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Apresentação. a Resistência e Complexidade da Matéria Carne

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Academic year: 2021

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Cinema e Corpo é um dos frutos de um ideal de universidade calcado

no encontro de saberes. As professoras Ana Zimmermann e Soraia Chung Saura da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, chegaram ao CINUSP com a proposta de exibições com debates mensais, de filmes sobre cinema e corpo. Trouxeram o entusiasmo desarmado, o encantamento e a potência de descobertas suscitadas pela experiência de se deixar levar por uma história em uma sala escura. As imagens mentais suscitadas durante a projeção pelo enredo e por aquilo difícil de se nomear quando ainda se está sob o impacto do filme, motivaram diálogos acalo-rados ao final das sessões, cada qual com distinto grau de formalidade. O cinema expressou e produziu ideologias, experimentos e fabulas para o intercâmbio entre o público da educação física e pesquisadores de psica-nálise, cinema, música, televisão etc.

O Cinema, o corpo e as imagens poéticas: esse projeto é de lazer

arti-go de Soraia Chung Saura1 uma das idealizadoras do projeto, recupera o

entretenimento como espaço de sociabilidade e de encontro com o outro. Para Saura o “cinema por si só justifica o projeto”(ver p. 210) ao promover a aproximação física e existencial do público em silêncio na sala escura,

1 Neste volume na página p. 209

ApresentAção

A resistênciA e complexidAde

dA mAtériA cArne

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cria-se um momento de concentração coletiva em uma mesma narrativa. Na contra corrente do investimento em interatividade, ou falsa estimula-ção e solicitaestimula-ção de respostas programadas merecedoras do nome de inte-ratividade, as idealizadoras do projeto apostam no encontro interpessoal. Valoriza-se o silêncio do cinema, numa época de prevalência de palavras de ordem sobre o direito a falar, à expressão e participação. Não há qualquer problema no direito à fala, pelo contrário quando ela abarca a pluralidade, quando comporta a negociação de diferenças e disputa em igualdade de condições pelos lugares de poder, mas a questão colocada traz subjacente o esvaziamento da escuta, da espera e mesmo da fala quando não se as-senta no dialogismo. Fala e escuta sem a figura do “outro” é um sintoma merecedor de cuidados. A retomada do espaço coletivo e público da sala e seu silêncio relaciona-se ainda à possibilidade da deriva. A desafetação dos encontros e reconhecimento da potencial situação lúdica do cinema e da prática esportiva, recupera a entrega desinteressada, ou melhor, inte-ressada no presente, na experiência do agora. Cinema e esporte se apro-ximam nesta perspectiva. Na nossa sala de exibição inexistem metas a serem cumpridas, recordes a se superar, mas prazer estético. Para Kant o juízo de gosto, o juízo do agradável, é desinteressado, visa a experiência e aproximação com a realidade em questão, com valores das coisas em si, sejam cinematográficas ou esportivas.

A liberdade conferida aos pesquisadores e professores na seleção dos filmes, possibilitou a emergência de amplo espectro de acontecimentos so-ciais e poéticos passíveis de debate quando o corpo está em questão. Ao se privilegiar o corpo-carne, falível e inquieto, esta matéria explicita o tempo da existência inscrevendo marcas nas sociedades em sua dimensão coleti-va e pessoal. Sagazes, as organizadoras elegeram o corpo como objeto da mostra e não as atividades de uma educação física. Nossa existência ainda passa pelo corpo, apesar do imaginário da ficção científica anunciar a subs-tituição da materialidade atual por outra mais resistente. As figurações de corpos extraordinários, fruto do avanço tecnológico e de recorrentes fan-tasias demiúrgicas são visitadas por Joon Hoo Kim e Cristian Borges em

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Blade Runner, o caçador de andróides (1982, Ridley Scott). O ideal de

perfei-ção em figurações “do corpo-artefato no cinema” é central em Kim, como indicado no título de seu artigo. Kim parte de homens-máquina como os androides, de robôs, ideias da cibernética relacionadas aos homens biôni-cos e ciborgues e figuras místicas como o Golem - levado às telas em 1915 sob a direção de Paul Weneger - para em breve arqueologia apresentar cru-zamentos entre arte e ciência na construção de narrativas sobre idealiza-ções do corpo humano levadas a público pela literatura e cinema.

Já Cristian Borges em “A mecânica do corpo e a inteligência da má-quina” faz do movimento, condição de existência da dança e do cinema, matéria para se trazer o corpo hibrido. As relações entre homem e máqui-na máqui-na série sueca Real Humans (2012-13), em títulos da franquia RoboCop

- O policial do futuro (1987, Paul Verhoeven), em O exterminador do futuro

(1984, James Cameron) e em vídeo clips da cantora Bjork e do grupo The Chemical Brothers fecham um debate cuja abordagem do cinema ressalta seu aspecto maquínico partindo de Jean Epstein, como indicado no título do artigo. O corpo de Borges está investido no movimento, seja nas artes visuais, na dança ou no cinema e pré-cinema. Se nas artes visuais o movi-mento é sugestão, é traço na tela, nas invenções anteriores ao cinema é re-sultado de pesquisas e experimentos nas mãos de cientistas como Étienne-Jules Marey e do fotógrafo Edward Muybridge, uma das metas das imagens de síntese era o movimento, e o corpo um lugar de privilegiada atenção do fisiologista cientista e do fotógrafo. O artigo de Vinícius Andrade de Melo “Experiências (Modernas) Compartilhadas: Esporte (corpo) – Ima-gem (Cinema)” dialoga com Borges ao mergulhar na formação das cidades no início do século XX. Recupera a partir de Leo Charney as implicações do processo de urbanização para a mudança do corpo, ou de nossa relação com ele. A atração provocada pelo esporte como matéria de representação tem lugar nos pioneiros Marey e Muybridge. Enquanto Cristian Borges olha para o corpo, Vinícius de Andrade Melo para as disputas dos artistas -inventores e sua figuração do corpo do atleta.

