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Como ser mais livre? Política, economia e a genealogia da ideia de Deus em Proudhon

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Academic year: 2021

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genealogia da ideia de Deus em Proudhon

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How to be freer? Politics, economy, and the genealogy

of the idea of God in Proudhon

Natalia Monzón Montebello

*

*. Doutora em Ciência Política. Professora do curso de Ciências Sociais da UECE e coordenadora do Observatório das Nacionalidades e Editora da Revista Tensões Mundiais. natalia.montebello@uece.br

Resumo: Percebendo o funcionamento de uma articulação lógica entre o

absoluto no pensamento e o absolutismo político, Proudhon formula, através da economia, uma crítica anárquica radical da política, seja enquanto pensar, seja enquanto espaço das relações sociais fundadas na defesa da propriedade, isto é, do privilégio. Sua crítica desarticula a lógica autoritária que, segundo ele, ecoa na prática do governo unitário e centralizador. Mas se o autoritarismo no governo se atrela ao autoritarismo no pensamento, antes disso a filosofia política atrela-se à teologia. Correspondência, então, entre governo e religião, por um lado, e filosofia e teologia, por outro. Assim vai compondo Proudhon um ponto de vista analítico do problema da correlação entre autoridade e liberdade pela hipótese de Deus, o que lhe possibilita pensar a política permanecendo na tensão antinômica dos confrontos. É essa crítica anárquica que o artigo apresenta de maneira sucinta, buscando provocar novas conversas e desdobramentos pertinentes.

Palavras-chave: Política; Economia; Filosofia; Anarquia.

1. As problematizações aqui apresentadas encontram-se originalmente na tese resultado de minha

pesquisa de doutoramento, apresentada na PUC/SP sob o título de “Federalismo e autogestão: anar-quismo - Proudhon, Guerra Civil Espanhola”, no ano de 2009.

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Abstract: Noticing the functioning of a logical articulation between an absolute in thought and political absolutism, Proudhon, through the economy, formulates a radical anarchic critique of politics, be it in thought, be it in the space of social relations founded in defense of property, which is to say, of privilege. His critique deconstructs the authoritarian logic which, according to him, echoes in the practices of an unitarian, centralizing government. But if governmental authoritarianism is bound to thought authoritarianism, then first political philosophy is bound to theology. The correspondence, then, between government and religion on one side, and philosophy and theology, on the other. So composes Proudhon an analytical point-of-view of the issue of correlation between authority and liberty by the hypothesis of God, which allows him to think about politics remaining in the antinomic tension of confrontations. It is this anarchical critique that this article presents in a succinct manner, seeking to evoke new dialogue and relevant developments.

Keywords: Politics, Economy, Philosophy, Anarchy.

Eu estava ali sem nenhum plano imediato quando vi os dois homen-zinhos verdes correndo sobre o tapete. Um deles retirou do bolso um minúsculo lenço e passou-o na testa. Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que eles deviam ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei também que necessitava de uma longa veste: uma muito longa veste provavelmente azul. Não foi difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam. Nascendo, tecendo e morrendo. Enquanto isso, minha mão direita pousava ameaçadora sobre suas cabeças. Caio Fernando Abreu, Uma veste provavelmente azul

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Ao reconhecer nas teorias sobre o Estado um princípio de organização transcendente à sociedade, Proudhon faz funcionar sua crítica radical à política pela economia, que por sua vez descreve a crítica ao pensamento econômico

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que afirma o regime de propriedade, seja ela privada ou estatal. Observam-se na analítica de Proudhon diversas combinações antinômicas, buscando interrom-per a continuidade das relações de dominação instituídas sobre a naturalização do Estado. Essa naturalização resultaria da conservação de certos princípios ancestrais, tanto no campo das teorias políticas e econômicas como naquele das práticas sociais, inclusive as revolucionárias.

Nessa problematização da política pela economia percebe-se um cuidado em encontrar no pensamento tudo aquilo que atualiza o Estado, pois é no pen-samento que se torna possível o absoluto. Dessa maneira, a crítica descreve primeiramente as relações econômicas como relações de autoridade e, então, descreve as relações políticas de dominação como composições daquelas da propriedade que demarcam uma lógica, própria ao político, de ampliação da ação do princípio de autoridade, evidenciada no Estado por sua tendência à centralização e ao unitarismo.

Pierre Ansart anota em seu livro Marx e o anarquismo (1972) que se, de um lado, a análise de Proudhon sobre as relações econômicas instaura uma crí-tica demolidora e inovadora em relação às teses do liberalismo e do socialismo — em seus trabalhos O que é a propriedade? (1983 [1840]) e Filosofia da miséria (2007a; 2007b [1846]) —, de outro lado, essa crítica ganhará potência nas obras posteriores a 1848, ao instaurá-la no estudo detalhado do Estado — Confissões de

um revolucionário (1947 [1849]) e Ideia geral da revolução (2000) [1851] — e da

religião — em Da justiça na revolução e na Igreja (1990a; 1990b; 1990c; 1990d [1860]). O estudo da economia seria, então, um primeiro movimento no interior de um pensar que, intensificando-se, afirma um desmoronamento da filosofia política, ao evidenciar nela a desconsideração da força decisiva da economia.

