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O lugar das línguas africanas nos discursos sobre a brasilidade linguística

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Academic year: 2021

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O LUGAR DAS LÍNGUAS AFRICANAS NOS DISCURSOS SOBRE A BRASILIDADE LINGUÍSTICA

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Linguística.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Cristine Görski Severo

Florianópolis 2018

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária

da UFSC.

Eltermann, Ana Cláudia Fabre

O lugar das línguas africanas nos discursos sobre a brasilidade linguística / Ana Cláudia Fabre

Eltermann ; orientadora, Cristine Görski Severo, 2018.

175 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Linguística,

Florianópolis, 2018. Inclui referências.

1. Linguística. 2. Línguas africanas. 3. Língua portuguesa. 4. Africanidades. 5. Brasilidade. I. Severo, Cristine Görski. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em

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À minha orientadora, Cristine, por abrir novos caminhos na minha trajetória acadêmica, que me permitiram refletir, dialogar e questionar. Por ser minha inspiração e exemplo de força e leveza na academia, por ser uma pesquisadora e professora comprometida e humana. Pelas leituras e observações riquíssimas que fez sobre este trabalho, bem como pela positividade e pelos incentivos feitos durante esse percurso.

Aos meus pais, Maurício e Regina, pelo apoio incondicional em tudo o que já fiz na vida, sempre acreditando e confiando em mim. Por me incentivarem a enfrentar os desafios, mas também por serem meu refúgio. Ao meu irmão, Vitor, pelas piadas, que tornaram a escrita mais leve, pelas conversas e pela amizade. Nenhum agradecimento vai conseguir dar conta do amor que sinto por vocês.

Ao Vinícius, pela paciência de ouvir – praticamente todos os dias – comentários sobre esta dissertação, além de me ajudar sendo meu consultor bibliográfico, meu psicólogo e meu alento. Agradeço pela paciência, pelas mensagens motivacionais e por acreditar que tudo vai dar certo.

Aos meus amigos, que tornam minha vida mais feliz. À Suzy, pela parceria desde a graduação, nos estágios, nas aulas de latim, nas aulas de dança, nos cafés e nos bares, sempre me fazendo rir. À Mary, também pela dança, pelas palavras doces, pelo cuidado e por fazer o simples tão bonito. Ao Cláudio, por me fazer ver a vida de modo mais leve, por me inspirar paz e confiança a cada momento e por me fazer querer sair da zona de conforto. À Érica, pela parceria nas disciplinas, nas viagens e nos desabafos e por ser essa pessoa maravilhosa. À Hágatha, pela amizade desde os tempos de escola, por ser minha inspiração de alegria, de vontade e de coragem. À Manu e à Nina, também pela amizade antiga, que resiste à distância. À Renata, pelos momentos de conversa, de descontração e de estudo. À Ailê, leonina como eu, pela ajuda mútua e pelo carinho.

Aos amigos e colegas da pós-graduação, em especial do grupo de Políticas Linguísticas Críticas, Carla, Charlott, Chris, Clóvis, Cristian, Ezequiel, Ezra, Helô, Nathália, Sara, Vanessa e Xandy, pelas trocas, conversas, motivações e pelos momentos de descontração. Às colegas/amigas do Varsul, por me acolherem e me “adotarem” também.

Aos meus professores da graduação e da pós-graduação, pelas aulas, pelas leituras e pelos ensinamentos.

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Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!

Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. O Brasil não nos quer! Está farto de nós!

Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros? (Hino Nacional, Carlos Drummond de Andrade, 1934)

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A pesquisa consiste em uma análise histórico-política dos discursos linguísticos sobre as línguas africanas e a língua portuguesa no Brasil. Procuramos, especialmente, o lugar das africanidades nesse percurso histórico, a fim de rastrear a sua presença ou ausência na construção da brasilidade. Assim, nosso objetivo está em perceber como as línguas foram tomadas discursivamente no processo de invenção da uma nação brasileira. Para tanto, percorremos os diferentes contextos que permitiram a emergência desses discursos, desde o período colonial até o final do século XX. Abordamos, assim, movimentos literários e artísticos, como o romantismo e o modernismo, as teorias raciais, tanto biológicas como culturalistas, e o papel dos intelectuais nesses diferentes momentos históricos. A metodologia da pesquisa, dessa forma, compreende uma contextualização histórica sobre a invenção discursiva da ideia de nação e língua brasileiras e uma análise de discursos das esferas intelectual e acadêmica, sinalizando para o processo de (in)visibilização das línguas africanas no Brasil.

Palavras-chave: Línguas africanas. Língua portuguesa. Africanidades. Brasilidade. Discursos.

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ABSTRACT

The research consists of a historical-political analysis of the linguistic discourses about the African languages and the Portuguese language in Brazil. We look especially for the place of Africanities in this historical journey, in order to trace their presence or absence in the construction of Brazilianness. Thus, our goal is to understand how languages were taken discursively in the process of invention of a Brazilian nation. For this purpose, we cover the different contexts that allowed the emergence of these discourses, from the colonial period to the end of the twentieth century. We approach literary and artistic movements, such as romanticism and modernism, racial theories, both biological and cultural, and the role of the intellectuals in these different historical moments. Thus the research methodology comprises a historical contextualization about the discursive invention of the idea of Brazilian nation and language and an analysis of discourses of the intellectual and academic spheres, signaling the process of (in)visibilization of African languages in Brazil.

Keywords: African languages. Portuguese language. Africanities. Brazilianness. Discourses.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 15

1COLONIZAÇÃO E PÓS-INDEPENDÊNCIA: A EMERGÊNCIA

DO NACIONALISMO ... 25 1.1A INVENÇÃO LINGUÍSTICA EM ÁFRICA E NO BRASIL ... 25 1.2 A COLONIZAÇÃO NO BRASIL: OS MISSIONÁRIOS, A ESCRAVIZAÇÃO E A POLÍTICA POMBALINA ... 31 1.3 OS DISCURSOS SOBRE AS LÍNGUAS NO PERÍODO COLONIAL: OS REGISTROS LEXICAIS ... 40 1.4MOVIMENTO ROMÂNTICO BRASILEIRO E A POLÊMICA DA NORMA: NACIONALISMO, INDIANISMO E NORMATIZAÇÃO 42

2 O FINAL DO SÉCULO XIX: AS TEORIAS

RÁCIO-BIOLÓGICAS ... 57 2.1 A TERCEIRA FASE DO ROMANTISMO BRASILEIRO: A POESIA DE CUNHO SOCIAL ... 57 2.2 O ELEMENTO NEGRO COMO QUESTÃO: AS MUDANÇAS NO FINAL DO SÉCULO XIX ... 62 2.3 AS PESQUISAS DE SÍLVIO ROMERO (1851-1914): NEGROS COMO “OBJETO DE CIÊNCIA” ... 73 2.4AS PESQUISAS DE NINA RODRIGUES (1862-1906): O PAPEL DA CIÊNCIA MÉDICA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS ... 82

3 O INÍCIO DO SÉCULO XX: MODERNISMO,

CULTURALISMO E ERA VARGAS ... 95 3.1O MOVIMENTO MODERNISTA: A BRASILIDADE NA POESIA

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3.2 A INFLUÊNCIA AFRICANA NO PORTUGUÊS: RENATO MENDONÇA E JACQUES RAIMUNDO ... 107 3.3 AS PESQUISAS DE GILBERTO FREYRE: O ELOGIO DA MESTIÇAGEM ... 110 3.4 OUTRAS PESQUISAS IMPORTANTES REALIZADAS NAS DÉCADAS DE 1930 E 1940 ... 119

