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A CARNE, A GORDURA E OS OVOS: OS RECURSOS DA FAUNA AQUÁTICA DA AMAZÔNIA E A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NO SÉCULO XVIII

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MARLON MARCEL FIORI

A CARNE, A GORDURA E OS OVOS: OS RECURSOS DA FAUNA AQUÁTICA DA AMAZÔNIA E A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NO

SÉCULO XVIII

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MARLON MARCEL FIORI

A CARNE, A GORDURA E OS OVOS: OS RECURSOS DA FAUNA AQUÁTICA DA AMAZÔNIA E A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NO

SÉCULO XVIII

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História.

Orientador:

Prof. Dr. Christian Fausto Moraes dos Santos

MARINGÁ 2014

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil)

GVS- 001011 Fiori, Marlon Marcel

F519c A carne, a gordura e os ovos: os recursos da fauna aquática da Amazônia e a colonização

portuguesa no século XVIII / Marlon Marcel Fiori. -- Maringá, 2014.

107 f. : figs. color., tabs.

Orientador: Prof. Dr. Christian Fausto Moraes dos Santos.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História, 2014.

1. Amazônia - Colonização portuguesa - Século XVIII. 2. Fauna aquática - Amazônia - Século XVIII. 3. Recursos pesqueiros - Amazônia - Século XVIII. 4. Ictiofauna - Amazônia - Século XVIII. 5. Peixes-boi - Amazônia - Século XVIII. 6. Tartarugas - Amazônia - Século XVIII. 7. Podocnemis expansa - Amazônia - Século XVIII. I. Santos, Christian Fausto Moraes dos, orient. II. Universidade Estadual de Maringá. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em História. III. Título.

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MARLON MARCEL FIORI

A CARNE, A GORDURA E OS OVOS: OS RECURSOS DA FAUNA AQUÁTICA DA AMAZÔNIA E A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NO SÉCULO XVIII

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História.

Orientador:

Prof. Dr. Christian Fausto Moraes dos Santos

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Edson Fontes de Oliveira

Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Erivelto Goulart

Universidade Estadual de Maringá – DBI/NUPÉLIA

_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Christian Fausto Moraes dos Santos

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À Neusa e ao José, Por sempre acreditarem que eu chegaria lá.

Ao Chris, Por todos os anos de aprendizado e por ter me despertado para a História das Ciências.

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AGRADECIMENTOS

O número de pessoas que contribuíram com este trabalho é tão grande quanto a quantidade de tartarugas recolhidas por um colonizador numa praia do Amazonas por volta de 1750. Minha imensa gratidão ao Christian Fausto, meu orientador e amigo, pelos anos de aprendizagem, por despertar meu interesse pela História das Ciências e por toda atenção incansável dedicada à pesquisa e ao texto. Sem você esse trabalho, certamente, jamais seria possível. Sou enormemente grato à minha namorada, Fernanda Ferruzzi, por todo apoio e amor incondicional. Sou grato também ao apoio, amor e carinho dos meus familiares e amigos. Aos meus pais e meu irmão, Sandra, Walter e Lucas Fiori, aos meus queridos avós, Neusa e José. Aos meus amigos Gustavo Baro, Anacreone Souza, Ronnie Bueno, Michel Gomes, Éderson Gusmão e Douglas Lima – cada um de vocês, à sua maneira, foram de grande ajuda nessa jornada.

Agradeço aos meus amigos do Laboratório de História, Ciências e Ambiente – Wellington Silva Filho, Fabiano Bracht, Gisele Bracht e, principalmente, a Monique Palma – por compartilharem suas experiências e conhecimentos, e à Lígia Carreira, pela paciência, incentivo e auxílio. Meus sinceros agradecimentos ao pessoal do Nupélia (UEM), ao prof. Ângelo Agostinho, pelas dicas de leitura, à Salete Ribelatto Arita e ao João Fábio Hildebrandt, pela formidável ajuda com a bibliografia e, notadamente, ao prof. Erivelto Goulart, pela leitura atenta e por todas as contribuições feitas ao manuscrito. Agradeço, igualmente, ao prof. Edson Fontes de Oliveira, por sua leitura pormenorizada e por todas as contribuições pertinentes, bem como ao prof. Richard Vogt, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), por ler e cooperar com o manuscrito.

Ao longo da jornada tive a sorte de contar ainda com a ajuda de muitas outras pessoas e instituições. Devo muito à Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES). Sem a bolsa de estudos, a pesquisa jamais iria tão longe. Agradeço muito ao pessoal do Programa de Pós-graduação em História (PPH) da UEM, sobretudo aos professores Sidnei Munhoz e João Fábio Bertonha e à Gisele Moraes. Agradeço à Andréa Abraham de Assis, da biblioteca do Museu Paraense Emílio Goeldi que, com uma prontidão e eficiência invejável, me remeteu tantas obras e artigos fundamentais que eu jamais conseguiria sozinho. Às dicas de leitura do prof. Charles Clement, do INPA. Enfim, meus sinceros agradecimentos a todos que, direta ou indiretamente, ajudaram a construir esse trabalho.

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“Naturalmente, o conceito de que o meio ambiente geográfico e a biogeografia influenciaram o desenvolvimento social é antigo. Hoje em dia, entretanto, essa opinião não é bem-vista pelos historiadores. É considerada errada ou simplista, ou é classificada de determinismo ambientalista e rejeitada – ou, ainda, toda essa questão de tentar compreender as diferenças do mundo é evitada por ser muito difícil. A geografia, obviamente, teve algum efeito na história. A questão que permanece aberta é sobre a extensão desse efeito e se a geografia pode ser responsável por um padrão mais amplo de história”. Jared Diamond

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RESUMO

Encontramos uma série de informações sobre o aproveitamento em larga escala dos recursos da fauna aquática pelos colonizadores portugueses em registros históricos sobre a Amazônia setecentista, tais como relatos e diários de viagens, Memórias, cartas e descrições redigidas por habitantes da região, missionários e funcionários a serviço da coroa portuguesa. Os registros indicam que, para garantir um suprimento satisfatório de carne e gordura (uma importante fonte de calorias, combustível e um meio precioso de conservação das carnes), os colonos capturaram, anualmente, uma quantidade esbanjadora de tartarugas além de milhões de seus ovos, abateram peixes-boi e se aproveitaram amplamente das espécies da ictiofauna amazônica. O objetivo desta dissertação foi resgatar essa história, bem como compreender porque esses recursos da fauna aquática amazônica se tornaram tão atrativos para os colonizadores no século XVIII. Os impactos ambientais da colonização portuguesa sobre algumas espécies da fauna aquática também são avaliados. Essas considerações evidenciam que para sobreviver na maior floresta equatorial do mundo, um ambiente quente, úmido, fervilhante de vida e consideravelmente diferente do que estavam acostumados, os colonos dependeram fortemente dos recursos naturais locais, especialmente, dos recursos da fauna aquática. A análise também permitiu compreender que os padrões de densidade populacional e de distribuição de algumas espécies da fauna aquática amazônica, tais como as tartarugas-da-amazônia e peixes-boi eram, por volta de 1700, bem diferentes do que são agora. Permitiu, ainda, avaliar que os impactos ambientais da colonização portuguesa sobre algumas espécies da ictiofauna amazônica, durante o século XVIII, têm sido subestimados.

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ABSTRACT

We find a lot of information about the extensive exploitation of resources of the aquatic fauna by Portuguese colonists in historical records on the eighteenth Amazon, such as travel reports and diaries, Memories, letters and descriptions written by local residents, officials and missionaries in service of the Portuguese crown, Records show that, to ensure a satisfactory supply of meat and fat (an important source of calories, fuel and a precious means of preserving meats), settlers captured a wasteful amount of turtles and millions of their eggs each year, slaughtered manatees and took advantage of species of Amazonian fish fauna.The objective of this dissertation is to recover this history and understand why these features of Amazonian aquatic fauna became so attractive to settlers in the eighteenth century. We also evaluate the impacts of colonization on some species of aquatic fauna. These considerations suggest that in order to survive in the world's largest rainforest, a moist, warm and teeming life environment, considerably different than they were familiar, the settlers heavily depended on local natural resources, especially that ones of aquatic fauna. This analysis allowed us to understand the patterns of population density and distribution of some species of Amazonian aquatic fauna, such as the Amazon river turtles and manatees were very different by the 1700 than they are now. It also allowed us to assess the environmental impacts of the Portuguese colonization on some species of Amazonian fish fauna during the eighteenth century have been underestimated.