Ao fazer a crítica do Estado, Proudhon se propõe descobrir as relações que unem as estruturas do Estado com a economia da propriedade: é induzido então a reencontrar o problema de uma eventual determinação dos fenô-menos políticos pelo sistema econômico. Efetivamente, algumas indicações contidas no Sistema das contradições econômicas sobre esse tema fazem apa-recer uma relação de determinação da opressão política pelas modalidades

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particulares da economia da propriedade: a organização hierárquica e desi-gual da oficina deveria ser considerada como o modelo e a fonte da alienação política. De maneira mais geral, a apropriação privada contém em si mesma uma relação de subordinação, já que a propriedade absoluta, direito de usar e abusar sem consideração dos interesses particulares, é em si mesma um des-potismo. Proudhon esboça dessa forma esses temas pelos quais será possível precisar uma determinação da estrutura política pela organização econômica e uma reprodução, no âmbito do político, das desigualdades econômicas. Nesse sentido, será preciso considerar a alienação política como um efeito da alienação econômica, como a apropriação, confirmada no âmbito do Estado, da força coletiva por uma classe privilegiada (ANSART, 1972, p. 134-135). Mas disso não se deduzem dois tempos nos escritos de Proudhon: seria possível trabalhar com uma intensificação, ou uma radicalização sobre o pró-prio pensamento, que o diferencia das interpretações teóricas que estabelecem delimitações e predeterminações essencialistas. Assim, prossegue Ansart,

(...) Proudhon não se limita de maneira nenhuma a essa problemática. A condenação radical e anarquista do Estado, tal como se formula nas obras escritas durante o período revolucionário, incorpora a essas indicações a ideia de uma necessidade própria a todo Estado unitário e centralizador. Não só o Estado está fundado por definição sobre a alienação das forças coletivas, mas também, uma vez constituído, é necessariamente induzido a reforçar essa alienação, a absorver em si mesmo os poderes sociais para utilizá-los em seu proveito (Ibid., p. 135).

É importante ainda anotar que Proudhon se interessa pela problema-tização da política pela economia procurando desvincular da política os pressupostos filosóficos metafísicos incapazes de interromper a continuidade do governo sobre todos e, ao mesmo tempo, dando à economia uma potência de crítica racional que ela não tem nem com o liberalismo nem com o socia-lismo autoritário. Com o primeiro, porque entende a economia como “(...) a

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coletânea das observações feitas até hoje sobre os fenômenos da produção e da distribuição das riquezas, isto é, sobre as formas mais gerais, mais espontâneas, por conseguinte mais autênticas do trabalho e da troca” (PROUDHON, 2007a, p. 49). E com o socialismo, porque, eterna crítica reativa do liberalismo, é, “(...) numa palavra, utopia, isto é, não-lugar, quimera” (Ibid., p. 66).

Assim, o socialismo não é nada sem uma crítica profunda e um desen-volvimento incessante da economia política; e, para aplicar aqui o célebre aforismo da escola Nihil est in intellectu, quod non prius fuerit in sensu (nada há no intelecto que antes não tenha estado nos sentidos), não há nada nas hipóteses socialistas que não se encontre nas práticas econômicas. Em con-trapartida, a economia política nada mais é que uma impertinente rapsódia, a partir do momento em que afirma como absolutamente válidos os fatos colecionados por Adam Smith e J. B. Say (

PROUDHON

, p. 57)

Em suma, se Proudhon dimensiona sua crítica às relações de domina-ção pela articuladomina-ção entre economia e política, essa articuladomina-ção é anárquica, na medida em que rejeita as soluções interpretativas que estabelecem e preservam hierarquias e soberanias entre saberes. Nem as relações econômicas se sobre-põem às políticas nem o contrário: há uma continuidade nas relações de poder que atravessa o econômico e se potencializa no político, e que faz funcionar um campo com o outro como uma única superfície, na qual é necessário mostrar como funciona o poder, como permanece a obediência, e ainda como a deso-bediência, no mais das vezes, termina por revigorar o funcionamento do poder. Do ponto de vista analítico, interessa problematizar a articulação entre econo-mia e política como instauração de uma radicalidade anárquica no pensamento.

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Proudhon repetirá de diversas maneiras esta questão: como funcionam e como se preservam as relações de dominação? Ou: o que dá continuidade, no pensamento e nas práticas, à obediência? Quais são os princípios que, desde tempos imemoriais, sepultam a liberdade de cada um, atravessando a história com o sacrifício das liberdades individuais graças à consagração da autoridade

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de alguns, exercida em nome da unificação de todos? Ou ainda: como as rela-ções de força se transmutam em relarela-ções de poder?

Não se trata de decretar uma suposta origem mítica do Estado, mas de descrever seu funcionamento no nível de sua continuidade, para investir contra tudo aquilo que naturaliza a obediência. Nem o pensamento nem os movimen-tos sociais revolucionários teriam dado conta, segundo Proudhon, de derrocar os princípios que legitimam a institucionalização do privilégio de qualquer índole sempre política: uma eternização da autoridade. É necessário, então, problematizar o governo com a análise de sua lógica: não uma interpretação, que exigiria a consideração de uma essência e de uma origem fabulosa, mas uma descrição analítica, que invista na memória dos confrontos, ainda que apagados da história pela astúcia ou pelo hábito.

O poder político não resulta da mítica celebração de um contrato que, por situar-se fora da história, funda uma necessidade essencial do governo. Tampouco da utópica superação dos confrontos na solução sintética da unificação pela verdadeira interpretação da história, que, também fora da his-tória como metafísica, funda igualmente a necessidade essencial do governo. Portanto, se o governo não é uma necessidade natural da sociedade, então o pensamento, em vez de se empenhar na defesa alucinada de suas próprias criações, deveria buscar o que faz funcionar esse poder político. E o poder não surge ou funciona numa atemporalidade ideal, mas nas práticas e sua história. O pensamento deve procurar os princípios que, estabelecendo certas diferen-ças como legítimas, eternizaram o privilégio como justo. Deve procurar como surge, sobre o que se assenta, o poder político.

Como se torna possível o Estado? O movimento que interrompe, na aná-lise, a autoridade política pelas relações econômicas vai da problematização da imanência à crítica da transcendência das relações de poder. A transcendência, como superfície sobre a qual será ancorada a devida obediência ao Estado, é consagrada, nas relações políticas, com a institucionalização da propriedade, direito que demarca a emergência da hierarquização e da centralização, numa palavra, do autoritarismo, linha contínua da preservação do privilégio e da arbitrariedade, que subtende às diversas denominações dos governos.

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Em 1849, Proudhon publica As confissões de um revolucionário para servir

à história da revolução de fevereiro de 1848 (1947). A reflexão inicial

dirige--se à pergunta a respeito da natureza do governo. Se perguntamos o que é o governo não encontraremos resposta na filosofia política, diz Proudhon, mas na fé. Trata-se de um questionamento da mesma índole e da mesma dimensão daquele que pergunta acerca da natureza de Deus. Assim como os teólogos repetiram durante séculos essa pergunta vazia, os filósofos também se esfor-çaram em indagar sobre a natureza do governo, tentando encontrar o melhor governo possível — ou, analogamente, os teólogos a melhor religião —, e, tanto no caso das religiões como no dos governos, o pensamento apenas alcança a descrição dos tipos, deixando intacto o princípio que dá permanência a ambos.