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3.5 O NACIONALISMO EM GETÚLIO VARGAS: A INVENÇÃO DO POPULAR... 120 4 AS TENDÊNCIAS APÓS 1945: UNIDADE LINGUÍSTICA, CRIOULIZAÇÃO E DERIVA LINGUÍSTICA ... 131 4.1 A UNIDADE LINGUÍSTICA EM CHAVES DE MELO, SILVA NETO E ELIA ... 131 4.2OS ESTUDOS SOBRE AS LÍNGUAS AFRICANAS APÓS 1970: ALGUMAS TENDÊNCIAS ... 150

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 159 REFERÊNCIAS ... 163

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INTRODUÇÃO

Nesta dissertação, procuramos perceber como as línguas africanas e a língua portuguesa foram tomadas discursivamente, ao longo do tempo, enquanto elemento fundamental no processo de invenção de uma nação brasileira. Desse modo, buscamos encontrar o lugar, especialmente, conferido às africanidades nesse percurso histórico, a fim de rastrear a sua presença ou ausência na construção desse ideal de nação. Nosso enfoque mais amplo, portanto, é o papel conferido à língua portuguesa na construção da brasilidade, fazendo emergir o português brasileiro; e, de forma mais específica, averiguar o lugar conferido às línguas africanas no processo discursivo de invenção da brasilidade linguística. Para isso, propomos uma análise histórico-política dos discursos linguísticos sobre essas línguas e sua influência no português falado no Brasil.

Os estudos sobre as africanidades no Brasil, sobretudo no que se refere aos estudos linguísticos, demoraram a receber a devida importância e destaque na produção intelectual brasileira. Até o século XIX, alguns trabalhos começaram a surgir, mas foi somente no século XX, principalmente a partir da década de 1930, que foram publicadas as pesquisas que realmente inauguraram os debates sobre a temática. Um desses trabalhos foi A influência africana no português do Brasil, de Renato Mendonça, no qual, no prefácio da sua 3ª edição, Rodolfo Garcia chama atenção para o fato de que “os estudos de linguística africana não têm sido cultivados no Brasil como sua importância está a pedir” (GARCIA, 2012, p. xiii).

Mesmo antes disso, muitos estudiosos já alertavam para a necessidade das pesquisas sobre línguas africanas no país, conforme podemos perceber a partir da leitura do primeiro capítulo dos Estudos

sobre a poesia popular do Brasil, de Sílvio Romero (1888a)1:

É uma vergonha para a sciencia no Brazil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo das linguas e religiões africanas.

Quando vêmos homens, como Bleek, refugiarem-se dezenas e dezenas de annos nos centros da Africa sómente para estudar uma lingua e colligir uns mythos, nós que temos o material em casa, que temos a Africa em nossas cozinhas, como a

1 Procuramos, ao longo desta dissertação, preservar a escrita original dos textos

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America em nossas selvas, e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido neste sentido! É uma desgraça.

Bem como os portuguezes estanciaram dois seculos na India e nada alli descobriram de extraordinario para a sciencia, deixando aos inglezes a gloria da revelação do sanscrito e dos livros brahminicos, tal nós vamos levianamente deixando morrer os nossos negros da Costa como inuteis, e iremos deixar a outros o estudo de tantos dialectos africanos que se fallam em nossas senzalas! O negro não é só uma machina economica; elle é antes de tudo, e máo grado sua ignorancia, um objecto de sciencia.

Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques, benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçanges... vão morrendo. O melhor ensejo, pode-se dizer, está passado com a benefica extincção do trafico. Apressem-se, porém, senão terão de perdel-o de todo. (ROMERO, 1888a, p. 10-11).

Como podemos observar, Sílvio Romero pede que se tenha pressa nas pesquisas sobre a população africana, pois com o fim do tráfico a oportunidade de estudo seria reduzida, devido à morte, ao longo dos anos, dos povos presentes no país. O pesquisador considera uma vergonha o fato de, em sua época, não haver estudos sobre as línguas e religiões africanas. Até 1888, nenhum estudo linguístico sistemático havia sido feito sobre o assunto, havendo no máximo algumas palavras de origem africana registradas em dicionários do português.

Em História da literatura brasileira (1888b), Sílvio Romero atribui esse silêncio nos estudos sobre os africanos no Brasil a um preconceito. De acordo com Romero, não havia pesquisas sobre a temática pelo medo que os estudiosos tinham de, ao mostrar simpatia pelo dito “elemento negro”, passarem por descendentes de raça africana, ou seja, de serem confundidos com mestiços. Assim, afirmou: “É preciso acabar com isto; é mister deixar de temer preconceitos, deixar de mentir e restabelecer os negros no quinhão que lhes tiramos: o lugar que a eles compete, sem a menor sombra de favor, em tudo que tem sido, em quatro séculos, praticado no Brasil” (ROMERO, 1888b, p. 75).

Mais tarde, em obra escrita entre 1890 e 1905, mas publicada somente em 1932, Nina Rodrigues, precursor dos estudos africanistas no Brasil, também aponta a dificuldade em torno de sua pesquisa, devido à

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falta de dados e informações – “não me consta já a tivessem tentado no Brasil” (RODRIGUES, 1988 [1932], p. 10) –, de modo que a pesquisa se torna um problema de “natureza complexa em extremo, ainda virgem aqui de contribuições elucidativas, dificílimo de observação num país governado sem estatísticas, demandando investigações em domínios das mais variadas competências” (RODRIGUES, 1988, p. 10). Podemos perceber, pelos apontamentos de Rodrigues, a dificuldade encontrada no acesso aos dados sobre a população africana no Brasil, já naquela época, bem como a escassez de trabalhos sobre o negro no final do século XIX e início do XX.

O atraso nos estudos sobre o negro pode ser explicado pela própria demora na formação de uma rede de instituições do saber no Brasil. Segundo Côrrea (2001, p. 23), foi a partir do começo do século XIX que se formou, no país, uma “classe ilustrada nacional”, a partir da criação de instituições centralizadoras do poder e do saber. Assim, identificamos uma relação entre a emergência de uma elite intelectual brasileira e o interesse por se compreender a contribuição africana no Brasil.

Passados oitenta anos da publicação de Rodrigues, Dante Lucchesi (2012b, p. 47) nos fornece uma explicação para o fato de ainda haver tão poucos trabalhos sobre essa questão:

Até meados do século XX, grandes filólogos brasileiros que se debruçaram sobre o tema, imbuídos da visão conservadora e preconceituosa de superioridade cultural e linguística do colonizador europeu frente às populações indígenas e africanas, procuraram minimizar qualquer interferência desses povos na formação da realidade linguística brasileira.

Como é possível observar, para Lucchesi, essa omissão se deveu ao conservadorismo e ao preconceito em relação às populações indígenas e africanas. Desse modo, a tendência nos estudos linguísticos, muitas vezes, foi a de privilegiar as pesquisas que tomassem a diferenciação do português brasileiro em relação ao europeu pela chave da deriva linguística de Sapir, ao invés de considerar a influência do contato entre as línguas presentes no território. Trataremos dessas duas perspectivas no decorrer do texto.

Emílio Bonvini, ao abordar a relação entre as línguas africanas e o português brasileiro, afirma que ela foi “primeiramente pressuposta, depois afirmada, em seguida matizada ou negada” (BONVINI, 2014, p.