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LISTA DAS TABELAS

Tabela 1. Tartarugas e demais provisões enviados dos pesqueiros e feitorias para abastecer a primeira Comissão Demarcadora de Limites em Mariuá, entre janeiro e 12 de julho de 1755 ... 50 Tabela 2. Total de tartarugas que, dos pesqueiros de Poraquecoara, do rio Branco e do Araçá, foram remetidas e morreram no curral da vila de Barcelos, entre 1780 e 1785 ... 55 Tabela 3. Total de tartarugas remetidas e que morreram no curral no “pesqueiro da capitania”, entre 1780 e 1785 ... 55 Tabela 4. Total de tartarugas despachadas dos pesqueiros de Poraquecoara, Rio Branco e Araçá para a vila de Barcelos, de 1780 a 1788 ... 58

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LISTA DAS ILUSTRAÇÕES

Figura 1. José Joaquim Freire: Prospecto da villa de Monforte na ilha Grande de Joannes. Viagem Philosophica (1783-1792). Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira ... 31 Figura 2. Piraíba [Brachyplatystoma filamentosum ou Brachyplatystoma capapretum].

Viagem Philosophica (1783-1792). Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Coleção

Alexandre Rodrigues Ferreira. ... 34 Figura 3. Pirarucu [Arapaima gigas]. Viagem Philosophica (1783-1792). Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira ... 36 Figura 4. Viração das tartarugas na Amazônia. Viagem Philosophica (1783-1792). Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. ... 44 Figura 5. Matamatá [Chelus fimbriatus]. Viagem Philosophica (1783-1792). Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. ... 59 Figura 6. Fabrico da manteiga dos ovos da tartaruga. Viagem Philosophica (1783-1792). Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. ... 64 Figura 7. Peixe boi [Peixe-boi-marinho – Trichechus manatus]. Viagem Philosophica (1783-1792). Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira... 78

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SUMÁRIO

UMA HISTÓRIA DA AMAZÔNIA POUCO CONVENCIONAL ... 11

1. OS RIOS E LAGOS DA FLORESTA: A ICTIOFAUNA AMAZÔNICA E A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NO SÉCULO XVIII ... 14

1.1. Nenhum “veado, javali ou ave...”. ... 14

1.2. Do anzol de metal ao timbó ... 18

1.3. Canoas carregadas com tainhas, gurijubas, piraíbas e a bexiga natatória do pirarucu ... 29

1.4. Três séculos de consumo de peixes ... 41

2. A CARNE, A GORDURA E OS OVOS: A COLONIZAÇÃO DA AMAZÔNIA EM UM CASCO DE TARTARUGA ... 42

2.1. Milhares e milhares de tartarugas a cobrir toda a areia ... 42

2.2. Um tanque em cada casa ... 46

2.3 Os currais do rei ... 48

2.4. Pisando em ovos ... 60

2.5. Preciosos potes de gordura ... 72

2.6. As praias vazias ... 75

3. A “TEMPORADA DE CAÇA” AOS GRANDES MAMÍFEROS DA AMAZÔNIA ... 76

3.1. Duas famílias, com apenas quatro sobreviventes ... 76

3.2. Dóceis, pesados e corpulentos ... 78

3.3. Arpões e pancadas na cabeça... 81

3.4. Sal e carnes embebidas em gordura ... 82

3.5. Vísceras, couro, ossos e mais potes de gordura ... 85

3.6. Os matadouros de Faro e Franca ... 89

3.7. O prenúncio de um colapso ... 90

CONCLUSÃO: O ambiente, a fauna aquática amazônica e a colonização ... 92

FONTES DOCUMENTAIS ... 95

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Introdução: uma história da Amazônia pouco convencional

A história da Amazônia, no século XVIII, tem sido contada de diferentes maneiras. Exploração da força de trabalho dos nativos, embates entre a coroa portuguesa e os jesuítas, coleta e comércio das chamadas drogas do sertão, cultivo de gêneros agrícolas para a exportação, ações do Estado português para a defesa e demarcação das fronteiras são alguns dos temas que têm norteado as pesquisas sobre a história da Amazônia setecentista. Embora não menos importante, raros são os trabalhos que tem se dedicado em compreender as dificuldades dos colonizadores portugueses em se ajustar ao ambiente da Amazônia e como isso influenciou as suas condições de vida.

Normalmente, durante os últimos quinhentos anos, todas as colonizações que mais prosperaram tiveram, como destino, ambientes semelhantes à terra natal dos migrantes (CROSBY, 1993; DIAMOND, 2010; FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2009). Mas, com cerca de cinco milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados, que se estendem do oceano Atlântico às encostas orientais da Cordilheira dos Andes, a maior floresta equatorial do mundo, quente, úmida, fervilhante de vida, era bem diferente do que os colonizadores estavam familiarizados. Na Amazônia, como em outros territórios tropicais dos Impérios europeus, os portugueses podem ter sido bem-sucedidos em matar nativos com suas epidemias de vírus e bactérias letais, ter lucrado cultivando ou extraindo das matas produtos com alto pagamento no Velho Mundo. Contudo, para sobreviver com relativa satisfação na nova área habitada, eles precisaram desenvolver uma série de táticas, notadamente no que diz respeito às questões alimentares.

Para as diversas plantas e animais oriundos do Velho Mundo que acompanharam os portugueses na colonização da Amazônia, o clima da floresta equatorial poderia ser demasiado quente; os solos pobres em nutrientes; a precipitação anual das chuvas muito elevada; e a quantidade de insetos, fungos e pragas de plantas surpreendentemente excessiva. O filósofo natural Alexandre Rodrigues Ferreira, por exemplo, queixava-se de que, na Amazônia, os repolhos plantados nas hortas próximas às casas apodreciam, as couves ficavam lenhosas e adquiriam mau-gosto. As mangueiras, ao menos, floravam, mas assim que os frutos tinham o tamanho de “bala de espingarda”, simplesmente, caíam (1983, p. 383-385). Intrigava-o, ainda, o fato de que, no final da década de 1780, não se encontravam nas povoações da capitania de São José do Rio Negro nem quatrocentas cabeças de gado bovino (1983, p. 687).

Na Amazônia, como em outras áreas da América, os colonos portugueses tiveram que incorporar em sua dieta diversas plantas nativas. As variedades de

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12 mandioca (Manihot spp.), por exemplo, substituíram o trigo, a cevada e, especialmente quando processado na forma de farinha, esse tubérculo se tornou uma das principais fontes de carboidratos dos colonos.

Para garantir um suprimento satisfatório de carne e gordura – uma importante fonte de lipídios e combustível, além de um recurso precioso na conservação das carnes –, os colonizadores acabaram recorrendo largamente à fauna aquática da floresta equatorial. Eles capturaram, anualmente, uma quantidade esbanjadora de tartarugas, recolheram milhões de ovos, abateram peixes-boi e se aproveitaram amplamente das espécies da ictiofauna. Resgatar essa história e compreender porque tais recursos da fauna aquática amazônica foram tão importantes para os portugueses é o objetivo desta dissertação. Os impactos ambientais da colonização portuguesa sobre algumas espécies da fauna aquática também são avaliados.

A dissertação encontra-se dividida em três capítulos. O primeiro expõe o aproveitamento da ictiofauna amazônica na dieta dos portugueses. A pesca foi uma atividade que ocupou muito tempo e espaço na alimentação dos colonizadores na grande floresta equatorial. Às vezes, ou ao menos durante alguns meses do ano, muito mais que as caçadas. Em parte, este capítulo aborda porque poderia ser mais vantajoso apanhar peixes nos rios do que perseguir bandos de porcos-do-mato nas matas. Os métodos e apetrechos que eram empregados para capturar peixes, bem como a influência dos colonizadores na pesca na Amazônia também são discutidos. O capítulo termina como uma análise das espécies de peixes que, de acordo com os registros históricos, foram consumidas com mais frequência pelos colonos.