Em suas Confissões (1947), Proudhon repete o percurso lógico que em 1846 tinha desenhado no Sistema das contradições econômicas ou filosofia da

misé-ria (2007a; 2007b): a hipótese de Deus. “A teologia, ao dogmatizar sobre a

autoridade de seus mitos, a filosofia, ao especular por meio de suas categorias, Deus permaneceu no estado de concepção transcendental, isto é, inacessível à razão, e a hipótese continua subsistindo sempre” (PROUDHON, 2007a, p. 31-32). Toda especulação metafísica, diz Proudhon nas Confissões, é um ato de adora-ção ao criador. Da adoraadora-ção da natureza à adoraadora-ção do homem, passando por todas as divindades que inventou, a humanidade investiu seu pensamento, e sua ira, numa falsa questão, que oscila entre a razão e a crença no vaivém que atesta o descolamento sistemático entre o pensamento e a vida: parece que desde Sócrates apenas sabemos que nada sabemos, ou apenas sabemos que a filosofia se apoia sobre duas hipóteses falsas: a matéria e o espírito.

A ação da imaterialidade espiritual tomada como verdadeira ou a indivi-sibilidade da matéria, igualmente entendida como verdadeira, são o duplo da mesma operação que busca a cristalização essencial como modelo interpreta-tivo. Um pouco de filosofia, lembra Proudhon, nos afasta da religião, mas muita filosofia nos leva de volta a ela. Assim como o ateísmo, que longe de atestar a força do pensamento sobre a fé, ao deixar intocada a hipótese de Deus, apenas evidencia o desespero diante do que não se põe. Mas o pensamento deve inter-rogar sua época. O ateísmo, ou melhor, diz Proudhon, o humanismo: devemos

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investigar se a humanidade tende a Deus ou se se torna Deus, para talvez des-cobrir que se trata de dois movimentos idênticos (PROUDHON, 2007a). Em suma, a crítica ao humanismo como problematização da hipótese de Deus se desdobra, também, na crítica à política.

Foi Kant, segundo Proudhon, quem pela primeira vez colocou a per-gunta filosófica sobre Deus como uma questão de forma, e não mais como uma questão de fato. Não mais: o que é Deus? E, consequentemente: qual é a melhor religião? Mas sim: de onde vem a ideia de Deus? Como se fixa e como se desenvolve essa ideia? Ou: como funciona a alma religiosa? Em vez de questionar a verdade na ideia de Deus, Kant teria feito a biografia dessa ideia. Enfim, Kant,

[e]m vez de tomar por objeto de suas meditações, como um anacoreta, o ser de Deus, analisou a fé em Deus, tal como a oferecia a ele um período religioso de seis mil anos. Numa palavra, considerou na religião, não mais uma revelação externa e sobrenatural do Ser infinito, mas um fenômeno de nosso entendimento (PROUDHON, 1947, p. 13).

De maneira que depois de Kant o questionamento filosófico permite encontrar, nessa biografia da ideia de Deus, o percurso histórico ao longo do qual a humanidade se recria num reflexo intelectual que projeta seu duplo metafísico, superior e transcendental, que apaga da memória os confrontos.

Assim, a moral, a justiça, a ordem, as leis, não são coisas reveladas desde cima, impostas ao nosso livre arbítrio por um chamado criador, desconhe-cido, ininteligível; são coisas que nos são próprias e essenciais como nossas faculdades e nossos órgãos, como nossa carne e nosso sangue (Ibid., p. 13-14).

Seria necessário fazer com o governo o que Kant fez com Deus. Para Proudhon, a filosofia política não teria conseguido ir além de Aristóteles: nada além da classificação dos governos. Assim, sendo a indagação sobre a verdade da ideia do governo um assunto de fé, cabe à filosofia política perguntar-se

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a respeito da legitimidade dessa ideia: como aparece e como se desenvolve a crença na autoridade do governo? Como funciona a ideia, a ficção, diz Proudhon, que afirma superioridade de um, do Estado, sobre todos?

Em duas palavras, em vez de ver no governo, com os absolutistas, o órgão e a expressão da sociedade; com os doutrinários, um instrumento de ordem, ou melhor, de polícia; com os radicais, um meio de revolução: tratemos de ver nele simplesmente um fenômeno da vida coletiva, a representação externa de nosso direito, a educação de alguma de nossas faculdades. Quem sabe se não descobriríamos então que todas essas fórmulas governamentais, pelas quais os povos e os cidadãos se degolam já faz sessenta séculos, não são mais do que uma fantasmagoria de nosso espírito, que o primeiro dever de uma razão livre é relegar aos museus e às bibliotecas? (

PROUDHON

, p. 16).

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Ao abrir mão da interpretação ontológica, Proudhon abandona a clássica pergunta acerca de qual é o melhor governo, instaurando uma nova e radical problematização analítica: não se trata de saber como seremos melhor gover-nados, mas de como seremos mais livres. A análise da política, em Proudhon, acontece fora da forma do Estado, interrompe sua continuidade, desmontando as reformas e as revoluções na crítica que abre mão das medidas como critério de avaliação: todo Estado se funda na ampliação e imposição da autoridade sobre todos, com o sacrifício da liberdade de cada um. Não se trata, então, de desvendar uma essência ou natureza do Estado, o que equivaleria à revelação no campo da religião, mas de descrever como funciona o poder: de que maneira as relações de poder se conformaram e se desenvolvem, historicamente, como relações políticas de dominação, institucionalizadas no Estado?

Seria então necessário pensar, segundo Proudhon, de que maneira as relações de poder imanentes à coletividade social se projetam como relações transcendentes de dominação. Todo grupo que se constitui como coletividade para a cooperação dos esforços individuais põe em funcionamento um poder coletivo que Proudhon chama de espontâneo, e que se torna mais complexo

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à medida que os grupos se associam em coletividades, estabelecendo relações de troca e de comunicação.