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15), de modo que o tema se tornou alvo de debate no século XX, seja em termos de “influência”, de “semicrioulização” ou de “crioulização”. No entanto, o autor chama atenção ao fato de que essa relação entre as línguas, muitas vezes, foi vista de forma unidirecional, partindo das línguas africanas para se chegar ao português e “encarando-se as primeiras quase exclusivamente em relação à língua portuguesa” (BONVINI, 2014, p. 15). Assim, muitas vezes esses estudos se preocuparam apenas em verificar até que ponto as línguas africanas atuaram enquanto responsáveis pela diferenciação entre português brasileiro e português europeu. Ou seja, interessavam as línguas africanas na medida em que possibilitavam articular uma diferenciação linguística entre português brasileiro e português europeu. Identificamos, ainda hoje, essa retórica fortemente presente nos discursos sociolinguísticos.

Da mesma forma, Yeda Pessoa de Castro (2012b) chama a atenção para o fato de, nos estudos sobre a influência africana no português, esse “elemento africano” ser visto como algo à margem, como se não fizesse parte da identidade cultural e linguística brasileira. Para ela, a própria escrita de “afro-brasileiro”, ao invés de “afrobrasileiro”, já evidencia essa separação, em que o hífen, que isola o prefixo “afro”, opera como um indicativo subliminar dessa tendência. Assim, “destaca-se como se fosse um aparte eventual no processo e não a parte afrobrasileira inscrita em nossa identidade cultural e linguística” (CASTRO, 2012b, p. 16). Além disso, muitas vezes essa influência foi vista “sob um ângulo pejorativo, como um fator potencialmente danoso, suscetível de trazer prejuízo à integridade da língua herdada desde a época dos descobrimentos no século XVI” (BONVINI, 2014, p. 15).

Em semelhante perspectiva, Mbembe (2014) afirma que o termo “África” se refere a um elemento geográfico – um continente – a que se associam um conjunto de atributos, propriedades e mesmo uma condição racial, a que se juntam imagens, palavras, enunciados e estigmas que remetem para “um mundo à parte, do qual não temos responsabilidade, com o qual muitos dos nossos contemporâneos dificilmente se identificam” (MBEMBE, 2014, p. 93). Desse modo, se relaciona à vida de um outro, de pessoas que estão longe, “lá fora”, de forma que se nega a possibilidade de partilhar um mundo comum “entre eles e nós”: é uma política não do semelhante, mas sim da diferença.

Essa visão conservadora e preconceituosa, de acordo com Sônia Queiroz (2002), continua presente. A autora destaca o fato de, apesar de o negro africano, junto com seus descendentes, ser um dos elementos que mais contribuiu para a formação da cultura brasileira, devido aos

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mais de três séculos de tráfico escravo, muitas vezes ele não recebe a apropriada atenção nos estudos da antropologia, história, linguística ou de outras áreas que tratam da cultura, mesmo no século XXI. Conforme afirma a professora e poeta:

(...) é comum entre nós a mentalidade assimilacionista, que privilegia a tradição europeia e relega nossos índios e negros ao plano das simples influências, como se nossa cultura os precedesse, o que, levado às últimas consequências, corresponde a dizer que a civilização brasileira é anterior ao próprio descobrimento do Brasil! (QUEIROZ, 2002, p. 48)

Dessa forma, conforme critica Queiroz, os elementos indígena e africano são utilizados apenas como influenciadores de uma suposta cultura brasileira, anterior a eles. Assim, há a suposição de que existe uma cultura brasileira autônoma e independente da cultura afrobrasileira. Em consonância também com as ideias de Bonvini, percebemos que esses elementos são utilizados apenas como um modo de se chegar aos estudos sobre o português ou sobre a cultura brasileira “pura”, sem de fato considerar os “elementos africanos” como parte integrante do todo.

Yeda Pessoa de Castro (2012b) também chama atenção para esse fato, afirmando que, muitas vezes, obras como a de Renato Mendonça, sobre a influência africana no português, têm menos repercussão no meio científico do que deveriam, devido a esse conhecimento ser considerado como um objeto de pesquisa exclusivo dos africanistas ou dos especialistas em estudos afrobrasileiros. Assim, a influência africana passa a ser vista como algo exterior à ideia de brasilidade, que não deve ser considerada nos estudos em geral.

Alguns poucos pesquisadores hoje se dedicam ao estudo dos falares africanos que resistiram no Brasil. Sônia Queiroz (2002, p. 51), em relação a essas pesquisas, constata que os falares africanos remanescentes “pouca ou quase nenhuma atenção têm merecido da parte de nossos estudiosos”.

Conforme lembra, ainda, Queiroz (2002, p. 52), a documentação oficial do tráfico foi queimada a mando de Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, no final do século XIX. Esse episódio teria contribuído para uma grande carência de informações sobre os africanos trazidos ao Brasil, bem como uma quase inexistência de documentos linguísticos do

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período da escravidão. Evidentemente, os estudos sobre essas comunidades remanescentes, que são núcleos de resistência cultural, se mostram bastante relevantes para o conhecimento da história dos negros no Brasil.

De modo a entender como essas questões apontadas pelos autores apareceram ao longo do tempo, procuramos traçar o percurso histórico dos estudos linguísticos sobre o tema, de modo a discutir sobre as africanidades e sua relação com as línguas no Brasil. Para tanto, fizemos um panorama – centrado em pesquisa bibliográfica – do que consideramos como sendo os principais estudos envolvendo a temática sobre as línguas africanas ou sobre a influência delas no português brasileiro.

Primeiramente, embora esse não seja o nosso foco direto, apresentamos uma breve contextualização da colonização no continente africano e no Brasil, pois acreditamos que ela seja necessária para se entender a história da chegada ou imposição dessas línguas no país. Em seguida, abordamos o período pós-independência, enfocando, principalmente, o movimento literário romântico e a polêmica envolvendo a norma escrita brasileira; para tanto, nos detemos sobre os discursos intelectuais da época. No segundo capítulo, o enfoque recai sobre o final do século XIX, momento de diversas mudanças e da introdução das teorias rácio-biológicas no país, que levaram estudiosos como Sílvio Romero e Nina Rodrigues a escreverem sobre a influência dos negros africanos na língua portuguesa brasileira. O terceiro capítulo, cujo contexto considerado é o início do século XX, trata do movimento artístico modernista e das pesquisas sobre o elemento negro realizadas em especial na década 1930, momento político da Era Vargas. É nesse período que se iniciam os estudos propriamente ditos sobre o negro no Brasil, a partir da publicação tardia do principal livro de Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil (1932), que desencadeou outras diversas pesquisas. O quarto capítulo trata do período pós-Vargas, em que se destacam os estudos que procuram negar a influência das línguas africanas no português e que se colocam a favor de uma unidade linguística brasileira. Apontamos, ainda, por fim, as principais tendências do final do século XX nos estudos sobre as africanidades linguísticas em diálogo com a matriz histórica que as caracterizam.

Dessa forma, a metodologia da pesquisa consistiu em: (i) contextualização histórica sobre a construção e invenção discursivas da ideia de nação e língua brasileiras; (ii) análise de discursos de intelectuais sobre as línguas africanas no Brasil, sinalizando para o seu processo de (in)visibilização na brasilidade linguística. O corpus foi

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constituído por discursos, fundamentalmente, das esferas intelectual e acadêmica. A metodologia utilizada compreende, de forma geral, um levantamento bibliográfico e documental sobre a maneira como a língua portuguesa foi tomada discursivamente enquanto elemento fundamental para a construção de uma ideia de língua e nação brasileiras, apontando para o modo como as línguas africanas participaram ou não desse ideal.

Nosso trabalho se insere na área de políticas linguísticas críticas, que, para Ana Deumert (2016), é um projeto político engajado em superar formas resistentes e diversas de desigualdade linguística, em prol de uma visão que considera a importância da língua na transformação social. Nesse sentido, acreditamos que a área de política linguística não necessariamente implica em agir, ou intervir, diretamente sobre as línguas, mas também, e principalmente, implica em analisar e desconstruir certas narrativas sobre as línguas, que muitas vezes incluem visões desiguais, assimétricas e hierárquicas sobre as línguas e os sujeitos.

