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O minimalismo judicial e os parâmetros legais para a interpretação do direito brasileiro

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

CAIO HENRIQUE BOCCHINI

O MINIMALISMO JUDICIAL E OS PARÂMETROS LEGAIS PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO

Florianópolis 2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

CAIO HENRIQUE BOCCHINI

O MINIMALISMO JUDICIAL E OS PARÂMETROS LEGAIS PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO

Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Claudio Ladeira de Oliveira.

Florianópolis 2020

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CAIO HENRIQUE BOCCHINI

O MINIMALISMO JUDICIAL E OS PARÂMETROS LEGAIS PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Dr. Cláudio Ladeira de Oliveira Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dr. Elival da Silva Ramos Universidade de São Paulo

Prof. Dr. Flávio Pansieri

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em Direito.

__________________________________ Coordenação do Programa de Pós-Graduação

________________________________ Prof. Dr. Cláudio Ladeira de Oliveira

Orientador

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AGRADECIMENTOS

A dedicatória principal não poderia deixar de ser aos meus pais, Éder e Nelly, bem como aos meus irmãos, Lucas e Igor. Pilares da minha educação e da minha formação humanística. Com vocês aprendi o que é o amor, o mais nobre dos sentimentos que se pode nutrir nesta vida efêmera.

Também dedico este trabalho às pessoas que em Florianópolis comigo convivem, em especial meus grandes amigos Renan e Roberto, além de minha namorada querida, Carolina. Somente com a presença de vocês, nos bons e maus momentos, é que esse trabalho pôde se materializar para além do campo das ideias.

Agradeço especialmente ao meu orientador, Prof. Dr. Cláudio Ladeira de Oliveira, pessoa admirável e com um caráter inigualável. Serei eternamente grato pela oportunidade e por todos os valiosos ensinamentos.

Igualmente agradeço aos professores Drs. Elival da Silva Ramos e Flávio Pansieri, que não mediram esforços para comporem a banca de defesa deste trabalho. Tê-los como avaliadores do presente projeto é motivo de um orgulho que carregarei por toda a vida.

Por fim, agradeço aos colegas de profissão do Cristóvam e Palmeira Advogados Associados. Seria mais difícil sem a paciência e o apoio incondicional a mim sempre dedicado. Tenho por todos a mais profunda admiração e consideração pelos inúmeros ensinamentos.

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Toda Forma de poder – Engenheiros do Hawaii (1989)

Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada Fidel e Pinochet tiram sarro de você que não faz nada Começo a achar normal que algum boçal atire bombas na embaixada Se tudo passa, talvez você passe por aqui E me faça esquecer tudo que eu vi Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada Toda forma de conduta se transforma numa luta armada A história se repete mas a força deixa a estória mal contada Se tudo passa, talvez você passe por aqui E me faça esquecer tudo que eu vi O Fascismo é fascinante e deixa a gente ignorante fascinada É tão fácil ir adiante e esquecer que a coisa toda tá errada Eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada Se tudo passa, talvez você passe por aqui E me faça esquecer tudo que eu vi

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RESUMO

Partindo do marco teórico estabelecido pelo minimalismo judicial do professor estadunidense Cass Robert Sunstein, o presente trabalho pretende discutir a demarcação normativa dos limites à criatividade na atuação dos membros do Poder Judiciário brasileiro, evidenciando até que ponto as disposições das Leis Federais números 13.105/2015 e 13.655/2018, bem como o Decreto n. 9.830 de 10 de junho de 2019 são, de fato, aplicadas, e qual a postura que deve ser adotada pelos Magistrados para se alcançar o ideal de autocontenção judicial trazido na teoria minimalista, trazendo como objeto de análise os julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos 10 anos.

Palavras-chave: Direito Constitucional; Minimalismo Judicial; Normativismo de Autocontenção

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ABSTRACT

Starting from the theoretical framework established by the judicial minimalism of the American professor Cass Robert Sunstein, the present work intends to discuss the normative demarcation of the limits to the creativity in the performance of the members of the Brazilian Judiciary, showing to what extent the dispositions of the Federal Laws numbers 13.105/2015 and 13.655/2018, as well as Decree no. 9.830 of June 10, 2019 are, in fact, applied, and what position should be adopted by the Magistrates to achieve the ideal of judicial self-restraint brought by the minimalist theory, bringing as object of analysis the judgments given by the Supreme Court in last 10 years.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS ... 14

1.1. DEMOCRACIA E ESTADO DE DIREITO ... 14

1.2. CONSTITUCIONALISMO E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ... 21

1.3. ATIVISMO JUDICIAL ... 33

1.4. A INTERPRETAÇÃO NO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO ... 42

2. O MINIMALISMO JUDICIAL DE CASS SUNSTEIN ... 46

2.1. O MINIMALISMO COMO MARCO INTERPRETATIVO DO DIREITO ... 51

2.2. DEMOCRACIA E O MINIMALISMO ... 65

2.3. AS FERRAMENTAS DO MINIMALISMO ... 70

2.3.1. Acordos parcialmente teorizados ... 70

2.3.2. Uso construtivo do silêncio ... 79

2.3.3. Analogias e precedentes ... 82

2.4. SOBREPONDO O MINIMALISMO ÀS CRÍTICAS ... 88

2.4.1. Testando o minimalismo ... 88

2.4.2. Juiz Antonin Scalia e o formalismo democrático ... 92

2.4.3. Richard Posner e o diálogo sobre as instituições ... 101

2.4.4. O juiz Hércules e o direito como integridade de Ronald Dworkin ... 108

2.4.5. John Rawls e o consenso sobreposto ... 116

3. A LEGISLAÇÃO DE RESTRIÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL ... 120

3.1. A REAÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL ... 121

3.2. LEIS FEDERAIS N. 13.105/2015 E 13.655/2018 E DECRETO N. 9.830/2019 ... 125

3.3. OS BENEFÍCIOS DAS REGRAS ... 133

3.4. O PROBLEMA DO EXCESSO DE REGRAS ... 137

3.5. O NORMATIVISMO NO COMBATE AO ATIVISMO JUDICIAL? ... 141

4. INTERPRETANDO A NORMA À LUZ DO MINIMALISMO ... 148

4.1. O NEOCONSTITUCIONALISMO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ... 148

4.2. DEMOCRACIA BRASILEIRA EM CRISE ... 158

4.3. O POSICIONAMENTO DO STF NOS HARD CASES BRASILEIROS ... 161

4.3.1. Constitucionalidade das pesquisas com células-tronco (ADI 3510) ... 162

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4.3.3. Criminalização da homotransfobia (ADO 26 e MI 4733) ... 174 4.3.4. Descriminalização da interrupção voluntária da gestação durante o primeiro trimestre (HC 124306) e em casos de feto anencéfalo (ADPF 54) ... 177 4.3.5. Cotas raciais em universidades (ADPF 186) e concursos públicos (ADC 41) ... 181

4.4. O MINIMALISMO COMO PROPULSOR DA DEMOCRACIA BRASILEIRA .... 187 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 194 REFERÊNCIAS ... 197

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INTRODUÇÃO

Em tempos de crise econômica, política e social, é notório que as relações existentes na divisão das atribuições constitucionais de organização estatal se tornam estremecidas. Nesse contexto, a discussão acerca da jurisdição constitucional e suas consequências para o sistema democrático transcendem a alocução intertemporal, na medida em que se revigora cotidianamente em casos concretos julgados pelo Poder Judiciário brasileiro, sobretudo no que se refere à concretização de direitos por meio de interpretação de princípios fundamentais abstratos.

