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Nathalia Masson. Manual de Direito. Constitucional 9 ª. Edição. revista atualizada ampliada

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2021

Manual de

Direito

Constitucional

Nathalia Masson

9

ª

Edição revista atualizada ampliada

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TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

SUMÁRIO • 1. Introdução. 1.1. Constituição: conceito; 1.2. Constituição: estrutura; 1.3. Direito Constitucional; 1.4. Constitucionalismo; 2. Concepções de Constituição: 2.1. Introdução; 2.2. Constituição sob o prisma sociológico; 2.3. Constituição sob o aspecto político; 2.4. Constituição em sentido jurídico; 2.5. Concepção culturalista da Constitui-ção (a busca por alguma conexão entre os sentidos anteriormente apresentados). 3. ClassificaConstitui-ção das Constituições: 3.1. Quanto à origem; 3.2. Quanto à estabilidade (mutabilidade ou processo de modificação); 3.3. Quanto à forma; 3.4. Quanto ao modo de elaboração; 3.5. Quanto à extensão; 3.6. Quanto ao conteúdo; 3.7. Quanto à finalidade; 3.8. Quanto à interpretação; 3.9. Quanto à correspondência com a realidade = critério ontológico; 3.10. Quanto à ide-ologia (ou quanto à dogmática); 3.11. Quanto à unidade documental (quanto à sistemática); 3.12. Quanto ao sistema; 3.13. Quanto ao local da decretação; 3.14.Quanto ao papel da Constituição (ou função desempenhada pela Cons-tituição); 3.15. Quanto ao conteúdo ideológico (ou quanto ao objeto); 3.16. Outras classificações. 4. Aplicabilidade das Normas Constitucionais: 4.1. Introdução; 4.2. A classificação de José Afonso da Silva; 4.3. A classificação de Maria Helena Diniz; 4.4. A classificação de Uadi Lammêgo Bulos; 4.5. Críticas. 5. Princípios instrumentais de interpretação da Constituição e das leis: 5.1. Princípio da supremacia da Constituição; 5.2. Princípio da interpretação conforme a Consti-tuição; 5.3. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis; 5.4. Princípio da unidade da ConstiConsti-tuição; 5.5. Prin-cípio da força normativa; 5.6. PrinPrin-cípio do efeito integrador; 5.7. PrinPrin-cípio da concordância prática ou harmonização; 5.8. Princípio da máxima efetividade ou da eficiência (intervenção efetiva); 5.9. Princípio da conformidade funcional ou justeza. 6. Elementos da Constituição. 7. Breve histórico das Constituições Brasileiras. 8. Quadro sinótico. 9. Questões: 9.1. Questões objetivas; 9.2. Questões discursivas; Gabarito – questões objetivas; Gabarito – questões discursivas.

1. INTRODUÇÃO

1.1. Constituição: conceito

O vocábulo “Constituição” tem no verbo latino constituere sua origem etimológica e sua conformação semântica, vez que o mesmo exterioriza o ideal de constituir, criar, de-limitar abalizar, demarcar1. O termo exprime, pois, o intuito de organizar e de conformar

seres, entidades, organismos.

É nessa acepção que se pode considerar a Constituição enquanto o conjunto de normas fundamentais e supremas, que podem ser escritas ou não, responsáveis pela criação, estruturação e organização político-jurídica de um Estado.

De acordo com Georges Burdeau2, a Constituição é o Estatuto do Poder, garantidora da

transformação do Estado – até então entidade abstrata – em um poder institucionalizado. É o que permite a mudança de perspectiva que ocasiona o abandono do clássico pensamento

1. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 27.

2. BURDEAU, Georges. Droit constitutionnel et institutions politiques. 7ª ed. Paris: Générale de Droit et de Jurispru-dence, 1965.

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de sujeição absoluta às imposições pessoais de governantes, para a obediência voltada a uma entidade (Estado), regida por um documento: a Constituição.