Além disso, em consonância com Rajagopalan (2013), acreditamos que a política linguística é uma área que está atrelada à política, ou seja, a uma atividade em que todos os cidadãos possuem o direito e o dever de participar sob condições iguais, independentemente de classe econômica, gênero, idade ou escolaridade. Dessa forma, a política linguística não lida com fatos ou com uma verdade absoluta, mas sim com as narrativas e discursos sobre os ditos “fatos”, com valores de juízo e com opiniões – que podem ser contestadas. O que impera, portanto, no campo das políticas linguísticas são as “expediências de ordem política” (RAJAGOPALAN, 2013, p. 38).

Ademais, consideramos a língua um produto que emerge a partir das práticas sociais (PENNYCOOK, 2010; SEVERO; MAKONI, 2015) e que não pode ser desvinculada dos aspectos sociais, históricos e políticos que a envolvem. Além disso, como Makoni e Pennycook (2016), partimos da premissa de que as línguas, bem como as metalinguagens utilizadas para as suas descrições, são produtos de invenções coloniais e fazem parte de um projeto colonial. Acreditamos, ainda, que as descrições linguísticas constituem uma forma de intervenção social, pois acabam produzindo efeitos sobre a maneira como os falantes representam essas línguas (MAKONI; MEINHOF, 2006). Dessa forma, consideramos que as colonizações europeias, em geral, por meio de uma “vontade de saber” (FOUCAULT, 1999) sobre as línguas, as utilizaram como um dispositivo de controle, delimitando/categorizando sujeitos e exercendo, sobre seus corpos e subjetividades, um domínio violento. Não abordaremos, aqui, os efeitos

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concretos desses discursos sobre os sujeitos, mas consideraremos o modo como as instâncias discursivas acadêmica e intelectual têm contribuído para a construção de dadas narrativas excludentes e segregadoras sobre as heranças linguísticas africanas no contexto linguístico brasileiro.

Percebemos, ainda, que a história do Brasil é marcada pela imposição de uma língua colonizadora sobre outras línguas colonizadas, ou seja, por uma colonização linguística (MARIANI, 2007). Com isso, diversas línguas indígenas e africanas foram delimitadas ou silenciadas, de modo que seus espaços de enunciação foram cada vez mais restringidos. Houve, portanto, um processo de apagamento, em que uma ideologia linguística, por meio da simplificação do campo sociolinguístico, tornou certos sujeitos e suas atividades invisíveis (IRVINE; GAL, 2000).

Assim, partimos do pressuposto de que essas relações, de dominação e resistência, se inserem em uma rede intricada, em que saber e poder (FOUCAULT, 1987) estão relacionados, se constituindo mutuamente:

Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. (FOUCAULT, 1987, p. 27)

Do mesmo modo, concordamos com Velloso (1987), que afirma que há uma relação interligada e complexa entre os intelectuais e o sistema de poder, pois eles comumente se colocaram enquanto agentes da consciência e do discurso. No Brasil, essa prática foi reforçada pela sua estrutura patriarcal e autoritária, bem como pela própria condição de país periférico – que permitiu, muitas vezes, o ideal da representação, ou seja, o falar em nome do outro, com menor capacidade de discernimento e expressão (VELLOSO, 1987).

Dessa forma, buscamos desvelar e questionar alguns desses discursos, pois acreditamos, como Said (2005), que o dever do intelectual deve ser outro.

Quanto ao consenso de uma identidade de grupo ou nacional, o dever do intelectual é mostrar que o

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grupo não é uma entidade natural ou divina, e sim um objeto construído, fabricado, às vezes até mesmo inventado, com uma história de lutas e conquistas em seu passado, e que algumas vezes é importante representar. (SAID, 2005, p. 44) Da mesma forma, concordamos com Glissant (2005) que já não é possível escrevermos de maneira monolíngue, ou defendermos nossas línguas de maneira monolíngue, pois falamos, e sobretudo escrevemos, na presença de todas as línguas do mundo. É necessário, portanto, questionar ideias essencializadas de línguas e de sujeitos.

Esperamos, assim, com este trabalho, desvelar algumas dessas invenções, bem como contribuir para o enriquecimento dos estudos sobre as africanidades linguísticas no Brasil.

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1 COLONIZAÇÃO E PÓS-INDEPENDÊNCIA: A EMERGÊNCIA DO NACIONALISMO

Este capítulo visa fazer uma contextualização, com o objetivo de compreender as condições de emergência dos discursos que envolvem a ideia de brasilidade. Para tanto, foi dividido em três subseções. Na primeira, procuramos discorrer sobre a ideia de língua e nação como invenção, tanto no continente africano como no Brasil, de modo a situar a nossa perspectiva teórica, ainda que de forma ampla e genérica. Na segunda parte, enfocaremos o período colonial brasileiro, buscando compreender as estratégias políticas utilizadas na imposição da língua europeia no país. Na terceira, trataremos do período da primeira fase do movimento romântico brasileiro que, após a Independência, buscava criar e consolidar uma ideia de nação.

1.1 A INVENÇÃO LINGUÍSTICA EM ÁFRICA E NO BRASIL Conforme afirmam Makoni e Pennycook (2016), as línguas, bem como as metalinguagens utilizadas para as suas descrições, são produtos de invenções coloniais, além de serem parte integrante de um projeto colonial cristão, especialmente em se tratando da colonização ibérica. As colonizações europeias, em geral, exerceram um controle violento sobre os territórios colonizados, bem como domínio sobre as pessoas, seus corpos e subjetividades. Nesse contexto colonial, as línguas foram tomadas enquanto dispositivos de controle, de forma a delimitar e categorizar sujeitos. Esta foi uma realidade no continente africano, de forma geral, que acarretou em um processo de invenção de línguas também no Brasil e nos demais países latino-americanos.

Na época das conquistas e das colonizações, intensificou-se na Europa o interesse por estudar e descrever as línguas, surgindo nesse momento os primeiros dicionários e gramáticas feitos a partir dos relatos dos viajantes e de missionários cristãos. Essas duas tecnologias, o dicionário e a gramática, foram utilizados para descrever e instrumentar as línguas, em um processo denominado gramatização (AUROUX, 2014). Esses instrumentos operaram como um elemento chave na construção de uma representação de unidade linguística nos Estados Nacionais.

Conforme afirma Irvine (2008), até cerca de 1800, a coleta de informações sobre as línguas africanas consistia em breves listas de palavras coletadas por viajantes. Algumas missões católicas estabelecidas ao longo da costa africana tentaram traduzir certos

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catecismos e sistematizar o ensino e a aprendizagem dessas línguas, mas esses estudos não chegaram a ser amplamente distribuídos fora das missões. Dessa forma, foram muito poucos os estudos publicados até o século XIX. Foi somente a partir deste século que a investigação sobre as línguas africanas se tornou mais sistemática, com o movimento abolicionista e a intensificação do impulso europeu por expandir o comércio e o alcance da ciência.

Ademais, Irvine (2008) afirma que até meados do século XX, as pesquisas em África foram feitas, predominantemente, por missionários, tanto no período pré-colonial como no colonial, embora também houvesse relatos linguísticos de viajantes, funcionários públicos e militares. O estudo da língua pelos missionários era uma forma de instrução religiosa e era utilizada para se chegar à conversão. No entanto, devido à dificuldade encontrada pelos missionários na aprendizagem dessas línguas, muitos ficaram “satisfeitos” com a troca, pelos africanos, de suas línguas nativas em favor de alguma língua europeia, de forma que pudessem ser instruídos e conduzidos a hábitos mais “civilizados”.