O segundo capítulo se ocupa do recurso da fauna aquática amazônica mais drasticamente explorado pelos colonizadores portugueses: as tartarugas, mais especificamente a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa). Entre os anos de 1700 a 1800, os registros históricos sobre o número destes répteis encontrados no Amazonas e seus afluentes contrastam fortemente com as atuais estimativas da população desses animais. Toda essa abundância, milhões e milhões de P. expansa, foi intensamente perseguida pelos colonizadores portugueses, devido a sua busca por carne e gordura. As capturas centravam-se nas fêmeas que, durante a estação de seca, sobem as praias para depositar os ovos em grandes grupos. Nesse momento, elas estavam vulneráveis, e podiam ser facilmente coletadas. Os ovos também não eram poupados. Eles eram esmagados em canoas para a produção de um óleo (a chamada manteiga dos ovos), que era utilizado, principalmente, para fins culinários e na iluminação de ruas e casas. Ao

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13 recolher as fêmeas e seus ovos, os colonizadores portugueses infligiram um impacto duplamente destrutivo.

O terceiro e último capítulo, nos leva aos grandes e pesados peixe-boi-da amazônia (Trichechus inunguis) e marinho (Trichechus manatus manatus). Estes mamíferos foram uma fonte igualmente importante de proteínas e gordura para os colonizadores portugueses. Além do consumo de carne, a gordura derretida dos peixes-boi, assim como a manteiga dos ovos de tartarugas, foi largamente usada na iluminação pública e residencial, para cozinhar os alimentos e na conservação das carnes (mixira). Em menor medida, o couro, os ossos e as tripas dos peixes-boi também não foram desperdiçados pelos colonos. Comparado às tartarugas, as informações sobre o número de peixes-boi abatidos, no século XVIII, não são tão abundantes. Mas, os registros históricos indicam que, todos os anos, uma elevada quantidade desses animais foi solapada de rios, áreas costeiras e estuarinas da Amazônia.

Por último, uma advertência. Quando folheamos as páginas dos registros históricos setecentistas não consta a palavra Amazônia. Esse é um termo nosso, contemporâneo, não dos colonizadores portugueses. Por isso, a palavra Amazônia, reiteradamente mencionada no decorrer do artigo, tem um objetivo puramente didático. No século XVIII, o território que atualmente denominamos de Amazônia compreendia, em seus contornos gerais, uma vasta área político-administrativa do Império colonial português: era o Estado do Maranhão e Grão-Pará que, na década de 1750, tornou-se o Estado do Grão-Pará e Maranhão.

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1. Os rios e lagos da floresta: a ictiofauna amazônica e a colonização portuguesa no século XVIII

1.1. Nenhum “veado, javali ou ave...”

No início de outubro de 1754, a primeira Comissão Demarcadora de Limites partiu da cidade portuária de Belém para o rio Negro. Desde longa data, a questão dos limites fronteiriços nos domínios coloniais na América se transformara em uma das principais pautas das relações diplomáticas entre Portugal e Espanha. Com a assinatura do Tratado de Madrid (1750), as coroas ibéricas decidiram reunir astrônomos e cartógrafos para percorrer o interior das colônias e determinar, por meio de cartas geográficas mais precisas, ao menos para época, os limites dos domínios (RAMINELLI, 2008, 69-74).

No rio Negro, o destino da Comissão portuguesa era a aldeia de Mariuá – cerca de 450 quilômetros a Noroeste de do atual município de Manaus –, onde aguardariam a chegada dos demarcadores espanhóis. No comando da Comissão estava o então governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Ele era irmão do secretário do rei de Portugal, Sebastião José de Carvalho e Melo, historicamente conhecido como marquês de Pombal, título que receberia anos depois (HEMMING, 2011, p. 127-129).

Em julho de 1755, após cerca de seis meses na aldeia de Mariuá, sem o menor sinal dos demarcadores espanhóis, Francisco Xavier de Mendonça Furtado escreveu uma carta para Diogo de Mendonça Corte Real, o secretário de Estado da Marinha e Ultramar. Na carta, ele informava ao secretário sobre a alimentação e o abastecimento dos mantimentos aos astrônomos, cartógrafos, engenheiros e demais membros da Comissão Demarcadora, estabelecidos na aldeia.

As notícias não eram muito animadoras. No rio Negro, o abastecimento da aldeia dependia de embarcações que traziam farinha de mandioca, galinhas e outros alimentos de povoados no Amazonas e no Solimões. A carne de gado bovino, devido às dificuldades de transporte, era escassa. Além de galinhas, praticamente toda a proteína animal ingerida por Mendonça Furtado e a Comissão era composta de peixes e tartarugas, apanhados nos rios da região. Ao contrário da generosidade dos rios, um fato chamou a atenção do governador. Após todos esses meses, as caçadas na floresta revelavam-se um atordoante fracasso:

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Êste rio [Negro], ainda que não é tão abundante como as Amazonas, no tempo em que está vasio, nos provê suficientemente, quando porém está cheio, com dificuldade se pode pescar, mas ainda assim, sempre ou mais, ou menos se apanha peixe, e só me lembra que em um dia o não houve.

A caça que aqui há é mais rara, e estando nêste arraial há seis meses, ainda me não entrou nesta casa veado, javali, ou ave alguma, e vamos sòmente socorrendo-nos do rio, e das pescarias que tenho estabelecidas no Solimões, das quais além do peixe sêco, nos tem vindo inumeráveis tartarugas. Pelas canôas que trago a resgatar galinhas, farinhas, e outros mantimentos, por todas as Amazonas e Solimões, me têm vindo também algumas vitelas, ainda que mui poucas, porque se faz sumamente dificultoso o seu transporte (FURTADO apud MENDONÇA, 1963b, p. 754-755).

Para Mendonça Furtado deveria ser algo um tanto quanto contraditório que em meio à exuberante floresta amazônica, nenhum veado, porco-do-mato, ave ou qualquer outro animal tivesse sido abatido nas matas dos arredores da aldeia. Mas, como o governador talvez devesse estar começando a perceber, poderia ser mais fácil e vantajoso obter proteínas com os animais da fauna aquática do que tentando caçar na floresta equatorial.

Na Amazônia, os insetos compõe a maior parte da biomassa animal disponível na floresta. Seja em termos de número de espécies, de quantidade de indivíduos ou de biomassa animal, nenhum outro grupo de animais se compara aos insetos nas matas amazônicas (GOULDING, 1997, p. 203; OVERAL, 2001, p. 50). No início da década de 1970, quando dois pesquisadores alemães se entregaram à homérica tarefa de pesar todos os animais num único hectare de floresta, descobriram que as formigas, sozinhas, pesavam quatro vezes mais que todos os vertebrados terrestres (isto é, mamíferos, répteis, anfíbios e aves) juntos (FITTKAU; KLINGE, 1973).

Historicamente, uma parte dessa diversa e abundante fauna de invertebrados, que tem desconcertado entomologistas, tem sido aproveitada por dezenas de etnias indígenas como fonte de alimento (PAOLETTI et al., 2000). Embora os valores nutricionais sejam altamente variáveis, em função da diversidade, da dieta e hábitat, do estágio metamórfico em que são consumidos, bem como em função dos métodos de preparação e processamento, diversas espécies de insetos comestíveis contêm um teor elevado de proteínas, gorduras e fibras, além de ainda poderem fornecer vitaminas e minerais (HUIS et al., 2013, p. 67-79). Os Suruís em Rondônia, por exemplo, consomem larvas de algumas espécies de coleópteros, que são colhidas em troncos podres, caídos na mata, e de palmeiras de babaçus (COIMBRA JR., 1984).

Apesar do potencial nutricional, os colonizadores não estavam muito dispostos a mitigar a fome, obter proteína e gordura comendo grandes larvas de

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16 besouros, ou mesmo formigas do gênero Atta, como faziam as etnias indígenas amazônicas. Eles, certamente, preferiam animais vertebrados. Mas, ao contrário do que pode parecer inicialmente, as espécies passíveis de serem caçadas na floresta amazônica não são tão facilmente capturadas.

Para aumentar as chances de retornarem às suas casas com carne, os caçadores amazônicos, normalmente, têm de procurar as presas a cerca de trinta a quarenta metros de altura. Em uma típica floresta madura, ou seja, sem desmatamento recente, é comum que a maioria dos animais esteja localizada no dossel das árvores, bem longe do chão (MORAN, 1994, p. 316; NEVES, 2006, p. 17). Não incluindo os animais arborícolas, o solo da floresta não oferece oportunidades acalentadoras. Diferentemente das savanas africanas, onde é comum a ocorrência de animais que andam em bandos, os animais terrestres amazônicos são, em geral, solitários e de comportamento territorial imprevisível. Além disso, boa parte dos animais têm hábitos noturnos. Esse era o caso de várias presas valiosas para os colonizadores, tais como antas, pacas, tatus e o veado-mateiro (Mazama americana).