O Estado demarca a passagem do poder imanente da coletividade para a organização da força que se estabelece politicamente do exterior, como amplia-ção da autoridade do chefe, da família e da comunidade. Ampliaamplia-ção que se torna possível quando a dominação pela força é transmutada em autoridade legítima, por sangue ou conquista, pelo pensamento religioso. Primeiro o mis-ticismo da religião, no argumento que molda a história da humanidade a uma lei que estabelece seu aperfeiçoamento até um estado final de superação de todos os conflitos, um juízo final. Com ele, o misticismo da razão, aquele da livre decisão do contrato originário em nome do bem comum, entendido como superação de um suposto primeiro estado selvagem. Em ambos casos, trata-se do julgamento metafísico das diferenças, decretadas assim como desigualdade natural anterior ou permanente, essencial e necessária à sociedade. A filosofia política, ao consagrar a hipótese do governo como única garantia diante das desigualdades, de forças e de fortunas, transmuta o poder, que de fato imanente ao grupo social passa a ser princípio transcendente, diferenciado do grupo. Numa palavra, o poder passa a funcionar como uma abstração.

Em 1856, Proudhon escreve, como resposta à biografia que dele fizera Eugéne de Mirecourt, Da justiça na Revolução e na Igreja (1990a; 1990b; 1990c; 1990d). Obra em quatro volumes, que equaciona a justiça com o pensar da filosofia, da história, da política e da economia, investindo detalhadamente contra a transcendência que é própria à religião. Quando é publicada, a obra anota Cuvillier (1986), em 1858, é imediatamente censurada e recolhida, e Proudhon é condenado a três anos de prisão, o que o leva ao exílio na Bélgica, onde publica uma nova edição em 1860.2 No quarto estudo de Da justiça, dedicado ao Estado, Proudhon problematiza a filosofia política em Platão, Aristóteles, Spinoza, Rousseau e Maquiavel. A ideia que provoca a análise é a da desigualdade.

Assim, a filosofia política, desde Platão, funda-se no pressuposto da desi-gualdade: a desigualdade de condições e de fortunas, sobre a qual o Estado se 2. Que é a que se reproduz na edição francesa, organizada por Michel Serres, e é utilizada aqui.

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torna indispensável ou, mais do que isso, inquestionável. Mas qual é a lógica que possibilita o pressuposto? “A maior das divindades antigas, diante da qual todas as outras, como as simples criaturas, abaixam a cabeça, é o Destino,

Fatum...” (PROUDHON, 1990b, p. 585). O destino é o primeiro e último motivo

que a religião e a filosofia atribuem a todas as coisas. É a ideia de destino que inscreve um ponto final depois da desigualdade, abrindo espaço para a opres-são que deverá controlar a revolta, corolário dessa lógica. A humanidade adora o destino, diz Proudhon, e, na filosofia, o pensamento secunda essa adoração, dissimulada por séculos de razão.

Da adoração do destino decorre a ideia que, de Platão a Rousseau, esta-belece a instabilidade como inerente ao Estado. Como em Aristóteles, para quem a desigualdade torna o Estado fatalmente instável, sendo a causa pri-mordial de todas as revoluções: o problema político cristaliza-se na contenção da revolta. “Desigualdade de condições, instabilidade no Estado: eis então, em duas palavras, depois de Aristóteles, o ponto essencial da política e a chave da história. Eis o decreto do destino, e esse decreto é inalterável” (Ibid., p. 589).

Ao entender a desigualdade como uma lei natural da sociedade, a filosofia política conclui pela necessidade do Estado, buscando as formas que melhor minimizem a instabilidade que lhe seria própria. Assim, a teoria da instabili-dade política eterniza o Estado: supõe um estado de subversão permanente, entendendo a desigualdade como uma lei a um tempo natural e social, para torná-la uma lei de direito.

Dessa metafísica, dada a priori pelo julgamento da desigualdade, decorre uma longa tradição, na qual filósofos e legisladores se mostram unânimes. A história se desenvolve em consequência: o sistema da razão de Estado, que não é outro que o sistema do Fatum, motivado pelo princípio de uma desigualdade puramente hipotética, regeu todos os povos antigos; ele rege os modernos (

PROUDHON

,

1990b,

p. 596).

E ainda, a desigualdade como princípio de sociabilidade condena o Estado a naufragar de fracasso em fracasso, de maneira que a filosofia política se ocu-pará sistematicamente das maneiras de evitar ou demorar esses fracassos: como,

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diante dos perigos internos e externos, uma determinada forma de Estado pode perdurar? É uma pergunta chave da política, que direciona o problema para a limitação do poder exercido pelo Estado, não para a garantia da vida e da propriedade dos súditos, mas, antes, para sua própria garantia diante da revolta permanente dos súditos. Vendo-se obrigado sempre a se defender, a tendência do Estado é a concentração de poder, seu próprio fortalecimento como garantia de preservação.

Ao abrir mão do pressuposto da desigualdade, Proudhon desloca o pro-blema para o funcionamento, não mais deste ou daquele governo, mas das relações de poder que fazem funcionar o Estado. Para as relações que fazem funcionar a obediência ao Estado, e a desobediência circunscrita à forma do Estado. Em suma, não é a essência do poder que está em jogo, mas seu funcio-namento, que atravessa não só as relações sociais, mas também o pensamento. Desde sua primeira memória sobre a propriedade, Proudhon não cessará de iniciar sua insubmissão com um método, um olhar que não reproduza aquilo que lhe interessa interromper.

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A Academia de Besançon abriria, em 1839, um concurso sobre o tema “Da utilidade da celebração do domingo”. Proudhon concorre e, vencendo, escreve sua primeira memória sobre a propriedade. Além de provocar incô-modos, Proudhon apresenta, como lembra Cuvillier (1986), algumas das ideias que percorrerão seus escritos: “(...) designava a propriedade como ‘o último dos falsos deuses’ e declarava que ‘a igualdade de condições’ era conforme à razão porque ‘o direito de viver e de se desenvolver é igual para todos’” (1986, p. 25-26).

