de suas ideias.

Para a análise da tese, a metodologia está pautada em duas abordagens teóricas e metodológicas inter-relacionadas, a saber: uma análise interna e outra, externa, das obras de Mário de Andrade. A primeira busca compreender estruturalmente ideias e conceitos desenvolvidos n’O Turista Aprendiz. Procuramos destrinchar essa obra, a mais significativa neste trabalho, mas também os livros que compuseram o projeto Na Pancada do Ganzá. Além desse esforço, buscamos analisar outras obras literárias e ensaísticas que, em alguma medida, repercutiram as viagens etnográficas realizadas pelo escritor. Assim, no capítulo 3 é realizada a análise interna d’O Turista aprendiz e, no capítulo seguinte, as obras do projeto Na Pancada do Ganzá.

Além disso, explanamos as condições sócio-econômicas e políticas existentes durante a produção das obras em questão, objetivando uma vinculação conjuntural e histórica com a biografia do autor. Convém ainda indicar que as obras serão analisadas na relação que mantêm entre si, construindo uma rede de ideias, de modo a compor um quadro final de referências, formulações e conceitos de Mário de Andrade sobre a finalidade desta pesquisa.

Estrutura dos Capítulos

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século passado. Em outras palavras, estudamos as questões que tangem o modernismo em seus projetos estéticos e ideológicos. Mais especificamente, discutiremos particularidades do modernismo mariodeandradiano, como o autor o praticava e como exercia seus ideais modernistas em parte de sua obra e trajetória política. Esse capítulo fornece subsídios para as análises que realizaremos no decorrer dos capítulos subsequentes.

Na primeira parte (capítulos 2 e 3), trataremos do conceito de literatura de viagens, na medida em que o livro se encaixa neste gênero. Também observaremos mais detalhadamente os escritos de Mario de Andrade durante e após as viagens etnográficas, que originaram o livro O Turista Aprendiz. Em seguida, tratamos da repercussão dessas viagens em algumas obras literárias, sejam poesias, romances, contos ou crônicas. A preocupação foi determinar alguns textos literários tangenciados pelas viagens etnográficas, procurando atestar a importância delas em sua obra e trajetória política.

Na segunda parte (capítulos 4 e 5) veremos com as viagens etnográficas foram fundamentais para a obra de Mário de Andrade e sua trajetória política. O capítulo 4 está focado em seu projeto de interpretação do Brasil, Na Pancada do Ganzá. Analisamos suas propostas e pesquisas sobre a brasilidade. Os livros que tratam desse projeto – Os Cocos, Danças Dramáticas do Brasil, Música de Feitiçaria no Brasil e As Melodias do Boi e outras peças – tem a perspectiva de uma cultura brasileira mais popular, oriunda das três heranças culturais que formam o brasileiro: indígena, portuguesa, africana. No capítulo 5, procuramos analisar o reflexo das viagens etnográficas em seu trabalho no Departamento de Cultura do Município de São Paulo e suas ações na Missão de Pesquisas Folclóricas e também na Sociedade de Etnologia e Folclore. Acreditamos que as viagens aprimoraram uma visão de mundo pautada por uma postura crítica em relação às profundas transformações que a sociedade brasileira passava naqueles anos. E, como homem público, baseou suas ações em conhecimentos antropológicos e etnológicos que o fizeram propor políticas de preservação da cultura brasileira.

Capítulo 1 – O Modernismo e Mário de Andrade

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modernismo e como se diferenciam de outros colegas de movimento. Assim, desenvolvemos uma análise sobre os projetos estéticos e ideológicos do modernismo brasileiro. Outro escopo é a reconstituição do contexto histórico dos anos 20 e 30, período tomado como base para a pesquisa. Essa reconstituição tem como tarefa entender as transformações sócio-político-culturais pelas quais o Brasil passou nesse período, muito significativas para o país. O intuito é entender melhor as escolhas do autor, quando viaja para pesquisar o Brasil e, posteriormente, suas atividades e propostas de homem público, atuando no Departamento de Cultura.

Também procuramos entender o modernismo como um projeto estético, político, ideológico e social, que objetivava intervir na vida social brasileira. Vários dos modernistas aderiram a projetos políticos, inclusive partidários, em espectros tanto ligados à esquerda como à direita. Tudo isso dentro do olhar e perspectiva de Mário de Andrade modernista e sua relação com outros atores do mesmo movimento.

Capítulo 2 – O Turista Aprendiz, discussão teórica

Este capítulo e o seguinte tratam da principal hipótese desta tese, que é a importância das viagens etnográficas de Mário de Andrade, e o impacto que tiveram em sua trajetória política e em parte de sua obra literária. Assim, problematizamos a questão da literatura de viagens como gênero literário que abarca O Turista Aprendiz. Conceitualmente, discutiremos a literatura de viagens à luz de teorias literárias que interpretam esse gênero como importante e tradicional na literatura ocidental, sobretudo na literatura de língua portuguesa.

O primeiro livro é fruto da primeira viagem etnográfica e, no prefácio, o autor se auto-define como um “antiviajante”. Nessa primeira parte, diversos relatos estão no domínio da ficção, que Mário de Andrade cria a partir de sua experiência real. Ao mesmo tempo, usa a mesma vivência para expandir suas percepções e análises críticas do Brasil. Aqui, de acordo com alguns estudiosos de sua obra, há um mergulho no universo da brasilidade e na coleta de materiais que faria parte de sua brasiliana.

Imagem

Foto de Mario de Andrade. Acervo IEB-USP
Foto do Autor. Manaus, abril/2009
Foto do Autor. Igreja e Convento São Francisco. João Pessoa, maio/2009

Referências

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