Torna-se, pois, a Constituição, um documento essencial, imprescindível. Todo Estado a possui. Porque todo Estado precisa estar devidamente conformado, com seus elementos essenciais organizados, com o modo de aquisição e o exercício do poder delimitados, com sua forma de Governo e Estado definidas, seus órgãos estabelecidos, suas limitações fixa-das, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias asseguradas. Note que o art. 16, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (da Revolução Francesa, de 1789) reforça este entendimento, ao prever que: “Toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem constituição”.

Em suma, a Constituição é a reunião das normas que organizam os elementos constitu-tivos do Estado3.

Ressalte-se, todavia, estarem o termo “Constituição” e sua conceituação permanentemente em crise4, já que os estudiosos não acordam quanto a uma definição, existindo uma pluralidade

de concepções que fornecem noções acerca do assunto. Não se espera, no entanto, que algum dia seja diferente. Como Constituições são organismos vivos5, documentos receptivos aos

influxos da passagem do tempo, em constante diálogo com a dinâmica social, sempre haverá alguma dificuldade em sua delimitação, haja vista sua mutação constante, seu caráter aberto e comunicativo com outros sistemas.

No entanto, apesar de na doutrina encontrarmos vários e diferentes conceitos para o termo “Constituição”, quero lhe mostrar, neste início do nosso Manual, um muito importante, de um autor português respeitadíssimo no mundo todo, que é J.J. Gomes Canotilho. Segundo ele, uma constituição ideal deve conter os seguintes elementos:

a) deve ser escrita;

b) deve possuir um conjunto de direitos e garantias individuais;

c) deve estabelecer expressamente o princípio da separação dos poderes; d) deve adotar um sistema democrático formal.

Sequenciando nossa análise, lembre-se que em razão de a Constituição tratar dos assuntos mais importantes do Estado, ela ocupa no ordenamento jurídico uma posição diferenciada. Destarte, quando você imaginar o conjunto de normas (leis, medidas provisórias, decretos...) que temos em nosso país, não as visualize de forma espalhada e bagunçada! Nosso ordenamento jurídico é muito organizado e poderia ser visualmente ilustrado da seguinte maneira:

3. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 28ª ed. Malheiros, 2006, p. 38. 4. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 27. 5. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 27.

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Constituição Federal

Decretos Regulamentares; Instruções normativas; Portarias ...

Leis (complementares, ordinárias, delegadas); Resoluções; Decretos legislativos e Medidas provisórias

Essa estrutura é conhecida como “pirâmide de Kelsen” (Hans Kelsen é um dos juristas mais importantes da história da Teoria do Direito, tendo escrito em 1934 uma obra que é referência mundial no assunto, chamada “Teoria Pura do Direito”). Ela foi pensada pelo pro-fessor austríaco para explicitar a ideia de que existe hierarquia entre as normas que integram o ordenamento jurídico, vale dizer, as normas não têm a mesma importância e, por isso, não podem ser colocadas no mesmo patamar (no mesmo plano). Assim, existirão normas que se-rão superiores e normas que sese-rão inferiores. As inferiores são consideradas normas fundadas pelas superiores (que, por isso, são chamadas de fundantes) e delas retiram seu fundamento de validade, sua razão de existir.

Agora, um detalhe importante: nossa Constituição Federal de 1988 foi elaborada pelo chamado “Poder Constituinte Originário” e promulgada em 05/10/1988. Nossos representantes (eleitos pelo povo), se reuniram em uma Assembleia Nacional Constituinte e, de fevereiro de 1987 até outubro de 1988, se dedicaram à redação da nossa atual Constituição. Essas normas, que foram feitas pelo Poder Originário durante o período citado, são chamadas de normas constitucionais originárias.