Dos animais terrestres, as exceções ao comportamento solitário da maior parte das espécies que atraíam os colonos seriam os catetos e queixadas, que andam em grandes bandos. Contudo, os porcos-do-mato não são uma fonte de carne sempre disponível. Os bandos de catetos e queixadas aparecem e desaparecem de um trecho de floresta com a mesma frequência, pois esses animais têm um comportamento territorial igualmente imprevisível (MORAN, 1990, p. 154). Seus bandos poderiam ser uma refeição generosa um dia mas, em outros, poderiam deixar um colonizador confiante faminto.

Os queixadas (Tayassu pecari) ainda apresentam outro agravante, pois são animais bastante agressivos. Um caçador imprudente que tentasse abatê-los poderia acabar se dando mal. Quando um deles é ferido, é comum que os demais membros do bando – que pode ter mais de 200 indivíduos –, irascivelmente, o defendam. Para isso, os queixadas usam seus caninos desenvolvidos, semelhantes a navalhas, que são capazes de retalhar e, até mesmo, aleijar um homem (DONKIN, 1985). Alguns colonizadores e seus cães de caça devem ter aprendido isso da pior maneira possível. Em 1790, Alexandre Rodrigues Ferreira notou que os queixadas eram muito “ferozes” e que “vendo-se perseguidos pelos cães ou caçadores, reunem-se e, com um grunhido grosso e horrível, eriçam os pêlos, batem os dentes e cercam os que os perseguem para atrapalharem, no caso de não encontrar alguma árvore” (1972c, p. 186).

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17 Para aumentar as probabilidades de obter sucesso, os caçadores precisam ter um profundo conhecimento não só sobre a floresta, mas também sobre os animais e seu comportamento. Eles precisam estar familiarizados com os sons emitidos pelos animais, ter habilidade para localizar, reconhecer e seguir rastros, bem como as plantas que, ao servirem de alimento para as possíveis presas, indicavam os melhores locais de tocaia ou as áreas em que poderiam ser mais facilmente encontradas (MORAN, 1994, p. 318). Tudo isso demandava muito mais que perícia, algo que, certamente, os nativos encarregados das caçadas possuíam e muitos colonizadores, ao longo dos anos, adquiriram. Demandava também tempo e, às vezes, um dispêndio de energia que nem sempre era recompensado.

Em comparação com padrão incerto e imprevisível dos animais da floresta, que torna a caça dificultosa, os animais da fauna aquática da Amazônia fornecem uma fonte mais previsível e abundante de alimentos (GOULDING, 1997, p. 203; NEVES, 2006, p. 17-18). Nos rios, lagos e igarapés, os colonizadores podiam encontrar tartarugas e outras espécies de répteis, mamíferos, como o peixe-boi, além de uma copiosa quantidade de peixes que, durante os meses de seca, quando o ambiente aquático está reduzido, se amontoam em grandes cardumes no canal dos rios e nos lagos, tornando-se mais fáceis de serem capturados.

Provavelmente, algo em torno de três mil espécies de peixes (com diferentes formas, tamanhos, cores e comportamento) são encontradas na Amazônia, embora algumas estimativas sugiram que o total possa chegar a cerca de oito mil espécies (SANTOS; FERREIRA; ZUANON, 2009, p. 10; SANTOS; SANTOS, 2005, p. 167; BARTHEM; FABRÉ, 2004, p. 17). Há indícios de que o rio Amazonas abriga, sozinho, cerca de dez vezes mais espécies de peixes que o total encontrado em toda a Europa (GOULDING, 1997, p. 16).

As vantagens de se apanhar peixes (e outros recursos da fauna aquática da Amazônia, tais como tartarugas e peixes-boi), nos ajudam a compreender porque esses animais se tornaram importantes na alimentação dos colonizadores portugueses. As mesmas vantagens também nos ajudam a compreender, ao menos em parte, porque o governador Mendonça Furtado e os demais integrantes da Comissão Demarcadora, em seis meses na aldeia de Mariuá, conseguiam obter com frequência peixes e tartarugas para suas refeições, mas nem sempre tinham resultados satisfatórios com as caçadas. Normalmente, ou pelo menos durante boa parte do ano, é mais rentável e previsível

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18 procurar proteínas nos rios, lagos e igarapés da Amazônia, do que caçar na floresta equatorial.

Mas quais métodos e apetrechos foram usados pelos colonos portugueses para aproveitar toda essa abundância de peixes dos numerosos rios amazônicos?

1.2. Do anzol de metal ao timbó

Por volta de 1610, pequenas fortificações e entrepostos comerciais holandeses, ingleses e irlandeses se espalharam pelo Amazonas e alguns afluentes próximos ao seu estuário. Não é difícil saber o que os atraiu. Em certa medida, os europeus tinham a expectativa de que poderiam encontrar na vasta floresta equatorial especiarias valiosas, equivalentes às que eram carregadas nos porões dos seus navios nos portos da Ásia. Além disso, a exuberância da vegetação equatorial talvez tenha levado os colonizadores a presumir que, na Amazônia, haveriam solos férteis onde, em enormes fazendas, poderiam cultivar tabaco, açúcar e outras drogas familiarizadas a climas quentes e chuvosos, com alto pagamento nos mercados do Velho Mundo. Ao menos do ponto de suas ambições como agricultores eles estavam enganados.

Com poucas exceções, os solos amazônicos são pobres e toda a floresta densa e alta, que nos acostumamos a ver nas fotografias da região, depende de uma eficiente ciclagem de nutrientes. Quando folhas, galhos e troncos caem no chão, os nutrientes que compõem a própria biomassa das árvores são decompostos e reabsorvidos com a ajuda de bactérias, assim como de fungos, conhecidos como micorrizas, que vivem nas raízes das plantas. Esse sistema é tão eficiente que apenas uma pequena parcela dos nutrientes é incorporada ao solo e, ainda assim, somente em sua camada superficial. É por isso que um trecho de floresta desmatada demora muito tempo para se reestabelecer. Sem a floresta, a ciclagem de nutrientes é interrompida (NEVES, 2006, p. 14-16). Mas esse não é o único problema. Em áreas desmatadas, o solo também fica vulnerável à ação das chuvas que, percutindo constantemente, converte a terra em uma pasta líquida, facilmente erodida e que favorece a perda dos nutrientes que ainda restavam. Esse fenômeno, de lixiviação da camada superficial do solo, é conhecido pelos cientistas como física do pingo da chuva (MANN, 2007, p. 322-323).

Os colonizadores portugueses se instalaram definitivamente na Amazônia pouco tempo depois. Em 1616, fundaram um forte de madeira na entrada do Amazonas, que se transformaria na cidade de Belém. Os portugueses não estavam dispostos a

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19 partilhar a maior floresta equatorial nem o maior rio do mundo com outros forasteiros europeus. Na década de 1640, depois de embates contra os demais invasores holandeses, irlandeses e ingleses, eles haviam conseguido assegurar o controle sobre o Amazonas e seus afluentes (CHAMBOULEYRON, 2006).

Com ocupação da Amazônia pelos colonizadores portugueses a tecnologia de pesca da região passou por algumas modificações. Os métodos de pesca tradicionalmente empregados pelos indígenas amazônicos incluíam o arco e flecha, diversos tipos de armadilhas, venenos para peixes, lanças, arpões, anzol e linha. Como os nativos não dispunham de armas ou instrumentos de metal, os anzóis eram confeccionados com madeira, mandíbulas de formigas, garras de gavião real (Harpia

harpyia) e ossos de animais (SMITH, 1985, p. 361; VERÍSSIMO, 1895, p. 133-135).

As pontas dos arpões eram confeccionadas com conchas, como relatou o padre Cristóbal de Acuña, que desceu o rio Amazonas em 1639 (1641, p. 11).

Os portugueses trouxeram da Europa anzóis, arpões e fisgas de metal. Esses apetrechos eram mais resistentes e, como as facas, facões e outros instrumentos de metal, atraíram a atenção dos nativos. O padre jesuíta João Daniel, por exemplo, que esteve na Amazônia entre os anos de 1741 e 1757, notou que os chamados “índios mansos”, ou seja, aqueles que haviam se integrado à sociedade colonial portuguesa, tinham substituído seus anzóis tradicionalmente utilizados pelos de metal. Para apanhar peixes, escreveu ele, também “[...] usam de anzol os índios mansos, que já usam de

ferro; especialmente para o peixe piranha, e outros, de que há infinidade [...]”