No entanto, a necessidade de se delimitar as competências constitucionais atribuídas a cada um dos poderes vem ganhando força nos últimos anos. A crise política instalada no Brasil decorre de inúmeros fatores, mas em especial pode-se mencionar os casos de corrupção massiva que assolam as páginas dos jornais, bem como o notório embate entre o Poder Legislativo, Judiciário e Executivo nas disputas por competência, poder, jurisdição, e, principalmente, espaço político.

A manutenção dos debates no âmbito acadêmico pode servir de estímulo à alteração de posicionamentos jurisprudenciais e legislativos, primeiramente porque mantem viva a discussão sobre a delimitação das competências constitucionais dos poderes que compõem Estado brasileiro. Além disso, auxilia na prevenção de futuras investidas contrárias à consolidação do modelo democrático de governança, criando-se mecanismos legais e principiológicos para a sua manutenção.

Nesse contexto, o foco do presente trabalho reside na busca pela delimitação de uma autocontenção do Poder Judiciário, especificamente no que se refere ao controle de constitucionalidade sobre direitos fundamentais esculpidos em princípios abstratos, na medida em que representam as garantias constitucionais de estabilidade ao modelo democrático.

Partindo do espectro das normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro que restringem a atividade jurisdicional, o presente projeto pretende discutir quais são os limites à criatividade na atuação dos membros do Poder Judiciário, evidenciando até que ponto as disposições das Leis Federais 13.105/2015 e 13.655/2018, bem como o Decreto n. 9.830 de 10 de junho de 2019 são aplicadas, em especial quando contrastadas com o ideal de autocontenção judicial constante na teoria do minimalismo judicial..

No âmbito da ordem constitucional brasileira, como é possível estabelecer, pela via legislativa, parâmetros que visam a limitação da criatividade judicial, sobretudo no que se refere à interpretação de princípios jurídicos abstratos? Como as disposições das Leis Federais

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números 13.655/2018 e 13.105/2015 e Decreto n. 9.830/2019, que visam exatamente a restrição interpretativa no exercício da jurisdição, devem ser interpretadas? Quais os preceitos de cunho jusfilosóficos existentes e que devem ser adotados para se alcançar o ideal de autocontenção judicial previsto na teoria minimalista?

Ao tomar as diretrizes constitucionais como elementos válidos para a concretização do Estado de Direito prescrito a partir da Constituição Federal de 1988, há que se respeitar as delimitações das competências previstas para cada um dos três poderes, colunas do arquétipo político adotado, como forma não apenas mantenedora do modelo, mas como artifício máximo para a sua consagração.

Nesse sentido, os magistrados devem pautar suas decisões dentro da moldura prevista pela Carta fundadora e pela legislação infraconstitucional, em especial as prescrições contidas nas Leis Federais números 13.655/2018 e 13.105/2015 e Decreto n. 9.830/2019, adotando uma postura de autocontenção judicial e em respeito à taxatividade do corpo normativo, sob pena de se estar modificando o palco de decisões legislativas, cujos membros eleitos são os detentores da verdadeira representatividade democrática.

O arquétipo da divisão tripartite do Estado brasileiro vem sendo corrompido com a atuação de um Poder Judiciário ativista, que contribui acintosamente para o aprofundamento da crise institucional instaurada no país. A concessão de direitos ditos fundamentais, pelo uso da hermenêutica incidente sobre princípios jurídicos abstratos, afronta a forma de governo democrática e as normas de regência que visam a regulamentação da atividade jurisdicional.

Desse modo, a importância dos mecanismos normativos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, cujo conteúdo material visa a restrição da atividade jurisdicional, deve ultrapassar o campo retórico e normativo, servindo como verdadeiro fundamento norteador da atividade dos magistrados brasileiros.

O minimalismo judicial de Cass Sunstein surge como um importante modelo doutrinário de interpretação da atividade jurisdicional que prega autocontenção, sendo uma forma legítima de se respeitar o conteúdo prescrito pela legislação vigente no Brasil que visa o estabelecimento de parâmetros para a criatividade jurisdicional.

Com esse panorama, o presente trabalho pretende, em um primeiro momento, traçar os conceitos fundamentais e os marcos doutrinários que serão utilizados em toda o trabalho. Conceitos como “democracia”, “estado de direito” e “ativismo judicial” serão abordados nesse momento introdutório.

Em seguida, o trabalho irá expor a teoria do minimalismo judicial criada pelo professor estadunidense Cass Robert Sunstein, que prega a adoção de uma postura de autocontenção por

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parte dos membros do Poder Judiciário quando da sua atividade interpretativa dos textos normativos e princípios fundamentais, enfrentando as dificuldades existentes na aplicação da teoria minimalista para, assim, demonstrar que a sua adoção se mostra um caminho legítimo para o aperfeiçoamento e enraizamento institucional do modelo democrático.

Traçados os parâmetros doutrinários que guiam a compreensão sobre como e porque se desenvolveu a teoria do minimalismo judicial, como visto nos dois primeiros capítulos, o trabalho partirá para uma análise causal da situação brasileira atual, de forma a evidenciar o contexto vivido e as razões pela qual a teoria se mostra adequada para o exercício da jurisdição constitucional no país.

Assim, no terceiro capítulo será analisado o conteúdo dos textos normativos que visam a restrição da atividade jurisdicional, sua legitimidade e aplicação prática, em especial quando confrontados com julgamentos que partem de interpretação de princípios fundamentais abstratos, para, a partir disso, concluir que o legislativo brasileiro vem em uma sequência de produção de regras visando combater o latente processo de judicialização da política. A Lei Federal n. 13.655/2018, em seu art. 20, restringe que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. O Decreto n. 9.830/2019 também foi editado com o ideal de regulamentação do referido dispositivo legal.

Igualmente, a Lei Federal n. 13.105/2015, popularmente conhecido como Código de Processo Civil, possui previsão expressa que restringe a criatividade dos magistrados em seu ofício julgador, na medida em que não considera fundamentada decisão judicial proferida com base em conceitos jurídicos abstratos (art. 489, § 1º, inciso II).

Em uma última instância, o presente trabalho evidenciará que, na contramão de tudo o que fora exposto, o Poder Judiciário brasileiro, personificado pelo Supremo Tribunal Federal, vem nos últimos anos em uma derrocada de ativismo judicial indesejável, o que tem como efeito a proliferação de normas restritivas, tal como anteriormente mencionado, razão que confirmará, cada vez mais, a necessidade de adoção de uma postura de autorrestrição interpretativa.

Com essas diretrizes em vista, será traçado um paralelo entre o normativismo que vem se estendendo pelo ordenamento jurídico brasileiro, com a teoria do minimalismo judicial, sendo ambas consonantes no que se refere à busca pela adoção de uma postura de autocontenção na atividade interpretativa desprendida pelos julgadores, apresentando-se, essa soma, como um bom e considerável modelo norteador da atividade jurisdicional.

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1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Desde já é importante esclarecer que o presente capítulo tem apenas o escopo de soar notas introdutórias sobre algumas dinâmicas abordadas no decorrer do trabalho, em especial quando buscará contextualizar o minimalismo judicial e, ao mesmo tempo, ressaltar a sua importância como teoria da interpretação no exercício da jurisdição constitucional.