Eis um questionamento importante: de outubro de 1988 até o presente momento, nossa Constituição manteve exatamente a mesma redação? Não. Ela foi objeto de diversas emendas constitucionais, que alteraram vários dos seus artigos. Por que isso ocorre? Ora, as Constitui-ções não podem ser imutáveis (ou imodificáveis), pois elas precisam se adaptar às mudanças sociais e à evolução histórica, senão seus textos perdem a sintonia com a realidade. Assim, vez ou outra, nossa Constituição passa por modificações, que nada mais são do que pequenos ajustes que pretendem rejuvenescer seu texto e melhor adequá-lo ao momento histórico. Es-tudaremos, futuramente, o modo como essas emendas constitucionais são feitas (como elas são apresentadas, discutidas, votadas, etc.), mas, nesse momento, é preciso que você saiba que elas são elaboradas pelo chamado Poder Constituinte Derivado (representado pelo Congresso Nacional) e, por essa razão, também podem ser chamadas de normas constitucionais derivadas.

A explicação acima lhe permite notar que em nossa Constituição existem normas constitucionais que são originárias (pois estão no texto constitucional desde 5/10/1988) e normas constitucionais que são derivadas, que foram sendo inseridas ao longo das últimas

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três décadas. Mas repare: pouco importa se a norma constitucional é originária ou derivada, ela é constitucional e, por isso, situa-se no topo da pirâmide de Kelsen, no ponto mais alto do ordenamento jurídico. Isso significa que não há hierarquiaentre normas constitucionais originárias e normas constitucionais derivadas, já que, rigorosamente, todas as normas cons-titucionais estão no mesmo plano, se situam no mesmo patamar.

Cuidado, todavia, com um detalhe: apesar de não haver hierarquia entre normas consti-tucionais originárias e derivadas, há uma importante diferença entre elas. As normas constitu-cionais originárias não podem ser declaradas inconstituconstitu-cionais, sendo sempre constituconstitu-cionais (afinal, elas representam a própria Constituição). Já as normas constitucionais derivadas (as emendas constitucionais) devem ser produzidas em obediência as regras que o Poder Originário inseriu na Constituição quando a elaborou. Isso significa que uma emenda constitucional que desobedeça às normas que regulamentam a sua feitura poderá ser declarada inconstitucional. Em outras palavras: as normas constitucionais originárias não podem ser objeto do controle de constitucionalidade; já as normas constitucionais derivadas podem.

Considero igualmente importante destacar que não há hierarquia entre as normas cons-titucionais em razão do conteúdo. Em outras palavras: não seria correto dizer que o art. 5° da Constituição, que consagra direitos e garantias individuais e coletivos é, do ponto de vista hierárquico, superior a um outro artigo constitucional que trate de um tema de menor rele-vância, como, por exemplo, o art. 242 que, em seu § 2°, determina que “O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”. Independentemente do assunto tratado, se a norma é constitucional ela é superior e está no topo do ordenamento jurídico.

Olhando agora para as normas infraconstitucionais (que são assim chamadas porque estão abaixo da Constituição), tampouco há hierarquia entre elas, pois estão todas elas no mesmo patamar: num nível inferior ao da Constituição. Por isso, leis complementares não são superiores às leis ordinárias ou às medidas provisórias. Todas elas (as infraconstitucionais) inovam no ordenamento jurídico, podem prever direitos, deveres e obrigações.

No mesmo sentido, e ao contrário do que muitos podem imaginar, também não há hierar-quia entre leis federais, estaduais e municipais: todas são leis, são normas infraconstitucionais. Não pense que a lei editada pela União, por ter abrangência nacional, é superior a uma lei editada por um Estado ou por um Município. Por isso, se houver um conflito entre essas leis, a solução não será dada por critério hierárquico. Teremos que verificar qual ente da federação (União, Estados-membros ou Municípios) possui a competência para legislar sobre o tema. Se, por exemplo, a competência para legislar é dos Estados, a lei estadual vai prevalecer; se é dos Municípios, a lei municipal prevalecerá.

Por último, repare que na pirâmide de Kelsen, abaixo das normas infraconstitucionais, temos as normas infralegais. Essas são normas secundárias que não podem gerar direitos, deveres ou prever obrigações. Por serem inferiores às normas infraconstitucionais (que são chamadas também de normas primárias), as secundárias devem obediência a elas, podendo ser invalidadas e retiradas do ordenamento em caso de desrespeito. Em outras palavras: pense em um decreto regulamentar (que é uma norma infralegal). Ele foi editado para regulamentar uma lei. Ele não cria direitos e deveres, ele só facilita a aplicação de uma lei (ela sim cria os

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direitos e deveres). E se esse decreto desrespeitar a lei (desobedece-la) ele deverá ser retirado do nosso ordenamento jurídico.