A partir de um longo processo de “devoração” de África pela Europa, iniciado muito antes do século XIX, motivado pela exploração econômica, o continente foi partilhado e conquistado pelos europeus. Um episódio marcante no processo de colonização em África foi a Conferência de Berlim, realizada entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885, que teve como objetivo segmentar o continente africano e distribuir os territórios entre as potências coloniais. Dessa forma, a África foi retalhada de acordo com os interesses dos europeus, de forma a criar linhas divisórias nacionais, impostas pela conferência de forma totalmente arbitrária, não levando em consideração a preservação da história ou das relações étnicas e familiares dos povos colonizados.

Nesse processo, as línguas nativas das populações africanas, que haviam sido descritas, classificadas e discursivizadas pelos europeus a partir do século XIX, funcionaram reforçando ainda mais essas demarcações. Acreditamos, como Makoni e Meinhof (2006, p. 192-193), que “as descrições linguísticas constituem uma forma de intervenção social”, pois essas descrições inevitavelmente produzem efeitos sobre os falantes dessas línguas. Esses efeitos, no entanto, podem ser bastante negativos, mesmo que “bem intencionados”. Como exemplo, temos algumas políticas de preservação cultural, que muitas vezes buscam “proteger” uma língua de um suposto perigo de “extinção”, descontextualizando a história e o papel político dessas línguas, transformando-as em artefatos.

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Desse modo, embora o multilinguismo seja a língua franca da África (FARDON; FURNISS, 2003), esse multilinguismo e o tribalismo no continente africano, na maioria das vezes, são vistos como problemas devido a sua quantidade, ou seja, o continente africano teria tribos e línguas em excesso, ocasionando um sofrimento inevitável. Nessa perspectiva, a África seria marcada, sempre, ou pela escassez ou pelo excesso, mas nunca por uma medida adequada. Isto porque, quase sempre, há a imposição de um padrão europeu nessa comparação, que não corresponde à complexa diversidade do continente africano (MAKONI; MEINHOF, 2006; FARDON; FURNISS, 2003).

Conforme afirma Albert Memmi (2007), nas sociedades coloniais, ou os colonizados são vistos sob a ótica da negação – “O colonizado não é isto, não é aquilo. Jamais é considerado positivamente; se o é, a qualidade concedida está ligada a uma falta psicológica ou ética.” (MEMMI, 2007, p. 122) – ou são absorvidos em um coletivo que os invisibiliza – “O colonizado jamais é caracterizado de uma maneira diferencial; só tem direito ao afogamento no coletivo anônimo (‘Eles são isto... Eles são todos iguais’)” (MEMMI, 2007, p. 123).

Ademais, como Makoni e Pennycook (2016), acreditamos que, em África, criou-se uma ideologia de línguas enquanto categorias separáveis e enumeráveis, de modo que povos que se comunicavam foram postos em categorias distintas, enquanto que alguns que não se entendiam foram classificados como membros de uma mesma categoria. Desse modo, foi com a colonização e com o cristianismo que as línguas emergiram em África enquanto identidades compartilhadas, a partir, por exemplo, da redução da oralidade à escrita e de seus usos no letramento. Dessa forma, o letramento e o colonialismo foram determinantes para a emergência de determinados modos de pensar e enquadrar essas línguas (MAKONI; PENNYCOOK, 2016; MAKONI; MEINHOF, 2006).

Essa imposição de um conceito europeu de língua produziu diversos efeitos reais e materiais. Assim sendo, segundo Makoni e Pennycook (2016), é necessária, na linguística, uma desinvenção e uma reconstituição dessas línguas, que implica em perceber essa invenção e

repensar a forma como as olhamos. Segundo os autores, a linguística tem adotado e perpetuado certas visões de língua e linguagem que precisam ser redefinidas, pois, muitas vezes, elas atuam como uma forma de imaginação – uma invenção transatlântica de línguas. Assim, Makoni e Pennycook (2016, p. 30) questionam:

se a forma de compreensão da língua em muitas partes do mundo é um resultado da aplicação de

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mapeamentos coloniais e neocoloniais sobre uma diversidade de contextos, como seriam vistas as línguas se um conceito diferente fosse usado para um mapeamento que operasse, dessa vez, da periferia para o centro?

Desse modo, para essa desinvenção, é necessário não somente repensar a forma como olhamos para as línguas, mas também a forma como as línguas são vistas por seus próprios falantes. Assim, essa desinvenção não pode ser realizada somente pelo intelectual, a partir de sua própria perspectiva. Esse processo de repensar a forma como olhamos as línguas não possui respostas prontas, nem soluções óbvias, mas sim é algo que envolve constantes reflexões e questionamentos sobre nossas práticas.

Acreditamos que essa breve discussão sobre a invenção das línguas no continente africano é importante para pensarmos sobre as línguas africanas que foram trazidas ao Brasil junto com seus falantes. Nesse sentido, precisamos considerar que o próprio conceito de língua é uma ideia construída. Buscaremos, ao longo dessa dissertação, mostrar o percurso histórico de invenção de uma brasilidade linguística, enfocando o lugar conferido a essas línguas africanas nesse percurso. Para isso, precisamos, primeiramente, perceber como se dá essa invenção, também, em articulação com as ideias de nação e de língua nacional.

Em consonância com Foucault (1979), acreditamos que é historicamente que se produzem os efeitos de verdade no interior dos discursos, de modo que os discursos em si não são nem verdadeiros nem falsos. Cada sociedade forma, assim, o seu próprio regime de verdade, ou seja, discursos que ela toma como verdadeiros. No caso do Brasil, o próprio discurso de brasilidade foi construído ao longo da história, por vezes excluindo as indianidades e africanidades. Essa verdade, construída discursivamente, não existe fora do poder ou sem poder, sendo submetida a uma constante incitação econômica e política.

Podemos relacionar a construção de uma ideia de brasilidade com o conceito de “comunidades imaginadas”, de Benedict Anderson (2008). De acordo com o autor, diferentemente de uma comunidade real, uma comunidade imaginada não se baseia na interação face a face entre os seus membros, mas sim na criação de uma ideia de pertencimento a um determinado grupo. Para o autor, a nação seria um exemplo de uma comunidade política imaginada, pois “mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham

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em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (ANDERSON, 2008, p. 32). Essa imagem inventada produz uma “profunda camaradagem horizontal” entre seus membros, independentemente da desigualdade e da exploração que ocorre dentro desse grupo, tornando possível até mesmo que se morra por essas criações imaginárias (ANDERSON, 2008, p. 34).

Anderson (2008) define, assim, quatro características correspondentes à ideia de nação. Primeiro, conforme já salientamos, ela é imaginada, pois seus membros não conhecem – e nem têm a possibilidade de conhecer – todos que fazem parte dessa comunidade, embora haja essa ideia de comunhão. É limitada, pois, por maior que seja, possui fronteiras definidas, mesmo que elásticas, que a separam de outras nações. É também soberana, porque o conceito nasceu em um momento em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina e porque as nações sonham em ser livres – e a garantia e o emblema dessa liberdade são os Estados soberanos. Por fim, a nação é imaginada como uma comunidade, porque é concebida como uma profunda camaradagem horizontal, independentemente das desigualdades e explorações que possam existir.

Da mesma forma, Stuart Hall argumenta que essas identidades nacionais “não estão literalmente impressas em nossos genes”, mas nós imaginamos elas como parte da essência de nossa natureza (HALL, 2015, p. 29). Assim, não nascemos com uma identidade nacional inerente, mas elas são “formadas e transformadas no interior da representação” (HALL, 2015, p. 30, grifo do autor). Dessa forma, para Hall (2015, p. 30, grifos do autor),

a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu “poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (Schwarz, 1986, p. 106).