1.1. DEMOCRACIA E ESTADO DE DIREITO

A vista que incide sob os grandes marcos do direito contemporâneo se fundamenta, essencialmente, nas ideias sedimentadas nos séculos XVIII e XIX, sobretudo no momento histórico que concidentemente foi denominado de “iluminismo”, onde floresceram e se firmaram as teorias e correntes filosóficas já amplamente divulgadas nas academias à época, e originárias das civilizações que mais cooperaram com a evolução do pensamento, como as antigas culturas grega e romana.

Daquele momento em diante, a organização social ocidental, e em parte oriental, sofreria uma profunda reformulação marcada pelas novas formas de governo e de divisão social, extirpando o modelo aristocrático dominante nos mais diversos Estados Nacionais ocidentais, e pugnando pelo método até hoje tipo por “democrático”.

Entretanto, não é apenas o método aristocrático que a partir de então foi renegado, e, sim, o aglomerado de representações que não atendessem à maior parcela da sociedade civil como um todo, independente do formato político a elas atribuído (oligárquico, monárquico, autoritário, patriarcal, etc.). Isso porque, no mesmo contexto, e até mesmo decorrente de sua influência, também se assentou no campo filosófico as ideias de liberdade e igualdade como conceitos intrínsecos e vinculados ao próprio modelo democrático. Sem esses conceitos, não há o Estado regido por todos, pois não há lastro mínimo para seu enraizamento social.

A noção de que seres humanos são dotados da razão, e, portanto, estão legitimados a decidir o seu próprio destino, será levada às últimas consequências pelos iluministas não como constatação, mas como pressuposto moral. Autores como Thomas Hobbes1, John Locke2 e

Jean-Jacques Rousseau3 assumem que o exercício do poder somente será legítimo quando

1 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Nova

Cultural (Coleção Os Pensadores), 1994.

2 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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derivado de alguma espécie de consentimento dos indivíduos, obtido por intermédio de um pacto ou contrato social.

Jean-Jacques Rousseau, em fins do século XVIII, defendia que todos os homens nascem livres, e a liberdade faz parte de sua natureza, de modo que os direitos inalienáveis do homem seriam a garantia equilibrada da igualdade e da liberdade. É dele também a ideia de que a organização coletiva deve basear-se em um contrato social firmado entre todos os cidadãos que compõem um determinado estrato público, e a partir do contrato social surge a vontade geral que é soberana e que objetiva a realização do bem geral.

Aliás, como argutamente observou John Rawls4, considerado como um dos pais do

liberalismo norte-americano, serão as obras de Locke e Rousseau que, em conjunto, constituirão o cerne da moderna democracia constitucional.

No mesmo sentido, mas com uma visão crítica, Robert Dahl, defende que a democracia é instrumento da liberdade, uma vez que certos tipos de direitos, liberdades e oportunidades são essenciais para o processo democrático em si e devem coexistir enquanto existir o processo. Isso inclui o direito à livre expressão, à organização política, à oposição, a eleições justas e livres.5 Ademais, como observa, a democracia expande até os limites máximos a oportunidade

de autogovernar-se, de obedecer às leis que o próprio indivíduo escolheu, de ter autodeterminação, sendo isso um fim desejável.

Considerando a autodeterminação dos indivíduos, o autor defende que as decisões vinculativas devem ser tomadas apenas pelas pessoas que estão sujeitas às decisões, ou seja, pelos membros da associação, e não por pessoas fora dela. Tal pressuposto repousa sobre o princípio elementar de justiça segundo o qual as leis não podem ser legitimamente impostas aos outros por pessoas que não são, elas próprias, obrigadas a obedecê-las. O processo de tomada de decisões vinculativas inclui pelo menos o estabelecimento de uma agenda e uma decisão quanto ao resultado. Para tanto, são necessários critérios para o processo democrático. Não obstante tais critérios não representem uma regra decisória, são necessários para estabelecer as regras possíveis, ou seja, um processo coerente aos pressupostos estabelecidos. 6

Dentre os critérios previstos por Dahl, pode-se citar: a) a participação efetiva, com a oportunidade adequada e igual de expressar as preferências quanto ao resultado final; b) a igualdade de voto no estágio decisivo, ficando assegurado a cada cidadão a oportunidade de

4 RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, 1992. p. 30.

5 DAHL. Robert. A democracia e seus críticos. Trad. Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo: Editora WMF Martins

Fontes, 2012, PP. 137 e 138

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expressar uma escolha que deve ter igual peso a de outros cidadãos, e; e c) o controle da agenda, devendo a população ter a oportunidade de decidir como e quais assuntos serão decididos mediante o processo democrático.

O autor ainda entende que o direito ao processo democrático não é meramente formal porque, para que esse direito exista, também devem existir todos os recursos e instituições necessários a ele, pois na medida em que estiverem ausentes, o próprio processo democrático não existirá. Tampouco tal direito é meramente uma pretensão abstrata, pois uma pretensão a todos os direitos gerais e específicos – morais, legais, constitucionais – são a ele necessários.7

Em outra dimensão, mas ainda no mesmo campo do ideário iluminista que culminaria por instigar a modificação do estrato social na França no século XVIII, o novo modelo político democrático proposto se prescindia da separação igualitária dos papéis exercidos pelo governo dele advindo. Dividiu-se formalmente o poder de governar em três estratos inseparáveis, autônomos e distintos, sendo batizado na doutrina clássica como “os três poderes” (Executivo, Legislativo e Judiciário).

Charles de Montesquieu (1748) contribuiu com essa racionalização quando lançou as sementes da ideia de separação dos poderes (tripartição das funções do Estado) em sua obra “O Espírito das Leis”, de fundamental importância na defesa dos direitos individuais. Ao apontar o conceito do papel tríplice do Estado, o autor discorre que

Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que emendem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado. A liberdade política, em um cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dós principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções

públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares. 8

7 DAHL, Robert. 2012. Op. Cit. P. 277.

8 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. Trad. Roberto Leal Ferreira. Do Espírito das Leis.

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A doutrina da separação de poderes, na sua interpretação e aplicação, evoluiu desde os dois séculos de sua formulação, passando de uma concepção rígida da distinção dos poderes para uma flexibilização cada vez mais acentuada das cláusulas-parâmetros. A teoria da separação dos poderes importa, assim, para a identificação das funções estatais e a sua atribuição a órgãos independentes, segundo critérios de especialização funcional. Se a especialização obedece a critérios mais ou menos rígidos, a identificação das funções estatais, embora se curve a circunstâncias do momento histórico considerado, e por isso mesmo se apresente razoavelmente modificada e distante da formulação original, ainda segue a tricotomia ditada por Montesquieu.

No mesmo sentido, José Afonso da Silva9 leciona que

[...] hoje, o princípio (da divisão de poderes) não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação dos poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de poderes, que é característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do Parlamento (Câmara dos Deputados), enquanto, no presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas da independência orgânica e harmonia dos poderes.

O Princípio da Separação de Poderes (art. 2º da Constituição brasileira de 1988), como visto, representa uma peça chave da democracia representativa, que procura impedir a concentração de todas as funções do Estado num único órgão ou em órgãos submetidos a um único centro10. O objetivo consubstanciado na sua criação é a repartição, a limitação e o controle

do poder político ao que se somou, posteriormente, à especialização das funções e a eficiência no desempenho das funções estatais.

Enquanto instrumento de repartição, limitação e controle do poder, o princípio da separação de poderes fortalece a democracia porque visa a evitar, dentre outras coisas, a suplantação da representação e a arbitrariedade, elementos estes que uma vez alijados do Estado comprometeriam a efetividade democrática do mesmo11.