1.2. Constituição: estrutura

Sabendo que todos os Estados Nacionais possuem uma Constituição e que ela representa o documento jurídico mais importante do país, ocupando o topo do ordenamento normativo, vamos iniciar a apresentação do nosso documento constitucional vigente: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Comecemos com a estrutura. Saiba que, estrutural-mente, nossa Constituição pode ser dividida em três partes:

(i) preâmbulo;

(ii) parte permanente (ou parte dogmática) e

(iii) ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).

Vejamos o que pode ser comentado acerca de cada um desses fragmentos.

O preâmbulo é a 1ª parte que você nota na Constituição. Vem antes do primeiro artigo e diz o seguinte:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos so-ciais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconcei-tos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

De início, é preciso conhecer o entendimento firmado pelo STF relativamente ao preâmbulo: ele não é uma norma jurídica, não é uma norma constitucional. Representa um “recado” do legislador constituinte a nós, que somos os destinatários da Constituição. Ele vem antes do texto constitucional, como se fosse uma “carta de intenções” que resume as posições ideológicas (os valores e as intenções) do Poder Constituinte Originário (que é o poder que faz, que elabora, a Constituição). Sua importância é histórica, de guia/diretriz interpretativa. Como nossa Corte Suprema (o STF) já definiu que o preâmbulo não é norma constitu-cional, como responder aos seguintes questionamentos?

(i) Uma lei que violar o preâmbulo da Constituição Federal pode ser considerada in-constitucional?

- Não. Afinal, se o preâmbulo não é uma norma jurídica, ele não pode ser considerado uma norma constitucional. Logo, ele não serve de parâmetro (de paradigma) para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei. Para exemplificar, pensemos na seguinte situação: uma Lei Estadual X determina que está proibida a utilização de símbolos religiosos em repartições públicas; o Governador do Estado ajuíza uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no STF, argumentando que a Lei X desobedece o preâmbulo da Constituição Federal, pois o Preâmbulo da CF diz que o texto constitucional foi promulgado “sob a proteção de Deus”. Claro que o STF não vai considerar a Lei Estadual X inconstitucional por violação do preâmbulo da CF, pois ele não é uma norma constitucional que tenha que ser estritamente obedecida.

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(ii) O preâmbulo é norma de repetição obrigatória para as demais esferas da federação? Ou seja: os preâmbulos das Constituições estaduais devem reproduzir o preâmbulo da Constituição Federal?

- O STF entende que não. Afinal, se ele não é norma jurídica, não vincula as Constituições estaduais. Isso significa que os preâmbulos das Constituições estaduais podem ser diferentes. Para termos informações adicionais que nos auxiliem na compreensão da posição do STF sobre o preâmbulo da nossa Constituição Federal, lembremos de um interessante caso que envolveu o preâmbulo da Constituição do Acre.

Em 1999, o Partido Social Liberal (PSL), ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionali-dade (a ADI 2076) contra o preâmbulo da Constituição do Acre, pois ele (na época) não trazia a expressão “sob a proteção de Deus”. O partido alegava que o preâmbulo da Constituição do Acre ofendia o preâmbulo da Constituição Federal, que traz a expressão. Aliás, dizia o PSL, essa “omissão” da Constituição do Estado o tornava “o único no país privado de ficar sob a proteção de Deus”.

Ao julgar a ADI, o STF entendeu que o preâmbulo da Constituição Federal não cria direitos e deveres, nem tem força normativa, refletindo apenas a posição ideológica do Poder Constituinte Originário. “O preâmbulo, portanto, não contém norma jurídica”, disse o mi-nistro relator da ação, Carlos Velloso.