Em junho de 1840 é publicado O que é a propriedade? Investigações sobre

o princípio do direito e do governo (1983), sua segunda e mais célebre memória

sobre a propriedade. Célebre, talvez, pela conclusão apresentada no início: a propriedade é o roubo. Encontra-se no livro uma análise da política e da justiça pela problematização da economia. Na carta dirigida à Academia, que prefa-ciava a primeira edição, Proudhon afirma, de cara, que a finalidade da obra é a aplicação do método aos problemas filosóficos, colocando-se fora, na análise,

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do jogo da discussão ideológica — que por certo descreve, nesse mesmo pre-fácio, como tedioso e inútil.

Proudhon se demora numa reflexão sobre o método. Esse cuidado e esse interesse pelo método de análise acompanhará Proudhon ao longo de seus trabalhos. Percebe-se um pensar interessado em libertar o olhar dos pressu-postos metafísicos, das leis e das categorias, entendidos como formas estáticas e arbitrárias de interpretação e teorização, que mantêm a filosofia circunscrita à afirmação e preservação da autoridade. O absoluto, no pensamento, e o auto-ritarismo, na política, serão correlatos nas análises de Proudhon.

É inquestionável entre os modernos psicólogos, diz Proudhon, a afirmação de que o espírito, se não é dotado de ideias inatas, o é, ao menos, de formas inatas. De tal modo que da concepção do tempo e do espaço deriva-se a noção de causalidade, que delimita o pensamento entre certos princípios, fora dos quais a razão nada pode. Esses princípios, axiomas do entendimento, as ideias de substância, de modo, de número, de relação etc.,

(...) esses tipos fundamentais aos quais se adaptam todos os nossos juízos e todas as nossas ideias, e que nossas sensações não fazem mais do que pôr em evidência, são conhecidos na ciência com o nome de categorias. Sua existência primordial no espírito está na atualidade demonstrada; só falta estabelecer o sistema e fazer uma exata relação delas. Aristóteles enumerava dez; Kant elevou seu número a quinze; Cousin as reduziu a três, a duas, a uma; e a incontestável glória desse sábio será, se não ter descoberto a ver-dadeira teoria das categorias, ter compreendido ao menos melhor do que nenhum outro a grande importância dessa questão, a mais transcendental e talvez a única de toda a metafísica (PROUDHON, 1983, p. 32-33).

Diante disso, Proudhon dispensa as ideias inatas e considera a metafísica de Kant ainda mais distante da realidade do que a de Aristóteles. Entretanto, não se trata então de realizar uma crítica da razão. E se bem se deterá nessa crítica repetidas vezes em outros escritos, aqui aceitará a hipótese de que “(...) nossas ideias mais gerais e mais necessárias, como as do tempo, espaço,

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substância e causa, existem primordialmente no espírito, ou que, pelo menos, derivam imediatamente de sua constituição” (Ibid., p. 33).

Abandonada a problematização no território das teorizações filosóficas, Proudhon investe num sutil deslocamento que potencializa o problema do método como problema político: com demasiada frequência desconsidera--se o hábito como uma segunda natureza, que predetermina, tanto quanto as categorias filosóficas, um olhar sobre a realidade pautado também pela forma categórica, resultando em juízos desprovidos de qualquer objetividade.

De sorte que julgamos não só segundo as leis eternas e absolutas de nossa razão, mas também conforme as regras secundarias, geralmente equivoca-das, que a observação das coisas nos sugere. Essa é a fonte mais fecunda dos falsos preconceitos e a causa permanente, e quase sempre invencível, de uma multidão de erros (Id.).

Dessa maneira, Proudhon observa um movimento no entendimento que vai da indução — quando a interpretação se fundamenta nas aparências — à necessidade de estabelecer as causas — quando a interpretação leva aos princí-pios cada vez mais gerais —, e que, tanto nas ciências físicas quanto no pensar sobre a sociedade, submete-nos às decepções da aparência e à influência da espontaneidade e do costume. Mas se, por exemplo, a força de gravidade não deixa de ser exercida pela interpretação que se faça de sua ação, os juízos da razão sobre a sociedade preservam relações nefastas ao seu desenvolvimento. Desenvolvimento que Proudhon equacionará com as ideias de justiça, equi-dade e liberequi-dade.

Em suma, o olhar fundado sobre o juízo da razão que gira sobre si mesma, por princípio e por hábito, dirige-se contra o Outro do Mesmo, no ancestral debate entre verdades, deixando intacta a própria razão, como um além-mundo superior a qualquer dúvida. Deslocamento para a política: “Tanto repugna à humanidade alterar os costumes dos antepassados, mudar as leis estabeleci-das pelos fundadores estabeleci-das cidades e confirmaestabeleci-das pelo transcurso dos séculos!” (PROUDHON, 1983, p. 36).

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Proudhon não cessará de procurar pontos-mortos no pensamento: lá onde o pensamento e o tempo assentaram uma verdade que se sobrepõe justamente ao pensamento e ao tempo dimensionados como atualidade, lá onde um fato se transmuta em lei social, onde se naturaliza o acidente, é lá que Proudhon instaurará uma análise. O problema da desobediência, em Proudhon, será antes um problema de pensamento, de método e de análise, do que de ação. Em seu olhar sobre o mundo, como gesto político, ele não diferenciará nem de suas ideias nem de sua existência.

As interrogações sobre a propriedade, sobre Deus, sobre a justiça, sobre a revolução, sobre o lucro, sobre a usura, sobre o governo, ou sobre a desigual-dade não são o resultado daquelas sobre a filosofia, a teologia, a economia, a política, a ciência ou, numa palavra, o pensamento: tudo isso funciona em composição. O cuidado e o detalhe não se circunscrevem ao embate teórico, quanto mais ao ideológico: é na vida que o pensamento pode movimentar o que se diz cristalizado. Trata-se de provocar: a provocação em lugar do con-vencimento. E a vida não é uma abstração: entre suas linhas, Proudhon deixa também sua vida vazar.