(DANIEL, 1976b, p. 86; grifos nossos).

Por volta de 1750, enquanto o uso de anzóis, arpões e fisgas de metal se tornava cada vez mais comum na Amazônia, as linhas de pesca eram confeccionadas pelos próprios habitantes locais, com fibra de algodão. Talvez, o algodão tenha sido cultivado pelos indígenas amazônicos antes da chegada dos colonizadores. As fibras eram um produto vegetal não-comestível valioso para as sociedades antigas, e estão entre as primeiras plantas que foram levadas para as plantações dos agricultores pré-históricos. No Novo Mundo, o algodão pertencente à espécie Gossypium hirsutum, que atualmente corresponde a aproximadamente 95% da produção mundial, foi domesticado na Mesoamérica. Os agricultores da costa do Peru, por sua vez, domesticaram o algodão da espécie Gossypium barbadense que, através das florestas nubladas da cordilheira andina, pode ter tido seu cultivo disseminado para a Amazônia. No Peru, os registros arqueológicos indicam que as fibras de G. barbadense eram usadas para confeccionar

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20 tecidos, linhas e redes de pesca (CLEMENT, 1999; DIAMOND, 2010, p. 181; PICKERSGILL, 2007, p. 929).

Aparentemente, os colonos preferiam as linhas de algodão por serem mais duráveis do que aquelas confeccionadas com linho cânhamo (Cannabis spp.), então utilizadas em Portugal. “As linhas de pescar de linho são aqui [na Amazônia] de pouco uso, porque logo apodrecem, e cá nos aproveitamos das de algodão [...]”, advertia o governador Mendonça Furtado a seu irmão, o marquês de Pombal, em uma carta julho de 1755, durante a sua estada na aldeia de Mariuá (1963b, p. 770).

Além de algodão, fibras de curauá (Ananas erectifolius) e de algumas espécies de palmeiras do gênero Astrocaryum eram utilizadas para confeccionar linhas de pesca e cordões para arpões. Durante a Viagem Philosophica, entre os anos de 1783 e 1792, Alexandre Rodrigues Ferreira notou que no alto rio Negro as folhas novas emergentes do tucum (Astrocaryum spp.) eram “[...] desfiadas e torcidas a mão, formando linhas que têm todas as aplicações do barbante, servindo para pescar e

lancear peixes e tartarugas, redes de dormir ou maquiras, etc.” (1972d, p. 239, grifos

nossos). “Ao tucum [...]”, mencionou ainda o ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que navegou pela capitania de São José do Rio Negro entre 1774 e 1775, “[...] se pode chamar o linho da América meridional. Das fibras interiores das suas folhas fazem os indios obras, não só de gosto, e perfeição, mas também de serventia universal para as suas comodidades domesticas” (1825, p. 67). Nos arpões de pirarucu, os pescadores se aproveitavam ainda de cordões tecidos com a entrecasca da castanha-do-pará (Bertholletia excelsa) (FERREIRA, 1903c, p. 157).

Há poucas informações sobre o uso de redes de pesca pelos nativos amazônicos antes da chegados dos colonizadores. O geógrafo norte-americano Nigel J. H. Smith recolheu alguns registros etnográficos que descrevem que os Karajás, no rio Araguaia, confeccionavam redes com trepadeiras e entrecasca de embaúba (Cecropia

sp.), com seis metros de comprimento e um metro de profundidade, com tamanho de

malha variando de 20 a 30 centímetros, fortes o suficientes para resistir a peixes de grande porte, como o pirarucu. Essas redes eram empregadas em canais inundados, sendo os peixes atraídos até elas e, em seguida, recolhidos manualmente (SMITH, 1981a, p. 37-38; 43). No entanto, ainda não está muito claro se a prática do uso destas redes, confeccionados pelos Karajás, tenha sido adquirida após o contato com os colonizadores (COOPER, 1987, p. 171).

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21 O padre João Daniel, que foi missionário no rio Arapiuns, um dos afluentes do Tapajós, notou que os indígenas teciam redes nas pontas de dois longos galhos de árvores, que eram usadas para apanhar peixes de pequeno porte em lagos e igarapés. As redes eram submersas na água, sendo rapidamente recolhidas assim que os peixes estivessem acima das malhas. Para apanhar acarás1, descreveu ele, utilizavam os nativos não só de arco e flecha, mas igualmente de umas “[...] pequenas redes, que tecem entre duas varas com hastes compridas, e pegando nestas metem a rede na ágoa, e levantam para cima” (1976a, p. 106).

Os registros históricos sugerem que o uso de redes de pesca não foi largamente difundido na Amazônia durante o século XVIII. Em Portugal, peixes eram comumente capturados com malhadeiras, redes de cerco e tarrafas (BLUTEAU, 1720, p. 170; SILVA, 1891, p. XXVII), mas, no Amazonas e seus afluentes, tais apetrechos não parecem ter sido habitualmente utilizados pelos colonos. Termos como tarrafa ou

chumbeira2, por exemplo, não constam nos relatos, embora seja muito provável que esse tipo de rede tenha sido utilizado pelos colonizadores portugueses (VERÍSSIMO, 1895, p. 144-145).

Em sua obra, o Tesouro descoberto no rio Amazonas3, o próprio padre Daniel indicou que, entre as décadas de 1740 e 1750, redes de pesca eram utilizadas apenas nas áreas costeiras. “Usam pois [os habitantes locais] de diversos modos as suas pescarias; e só nas partes do salgado se usa de redes, mas não pelo Amazonas acima”, escreveu ele (1976b, p. 83). Isso se devia, aparentemente, ao fato de que, nos rios amazônicos, os pescadores sofriam com os populares enroscos, sobretudo, galhos de árvores submersos, que danificavam as redes (DANIEL, 1976b, p. 83).

Outro problema para os pescadores eram as lontras4. Em outro trecho da obra, o padre Daniel mencionou que estes mustelídeos costumavam assaltar os peixes

1

A Amazônia abriga cerca de cem espécies de peixes que são denominados de acarás ou carás, nome de origem indígena que significa “escamoso ou cascudo”. A maioria das espécies é onívora, têm hábitos diurnos e sedentários, podendo ser encontrada em lagos e zonas marginais dos rios (SANTOS; FERREIRA; ZUANON, 2009, p. 104).

2

Nome pelo qual os portugueses também designavam a tarrafa (BLUTEAU, 1720, p. 170).

3 O manuscrito do Tesouro Descoberto no rio Rio Amazonas foi redigido no cárcere, onde o padre Daniel permaneceu dezoito anos depois de ser preso em Belém do Pará, em 1757, e embarcado para Lisboa. Originalmente, o manuscrito do Tesouro continha cerca de 800 folhas e, antes de 1976, não havia sido publicado na íntegra (COSTA, 2007, p. 96-97).

4

As características morfológicas e os hábitos alimentares descritos pelo padre Daniel correspondem de forma consideravelmente precisa à lontra (Lontra longicaudis), espécie com ampla distribuição na Amazônia e em outros biomas brasileiros, como o Pantanal, a Mata Atlântica e o Cerrado. No entanto, é possível que, ao mencionar a lontra, o padre Daniel tenha se referido indistintamente a duas espécies de mustelídeos que ocorrem na Amazônia: às lontras, propriamente falando, e às ariranhas (Pteronura

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22 das malhadeiras dos pescadores, deixando-as sem quaisquer condições de uso. As lontras, a quem se poderia chamar de “raposas da ágoa”, descreveu o jesuíta, “zombam das redes dos pescadores, as quaes destroem, roendo-as com os dentes: e não só não ficam pescadas, mas são causa de fugir toda a outra pescaria, e ficarem os pescadores sentindo a perda de das suas redes” (1976a, p. 97-98).

Redes de pesca também não eram utilizadas pelos habitantes das vilas e aldeias do rio Negro e seus afluentes, na década de 1780. Ainda que os peixes, juntamente com as tartarugas, fossem a base das proteínas ingerida pela população, quando Alexandre Rodrigues Ferreira percorreu a região, entre 1784 e 1788, registrou em seu diário que o pescado era apanhado em tapagens em pequenos rios e igarapés, capturado com arco e flecha ou fisgado com linha e anzol, sobretudo, nos meses de seca:

Com effeito da pesca é que em todo o anno se vive [nas povoações da capitania do Rio Negro], e esta ou é de peixe, ou de tartarugas. Só pela vasante se tira a maior copia de peixe fresco; e este ou o tiram das tapagens, ou o pescam á linha, ou o frecham, porque os moradores não usam de redes (FERREIRA, 1983, p. 685, grifos nossos).