A máxima que se desprende dessa visão de direito é que o sistema de separação de poderes dispõe as instituições do governo de forma a que sempre se encontrem em tensão e eventualmente em conflito, como ensinou James Madison12.

9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 113.

10 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 122.

11 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.

P. 79.

12 MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, James. O Federalista. Brasília: Editora UnB, 1984, n. 51.

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Hans Kelsen13 também conceituou o Estado como sujeito artificial como a

personalização da ordem jurídica, e, tal como a lei, passa a ter a partir de então um papel essencial na organização das sociedades, sendo o instrumento por meio do qual o poder do povo se manifesta e que vincula a todos de forma igualitária: governantes e governados são igualmente sujeitos às determinações da lei, ideia igualmente aplicada no que tange à relação entre os indivíduos entre si em suas relações sociais e econômicas.

Jeremy Waldron, entretanto, critica essa visão restritiva sobre a constituição e sua finalidade. Ele fala que há uma tendência a pensar na separação formal de poderes entre a legislatura, o executivo e o judiciário simplesmente como uma forma de diluir o poder e dificultar o seu exercício. Tudo é visto através das lentes de restrição e limitação. Mas a estrutura constitucional não precisa ser vista sob essa luz. O processo articulado pode ser visto como uma forma de estruturar a deliberação, permitindo que uma multiplicidade de vozes seja ouvida e assegurando múltiplos pontos de acesso para a contribuição do cidadão.14

As instituições não possuem apenas poderes de coerção, mas também asseguram que podem agir com credibilidade em nome de toda a sociedade, e fazem com que isso não seja apenas um rótulo, mas uma fonte de legitimidade. Instituições governamentais têm que ter posição na comunidade como um foco de lealdade e como um ponto de orientação para as milhões de pessoas que estão descobrindo como suas preocupações, ações e recursos devem ser relacionados àqueles que a instituição comanda.

Nos primórdios do entendimento acerca do modelo democrático, como visto, a peculiaridade residia no fato de que as teorias partiam da análise material, do estudo dos casos e exemplos das sociedades de sua contemporaneidade. Posteriormente, com a sedimentação do novo modelo político na maior parte dos Estados soberanos ocidentais, e com sustentação do próprio pensamento filosófico contemporâneo que também se expandiu vertiginosamente nos últimos séculos, a democracia, os estados e os governos passaram a ser objetos de estudos incessantemente, sendo isso, inclusive, decorrência da própria proliferação dos ideais de igualdade e liberdade como fontes mantenedoras do sistema. Foi nesse segundo momento histórico que a democracia, enquanto arquétipo de governança, se estabeleceu e enraizou-se.

Nessa primeira instância de formação dos Estados nacionais e de expansão do capitalismo, mutuamente também ocorre a proliferação dos direitos civis15. Nesse contexto, a

13 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

14 WALDRON, Jeremy. Political political theory: essays on institutions. Boston: Harvard Press, 2016. pp. 23-44.

15 O‘DONNELL, Guilhermo. Poliarquias e a (In)Efetividade da Lei na América Latina. Novos Estudos CEBRAP.

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visão liberal passa a estabelecer o paradigma no qual o Estado é reduzido ao mínimo necessário à preservação do indivíduo, e a sua ação social e a política é minorada, quiçá, muitas vezes inexistente em alguns períodos históricos, fazendo que a sociedade se regulasse através das ações econômica (laissez faire, laissez aller, laissez passer).

Como resultado, inúmeras teorias históricas, filosóficas, sociais e políticas contribuíram para a emulação de regras e princípios fundamentais (direitos humanos) que sistematizam a atuação governamental, baseadas, essencialmente, na imagem de Estado como garantidor da aplicação igualitária de suas leis tidas por uniformemente iguais.

Nesse contexto, o Estado de Direito considera todos os indivíduos como sujeitos do próprio ordenamento jurídico. Isso significa que, em linha de princípio, a todos os sujeitos pertencentes a um mesmo grupo político é atribuído igual capacidade de serem titulares de direito e de produzirem consequências jurídicas, de acordo com os próprios comportamentos. O Estado de Direito faz valer o princípio da unicidade e individualidade do sujeito com vista à realização da liberdade na esfera pública e privada.

Para o professor Cass Sunstein, o conceito de Estado de Direito implica na observância de uma série de requisitos mínimos para a sua validade em uma determinada sociedade16. Eis o

que o autor entende sobre o conceito:

1. A existência de regras claras, gerais e acessíveis ao público previamente estabelecidas. É claro que o estado de direito exige regras claras, no sentido de que as pessoas não precisam adivinhar o seu significado, e que são gerais, no sentido de que se aplicam a classes e não a determinadas pessoas ou grupos. A regra do in dubio pro reo” prevê que, em caso de dúvida, os estatutos criminais deverão ser interpretados favoravelmente ao réu criminal. Este princípio é um resultado da exigência de que as leis sejam claras de modo a proporcionar às pessoas um aviso prévio justo.

2. Prospecção; sem retroatividade. Em um sistema de regras, a legislação com efeitos retroativos é totalmente proibida, como, por exemplo, a legislação criminal. Um indivíduo não pode ser punido por fazer algo que não era proibido à época em que o fez. A proibição das leis a posteriori constitui a interdição mais clara da retroatividade. Esta proibição é fundamental para o estado de Direito e para toda a ideia de liberdade jurídica.

3. Conformidade entre a Lei nos livros e a Lei no mundo. Se a lei não funciona nos livros como funciona no mundo, o Estado de Direito fica comprometido. Se há pouca ou nenhuma semelhança entre a lei promulgada e a Lei real, o estado de direito não pode existir.

16 SUNSTEIN, Cass R. Legal reasoning and political conflict. Second Edition. Oxford: Oxford University Press,

(20)

Se a lei real for significativamente diferente da lei promulgada, a generalidade, a clareza, a previsibilidade, a comunicação justa e a acessibilidade pública são todas sacrificadas. As pessoas devem ser autorizadas a viver de acordo com a lei promulgada. Eles também devem ter a capacidade de monitorar a atividade estatal, testando-a contra a lei promulgada.

4. Contraditório, ampla defesa e duplo grau de jurisdição. O estado de direito exige que se estenda o contraditório às pessoas, permitindo-lhes contestar a alegação do governo de que a sua conduta cumpre os requisitos legais para a imposição de danos ou a negação de benefícios. Alguém que alegadamente tenha cometido um crime, ou que tenha perdido direitos a prestações de segurança social ou a uma carta de condução, tem direito a um fórum em que possa alegar que não violou, de fato, as normas legais. Normalmente, o objetivo da audiência é garantir que os fatos sejam esclarecidos com precisão. Deve haver também alguma forma de revisão por funcionários independentes, geralmente juízes com direito a um certo grau de independência em relação às pressões políticas.

5. Separação entre legislar e aplicar a lei. A doutrina da não-discriminação exige que o legislador crie uma espécie de princípio inteligível, antecipadamente, que deve ser seguido por aqueles que implementam a lei; ela, portanto, proíbe que as leis sejam criadas pelas próprias pessoas que as executam. Desta forma, existe uma garantia de responsabilidade política, pelo menos nos sistemas democráticos. O princípio que restringe o poder discricionário oficial pode assumir a forma de uma regra, ou pode assumir a forma de uma norma. Mas não pode ser um cheque em branco.