Assim sendo, mais do que apenas um conjunto de instituições culturais, as culturas nacionais são constituídas por símbolos e representações, ou, dito de outro modo, são um discurso, um modo de construir sentidos, que regula nossas ações e a maneira pela qual nos

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percebemos (HALL, 2015). Dessa forma, a identidade nacional acaba por “maquiar” a pluralidade, disfarçando as diferenças entre seus membros, de modo a unificar todos na representação de um grande bloco nacional. Acreditamos, assim, que as línguas e as nações são co-construídas dialeticamente, de forma que ambas são imaginadas e narradas (MAKONI; PENNYCOOK, 2016, p. 14).

Conforme afirma Berenblum (2003), a relação identitária estabelecida entre língua e nacionalidade é produto de processos históricos. Os Estados precisavam inventar tradições e símbolos nacionais, a fim de construir uma imagem de nação que levasse à adesão e à lealdade de seus habitantes, que eram homogeneizados e padronizados. Dessa forma, com a constituição dos Estados Nacionais, há uma necessidade de uma unificação linguística planejada, com a imposição de uma língua oficial – ou uma variedade de língua, em geral da cultura dominante – tornando outras marginalizadas. O sistema educacional se torna um elemento chave nesse processo, ao reforçar os usos oficiais da língua nacional. A língua passa, desse modo, a ser também um elemento constitutivo da cidadania (BERENBLUM, 2003).

Conforme afirma Anderson (2008), as línguas, mesmo as modernas, possuem esse caráter primordial, que nos impede de reconhecer sua data de origem. Assim, “todas se avultam imperceptivelmente de um passado sem horizonte”, de modo que “se mostram mais enraizadas do que praticamente qualquer outra coisa nas sociedades contemporâneas” (ANDERSON, 2008, p. 203). Daí serem ideais para a construção desse imaginário de nação.

Desse modo, as línguas nacionais também são construções e são parte dos projetos nacionalistas, que elegem uma única variedade como base, como afirma Hobsbawm:

As línguas nacionais são sempre, portanto, construtos semiartificiais e, às vezes, praticamente inventados, como o moderno hebreu. São o oposto do que a mitologia nacionalista pretende que sejam – as bases fundamentais da cultura nacional e as matrizes da mentalidade nacional. Frequentemente, essas línguas são tentativas de construir um idioma padronizado através da recombinação de uma multiplicidade de idiomas realmente falados, os quais são, assim, rebaixados a dialetos – e o único problema nessa construção é a escolha do dialeto que será a base da língua

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homogeneizada e padronizada. (HOBSBAWM, 2016, p. 77-78)

Conforme veremos ao longo deste trabalho, através da história, desde a colonização portuguesa, os africanos, bem como suas línguas, foram postos à margem da ideia de brasilidade, que muitas vezes esteve ligada a uma continuação com um dado passado colonial, ou seja, a uma tentativa de homogeneização de sua população, em uma busca incessante pela constituição, no Brasil, de uma civilização “europeia”. Da mesma forma, a África é vista a partir da mesma perspectiva, ignorando-se, muitas vezes, a pluralidade inerente a esse continente, com suas diversas histórias, tradições, culturas e práticas linguísticas.

Dessa forma, concordando com Hall, acreditamos que:

Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo ‘unificadas’ apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. (HALL, 2015, p. 36)

A brasilidade, assim como a própria ideia de africanidade, nessa chave, consistiria em um dispositivo discursivo, que inventa uma unidade e, assim, mascara a pluralidade. Da mesma forma, a língua portuguesa fez parte desse dispositivo unificador, conforme veremos mais à frente.

1.2 A COLONIZAÇÃO NO BRASIL: OS MISSIONÁRIOS, A ESCRAVIZAÇÃO E A POLÍTICA POMBALINA

Buscamos, nesse momento, analisar como o processo de invenção de uma língua e uma nação brasileiras se deu inicialmente na colonização do Brasil, processo esse que não ocorreu sem conflitos e invisibilizações (LEITE, 1996). De forma geral, o período da colonização, entre os séculos XVI e XIX, foi marcado por tensionamentos entre os povos autóctones e os diversos “povoadores” do território: o migrante armado ou fundador, que chegava com seus barcos e suas armas; o migrante familiar ou civil, que chegava com seus

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hábitos, suas panelas e suas fotos de família; e o migrante nu, que era transportado à força, que constituía a base do povoamento (GLISSANT, 2005).

Conforme afirma Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004), a primeira política linguística implícita ocorrida na colônia foi aquela expressa por Caminha em sua Carta, quando este afirmou que seria mais fácil os portugueses aprenderem a língua dos indígenas do que o contrário2. Assim, com os jesuítas, que chegaram ao território brasileiro em 1549, essa política linguística se efetivou por meio da aprendizagem e gramatização pelos jesuítas da língua mais utilizada na costa do Brasil, com o objetivo de cristianizar os indígenas. Dessa forma, o agente escolarizador no Brasil, até meados do século XVIII, foi, principalmente, a Companhia de Jesus (SILVA, 2004).

Dentre os instrumentos linguísticos, o Padre Anchieta escreveu a Arte de grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, que foi utilizada já em 1560 no Colégio da Bahia, mas impressa apenas em 1595 em Coimbra, sendo a primeira gramática dos fundamentos da língua tupi. Essa língua gramatizada (AUROUX, 2014) foi chamada de língua brasílica durante o século XVII, vindo a ser chamada mais tarde de língua geral. Foi utilizada na catequese inicial dos indígenas e africanos e também na aprendizagem da língua pelos primeiros colonizadores letrados. A língua era um instrumento utilizado na interação entre os portugueses colonizadores, os indígenas e africanos (SILVA, 2004).

Assim, no Brasil, predominava a pedagogia dos jesuítas, que davam prioridade ao uso das línguas locais na pregação e na catequese. O português, desse modo, não tinha muito espaço na colônia. Conforme afirma Faraco (2016), o uso das línguas ditas vulgares nesses contextos de pregação e catequese católicas era uma recomendação do Concílio de Trento (1545-1563), que reorganizou a Igreja Romana em reação à Reforma. Desse modo, os jesuítas se tornaram os principais estudiosos das línguas locais nos territórios coloniais, escrevendo gramáticas e

2 “Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque

era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar”. (CAMINHA, 1500, online)

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reunindo vocabulários como instrumentos para ensinar as línguas aos missionários, bem como elaborando catecismos, sermonários, confessionários e devocionários nessas línguas, para a catequese (FARACO, 2016).

No entanto, conforme afirma Faraco (2016), nem sempre a pregação e a catequese se deram dessa forma, nas línguas dos colonizados. Primeiro, devido à grande diversidade linguística do território colonial, que impedia que houvesse missionários especialistas em cada uma dessas línguas. Segundo, mesmo as línguas mais difundidas não eram conhecidas por todos os missionários, devido à dificuldade de aprendizagem de uma nova língua por um adulto. Além disso, alguns não seguiam a recomendação geral e acreditavam que os indígenas e africanos deveriam aprender a língua europeia. Sendo assim, nos primeiros séculos de colonização, “as diretrizes sobre a questão linguística oscilaram entre o estímulo ao uso das línguas locais e a imposição da língua do colonizador” (FARACO, 2016, p. 83).

Somente na metade do século XVIII, em Portugal, procurou-se defender o ensino da língua vernácula como primordial. Luís António Verney (1713-1792) fez um tratado intitulado Verdadeiro método de estudar, em 1746, que defendia essa ideia, adotado em parte pelo Marquês de Pombal nas suas reformas educacionais (FARACO, 2016). Abordaremos a política pombalina mais à frente.