Ainda que, normalmente, os colonos ou os nativos responsáveis pela pesca optassem por anzol e linha, arco e flecha, arpões e outros apetrechos, o uso de redes de pesca não foi totalmente desprezado na Amazônia.

Em dezembro 1751, o governador Mendonça Furtado informava ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Corte Real, que redes de dormir, linhas e algumas redes de pesca eram confeccionadas com fibra de curauá (Ananas erectifolius), uma planta comumente encontrada na Amazônia e que, assim como o abacaxi, pertence às Bromeliáceas:

Achando a notícia de que neste Estado havia uma planta que imitava o nosso linho Canimo [cânhamo], logo que cheguei ao Maranhão entrei a fazer a diligência para ver, e trazendo-me uma amostra me pareceu excelente, e que poderia ser de uma grande utilidade. As notícias que achei desta planta são de que nascem pelo mato, e que mui pouca ou rara é a que se põe em alguma roça. Que sem mais trabalho que limpar-lhe alguma erva, seria em abundância, e que depois de colhida, com suma facilidade se lhe tira a casca e fica no estado em que a remeto. Que desta planta a que chamam Carauá se fazem quase todas as cordas das rêdes, que são as camas em que dormem estas gentes [...]. Que dela também se faziam linhas de pescar e algumas

brasiliensis). Pois, ao contrário do que descreveu o padre Daniel, as lontras são animais solitários. Em contrapartida, as ararinhas são animais sociais, que andam em grupos de quatro e até 20 indivíduos, podendo, ainda, haver associações temporárias com outros grupos (CHEIDA; SANTOS, 2010, p. 483-484).

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23

rêdes para o mesmo uso (FURTADO apud MENDONÇA, 1963a, p. 112, grifos nossos).

O interesse do governador Mendonça Furtado pela fibra do curauá estava relacionado à manufatura de cordoaria, essencial para a marinha de guerra e mercante. Esse era um ramo em que Portugal dependia extensamente de produtos importados. Por isso, desde a década de 1750, a coroa estimulou constantemente o plantio de linho cânhamo, bem como a investigação de fibras alternativas que pudessem ser cultivadas nas colônias, visando obter matéria-prima abundante para ajudar no desenvolvimento da manufatura de cordoaria portuguesa. Nos dias de hoje, o curauá é cultivado por causa da fibra leve e resistente extraída de suas folhas, empregada para diversos fins industriais. Na indústria automobilística, a sua fibra substitui a fibra de vidro em diversas peças dos carros, além de entrar na composição de vigas à prova de terremotos (ERENO, 2007).

Em 1787, Alexandre Rodrigues Ferreira notou que o método preferido dos pescadores para apanhar os grandes pirarucus era o arpão. Mas outros métodos também eram utilizados, entre eles, redes com malha de um palmo5, ou seja, com cerca de 22 centímetros, tecidas com entrecasca de embira-preta6 ou castanheira, mais resistentes que aquelas confeccionadas com fibra de algodão:

Pescão-se [pirarucus] por differentes modos para que ou se pescão ao anzol, ou se harpoão, ou se lhes armão as redes, ou as tapagens; o mais commum hé harpoal-os [...]. Não há rêde de fiado de algodão, que sustente a sua força; por esse motivo os [as] que se fazem para a sua pesca, são da entrecasca da Castanha-perêra, ou de Embira preta, com malha de palmo de largura (FERREIRA, 1903c, p. 157).

Redes de pesca também foram utilizadas por funcionários da coroa portuguesa durante as viagens. Quando o bispo do Grão-Pará, João de São Joseph de Queiroz, visitou algumas vilas e aldeias Amazonas acima, entre os anos de 1762 e 1763, descreveu que, em um trecho do rio, recolheu “[...] a rede perto de trinta arrobas de peixe em poucos lanços, sendo o ultimo tão crescido em grandes e muitos peixes, que se estragou a rede, nem bastaria uma canôa para o receber” (1869, p. 75). Pela informação do bispo, a quantidade de peixes apanhados era considerável. No século XVIII, uma

arroba equivalia a 14,688 quilos (CARREIRA, 1988, p. 325). Consequentemente, com

5 No período colonial, o palmo era uma medida de comprimento básica, equivalendo entre 22 e 24 centímetros (SILVA, 2004, p. 129). Ao longo da dissertação, adotaremos como medida para o palmo o valor de 22 centímetros.

6 De acordo com Julio Seabra Inglez de Sousa, costuma-se denominar de embira a um conjunto de plantas anonáceas, cuja a entrecasca são úteis para a confecção de fibras para amarrilhos, redes e cordoaria (2000, p. 39).

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24 trinta arrobas, eles haviam capturado pouco mais de 440 quilos de peixes, com alguns espécimes tão grandes a ponto de deixar a rede em péssimo estado.

Cerca de doze anos depois, ao aportar em uma praia não muito longe da boca do rio Purus, enquanto navegava pelo Solimões, o ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio relatou que “com quatro lanços de rede pescamos innumeraveis especies de peixe: principalmente jandihás, surubins, piráinambus, piráaráras, vacús, nacaris, pirapucús, pirandirás, e outros” (1825, p. 19).

Uma vez que as referências do bispo Queiroz e do ouvidor Sampaio sobre as redes são concisas, é difícil determinar de qual tipo de rede se tratava. Em todo caso, há registros de que grandes redes foram utilizadas. Na Relação do que precisamente é

necessário para a expedição que se há de fazer por êstes rios para se demarcarem os reais domínios de sua majestade, uma lista não muito extensa, que incluía parte dos

materiais requisitados para a primeira Comissão Demarcadora de Limites, consta que além de armas, munição, machados, facas e caixas de botica, também seria oportuno que fossem remetidas de Portugal:

[...] quatro até seis rêdes, chamadas “chinelas”, porque nesta terra [Grão-Pará] não se sabem fazer, nem se conhecem, e bastará que tenham de 30 até 40 braças de comprimento, as quais serão mui úteis nestes rios, e o serão muito mais se pelas aldeias aparecer algum pescador que saiba andar com esta casta de rêdes e possa ensinar os índios a pescar elas (MENDONÇA, 1963a, p. 286).

Entre 66 e 88 metros de comprimento, era o tamanho das redes tipo

chinela7, até então desconhecidas na Amazônia. Assim, quando a Comissão Demarcadora partiu para a aldeia de Mariuá em 1754, levando consigo as redes, essa deve ter sido uma das primeiras experiências com redes de dimensões tão grandes nos rios amazônicos. Os resultados foram promissores. O número de peixes capturados pelas redes foi tamanho, descreveu entusiasmadamente o governador Mendonça Furtado em julho de 1755, que alimentou todos os membros da comissão, com quase 900 pessoas, e muitos ainda foram deixados apodrecendo nas praias (FURTADO apud MENDONÇA, 1963b, p. 754)8.

No século XVIII, os resistentes anzóis e ponteiras de objetos penetrantes de metal dos colonizadores portugueses haviam substituído os anzóis e ponteiras

7

Uma braça, que correspondia à extensão de dois braços abertos, equivalia a 2,20 metros no século XVIII (SILVA, 2004, p. 130).

8 “[...] A rêde foi de excelente uso, e apanhando sempre bastante peixe, fizeram-se alguns lances tão copiosos, que provendo-se abundantemente tôda a comitiva que constava perto de 900 pessoas, sobejou peixe, que o deixaram nas praias” (FURTADO apud MENDONÇA, 1963b, p. 754).

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25 tradicionalmente confeccionados com ossos e conchas e madeira por grande parte dos grupos indígenas da Amazônia. Os colonos também passaram a usar, em menor medida, suas redes para apanhar peixes no Amazonas e seus afluentes. Isso não significa que os métodos de pesca dos nativos tenham sido deixados de lado.

A pesca com arco e flecha foi adotada dos indígenas e, até hoje, esse método é usado na Amazônia, notadamente no período de cheia, quando peixes são flechados nas áreas de floresta inundada (BARTHEM; GOULDING, 2007, p. 19). O padre Daniel maravilhou-se com a destreza dos indígenas amazônicos para flecharem peixes, fossem pequenos ou grandes. Na pesca com o arco, escreveu ele, eram “[...] os índios tão insignes, que basta qualquer criança de poucos anos para matar muito peixe [...]” (DANIEL, 1976b, p. 86). Mas o arco e flecha faziam parte da história da guerra e da caça no continente europeu. Mais impressionante, para os colonizadores, eram os venenos para peixes, extraídos das plantas, que foram herdados dos indígenas.