6. Nenhuma alteração rápida do conteúdo do direito (segurança jurídica). Se a lei mudar demasiado depressa, o estado de direito não pode existir. As pessoas não serão capazes de adaptar a sua conduta ao que é necessário. E se a lei contém inconsistência ou contradição, pode ser difícil ou mesmo impossível saber quais são as regras. As pessoas também não devem ser sujeitas a obrigações incompatíveis entre si.

Portanto, com o Estado Democrático de Direito surgem condições de possibilidade para a transformação da realidade, apontando para o “resgate das promessas não cumpridas da modernidade, circunstância que assume especial relevância em países periféricos e de modernidade tardia como o Brasil”17.

Esta nova leitura das normas jurídicas impõe ao Poder Judiciário uma dimensão criativa da interpretação e da aplicação do Direito, realçando o caráter moral e político das escolhas efetuadas pelos juízes no exercício de seu mister. Verifica-se que as decisões judiciais

17 BOLZAN, José Luis de Morais; STRECK, Lenio Luiz. Ciência Política e Teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre:

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inevitavelmente estão sujeitas à influência de fatores extrajurídicos relacionados ao magistrado, como a sua compreensão prévia sobre determinado assunto, ideologias, bem como sobre aspectos políticos e sociais que envolvem os mais diversos temas submetidos à sua apreciação. O Estado Democrático de Direito, nessa nova lógica normativa, deve se submeter à lei e ao direito, ou seja, não somente à lei em sentido formal, mas a todas as fontes de direito. Os princípios jurídicos passam a ter importante papel, como normas garantidoras dos direitos constitucionais fundamentais e sociais. Como consequência, há um aumento do controle pelo Poder Judiciário dos atos administrativos, pois resta necessário avaliar sua adequação principiológica.

Este órgão deve ser formado, não por aqueles que se preocupam com a política e, sim, por aqueles que se dedicam ao Direito. São estes que guardam, identificam e aprendem o sentido de justiça que cada povo necessariamente tem. E como pela experiência se comprova que o mais ilustrado dos legisladores se equivoca, deve existir uma garantia contra o erro, erro que consagra a injustiça, prevendo-se um controle judicial sobre todos os atos normativos.18

A democracia constitucional, entretanto, tem que ser discutida a partir de dois paradoxos, quais sejam, o fato de que o conteúdo da Constituição será construído a partir de decisões judiciais em sede de controle de constitucionalidade, ou seja, que juízes não-eleitos limitem a vontade de governantes eleitos pela população, bem como pelo fato que é através das Constituições vigentes que as gerações atuais podem limitar a liberdade das gerações futuras.19

1.2. CONSTITUCIONALISMO E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

Com a evolução do pensamento jurídico ao longo do século XX, surge o fenômeno do constitucionalismo, que representa a Constituição, enquanto norma fundamental de fundação das sociedades contemporâneas, que, pavimentada com direitos de natureza organizacional do Estado, direito fundamentais e sociais, visa ampliar e garantir o alcance dos referidos direitos aos mais diversos extratos sociais.

Coube a Thomas Paine, escritor e revolucionário inglês que atuou em ambas as Revoluções Americana e Francesa, oferecer a primeira definição moderna da constituição como “uma coisa que antecede o governo, e um governo é apenas a criatura de uma constituição. A constituição de um país não é um ato de seu governo, mas do povo que constitui o governo. Ela

18 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. São Paulo: Saraiva, 2007. P. 61-62.

19 FREIRE, Antonio Manuel Peña. Constitucionalismo garantista y democracia. Curitiba. Revista Crítica Jurídica,

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é um corpo de elementos ao qual você pode se referir e citar artigo por artigo, e que contém os princípios sobre os quais será estabelecido o governo”.20

A constituição, portanto, é uma norma superior que aspira habilitar a competição política, regular o exercício do poder e assegurar o estado de direito e as regras básicas de justiça que devem pautar a relação entre as pessoas e entre a população e o Estado. A função fundamental de uma constituição democrática é contribuir para que a sociedade seja capaz de coordenar politicamente conflitos e divergências, tendo como baliza os procedimentos democráticos e os princípios jurídicos por ela assegurados. Não se trata, portanto, de um instrumento de coordenação qualquer, já que deve ser condicionado pelas regras e pelos valores que o habilitam e justificam.

Em importante trabalho, Lijphart divide os regimes democráticos entre aqueles que são mais majoritários ou mais consensuais. Majoritários seriam regimes em que, a partir de um pleito eleitoral, todo o poder é transferido aos representantes que formam os governos que, com isso, podem sem maiores entraves institucionais levar a cabo seus projetos políticos. Já as democracias consensuais, por sua vez, são aquelas em que há um sistema de regras institucionais para fazer com que a manifestação da vontade popular, expressa por meio do voto, passe por diversos filtros antes de se transformar em uma política pública.21 Em síntese,

o que muda entre os diversos modelos de democracia constitucional é o grau de consensualidade exigido para que as decisões sejam consideradas válidas.

As democracias constitucionais vivem, entretanto, sob o influxo de uma tensão permanente e visceral, gerada pela lógica de suas próprias regras básicas de funcionamento.22

Não há nada mais comum à vida de uma democracia constitucional do que o conflito entre atores políticos e institucionais.

Esses confrontos, no entanto, devem ser mediados pela política cotidiana e pelas regras de competências previstas constitucionalmente para cada uma das instituições. É para isso que as constituições servem. São características prévias e posteriores na vida de uma constituição a existência de um permanente conflito social. A ideia de que os poderes são independentes e harmônicos, inscrita na Constituição, é nada mais do que um eufemismo, pois sua real disposição é de tensão.

20 PAINE, Thomas. Os direitos do homem: Uma resposta ao ataque do Sr. Burke à revolução Francesa. Petrópolis:

Vozes, 1989. P. 60.

21 LIJPHART, Arend. Patterns of Democracy: Government Forms and Performance in Thirty-Six Countries. New

Haven: Yale University Press, 1999.

(23)

É que assim como o ideal democrático se funda na noção de soberania popular, fonte última do poder político, a ideia essencial que permeia o constitucionalismo é a de limitação do poder. José Guilherme Merquior expressou bem essa evidencia23:

Se Aristóteles, em vez de Platão, fora o “constitucionalista”, da filosofia grega, foi porque ele compreendera que o regime da lei é superior ao governo dos homens – mesmo quando filósofos-reis, como na República. O problema era, portanto, desde sempre, como eliminar a arbitrariedade do poder. Na época do absolutismo autocrático, era natural que chegasse à resposta de Rousseau: transferir a soberania à nação. Mas foi preciso esperar pelo primeiro liberalismo pós-revolucionário, com Benjamin Constant (1967-1830) para que o constitucionalismo aprendesse a separar a questão da fonte da autoridade do problema, não menos real, do seu âmbito. Não bastava, segundo Constant, atinar com a boa fonte do poder (o povo); era também necessário limitar-lhe a extensão.

Todos os dias se observa a colisão entre poderes, invasões de competências, manifestações virulentas de atores políticos, mesmo a violação de determinados direitos, eventuais abusos no exercício de outros direitos e acusações de afrontas à Constituição sem que isso configure necessariamente uma crise, pois há mecanismos de autocorreção previstos pelo próprio sistema constitucional que, quando em funcionamento, demonstram a vitalidade da Constituição e não a sua falência.