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Se a força física dos Super homens da era industrial, do homem má-quina ou da mámá-quina humana povoaram a imaginação na virada do século XIX para o XX e ainda persiste com outra feição, Guta Grin Debert elege outro caminho, o da fragilidade e impermanência física. O corpo das mas-sas, o corpo presença, este frágil corpo com data de validade e carente de cuidados os mais variados segunda a fase da vida, explicita abismos entre o imaginário e as fantasias contemporâneas de eterna juventude e as li-mitações da matéria. A antropóloga Debert tem dedicado suas pesquisas à velhice, ao momento da vida em que o corpo frágil indica a finitude da carne. Elegeu filmes sobre a passagem do tempo e seu significado social, desavergonhadamente revelando a hipocrisia de determinadas relações fa-miliares como em Parente é serpente (1992) de Mário Monicelli. A criança explicita o assassinato da avó já indicado na dramaturgia na recorrente menção aos perigos do gás como aquecimento doméstico. Por outro lado

Alguém tem que ceder (2003) de Nancy Meyers, em blockbuster com Diane

Keaton e Jack Nicholson questiona tabus relacionados à idade. Frágil, li-mitado, mas com direitos e capaz de ir longe é deste lugar complexo que a antropóloga olha para o corpo. Rogério de Almeida encontra na violência de Clube da luta (1999) uma chave para a leitura do desconforto e “torpor ideológico” das sociedades de consumo, calcadas em trocas visando fins imediatos e pessoais. Almeida vê na insônia seu descontentamento. A im-possibilidade de descanso, ou o descanso como uma das últimas searas em ocupação pelo capitalismo avançado2 estão em questão em “Corpo e Luta:

a primeira regra é ‘não se fala sobre o clube da luta’.”

Julio Groppa Aquino analisa os filmes de Hirokazu Kore-Eda. Aqui o corpo é social, o diretor japonês lança olhar humanista para a infân-cia, sua potência e fragilidade produzindo um diagnóstico sobre a falência da unidade familiar ainda negada, ainda revestida de hipocrisia fazendo das crianças vítimas desta mudança nas estruturas e comportamentos

2 ver Jonathan Crary. 2014. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono. Tradução: Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Cosac Naify. A ocupação sono pelo capitalismo é o tema do livro.

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sem qualquer resposta social. Mas Kore-eda não julga, a atuação de suas crianças e suas condições materiais de vida expõe as contradições de cidades como Tóquio, um ícone da modernização e do avanço da tecnolo-gia que não consegue prover sua população com os recursos básicos à so-brevivência. A cidade como espaço de confinamento e opressão da infância também está no documentário Território do brincar (2014). Renata Meirel-les e David Reeks filmaram entre abril de 2012 e dezembro de 2013 crianças brincando em comunidades indígenas, quilombolas e nas metrópoles. À liberdade e imaginação da infância no campo com precárias estruturas de conforto, se contrapõe a vida na cidade, a infância urbana. As crianças da criança se ressentem com a falta de infância. Território do brincar idealiza a vida dos pequenos indígenas ao eleger a potência da brincadeira, as pos-sibilidades da ilimitadas da imaginação no amplo espaço da floresta, com seus rios e árvores, nem só de aventuras na mata precisa a infância, no en-tanto evidencia-se a precariedade da existência das crianças nos centros urbanos brasileiros, sejam representantes das elites, ou não.

O corpo é meio, é figuração, é outro na arte do cinema por Pedro Maciel. Neste âmbito o corpo é representação é corpo modelar ou,

phy-sique du rôle, terminologia francesa para designar um dos critérios para a

escolha de um ator, a saber, a aparência física adequada ao papel. Maciel entenderá o corpo do ator como “citação de uma forma fílmica”, ou seja, como metalinguagem, buscando sua codificação estética, política, histórica e geográfica na leitura de filmes como Mônica e o desejo (1953) de Ingmar Bergman. Tomado em sentido amplo pode abarcar a imaginação, a arte ou o cotidiano. Tratado no artigo de Maciel como uma forma se referindo a outra, o ator, transita entre a singularidade de traços do personagem e o reconhecimento de traços sociais.

“Entre danças e espadas, uma leitura do filme Zatoichi de Takeshi Ki-tano” Christine Greiner traça breve e potente arqueologia da dança nipô-nica e sua representação no filme Zatoichi de Takeshi Kitano. Do kojike no começo do século VIII, tendo a dança expressão da religião ao teatro nô (significa “entortar”, “deslocar”) e kabuki (significa resistência). A tradição

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de filmes de Samurai no cinema mira para o bailado e suas conexões com tradições milenares. Greiner no lembra que “o corpo humano nunca é ape-nas o corpo, mas sempre um sistema aberto e dinâmico3” esta publicação

manifesta a abertura e dinamismo do corpo em sua dimensão física, cultu-ral e social. Esperamos uma leitura instigante pelo complexos e heterogê-neos caminhos deste corpo eloquente.

Referências

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