Desta forma, o STF firmou o entendimento de que o preâmbulo da Constituição do Acre, ao não usar a expressão “sob a proteção de Deus”, não estava violando a Constituição Federal. Só não invocava a proteção de Deus, o que não é um problema, pois essa frase posta no preâmbulo da Constituição Federal reflete, tão somente, um sentimento religioso do Poder Constituinte Originário.

Quanto à parte permanente (ou dogmática) da Constituição: ela representa o texto cons-titucional propriamente dito e se inicia no art. 1° e vai até o 250. São os artigos que organizam o Estado, estruturam os Poderes e estabelecem os direitos e as garantias fundamentais. Essa parte é chamada de “permanente” não porque esses artigos sejam imutáveis e não possam ser modificados: eles podem sim ser alterados por meio das emendas constitucionais feitas pelo Poder Derivado Reformador. O nome dessa parte (“permanente”) foi dado justamente para diferencia-la do último fragmento da Constituição, que é a parte transitória.

A parte transitória da Constituição é chamada de ADCT (Ato das Disposições Consti-tucionais Transitórias). Seu intuito é o de facilitar a passagem de uma ordem jurídica antiga para a nova. Numa metáfora, é como se o ADCT fosse um “colchão”, que vai amortecer essa mudança de uma Constituição para outra, facilitando o processo de substituição de quando do advento de uma nova Constituição, garantindo a segurança jurídica e evitando o colapso entre um ordenamento jurídico e outro. Suas normas são formalmente constitucionais, em-bora, no texto da CF/88, apresente numeração própria (veja ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Assim como a parte dogmática, a parte transitória pode ser modificada por reforma constitucional. Além disso, também pode servir como paradigma para o controle de constitucionalidade das leis.

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1.3. Direito Constitucional

Quanto ao Direito Constitucional, é um dos ramos do Direito Público, a matriz que fundamenta e orienta todo o ordenamento jurídico. Surgiu com os ideais liberais atentando-se, a princípio, para a organização estrutural do Estado, o exercício e transmissão do poder e a enumeração de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Atualmente, preocupa-se não somente com a limitação do poder estatal na esfera particular, mas também com a finalidade das ações estatais e a ordem social, democrática e política.

Em uma análise pormenorizada, pode-se estudar o Direito Constitucional tendo por base três perspectivas distintas: o Direito Constitucional geral, o Direito Constitucional especial e o Direito Constitucional comparado.

A primeira atém-se à definição de normas gerais para o Direito Constitucional, estabele-cendo, por exemplo, conceitos (significado para locuções essenciais à compreensão da disci-plina, como “Direito Constitucional”, “Constituição”, “poder constituinte”, dentre outras), classificações e métodos de interpretação das Constituições.

A segunda ocupa-se em estudar a Constituição atual de um Estado específico. A terceira é tida como um método descritivo de análise e se subdivide em três categorias de estudo: critério temporal ou vertical, o qual compara Constituições de um mesmo Estado, elabora-das em épocas diferentes (ex: comparação entre a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 com a Constituição do Império de 1824); critério espacial ou horizontal, que se atém à comparação de Constituições vigentes em Estados distintos, que podem ou não ser contíguos (ex: comparar a nossa atual Constituição com as Constituições de outros países da América Latina ou com a Constituição da Nova Zelândia); por fim, critério baseado na forma de Estado elegida (ex: comparar as Constituições dos países que adotam como forma de Estado a federada).

1.4. Constitucionalismo

(A) Noções Introdutórias

De início, é crucial que você recorde que a Constituição possui uma importância central para a proteção dos direitos e das garantias individuais e é o documento jurídico mais ade-quado para estruturar e organizar o sistema de poder de um Estado. No entanto, saiba que essa leitura de que “Constituição” e “Estado” são ideias que caminham juntas é recente e tem sua raiz histórica nas revoluções americana e francesa da era moderna (final do século XVIII).