Quando o explorador, geógrafo e matemático francês Charles-Marie de la Condamine desceu o rio Amazonas, em 1743, descreveu como os nativos podiam tranquilamente apanhar peixes para as refeições apenas com as mãos, mergulhando na água diversas espécies de plantas (com propriedades ictiotóxicas) totalmente desconhecidas na Europa:

Na província de Quito, nos diversos países atravessados pelo Amazonas, no Pará e em Caiena, encontram-se várias espécies de plantas, diferentes daquelas conhecidas na Europa, e cujas folhas ou raízes lançadas na água, têm a propriedade de intoxicar o peixe. Nesse estado, ele flutua na água, e pode ser recolhido com a mão. Os índios, por meio dessas plantas e paliçadas com que barram a entrada de pequenos rios, pescam o tanto de peixe que eles querem [...] (CONDAMINE, 1745, p. 159-160, grifos no original)9.

Outro relato, da década de 175010, mencionou que na ilha de Marajó, antigamente chamada de ilha Grande de Joannes, os pescadores usavam um cipó “[...] da grossura de uma amarra ordinaria a que chamão Timbó [...]”, ao qual servia:

9

No original: Dans la province de Quito, dans les divers pays travaersés par l‟Amazone , au Para & à Cayenne, on trouve plusieurs espéces de plantes, différentes de celles qui font connues en Europe, & dont les feuilles ou les racines jettées dans l‟eau, ont la propriété d‟enivrer le poisson. En cet état il flotte sur l‟eau, & on le peut prendre à la main. Les Indiens, par le moyen de ces plantes & des palissadas avec lesquelles ils barrent l‟entrée des petites rivieres, pêchent autant de poisson qu‟ils en veulent [...] (CONDAMINE, p. 159-160, grifos no original).

10 Trata-se das Noticias da ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de

alguns lagos que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas, uma fonte histórica de autoria desconhecida, cuja a datação, na década de 1750, foi sugerida por Nelson Papavero, Dante Martins Teixeira, William Leslie Overal e José Roberto Pujol-Luz (2002, p. 327).

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26

[...] para matar peixe nos Igarapés, e alguns rios pequenos e pela margem dos grandes em algumas enseadas aonde não corre a água, e para se matar o peixe se costuma bater este Timbó muito bem de sorte que fique bem moido, e depois de ter grande quantidade á proporção da agua do Igarapé ou Rio se costuma hir esfregando nas mãos junto com a agua, e neste exercicio costuma largar o tal Timbó a agua com um tal fartum asquerozo que faz embebedar toda a qualidade de peixe que o chega a participar, e achando-se desta sorte perturbado, vem acima d‟agua, aonde o apanhão aquelles que se achão nesta dilligencia. Costuma-se fazer esta pescaria ordinariamente na baixa-mar e com presteza antes que encha a Maré, porque em chegando esta, augmenta a agua, e esta augmentada vai a menos o asquerozo do succo do tal Timbó [...] (ANÔNIMO, 1904, p. 295).

Dezenas de espécies de plantas, muitas delas genericamente conhecidas como timbó, têm sido empregadas por milênios pelos grupos indígenas da Amazônia como venenos para peixes. Tais plantas, segundo o antropólogo Julio Cezer Melatti, pertencem principalmente a cinco famílias: Sapindáceas, Papilionáceas, Compostas, Teofrastáceas e Euforbiáceas (1970, p. 140). A pesca com timbó e outras plantas venenosas é, geralmente, realizada em pequenos igarapés e lagos de várzea. Na maioria dos casos, as plantas têm de ser amassadas para liberar a substância ictiotóxica. Quando mergulhadas na água, os peixes ficam entorpecidos, pois seu sistema respiratório é afetado, indo para a superfície, onde são facilmente recolhidos (MORAN, 1994, p. 324). Apesar da eficiência da substância ictiotóxica, o consumo de peixes capturados por esse método é totalmente seguro para o ser humano.

Os colonizadores portugueses igualmente aprenderam com os nativos uma série de saberes para preparar armadilhas para peixes. Eles passaram a extrair ripas do açaizeiro (Euterpe spp.) para construir tapagens, cacuris11 e outras armadilhas em igarapés, lagos e nas proximidades das margens dos grandes rios (DANIEL, 1976a, p.84; FERREIRA, 1972d, p. 237). Além disso, os colonos herdaram ainda um amplo conhecimento sobre as características biológicas, etologia e potencial das espécies de peixes, assim como técnicas para a conservação do pescado.

Sobretudo nas primeiras décadas da ocupação, a assimilação de conhecimentos indígenas sobre as características biológicas, hábitos e potencial dos peixes, acumulados durante milhares de anos, deve ter sido um fator significativo para

11 Armadilha para peixe empregada até hoje por populações ribeirinhas da Amazônia, normalmente confeccionada com sarrafos extraídos de palmeiras. Tais sarrafos são usados para construir duas estruturas em formato de V ou U, uma delas com uma abertura não muito larga que, como um paredão a favor da correnteza, barra a passagem dos peixes que sobem os rios, forçando-os a entrar na armadilha, onde ficam aprisionados. Geralmente, o cacuri costuma ser construído no começo da enchente, na entrada de igarapés, próximo a barrancos e entre pedras. Esses são lugares de passagem dos peixes onde a força da água não vai deslocar a armadilha. Em alguns casos, os cacuris podem ter 4 metros ou mais de altura ou profundidade. Os pescadores, para coletar os peixes aprisionados na armadilha, costumam usar uma lança ou zagaia.

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27 os colonizadores no processo de reconhecimento e aproveitamento da ictiofauna da floresta equatorial amazônica, completamente diferente daquela a que estavam familiarizados. Os conhecimentos sobre a ictiofauna favoreciam os colonos a maximizar seus retornos alimentícios nas pescarias, uma atividade que rendia uma fonte de proteínas considerável durante o período colonial. Infelizmente, esse conhecimento tradicional perdeu-se gradualmente e, mesmo nos dias de hoje, ainda há poucos esforços para recuperá-los dos registros existentes. Não menos importantes foram as técnicas de conservação do pescado, tais como a secagem dos peixes no moquém e a farinha de peixe ou piracuí.

Na maior de todas as florestas, a média anual de temperatura fica em torno de 26,6˚C, sendo as flutuações diárias na temperatura, que podem chegar até a 10˚C, mais acentuadas que as anuais. A umidade relativa do ar é igualmente elevada, em média 76% em setembro, quando chove pouco, e 87% em abril, período mais intenso das chuvas (IRION; JUNK; MELLO, 1997, p. 30). Isso proporciona, naturalmente, ótimas condições para ação de bolores e bactérias. “De um modo geral [...]”, lamentava o padre Anselm Eckart, missionário jesuíta que catequizou em aldeias da Amazônia de 1753 a 1757, “[...] nenhum peixe permanece fresco durante muitas horas nestas paragens, devido ao calor excessivo” (ECKART apud PAPAVERO et al., 2011, p. 604). Além do calor e da umidade elevada, as moscas e outros milhares de insetos criavam um empecilho adicional para a conservação das carnes. Muitos colonizadores portugueses devem ter aprendido, após ter de jogar fora quilos e mais quilos de carne sem qualquer condição de consumo, que um peixe ou qualquer pedaço de carne pendurado em algum canto da casa para “curar”, como normalmente faziam em sua terra natal, acabava por se transformar rapidamente em um ninho infestado de larvas branco-amareladas de moscas-varejeiras (SANTOS; MOTTA; GONÇALVES, 2010, p. 274). O padre Daniel, por exemplo, queixava-se de que as varejeiras eram “[...] o maior contrário que tem as carnes, e peixes secos; porque quando se põe ao sol acodem logo as varejas, e delas se originam os bichos, e destes logo a corrupção, e podridão [...] e no Amazonas são praga, e praga de todo o tempo [...]” (1976a, p. 165).

Ao lado do clima, predominantemente quente e úmido, um problema adicional dos colonizadores para a conservação das carnes foi a acentuada carência de sal em vilas, lugares e aldeias da Amazônia. Como resumiu o escritor Mark Kurlansky, nos dias de hoje “o sal é tão comum, tão fácil de obter e tão barato, que até esquecemos que, desde o início da civilização até cerca de cem anos atrás, foi uma das mercadorias

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28 mais procuradas no decorrer da história humana” (2004, p. 23-24). Essa assertiva é especialmente verdadeira para a colonização portuguesa na Amazônia.