Esses dispositivos impedem que as maiorias circunstanciais tomem determinadas decisões que coloquem em risco o direito das próximas gerações de continuar se autogovernando pelos moldes democráticos. Daí a afirmação de que determinadas cláusulas pétreas da Constituição são, paradoxalmente, limitações habilitadoras da democracia.

Mas Jeremy Waldron rejeita a visão da teoria constitucional que simplesmente a equipara a ideia de limitação dos governos.24 Ele busca demonstrar que é um erro da doutrina

constitucional colocar toda a sua ênfase na conotação de constitucionalismo que visa apenas a limitação do poder, em contraste com as obrigações de ações afirmativas que também estão previstas nos textos constitucionais.

Para Waldron, a ideia de constitucionalismo, enquanto teoria, se refere à uma atitude, uma disposição de pessoas que defendem os termos contidos na norma fundadora. Como teoria ou ideologia, o constitucionalismo é um produto do pensamento direcionado para o significado de regras e práticas na vida política, e é improvável que se assumam nas circunstâncias em que os arranjos políticos não são, eles próprios, produtos de reflexão e escolha.

23 MERQUIOR, José Guilherme. Liberalismo e Constituição, in O Avanço do Retrocesso, Editora Rio Fundo,

1990. P. 14.

(24)

Em sua análise, Waldron parte da interpretação da concepção individual dos termos “controle”, “restrição” e “limitação” do poder pela constituição. No que tange ao controle, o autor afirma que em uma democracia, é importante que o governo como um todo seja controlado pelo povo, e mais uma vez se pode entender esse controle não como algo puramente negativo, mas como uma resposta afirmativa à vontade do povo.

Já a ideia de restrição, em contraste, é de impedir o governo de fazer certas coisas. Em outros casos, a proibição funciona como uma especificação das condições sob as quais as coisas podem ser feitas. Por fim, a ideia de “governo limitado” significa não apenas evitar abusos em particular, mas um senso mais amplo de que muitas das aspirações que governos - particularmente governos democráticos - às vezes têm são per si ilegítimos.

Para ele, a democracia representada na constituição não é apenas sobre a limitação do poder. A constituição de uma democracia, ao contrário, é sobre empoderar a todos os participantes de determinado governo. Nesse sentido, o autor menciona que não é suficiente dar às pessoas igual poder político. É preciso mantê-los nesse status, porque essa igualdade é endemicamente sujeita à subversão de todos os tipos de direções.

Constitucionalismo, eu sua visão, é uma doutrina sobre onde a atenção é adequadamente dirigida no que diz respeito aos arranjos legais e políticos básicos de uma sociedade; sendo constantemente direcionada para a restrição, a atenção é distraída daqueles arranjos constitucionais cuja função é manter a fé na emancipação das pessoas comuns.

O problema não é apenas que o constitucionalismo negligencia a tarefa do empoderamento democrático. Em verdade, ele toma a democracia e o poder atribuído às pessoas comuns por meio de procedimentos eletivos e representativos como seu inimigo natural. A democracia em seu sentido mais amplo - o genuíno empoderamento das pessoas comuns sob os auspícios da igualdade política - não é uma conquista segura ou resiliente. Requer atenção constitucional contínua.

Manter uma constituição democrática significa prestar atenção aos fenômenos circundantes da política, tais como a influência da riqueza e outras formas de poder social e econômico para assegurar que a igualdade política definitiva da democracia permaneça uma realidade para todos os membros da sociedade, e não apenas uma decoração ideológica.

É importante nutrir um espaço de respeito pela constituição entre os membros da comunidade, particularmente entre os atores ativos no sistema político, de modo que um sentido de obrigação constitucional se torne um ponto de referência compartilhado em todas as suas decisões. Também é importante projetar instituições de modo que a forma como elas acomodam a dinâmica do poder e da ambição produza resultados constitucionais por uma espécie de mão

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invisível, mesmo quando poucos ou nenhum dos participantes leva a sério a obrigação constitucional por si mesma.

Rogério Arantes e Cláudio Couto trilham no mesmo caminho de Waldron. Para eles, o resultado mais esperado de uma Constituição é que ela tenha o condão de institucionalizar a competição política e a incerteza quanto aos seus resultados, oferecendo parâmetros ao jogo que sejam suficientes para promover a adesão dos atores ao processo democrático. Em uma perspectiva racional, essa adesão se dá justamente quando se garante, de antemão, que os resultados possíveis do jogo político estarão limitados a certos tipos de perdas e ganhos que sejam percebidos pelos atores como razoáveis, isto é, incapazes de comprometer, de modo decisivo, a sobrevivência futura dos contendores e, principalmente, dos eventuais derrotados.25

Com efeito, a existência de uma jurisdição constitucional parece ter-se tornado hodiernamente, na observação de Vital Moreira26, um requisito de legitimação e de

credibilidade política dos regimes constitucionais democráticos.

Eis a configuração, em certa medida até singela, mas inegavelmente utópica, do projeto constitucionalista: erigir um governo que respeite, a um só tempo, a soberania popular, expressa pela regra da maioria, e os princípios consagrados na Constituição.

Em seus primórdios, a ideia de controle de constitucionalidade foi intensamente debatida por Alexander Hamilton27, no Federalista n. LXXVIII e, posteriormente, no n. LXXXI,

que sustenta a ideia de que a Constituição deve ser vista como lei fundamental, cabendo aos juízes proclamar a nulidade das leis ordinárias a ela contrárias. Confira-se seu raciocino em passagem clássica, que prenunciava a afirmação da jurisdição constitucional:

Alguma perplexidade quanto ao poder dos tribunais de pronunciar a nulidade de atos legislativos contrários à Constituição tem surgido, fundada na suposição de que tal doutrina implicaria na superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Afirma-se que a autoridade que pode declarar os atos da outra nulos deve ser necessariamente superior àquela cujos atos podem ser declarados nulos (...). Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido (...). a presunção natural, à falta de norma expressa, não pode ser a de que o próprio órgão legislativo seja o juiz de seus poderes e que sua interpretação sobre eles vincula os outros poderes e que sua interpretação sobre eles vincula os outros Poderes (...) É muito mais racional supor que os tribunais é que têm a missão de figurar como corpo intermediário entre o povo e o Legislativo, dentre outras razões, para assegurar que este último se contenha dentro dos poderes que lhe foram deferidos. A interpretação das leis é o campo próprio e peculiar dos tribunais. Aos juízes cabe determinar o sentido da Constituição e das leis emanadas do órgão legislativo.

25 ARANTES, Rogério. COUTO, Cláudio. Construção democrática e modelos de Constituição. Revista de

Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, no 3, 2010, pp. 545 a 585.

26 MOREIRA, Vital. Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça

constitucional, in Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional. Coimbra Editora, 1995. P. 178.

27 MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, James. O Federalista. Brasília: Editora UnB, 1984, n. 51.

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Esta conclusão não importa, em nenhuma hipótese, em superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Significa, tão-somente, que o poder do povo é superior a ambos; e que onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que edita, situar-se em oposição à vontade do povo, declarada na Constituição, os juízes devem curvar-se à última, e não à primeira.

Os ideais estabelecidos pela Carta Magna estadunidense, entretanto, não seriam eficazes sob o ponto de vista instrumental se não fosse a atuação da Corte de constitucionalidade, que deve atuar com o intuito de garantir os princípios sedimentados na norma fundamental.