Desse modo, a partir do século XVI, quando a língua portuguesa se consolidou como língua do império português, e se diferenciou cada vez mais do latim e do espanhol, os portugueses, com as cruzadas, navegações e o processo de evangelização, depararam-se com uma grande quantidade de línguas. A língua portuguesa foi empregada pelos colonizadores como uma forma de afirmar a sua supremacia frente aos outros povos, de modo que houve um longo processo de imposição da língua portuguesa nos territórios colonizados, como um dos fatores utilizados na conquista.

Podemos chamar essa imposição de colonização linguística que, conforme Mariani (2007, p. 85),

postula-se [como] um processo histórico de encontro entre pelo menos dois imaginários linguísticos constitutivos de povos culturalmente distintos – línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos desiguais, em condições de produção tais que uma dessas línguas – chamada de língua colonizadora – visa impor-se sobre a(s)

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outra(s), colonizada(s). Para tanto, políticas linguísticas são engendradas com o objetivo de disseminar a língua colonizadora, delimitando, organizando e silenciando os espaços de enunciação das línguas colonizadas.

Dessa forma, o processo de colonizar já pressupõe uma violência, não necessariamente física, contra os corpos dos sujeitos, mas também uma violência simbólica (ŽIŽEK, 2014), que apaga as diferenças em prol de uma única possibilidade de existência, de fala e de percepção do outro, pois as línguas não são somente um saber linguístico que é partilhado, mas também envolvem práticas sociais, culturais e religiosas, que são aprendidas ou impostas (MARIANI, 2007).

É importante destacar que, conforme já referido, a colonização no Brasil deu-se de forma entrelaçada como o processo de cristianização. A motivação religiosa foi intensificada devido à Contrarreforma católica, que levou a Igreja aos territórios colonizados, através, entre outras missões, da Companhia de Jesus, criada em 1539. Houve, assim, uma junção dos projetos de evangelização e portugalização; a Igreja estava ligada ao poder europeu através do padroado, um acordo de apoio mútuo entre Igreja e Reino (SEVERO; MAKONI, 2015). A língua portuguesa era igualmente uma língua de conquistas, a serviço do expansionismo português e a serviço de doutrinação católica. Os missionários exerciam a evangelização e, ao mesmo tempo, o ensino do português (MARIANI, 2007). Assim, de acordo com Errington (2001), a linguística colonial envolveu um projeto de conversão múltipla: de pagão para cristão, de fala para escrita, de alienígena para compreensível, em que elementos como fé, tecnologia (alfabetização) e razão foram interligados.

Naquele momento, o português convivia com diversas línguas indígenas e africanas. Em relação às línguas indígenas, relatos de historiógrafos e cronistas que passaram pelo Brasil apontam para uma certa homogeneidade cultural e linguística ao longo da costa brasileira e na bacia Paraná/Paraguai, havendo uma predominância de grupos indígenas do tronco linguístico tupi, em especial da família tupi-guarani. Outros grupos indígenas que se encontravam para além da costa eram chamados genericamente de tapuias, identificados em estudos contemporâneos como pertencentes ao tronco linguístico macro-jê (SILVA, 2004).

Observamos, assim, que a categoria de indianidade foi construída de forma a homogeneizar a pluralidade das populações indígenas. O chamado tronco tupi foi elegido como exemplar dessa categoria,

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apagando-se a diversidade existente entre as suas etnias e línguas, bem como invisibilizando e homogeneizando os outros grupos e línguas indígenas, jogando-os em uma categoria ampla e imprecisa – os tapuias. Veremos mais à frente como essa categoria genérica de indianidade foi apropriada pelo movimento romântico brasileiro, na construção da brasilidade.

Em relação às línguas africanas, Castro (2011, 2012a) afirma que 75% dos quatro milhões de indivíduos africanos trazidos para o Brasil eram dos reinos do Congo e do Ndongo, sendo, portanto, falantes de quimbundo e de quicongo, e foram distribuídos por todo o território brasileiro, dos séculos XVI ao XIX. A partir do século XVIII, foram trazidos os africanos de Benguela, falantes de umbundo, e os povos do Golfo do Benim, que falavam ewe-fon ou mina-jeje. No fim do século XVIII e na primeira metade do século XIX, a cidade da Bahia recebeu, ainda, levas numerosas e sucessivas de povos precedentes do território onde hoje se encontra a Nigéria, falantes de iorubá.

Apesar dessa diversidade de populações e línguas, a africanidade, como categoria, foi, ao longo da história, apropriada pelos intelectuais brasileiros de forma generalizada e superficial. Assim, mesmo hoje, se fala muito em influências africanas no Brasil, como se as populações advindas de diversos lugares do continente africano pudessem ser reduzidas a um grupo uno. A dificuldade de acesso a dados sobre a escravização no país contribui ainda mais para essa perspectiva homogeneizante.

Em relação à distribuição dessas populações no território brasileiro, de acordo com Mattos e Silva (2004), os escravizados do tráfico eram levados para onde havia demanda de mão de obra, nas grandes frentes de exploração econômica colonial. Desse modo, havia um grande processo de migração forçada dos escravizados. Assim, o percurso geral da escravidão no Brasil delineou-se do seguinte modo: primeiramente, nas lavouras canavieiras de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, em especial nos séculos XVI e XVII; após, na mineração de ouro e diamantes em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, no fim do século XVII e século XVIII; em seguida, no litoral, com o novo impulso açucareiro no Rio de Janeiro e São Paulo; depois, na área cafeeira do Vale do Paraíba, em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, no século XIX. Além disso, entre os séculos XVI e XIX, houve também escravizados adquiridos para o cultivo de algodão e fumo, no Maranhão; para a colheita de especiarias, em áreas da Amazônia; e em regiões pastoris, como no interior do Nordeste e no Rio Grande do Sul. Além dos escravizados migrantes, havia os urbanos, que viviam nas cidades,

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apesar de haver pouca urbanização na colônia. Estes eram mão de obra de trabalhos considerados menores pelos brancos, como os de artesão, carregador, pintor ou marinheiro (SILVA, 2004).

Segundo Mattos e Silva (2004), diversos pesquisadores que estudam a história linguística do Brasil e a formação do português brasileiro concordam que dois fatos teriam contribuído para as línguas africanas não terem se estabelecido no Brasil: primeiro, a política do tráfico que procurava separar desde o continente africano aqueles de mesma etnia e língua, para impedi-los de se organizarem; segundo, a não constituição plena de famílias de escravizados, em que pudessem firmar esses núcleos linguísticos. Assim, os escravizados africanos, para se comunicarem, teriam adotado os recursos linguísticos disponíveis, que teriam sido as línguas indígenas, as línguas gerais indígenas ou o português do colonizador. O português teria sido mais comumente

utilizado, de modo que a língua teria sido profundamente reestruturada pelos africanos no processo de aquisição (SILVA, 2004).

Acreditamos, no entanto, que podemos relativizar essa visão de que as línguas africanas não teriam se estabelecido no país. Primeiro porque dificilmente teria sido possível separar todos aqueles que eram da mesma etnia e língua, considerando o número elevado de escravizados que haviam na mesma fazenda colonial. Além disso, as línguas que perduram, apesar do processo de silenciamento operado ao longo dos séculos – como as pertencentes a comunidades negras rurais no interior do Brasil ou as línguas-de-santo, das casas religiosas afrobrasileiras –, seriam exemplos dessa resistência e permanência. Por fim, essa persistência poderia ser observada no próprio movimento de africanização do português, em um processo mútuo de assimilação.