Enquanto os métodos tradicionais utilizados pelos colonizadores para conservar as carnes eram pouco eficientes e o sal escasso, tanto a secagem de peixes no moquém quanto a farinha de peixe eram técnicas bem ajustadas ao clima quente, úmido e ululante de insetos e microrganismos da floresta equatorial. Por isso, as duas técnicas, de origem indígena, foram adotadas pelos colonos. Em 1790, por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira descreveu que a farinha de peixe era largamente consumida “[...] pelos colonos portugueses, todas as vezes que lhes falta sal nos centros destes sertões ou se o seu uso é muito dispendioso, além das suas posses, ou também quando o peixe a conservar é tão miúdo e espinhoso que não vale a pena desperdiçar sal” (1972c, p. 92). Um dos problemas era que, na Amazônia, os chamados sertões estavam a um passo de Belém ou outras áreas portuárias na foz do Amazonas.

O processo de preparo da farinha de peixe ou piracuí não era tão complicado. Em um primeiro momento, os peixes eram deixados no moquém até estarem bem secos. Em seguida, as escamas e os espinhos eram retirados. A carne era então socada em um pilão até ficar reduzida praticamente a um pó que, por sua vez, era peneirado, a fim de se retirar qualquer pedaço menos pulverizado que houvesse sobrado. Por último, essa farinha era levada ao forno para uma nova secagem. “[...] Todo peixe grande, ou pequeno [...]”, escreveu Alexandre Rodrigues Ferreira sobre o preparo da

piracuí:

[...] inteiro como se pesca ou se flexa e com as suas escamas e espinhas, o põe a moquear, estendendo-o e voltando-o repetidas vezes ao ar de um fogo mais forte até lhe dissipar toda a umidade interna e externa e ficar o peixe de maneira a se quebrar entre as mãos. Neste estado então o despem a escama e os expurgam das maiores espinhas para o pulverizarem em farinha a qual passam por uma peneira e a torram ao forno como se faz a de mandioca, para a espalharem (1972c, p. 92).

Os colonos normalmente consumiam a piracuí fervida n‟água, adicionando

manteiga das banhas de tartarugas ou peixe-boi, com pimenta-da-terra (Capsicum spp.)

ou suco de limão como tempero para o caldo. Cozinhavam ainda uma sopa, misturando a farinha de peixe com gemas de ovos e cebola (FERREIRA, 1972c, p. 92).

Contando com a tecnologia e os conhecimentos tradicionais dos nativos, bem como com seus apetrechos de metal e, em menor medida, com suas redes de pesca, os colonos conseguiram aproveitar a profusão de recursos piscosos dos numerosos rios amazônicos durante o século XVIII. Ao mesmo tempo, as inovações trazidas pelos

(31)

29 colonos, aliadas à tecnologia e métodos tradicionais dos nativos, moldaram a pesca na Amazônia por mais de dois séculos.

Seria somente por volta da década de 1950, com a introdução de barcos a motor, redes e linhas de náilon (altamente resistentes), que a prática pesqueira na Amazônia sofreria grandes transformações (BARTHEM; GOULDING, 2007, p. 22-23).

1.3. Canoas carregadas com tainhas, gurijubas, piraíbas e a bexiga natatória do pirarucu

Para os colonizadores portugueses, a ictiofauna da Amazônia tinha uma riqueza excepcional. Algo sem paralelo em sua pátria ou em qualquer lugar da Europa. O número de espécies peixes no Amazonas e seus afluentes era tamanho, advertiu o astrônomo italiano Giovanni Angelo Brunelli, que andara oito anos pela região, entre 1753 e 1761, que toda essa diversidade deixaria colecionadores de espécimes, amantes da natureza e filósofos naturais atônitos. “Existem tantas espécies de peixes vivendo no rio Amazonas e nos rios próximos que a sua variedade pode agradar ao máximo principalmente aqueles que se dedicam à contemplação das coisas naturais” (BRUNELLI, 2011, p. 143).

A quantidade de peixes era igualmente elevada. Tão elevada que o geógrafo e matemático francês Charles-Marie de la Condamine, com uma dose de inveja e sarcasmo, afirmou que a natureza havia favorecido a indolência dos nativos, pois durante a estação de seca, eles podiam apanhar, sem o menor esforço, os peixes detidos nos lagos:

A Natureza parece ter favorecido a preguiça dos índios, e ter ultrapassado as suas necessidades: os lagos e pântanos que ocorrem a cada passo às margens do Amazonas e, por vezes, bem para o interior das terras, enchem de peixe de todos os tipos na época das enchentes do rio e, quando as águas baixam, permanecem ali confinados, como em lagoas ou reservatórios naturais, onde se pescam com a maior facilidade (CONDAMINE, 1745, p. 159, tradução nossa)12.

Alexandre Rodrigues Ferreira, por sua vez, mencionou que “como o peixe é infinito nos rios Amazonas, Solimões e outros, nem a arte de pescar lhes é precisa [...]”, referindo-se aos nativos. Para apanhar peixes, continuava o filósofo natural, bastava que

12

No original: “La Nature semble avoir favorisé la paresse des Indiens, & avoir été audevant de leurs besoins: les Lacs & les Marais qui se rencontrent à chaque pas sur les bords de l'Amazone & quelquefois bien avant dans les terres, se remplissent de poissons de toutes sortes, dans le tems des crûes de la riviere, & lorsque les eaux baissent, ils y demeurent renfermés comme dans les étangs ou réservoirs naturels, où on les pêche avec la plus grande facilite” (CONDAMINE, 1745, p. 159).

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30 eles remexessem “[...] a água com timbó, cururu-timbó, o astacu [açacu13

] e outros plantas venenosas”, bastava “[...] armar uma ligeira tapagem na boca de qualquer riacho”, em uma alusão clara de que os eficientes métodos indígenas poderiam ser um tanto quanto diferentes da tradicional “arte de pesca” portuguesa (FERREIRA, 1972c, p. 90).

Em meio a toda essa diversidade e abundância, algumas espécies de peixes foram mais comumente aproveitadas pelos colonos portugueses para preparar suas refeições no século XVIII. Na cidade portuária de Belém, e outras vilas do estuário do Amazonas, a maior parte do pescado consumido pelos habitantes era composta por tainhas.

A tainha faz parte da família Mugilidae, que tem uma ampla distribuição por todo o mundo. No Brasil, ocorrem pelo menos sete espécies, que vivem em águas costeiras rasas e estuarinas. Eventualmente, penetram nos rios. No litoral Norte, é comum encontrar apenas quatro espécies: Mugil curema, Mugil incilis, Mugil trichodon e Mugil liza. As duas primeiras atingem, em média, cerca de 30 a 40 centímetros de comprimento. A pequena Mugil Trichodon pode medir até 30 centímetros (MENEZES, 1983). A última, Mugil liza, costuma alcançar 40 centímetros e pesar cerca de 1,5 quilos, ainda que indivíduos com um metro de comprimento e até 9 quilos já tenham sido encontrados (SZPILMAN, 2000, p. 223). A carne da tainha é gordurosa, o que deveria agradar bastante os colonizadores. “São tão gordas, que ainda escaldadas, e secas são ũa [uma] delícia”, enfatizou o padre Daniel (1976a, p. 108).

A maior parte das tainhas que abasteciam os moradores de Belém, e demais vilas na foz do Amazonas, provinham do Pesqueiro real estabelecido na ilha de Marajó ou ilha Grande de Joannes, como era então conhecida. Os Pesqueiros reais ou simplesmente Pesqueiros, como aparecem nos registros históricos, eram postos de pesca instituídos pela coroa portuguesa, onde toneladas de peixes foram salgados ou secos, peixes-boi abatidos, tartarugas recolhidas para grandes tanques (currais) e seus ovos apanhados e esmagados para a produção de óleo – a chamada manteiga dos ovos. Todos estes recursos deveriam ajudar na provisão de habitantes locais e tentar garantir um suprimento adequado de proteínas, gordura e combustível para funcionários da coroa, de obras públicas e civis, integrantes das expedições de exploração e Comissões Demarcadoras de Limites.

13

O açacu (Hura crepitans) é uma árvore da família das Euforbiáceas, cuja seiva é usada como venenos para peixes da várzea (BARTHEM, 2001, p. 67).

Referências

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