Por esta razão, o termo “Constitucionalismo” com frequência aparece relacionado às ideias de limitação do poder estatal (antiabsolutismo) e aos processos revolucionários liberais norte--americano (1787) e francês (1791), muito embora os primeiros movimentos de organização da sociedade com mecanismos de limitação do poder político possuam raízes mais antigas, lá na Antiguidade e na Idade Média.

Podemos, portanto, identificar traços do “constitucionalismo” antes mesmo do surgimento das primeiras Constituições escritas (que são a norte-americana de 1787 e a francesa de 1791),

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vez que em sua origem se trata de um fenômeno social, capitaneado pelo povo, que desejava estabelecer limites ao exercício do poder.

Portanto, é analisando os caminhos históricos trilhados pela humanidade que podemos identificar algumas fases do constitucionalismo, cujas linhas gerais vou lhe apresentar nos próximos tópicos. Já saiba desde agora, meu caro aluno, que podemos dividir a evolução do constitucionalismo em três momentos específicos: o antigo, o medieval e o moderno.

(B) Constitucionalismo Antigo

O constitucionalismo, compreendido como um movimento político-social cuja finalidade é a de limitar o poder, tem sua origem, de acordo com a doutrina, na sociedade hebraica que era organizada em um Estado Teocrático fundado na Torah ou Pentateuco (que compreende os cinco primeiros livros do Velho Testamento da Bíblia cristã), documento religioso respon-sável por estabelecer os limites do exercício do poder político pelo governante. Ou seja, já na antiguidade com os hebreus, dogmas religiosos limitavam o poder do monarca.

Nessa esteira, também a Grécia teve importância histórica decisiva para o constituciona-lismo, pois foi nessa sociedade que floresceram importantes reflexões e ideias sobre política que influenciaram o constitucionalismo atual, em especial as referentes à democracia (pois nesse período histórico, do século VI a IV a.c., os cidadãos – que eram somente os homens livres – já deliberavam na Ágora em exercício do que hoje consideramos como democracia direta). Após atingir seu apogeu, a Grécia acabou conquistada por Roma, que adquiriu posição de destaque na história em razão da sua política expansionista (que permitiu a criação de um grande império). Os mais significativos contributos que a sociedade romana ofertou para o constitucionalismo foram os seguintes: (i) a apresentação de um esboço da concepção que hoje intitulamos como “separação dos poderes” (já que tínhamos o Consulado, o Senado e a Assembleia, com os estamentos todos representados); (ii) e um significativo avanço para os direitos individuais (vários desses direitos surgem nesse momento histórico, como os referentes ao casamento, ao testamento, à propriedade, aos negócios jurídicos).

(C) Constitucionalismo Medieval

O fim do poderio romano na Europa ocidental ocasionada pelas invasões bárbaras marca o início da Idade Médiae o surgimento do feudalismo. A organização da sociedade feudal teve como traço marcante as relações de propriedade e a centralização do poder nas mãos dos senhores feudais — que o exerciam arbitrariamente diante dos vassalos.

A seguir, o desenvolvimento do mercantismo produziu as condições sociais favoráveis para a formação dos chamados Estados nacionais e a implementação do absolutismo monárquico que, apoiado pela Igreja, atribuiu ao rei um caráter divino e o pleno absoluto protagonismo no exercício do governo.

Esse contexto histórico foi terreno fértil para o surgimento de movimentos ideológicos de reivindicação de liberdades que discutiam meios de proteção dos indivíduos face as condutas arbitrárias e imprevisíveis dos governantes absolutos.

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Na Inglaterra, a forte turbulência institucional verificada no reinado de João Sem-Terra deu origem à Magna Carta, de 1215, que obrigava o monarca a respeitar certos direitos dos nobres ingleses, como por exemplo, impedindo-o criar de novos tributos sem autorização da nobreza. Nessa esteira, outros importantes pactos firmados posteriormente também mere-cem destaque: Petition of Right (1628); Habeas Corpus Act (1679); Bill of Rights (1689); Act

of Settlement (1701).