Sobre as ditas línguas gerais, estas eram misturas de diversas línguas, utilizadas como forma de comunicação. As línguas nativas da costa, a maioria de base tupi, apresentavam certa uniformidade linguística e a partir delas foram criadas as línguas gerais brasileiras: a língua geral paulista e a língua geral amazônica, esta última chamada também de nheengatu. Inicialmente, propagadas de forma quase espontânea, essas línguas gerais passaram a ser difundidas de forma mais sistemática e planejada com os religiosos empenhados na catequese (FREIRE, 2003, p. 51-52).

Yeda Pessoa de Castro (2005) chama atenção para a contribuição dos africanos na constituição das chamadas línguas gerais, devido a sua superioridade numérica populacional. Além disso, conforme Nobre (2011), devemos também considerar a existência de línguas gerais

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africanas, como a língua geral de mina, registrada por Antonio da Costa Peixoto, a qual nos referiremos mais à frente.

No entanto, segundo Mattos e Silva (2004), abordar o conceito de língua geral no Brasil colonial é algo complexo, haja vista que seria difícil distinguir o que seria a língua geral propriamente dita e o que seria o português geral brasileiro, que seria um português com forte presença de elementos africanos e indígenas. Além disso, haveria mais de uma versão da língua geral, a amazônica e a paulista, bem como outras que poderíamos supor terem havido, resultado do encontro da língua portuguesa com as línguas indígenas ou africanas mais utilizadas em determinadas áreas (SILVA, 2004).

Em contraste com as línguas gerais que predominavam nas zonas periféricas da Colônia, como São Paulo, Maranhão e o interior do país, em Pernambuco e na Bahia, principalmente, a língua portuguesa começou a se difundir mais fortemente no século XVI. Nos dois centros, e posteriormente no Nordeste em geral, foi desenvolvida a cultura de exportação da cana-de-açúcar, do algodão e do tabaco, criando um sistema econômico, social e político centrado nos engenhos e na divisão entre casa-grande e senzala (LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009).

O centro desse universo eram os africanos escravizados, que desde cedo tiveram contato com o português. Os colonizadores denominavam de “ladinos” aqueles que tinham algum conhecimento de português e de “boçais” aqueles incapazes de se comunicar na língua (LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009). Percebemos como a língua portuguesa era tomada como um critério diferenciador violento pelos colonizadores.

Conforme já mencionado, por muito tempo, até quando foi possível, os portugueses evitaram concentrar os povos africanos da mesma etnia ou língua nas mesmas regiões da colônia, a fim de evitar a comunicação, descaracterizá-los culturalmente e torná-los mais fracos (ILARI; BASSO, 2014). Conforme afirma Glissant (2005, p. 19), os africanos – ou os homens nus –, chegam à América “despojados de tudo, de toda e qualquer possibilidade, e mesmo despojados de sua língua”. A recomposição de suas línguas e manifestações artísticas vai se dar, assim, através de rastros/resíduos, com a criação do imprevisível.

Segundo Castro (2005), a partir do contato, nas casas-grandes, entre os senhores e os chamados “ladinos”, que possuíam uma maior proficiência no português, a língua pode ter adquirido algumas influências das línguas africanas. Como bilíngues, os escravizados adaptavam uma língua à outra e influenciavam, dessa forma, os não-bilíngues, difundindo certos fenômenos linguísticos. Castro destaca,

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também, a influência exercida pelas mulheres negras, ao incorporarem-se ao ambiente doméstico e à vida cotidiana do colonizador. Traziam, assim, não somente elementos linguísticos, mas também de sua cultura, culinária, contos populares, crenças e superstições (CASTRO, 2005).

No século XVIII, o português se impõe mais fortemente como língua de uso geral. Em uma época marcada pela consolidação das línguas nacionais na Europa, com a gramatização e a regulamentação destas, as línguas indígenas e africanas se tornavam uma ameaça à afirmação do português no Brasil. Isto levou a Coroa a determinar que os jesuítas do Maranhão ensinassem português aos indígenas, através da Carta Régia de 1727 (BERENBLUM, 2003). Outro evento relevante foi a expulsão dos jesuítas e a determinação por se ensinar o português no Brasil pelo Marquês de Pombal, a partir do parágrafo 6 do documento Diretório dos índios, de 1758:

Sempre foi maxima inalteravelmente praticada em todas as Naçoens, que conquistaraõ novos Dominios, introduzir logo nos Póvos conquistados o seu próprio idiôma, por ser indisputavel que este he hum dos meios mais efficazes para desterrar dos Póvos rusticos a barbaridade de seus antigos costumes; e ter mostrado a experiencia, que ao mesmo passo, que se introduz nelles o uso da Lingua do Principe, que os conquistou, se lhes radica tambem o affecto, a veneraçaõ, e a obediencia ao mesmo Principe. Observando pois todas as Naçoens polidas do Mundo este prudente, e sólido systema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidáraõ os primeiros Conquistadores estabelecer nella o uso da Lingua, que chamaõ geral; invençaõ verdadeiramente abominavel, e diabólica, para que privados os Indios de todos aquelles meios, que os podiaõ civilizar, permanecessem na rustica, e barbara sujeiçaõ, em que até agora se conservávaõ. Para desterrear este perniciosissimo abuso, será hum dos principaes cuidados dos Directores, estabelecer nas suas respectivas Povoaçoens o uso da Lingua Portugueza, naõ consentindo por modo algum, que os Meninos, e Meninas, que pertencerem ás Escolas, e todos aquelles Indios, que forem capazes de instrucçaõ nesta materia, usem da Lingua propria das suas Naçoens, ou da

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chamada geral; mas unicamente da Portugueza, na forma, que Sua Magestade tem recõmendado em repetidas ordens, que até agora se naõ observáraõ com total ruina Espiritual, e Temporal do Estado. (FARACO, 2016, p. 98-99)

O trecho do documento afirma, desse modo, que a política imperialista tinha como objetivo introduzir a língua do colonizador nos territórios colonizados. A chamada língua geral era considerada, assim, uma “invenção abominável e diabólica”, que impedia os indígenas de se tornarem “civilizados”. Julgava-se necessário, assim, estabelecer o uso geral da língua portuguesa nas escolas.

Conforme afirma Araújo (2007), o Diretório é representativo do período marcado pelas ideias iluministas, em que se questionava a relação entre Estado, Igreja e Saber e se propunha uma dissociação. Assim, o poder autônomo dos jesuítas sobres os povos indígenas amazônicos passava a ser questionado. É com o acirramento das divergências entre administração colonial, jesuítas e moradores que medidas de restrição ao uso da língua geral começam a surgir:

Afrontar o uso corrente da língua geral e das demais línguas próprias era uma das formas de desmontar o domínio dos missionários (em especial, dos jesuítas – eleitos pelas autoridades pombalinas os inimigos maiores das novas políticas), atingindo seu coração simbólico, revertendo o caminho seguido por eles, com apoio da própria Coroa, durante duzentos anos. (FARACO, 2016, p. 112)

Tratava-se, portanto, de optar pelo ensino da língua portuguesa como um modo de formar “súditos” não mais para a Igreja, mas para o rei, mudando apenas a posição de sujeição dos indígenas (ARAÚJO, 2004).

Desse modo, o Diretório foi a primeira medida categórica adotada pela Coroa portuguesa como política linguística. No entanto, segundo Faraco (2016), devido à falta de instrumentos para a sua efetivação, o documento teve pouco efeito prático, servindo apenas para alimentar, entre a elite colonial, o imaginário de uma sociedade monolíngue. Assim, foi somente após mais de um século do Diretório que o português se tornou hegemônico na Amazônia, em razão mais de fatores socioeconômicos do que pela determinação da lei. Devido a esse

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