Nas palavras de Clèmerson Merlin Clève, “a doutrina da supremacia da common law, repudiada na Inglaterra depois de 1688, mas incorporada à tradição jurídica americana e somada à prática judicial experimentada antes da independência, ofereceu o terreno apropriado para o desenvolvimento do judicial review”.28

O caso concreto conhecido como William Marbury vs. James Madison, julgado pela Suprema Corte estadunidense em 1803, que entrou para a história como o marco primeiro da jurisdição constitucional, não foi um gesto de improvisação, mas o resultado de um longo amadurecimento doutrinário e jurisprudencial29.

Em primeiro lugar é preciso destacar que a Suprema Corte americana em 1803 não possuía a mesma força política dos dias de hoje. Naquele ano ainda nascia a República estadunidense. A ocupação das cadeiras políticas exercida pelos poderes ainda era objeto de grande disputa política. O julgado, desse modo, ficou conhecido como a certidão de nascimento da Corte estadunidense e o início de sua influência na vida naquele país.

Como consequência, mas não sem alguma resistência inicial, a doutrina do judicial review of legislation se consolidou nos Estados Unidos da América e se espalhou por diversos países no mundo, como Canadá, Brasil, Argentina, Japão, Portugal, Noruega, Dinamarca, Suécia, Alemanha (na época da Constituição de Weimar, 1919) e Itália (entre 1948 e 1956).

Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, comentando a doutrina estadunidense do judicial review of legislation, assim se manifestou:

“Argúi-se, todavia, que a doutrina americana, acarretando a supremacia do Judiciário, opõe-se aos princípios democráticos, pois, enquanto em relação ao Congresso, de eleição em eleição, o povo pode escolher os seus representantes de acordo com a filosofia política dominante, no caso do Judiciário a estabilidade dos juízes impede

que se reflita nos julgados a variação da vontade popular”. 30

28 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000. P. 64.

29 ALSTYNE, W. W.V. A critical guide to Marbury v. Madison. Duke Law Journal, n.1, p. 1-47, jan 1969.

Disponível em: http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1488&context=faculty_scholarship. Acesso em: 13 mai. 2019.

30 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. Rio de Janeiro:

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Tomando como fonte de inspiração o critério de sistematização proposto por Clèmerson Merlin Clève, a contemporaneidade pode classificar os sistemas de controle de constitucionalidade da seguinte forma:

a) o modelo inglês de ausência de fiscalização da constitucionalidade, no qual vigora a supremacia do Parlamento, e não a da Constituição; juízes e tribunais são incompetentes para conhecer e decidir qualquer questão de constitucionalidade; b) o modelo francês de controle político e preventivo da constitucionalidade, exercido pelo Conselho Constitucional anteriormente à promulgação da lei; juízes e tribunais são também incompetentes para conhecer e decidir qualquer questão de constitucionalidade;

c) o modelo de jurisdição constitucional difusa, de origem norte americana, no qual os juízes e tribunais são competentes para conhecer e decidir a questão constitucional, deixando de aplicar a lei ao caso submetido a seu crivo, quando considerada inconstitucional, com possibilidade de recurso para a superior instancia, inclusive para a Suprema Corte;

d) o modelo de jurisdição constitucional concentrada, desenvolvido a partir da matriz austríaca, no qual os juízes e tribunais são competentes para conhecer, mas incompetentes para decidir a questão da constitucionalidade, cabendo exclusivamente

ao Tribunal Constitucional deliberar sobre a validade da lei em face da Constituição.31

Nesse último caso, o Tribunal Constitucional poderá ser chamado a pronunciar-se, em geral, por três vias distintas: a) por meio de uma ação direta, intentada por algum dos órgãos legitimados, na qual irá aferir a compatibilidade, em tese, da lei com a Constituição, sem vinculação a qualquer caso concreto, pronunciando decisão com efeitos gerais (erga omnes); b) por meio de exame incidental, suscitado por algum juiz ou tribunal, no qual irá aferir a compatibilidade de determinada lei com a Constituição, quando tal questão for relevante (questão prejudicial) para a solução de determinado caso concreto, e; c) por meio de um pedido formulado diretamente ao Tribunal, existente em países como Alemanha e Espanha, no qual irá aferir se determinada lei ou ato do Poder Público acarreta lesão a direito fundamental do requerente assegurado na Constituição.

Assim, a despeito de sua notável expansão e da enorme influência intelectual que exerceu, e ainda exerce na doutrina constitucional universal, o modelo cedeu espaço ao longo do século XX, sobretudo na Europa continental, para o sistema de controle concentrado, em que a fiscalização da constitucionalidade das leis é confiada, com exclusividade, a um órgão jurisdicional independente (Tribunal Constitucional), situado na cúpula ou fora da estrutura do Poder Judiciário. Seu surgimento tem como marco a teoria de Hans Kelsen, que influenciou a Constituição Austríaca de 1920.

(28)

O renomado jurista defende que a existência de um órgão de jurisdição constitucional é princípio do Estado Democrático de Direito, pois é o que lhe sustenta, no sentido de que não pode existir equilíbrio entre os órgãos, particularmente o parlamento e o governo, ou seja, não há como possam coexistir, sem que exista um órgão capaz de julgar os atos de ambos. Em suas palavras32,

Tal controle não deve ser confiado a um dos órgãos cujos atos devem ser controlados. A função política da Constituição é estabelecer limites jurídicos ao exercício do poder. Garantia da constituição significa a segurança de que tais limites não serão ultrapassados. Se algo é indubitável é que nenhuma instancia é tão pouco idônea para tal função quanto justamente aquela a quem a constituição confia – na totalidade ou em parte – o exercício do poder e que portanto, possui, primordialmente a oportunidade jurídica e o estimulo político para vulnerá-la. Lembre-se que nenhum outro princípio técnico-jurídico é tão unanime quanto este: ninguém pode ser juiz em causa própria.

A visão de Kelsen sobre a jurisdição constitucional não se sedimentou sem antes passar pelo escrutínio doutrinário. Carl Schmitt, seu contemporâneo, teceu pesadas críticas sobre a forma como é exercida a jurisdição constitucional prevista por Kelsen.

Schmitt é contra esta tentativa de Kelsen de racionalizar o Estado de Direito ao converter a Justiça Constitucional em guardiã da Constituição. Ele entende que a função judicial não seria outra senão a decisão de casos – em virtude de leis – e não a discussão do conteúdo das normas. O juiz não poderia se negar a decidir, pois caso contrário a função judicial se converteria em uma função que cria direito e não se limita a discutir, tipificar e subsumir os fatos à norma.33

O autor defende a figura do Chefe de Estado como verdadeiro defensor da Constituição pelo fato de este ter passado pelo crivo da eleição popular, aspecto que o legitimaria a atuar com independência em relação aos partidos e como instância verdadeiramente suprema e neutra. Contudo, a conversão do Chefe de Estado em Guardião da Constituição guarda uma opção ideológica bastante nítida, pois, ao invés de contribuir na defesa do sistema constitucional, possibilita a sua violação sob uma base argumentativa de legitimação.

Por outro lado, ao separar as funções legislativa e judiciária, Schmitt ataca aquilo que chama de “formalismo abstrato”, declarando que tudo aquilo que os organismos legislativos resolvem em forma de legislação seria lei, e que tudo aquilo que é decidido em um Tribunal seria Justiça. Esta lógica, segundo Schmitt, elevaria a condição de independência, constitutiva do cargo do juiz, e o elevaria a um grau que possibilitaria submeter os pleitos constitucionais e os conflitos de juízo e formar uma “Justiça Constitucional”. Com conceitos constitucionais

32 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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desta natureza, tudo pode ser Justiça, mas, do mesmo modo, tudo poder ser “norma” e normatividade, e, em último termo, tudo pode ser também Constituição.