Todos os homens são iguais e livres: a sociedade, por natureza e destino, é autônoma, como se disséssemos ingovernável. Estando determinada a esfera de ação de cada cidadão pela divisão natural do trabalho e pela esco-lha que se faz de uma profissão, as funções sociais combinadas de maneira a produzir um efeito harmônico, a ordem resulta da livre ação de todos: não há governo. Aquele que puser sua mão sobre mim para me governar é um usurpador e um tirano: eu o declaro meu inimigo (PROUDHON, 1947, p. 33).

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Em O que é a propriedade? (1983) Proudhon pensará a justiça como o estudo das implicações políticas da propriedade no funcionamento da autori-dade no governo. Dimensionará a proprieautori-dade como o princípio do governo e

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suas instituições: se a propriedade surge com o governo e dele é indissociável, é necessário se perguntar como funciona este princípio, como se torna válido, sobre quais ideias se apoia, quais argumentos e quais jogos de forças lhe dão efetividade. Em suma, se a existência da propriedade é correlata à existência do governo, interessa à análise política encontrar as ideias gerais, os princípios que a naturalizam na sociedade.

O que está em questão é a justiça que estabelece a propriedade como diferenciação natural, que a institucionalização política prolonga, no interior do Estado, como garantia do privilégio na administração da desigualdade. Se o autoritarismo na propriedade se acopla à autoridade política sobre a desi-gualdade, percebe-se, em Proudhon, uma correlação entre o econômico e o político, mas não uma predeterminação, como observa Ansart (1972), pois o que Proudhon explicita é a forma política da relação econômica.

A propriedade, então, é um roubo, uma arbitrariedade, e é, portanto, injusta. Mas o pensamento, declarando natural, isto é, justa, a desigualdade que decorre da arbitrariedade da apropriação, entende a propriedade como um direito, que o Estado deve defender. E de tudo isso resulta que primeiro na propriedade e depois no governo acontece uma mesma relação política autoritária, a imposição legal do privilégio leia-se: da vontade de alguns sobre muitos. Dessa maneira, ao pensar o governo com a propriedade, Proudhon problematiza a justiça.

À consagrada afirmação de que a propriedade é um direito, civil ou natural, Proudhon opõe um absurdo: ela é o roubo. Ladrão e proprietário, opostos quase atávicos, funcionam como opostos arbitrariamente determina-dos. Por onde for examinada logicamente, seja pela ocupação, pelo trabalho, pela herança, ou pela justiça, pela igualdade ou pela equidade, a propriedade é negada. O questionamento sobre a instituição da propriedade, ao negar, na análise, e ao levar ao absurdo, na conclusão, a ideia mesma de sociedade tal como ela funciona, seria um atentado lógico geral, o fim da velha sociedade, diz Proudhon, o fim do sistema capitalista.

Cabe, então, uma pergunta também lógica: não sendo a propriedade um direito, mas uma arbitrariedade, instituindo, dessa maneira, pela força e pelo

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privilégio, a desigualdade, e, com isso, estabelecendo a necessidade do governo sobre todos, para a defesa de alguns contra muitos, sendo, em suma, o funda-mento do autoritarismo, como ela funciona e se conserva? Ou ainda: o que faz com que todos aqueles (quase todos) que se vêm submetidos aos seus efeitos de dominação não se revoltem contra esse princípio?

Em O que é a propriedade? (1983) Proudhon também apresentará uma análise da revolução. E essa análise, num primeiro momento, leva de volta àquele sutil deslocamento político do método: leva de volta ao problema do hábito, da reverência ao antigo. Assim, as revoluções “(...) apenas são eficazes em derrocar os princípios mais modernos, mas confirmam os mais antigos” (1983, p. 36). Se não é, então, pela revolução que se derrocam os princípios mais antigos, aqueles que conservam a ordem que deveria ser interrompida, será pela análise que esses princípios serão problematizados. Enfim, qual é, portanto, o princípio que, silenciado pela reverência ao antigo, garante a conservação da ordem justamente onde ela faz funcionar o autoritarismo de todos os governos, e que se articula com a desigualdade, o pauperismo e a instabilidade?

A primeira hipótese levantada será a religião. O fato da crença em Deus se articula, de maneira consistente, com a razão: “Deus é para a humanidade um fato tão primitivo, uma ideia tão fatal, um princípio tão necessário como para o nosso entendimento são as ideias categóricas de causa, substância, de tempo e de espaço” (Ibid., p. 37). Trata-se de saber no que acredita a humani-dade quando acredita em Deus.

Proudhon descreve uma sequência lógica: o antropomorfismo e a idola-tria são manifestações de uma inteligência primitiva da humanidade e, com o desenvolvimento dessa inteligência, a tendência é que o pensamento se dis-tancie cada vez mais daquelas manifestações. Não é aqui que se encontra o problema da religião. Não é nesse percurso do conhecimento, que vai da idolatria à ciência, que a religião passaria a ser um problema social. Mas sim quando o homem, depois de ter inventado Deus a sua imagem e semelhança, fez de Deus sua propriedade e propriedade do Estado. Desde então, segundo Proudhon, o problema será a corrupção dos costumes pela religião, os ódios religiosos e as guerras santas. Mesmo sem resolver o problema, com outro

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movimento do pensamento será instaurada a liberdade de cultos e a separa-ção entre o espiritual e o temporal. Depois disso, é evidente que se as leis e as instituições não dependerão mais da religião.

Pergunta-se então: o que há de mais antigo que o sentimento religioso? “O próprio homem, isto é, a vontade e a consciência, o livre arbítrio e a lei, colo-cados em perpétuo antagonismo. O homem vive em guerra consigo mesmo” (Ibid., p. 38). Quais a explicações disso? A primeira, novamente, religiosa: o pecado original, que condena a humanidade ao erro, à ignorância e à miséria, supondo o mal como essencial e necessário. Mas essa explicação não é própria, diz Proudhon, somente aos teólogos: dela compartilham os filósofos mate-rialistas, graças ao pressuposto de uma eterna tendência da humanidade ao aperfeiçoamento. Assim, segundo o materialismo, todos os problemas sociais, do pauperismo ao crime, respondem a uma condição essencial da sociedade, a uma natureza social, contra a qual não cabe a revolta.