Mais uma vez criticando o liberalismo, Schmitt afirma que nenhum formalismo judicial poderia encobrir o fato de que semelhante Tribunal de Justiça Político ou Constitucional viesse a ser uma instância política suprema com atribuições para formular preceitos constitucionais. O Tribunal Constitucional seria, portanto, a criação de uma “aristocracia da toga” inimaginável em outro cenário político. O Presidente do Reich, pelo contrário, estaria posicionado no centro de todo um sistema de neutralidade e independência sobre fundamentos plebiscitários, ante os partidos políticos. Ao fazer isso, a Constituição teria criado, para Schmitt, um contrapeso ao pluralismo dos grupos sociais e econômicos do poder e, assim, garantido a unidade do povo como conjunto político.

Por sua vez, Kelsen buscou justificar a criação da Corte Constitucional ao afirmar que a função política da Constituição seria a de estabelecer limites jurídicos ao exercício de poder. Ele entende que se uma Constituição não prevê a possiblidade de anular os atos inconstitucionais, não teria, em contrapartida, seu cumprimento garantido. Caberia, portanto, dentre outras funções, à Corte Constitucional julgar: a ilegalidade de decretos federais e estaduais, as violações do direito constitucional praticadas por autoridades federais ou estaduais, bem como os recursos contra decisões administrativas fundadas na violação de direitos garantidos constitucionalmente.

Além disso, Kelsen argumenta que Schmitt, eu sua tese contrária à criação de um órgão jurisdicional, formula como problema decisivo se o judiciário poderia atuar com guardião da constituição. Alega que Schmitt, ao questionar a idoneidade do judiciário, não leva em conta que, até mesmo na Alemanha, os tribunais civis, criminais e administrativos também fazem juízos de valor constitucional material ao decidirem nos casos concretos, ou seja, também representam guardiões da constituição, ainda que indiretamente: “Schmitt não pode desmentir que um tribunal, quando rejeita a aplicação de uma lei inconstitucional, suprimindo assim sua validade para o caso concreto, funciona na pratica como garante da constituição.”34

Com isso, Kelsen se opõe a Schmitt quanto ao fato do Chefe de Estado ser o protetor da Constituição e, relembra que, o que se almejava era, na verdade, a proteção da Constituição contra violações por parte de quem mais a ameaçava, ou seja, o monarca, o chefe do executivo. Por essa motivação, tornava-se muito difícil declarar abertamente o objetivo político de retirar o poder do monarca e não possibilitar que a Constituição pudesse ser usada contra ele. Assim,

(30)

escamoteava-se a argumentação de que este viria a ser seu guardião quando, na verdade, era dele que a Constituição era protegida.

Kelsen também critica Schmitt por este acreditar que todas as funções exercidas pelo chefe de estado, inclusive aquelas atinentes apenas ao cargo, como por exemplo declarar guerra, são atribuições também do “guardião da constituição”, alongando, assim, o conceito que era antes muito claro. Ele entende que se o presidente do Reich exerce todas essas funções enquanto guardião da constituição, então, na verdade, ele é um “executor da constituição”.

O problema da teoria de Schmitt, para Kelsen, estaria em negar o antagonismo entre o Parlamento e o governo, o que incapacitaria o Chefe de Estado de sua tarefa de defesa da Constituição. E o dualismo entre Estado e sociedade (que pautaria a dualidade Parlamento-governo), sob o qual a interpretação de Schmitt se limitaria, seria extinto com a emergência de um Estado total, na contramão do que prega Schmitt.

A defesa mais aberta de Kelsen do Tribunal Constitucional acontece quando este expõe as vantagens em se adotar este como protetor dos valores constitucionais, em que este não participaria do exercício do poder e não se colocaria antagonicamente em relação ao Parlamento ou o governo.

Segundo uma visão positivista estrita, a jurisdição constitucional não sofre qualquer censura pelo princípio da separação de poderes: é a própria Constituição, como norma jurídica superior, quem institui o Estado e organiza o sistema de freios e contrapesos, conferindo aos juízes constitucionais competência para anular ou deixar de aplicar, conforme o caso, as leis inconstitucionais.

No que se refere à compatibilidade da jurisdição constitucional com o princípio democrático, o positivismo jurídico oferece a seguinte resposta: ao realizar o controle de constitucionalidade das leis, o juiz constitucional atua de forma rigorosamente neutra, sobrepondo a vontade do legislador constituinte, expressa no texto da Constituição, à vontade do legislador ordinário. A ideia é a de que a vontade da maioria governante de cada momento não pode prevalecer sobre a vontade da maioria constituinte incorporada na lei fundamental.

No paradigma positivista, a neutralidade dos juízes é assegurada pela crença de que estes se limitariam a uma aferição formal e asséptica da compatibilidade entre lei e constituição. Não havia espaço para a construção judicial, que demanda necessariamente uma atividade criativa por parte do magistrado. Deste modo, a decisão que proclama a inconstitucionalidade de uma

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lei seria, em termos ideais, a expressão da vontade do legislador constituinte, e não a da Corte Constitucional que a proferiu.35

Em síntese, a questão da legitimidade democrática da justiça constitucional ficaria, assim, superada pelos mitos da neutralidade do juiz e do formalismo hermenêutico que caracterizam o positivismo jurídico.

É certo que no desenrolar da história, a jurisdição constitucional se afirmou como o mais importante instrumento de contenção do poder político nas democracias contemporâneas, chegando mesmo a ser considerado elemento necessário da própria definição do Estado de direito democrático. É que, por intermédio da sua constitucionalização, determinados princípios e direitos são subtraídos do embate político cotidiano, ficando preservados contra maiorias legislativas ocasionais.

Entretanto, a jurisdição constitucional, por si só, representa um certo grau de risco à democracia, que repercute a inexistência de qualquer controle de legitimidade a posteriori das decisões da Corte Constitucional. Embora desempenhando uma tarefa jurídica, e não política, a corte exerce sempre um papel construtivo e concretizador da vontade constitucional. Como leciona Mauro Cappelletti36, por mais fiel que seja aos cânones de racionalidade, objetividade

e motivação, exigíveis de qualquer decisão judicial, a justiça constitucional jamais neutraliza inteiramente a influência dos fatores políticos no desempenho do seu mister.

Hans Kelsen foi quem se esforçou para conferir à dogmática jurídica um estatuto científico, com o seu normativismo jurídico, que representou a radicalização do positivismo ao mesmo tempo que o esgotava, como bem apontado por Tércio Sampaio Ferraz Junior37.

Em sua conhecida formulação sobre a estrutura do ordenamento jurídico, Kelsen o concebe como um sistema escalonado e hierarquizado, em que a norma de escalão inferior tem seu fundamento de validade na norma de escalão superior.

Seguindo uma direção ascendente, da base rumo ao topo da pirâmide normativa, a sentença judicial (norma para o caso concreto) teria fundamento de validade na lei (norma geral), enquanto a lei encontraria seu fundamento de validade na Constituição. No topo da

35 MOREIRA, Vital. Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça

constitucional, in Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional. Coimbra Editora, 1995.

36 CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. Porto

Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1992.

37 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, decisão, dominação. São

Referências

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