Ao afirmar que o aperfeiçoamento da sociedade como uma lei natural é o pressuposto que faz equivaler a filosofia materialista à teologia, Proudhon acena para aquela já mencionada problematização que abrirá a Filosofia da miséria (2007a; 2007b), e que descreve seu interesse em desmontar algumas opiniões tornadas verdade, por força da necessidade da razão de se opor ao pensamento religioso, e arraigadas, por força de hábito: a hipótese de Deus.

A ideia de Deus, diz Proudhon, é um ato de fé do pensamento coletivo, e não uma concepção individual. E o funcionamento da sociedade não atesta nem a soma, nem a síntese e nem a composição dos indivíduos, mas é de outra índole, que Proudhon caracteriza pela espontaneidade. E é nessa espontanei-dade social, muito mais visível nos seus efeitos do que em seu princípio, que Proudhon buscará o surgimento e desenvolvimento da ideia de Deus. Mas já que a moderna filosofia da história repete a sentença de uma força providen-cial que preside a história da humanidade, trata-se não só de pensar de que maneira surge a ideia de Deus, mas também como permanece e se renova na racionalidade filosófica.

Na história da ideia de Deus, o pensamento que percebe o funcionamento espontâneo da sociedade produz a ideia de destino, de fatum. Longe de se

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esgotar numa antiguidade distante anterior ao aparecimento da racionalidade que nega sistematicamente a validade da verdade revelada, essa noção de des-tino atravessa a história do pensamento, da interpretação mítica à racional. Se é com a noção de fatum que Proudhon questionará o princípio da desigual-dade natural que justifica, dos filósofos gregos aos modernos, a necessidesigual-dade do Estado, na Filosofia da miséria essa noção possibilitará a análise histórica da ideia de Deus.

O entusiasmo diante da ideia de destino, diz Proudhon, leva o homem a adorar a providência, “(...) que denomina Deus, isto é, vida, ser, espírito, ou mais simplesmente ainda, Eu: pois todos estes vocábulos nas línguas antigas são sinônimos e homófonos” (PROUDHON, 2007a, p. 15). Assim, ao nomear Deus, o ser essencial, os homens inventaram um Eu, que resolve pela trans-cendência as limitações do pensamento e que depois resolverá pela razão as limitações da transcendência. Daí que os hebreus, que inventaram, segundo Proudhon, o mais pessoal e o mais voluntarioso de todos os deuses, o tenham chamado Ie-hovah, Eu sou Eu, o ser.

Deus aparece ao homem, portanto, como um eu, como uma essência pura e permanente que se põe diante dele assim como um monarca diante de seu servidor e que se exprime ora pela boca dos poetas, dos legisladores e dos adivinhos, musa, nómos, numen; ora pela aclamação popular Vox populi

vox Dei (Ibid., p. 16).

O Eu essencial que o pensamento chama de Deus fala aos homens pela musa dos poetas antigos, que corresponde ao nómos, usos, costumes e máximas, dos legisladores, e ao numem, a divindade, dos adivinhos, e fala também pela voz do povo. Desde então, o pensamento não cessa de equacionar esse pro-blema político instaurado sobre o Eu essencial da humanidade. Encontra-se aqui, observa Proudhon, uma primeira manifestação da razão universal. Mas o que é a razão universal?

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(...) a razão universal não é dada na razão individual, em outros termos, o conhecimento das leis sociais ou a teoria das ideias coletivas, embora dedu-zida dos conceitos fundamentais da razão pura, é no entanto totalmente empírica e nunca pôde ser descoberta a priori por meio da dedução, da indução ou da síntese. Disso se segue que a razão universal, à qual repor-tamos essas leis como se fossem obra própria dela, a razão universal, que existe, raciocina e trabalha numa esfera aparte e como uma realidade distinta da razão pura, da mesma forma que o sistema do mundo, embora criado segundo as leis da matemática, é uma realidade distinta da matemática e cuja existência não poderia ter sido deduzida unicamente pela matemá-tica, segue-se, digo, que a razão universal é precisamente, em linguagem moderna, aquilo que os antigos chamaram Deus (PROUDHON, 2007a, p. 17). O misticismo que afirma a ideia de Deus repete-se num novo misti-cismo que generaliza essa ideia: a analogia. Assim, o Eu social projeta-se na natureza, torna-se infinito no universo: a indução deificante vai da sociedade a tudo o que existe, transforma-se em gênese, superando todo espaço e todo tempo. Deus passa a ser o criador soberano, do universo e do homem. Mas se o homem deve sua existência a Deus, se precisa de um autor, a divindade precisa do homem, do revelador. E a teogonia, a constatação da superação da onipotência divina pela dependência do homem, libertou a imaginação, diz Proudhon, do espetáculo da natureza, para lhe brindar alguns séculos de con-templação das maravilhas olímpicas.

E depois do seu primeiro exame, que contrapôs a revelação à onipotên-cia, a razão não deixaria de repetir esse gesto, e toda vez que o repete não faz mais do que mostrar que a divindade é sempre um não-sei-quê que nega a existência. Mistério de Deus e da razão, diz Proudhon: em vez de negar Deus, a razão procurará torná-lo racional.

Para tornar o objeto de sua idolatria cada vez mais racional, o crente o des-poja sucessivamente de tudo aquilo que poderia torná-lo real; e depois de prodígios de lógica e de gênio, os atributos do ser por excelência parecem ser

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os mesmos daqueles do nada. Esta evolução é inevitável e fatal: o ateísmo se oculta no fundo de toda teodiceia (PROUDHON, 2007a, p. 18).

A segunda alucinação da humanidade, depois da invenção da ideia de Deus, foi a tentativa de aperfeiçoar essa ideia, ou seja, sua demolição: o segundo movimento na história da ideia de Deus é o ateísmo. Se por força de demons-tração Deus deveria sucumbir, a dissolução da filosofia na religião — processo que a história da ideia de Deus descreve — resulta na delimitação do poder de Deus. O ateísmo, inaugurando a racionalidade filosófica, redimensiona a onipotência como força motriz de tudo o que existe, começo da sequência, racional, das causas e dos efeitos. Por uma comparação que Proudhon chama de trivial, podemos desde então entender Deus como o soberano que reina mas não governa. E logo o gesto cada vez mais deicida do pensamento exigirá a partilha de Deus:

Se eu sou um espírito, um eu sensível e que emite ideias, continua o teísta, também tenho parte na existência absoluta: sou livre, criador, imortal, igual a Deus. Cogito ergo sum; penso, portanto sou imortal: eis o corolário, a tradu-ção do Ego sum qui sum3: a filosofia está de acordo com a Bíblia. A existência de Deus e a imortalidade da alma são dados pela consciência num mesmo julgamento: lá, o homem fala em nome do universo, para o seio do qual transporta seu eu; aqui, fala em seu próprio nome, sem perceber que, entre essa ida e essa vinda, nada mais faz que se repetir (PROUDHON, 2007a, p. 20).

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A análise do pensamento filosófico será desenhada, nos diversos trabalhos de Proudhon, como um investimento contra a noção de absoluto. O absoluto na filosofia funciona mais como forma do princípio de autoridade do que como conceito: forma que o pensamento aplica à argumentação a favor das relações pautadas pela preponderância da ação do princípio de autoridade sobre o de 3. Eu sou quem sou.

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liberdade. Forma, enfim, que dá validade à negação da vida como movimento. Essa negação, segundo Proudhon, será possível apenas no pensamento.

Em Filosofia do progresso (1869), Proudhon se deterá na oposição entre absoluto e progresso — ou cristalização e movimento, unidade e composi-ção... —, na análise do pensamento, para fazê-la funcionar como oposição entre absolutismo e liberdade na análise das relações políticas. Esse ponto de vista sobre a política, que opõe o absolutismo, ou negação do movimento, à liberdade, ou sua afirmação, se intensificará em Do princípio federativo (2001), quando Proudhon operará com os princípios de autoridade e de liberdade como únicos da política, de cujo confronto resultam todos os governos. E então a oposição analítica servirá para afirmar o federalismo descentralizado frente à centralização unitária — tratando-se, aí, de Estados federais.

Encontra-se nisso um tom, um estilo, em Proudhon: as oposições anti-nômicas funcionam como movimento analítico que se distingue das soluções sintéticas unificadoras, pela afirmação do movimento como confronto de for-ças, e permitem a crítica à pacificação absolutista, que é sempre a contenção do confronto pela legitimação metafísica de uma das partes. Trata-se de um cuidado de método que vai da análise do pensamento à analise da história e das relações sociais como anarquia que desmonta autoritarismos, simultaneidade do pensamento que cristaliza o passado — como lei natural — ou o futuro — como utopia — e das práticas que cristalizam o presente — como governo sobre todos, o Estado e suas instituições.

Enfim, essa anarquia de pensamento recusa demarcações, de tempos ou de temas, nos escritos de Proudhon. Ainda que, como Ansart (1972), seja possível sugerir movimentos no interior da obra, isolar os temas — economia, política, religião, justiça... — em pontos sucessivos de uma linha explicativa, lógica ou temporal, seria um descuido, se não um apaziguamento, de qualquer maneira uma negação de sua potência. Aplicar uma teorização totalizadora a um pen-sar que mergulha no movimento para experimentar liberdades diante de tudo o que se conserva pelo absolutismo é de cara uma impossibilidade, depois da qual só resta a negação. Não que Proudhon obrigue a uma leitura, antes de mais nada porque isso seria uma interpretação a gesto do pensamento que

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ele mesmo faz equivaler à revelação, mas também porque as experimentações analíticas, possíveis, também segundo Proudhon, pelas combinações estabe-lecidas pelo ponto de vista, são tão diversas quanto diversos são os interesses do pensar, isto é, sempre uma atualidade, uma composição.

Assim, a crítica à política é também indissociável da crítica à racionali-dade. A crítica à política desmonta a continuidade do governo unitário como preservação do autoritarismo que independe de nomes, e afirma o federalismo descentralizado, político e econômico, como preponderância da ação do prin-cípio de liberdade sobre o de autoridade. E a crítica à racionalidade descreve a apropriação pela filosofia da razão mítica que funda o Eu, ser essencial metafí-sico, no próprio homem, na própria razão. Com uma e com a outra, Proudhon afirma um pensar que anarquiza o pensamento ao investir na análise como experimentação que prescinde da interpretação. Uma e outra: a federação frente à centralização política, a análise pelas antinomias frente à centralização teórica.

Referências

ANSART, Pierre. Marx y el anarquismo. Barcelona: Barral Editores, 1972.

CUVILLIER, Armand. Proudhon. Trad. María Luisa Diez-Canedo. México D.F.: Fondo de Cultura Económica: 1986.

PROUDHON, Pierre-Joseph. Filosofía del Progreso. Trad. F. Pi y Margall. Madrid: Librería de Alfonso Durán, 1869.

__________. Las confesiones de un revolucionario para servir a la historia de la revolución de febrero de 1848. Trad. Diego Abad Santillán. Buenos Aires: Americalle, 1947 [1849].

__________. El principio federativo. Madrid: Aguilar, 1971 [1863].

__________. Qué es la propiedad? O investigaciones sobre el principio del derecho y del gobierno. Barcelona: Ediciones Orbis, 1983 [1840].

__________. De la Justice dans la Révolution et dans la’Eglise. Tomo I. Paris: Fayard, 1990a [1860].

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Fayard, 1990b [1860].

__________. De la Justice dans la Révolution et dans la’Eglise. Tomo III. Paris: Fayard, 1990c [1860].

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__________. Do Princípio Federativo. Trad. Francisco Trindade. São Paulo: Nu-Sol/ Imaginário, 2001.

__________. Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria. Tomo I. Trad. Antonio Geraldo da Silva e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2007a [1846]. __________. Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria. Tomo II. Trad. Antonio Geraldo da Silva e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2007b [1846].

Recebido: :05/11/2018 Aceito: :30/03/2019

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