Vale observar, contudo, que tais documentos não são considerados pela doutrina ma-joritária como representativos do constitucionalismo moderno, uma vez que estabeleciam privilégios apenas para a nobreza, e não a garantia de direitos extensíveis a todos os cidadãos.

(D) Constitucionalismo Moderno

Essa expressão (‘Constitucionalismo Moderno’) designa o momento histórico que abrange desde as revoluções liberais do século XVIII até o surgimento das Constituições do pós-guerra, que aparecem na segunda metade do século XX. Nesta fase, que muitos consideram ser o início efetivo do constitucionalismo, temos o surgimento dos documentos constitucionais liberais e dos documentos constitucionais sociais.

O desenvolvimento do constitucionalismo moderno liberal é resultante das grandes revoluções liberais do século XVIII. Protagonizadas pelos EUA (1776) e França (1789), simbolizam a luta pela liberdade e pela ampliação da participação política na superação do Estado absolutista.

Embora a Revolução Americana e a Revolução Francesa possuam influências históricas, políticas e doutrinárias diversas, ambas favoreceram a instituição de um novo modelo de Estado (liberal) através da promulgação das primeiras constituições escritas que, além de limitar o poder dos governantes, afirmavam direitos políticos e individuais dos cidadãos.

A história do constitucionalismo norte-americano teve influência determinante das ideias iluministas, as quais encorajaram as antigas treze colônias britânicas da América do Norte a de-clararem sua independência em 04 de julho de 1776 e a criarem a primeira Constituição escrita do mundo moderno (promulgada apenas em 1787), que instituiu uma república federativa presidencialista, fundada na separação de Poderes, na igualdade e na rule of law (supremacia da lei). Seu texto original, entretanto, não apresentava uma declaração de direitos, a qual só fora criada posteriormente pelas emendas constitucionais de 1791, conhecidas como Bill of

Rights, que traziam garantias estritas e permanentes contra as indevidas e ilegais intromissões

governamentais na vida do indivíduo.

Na Europa, por sua vez, foram as ondas de revolta da burguesia, formada por ricos comer-ciantes, que reivindicavam participação nas decisões políticas do Estado, que deflagrou, em 1789, a Revolução Francesa. Sob o lema “liberdade, igualdade e fraternidade” – valores estes sintetiza-dos na Declaração sintetiza-dos Direitos do Homem e do Cidadão – o novo movimento revolucionário logrou derrubar o antigo regime e instituir uma nova forma de governo antiabsolutista. Em 1891, quando o texto da Constituição francesa foi finalizado, a Europa conheceria sua primeira constituição escrita – poucos anos depois de promulgada a Constituição Americana.

Assim, podemos afirmar que o constitucionalismo moderno liberal teve como expoente histórico as revoluções liberais que resultaram na consagração dos direitos civis e políticos

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clássicos (direitos que hoje consideramos como de 1ª geração), essencialmente ligados ao valor liberdade, os quais apresentam-se como direitos dos indivíduos que são oponíveis, sobretudo, ao Estado, na medida em que exigem deste, precipuamente, uma abstenção, um não fazer, possuindo, dessa forma, inequívoco caráter negativo.

Em conclusão, o constitucionalismo do período, intitulado de liberal, ficou marcado pelo enaltecimento do indivíduo, pelo surgimento das primeiras constituições escritas e rígidas, pela consagração de direitos civis e políticos e pelo distanciamento do Estado que, numa postura nitidamente absenteísta, pouco atuava.

Foi na virada do século XIX para o século XX, diante da incapacidade do liberalismo em lidar com a crescente exclusão e desigualdade social, que a nova (e empobrecida) classe proletária passou a exigir do Estado uma maior interferência nas relações trabalhistas e sociais, a fim de conter os brutais abusos aos quais os trabalhadores (urbanos e rurais) es-tavam submetidos. É nesse contexto de crise que emerge a ideia de Estado Social e surgem as primeiras constituições que preveem direitos de 2ª geração (econômicos e sociais), mar-cadamente relacionados ao ideal de igualdade. Os documentos constitucionais do México de 1917 e de Weimar de 1919 são, comumente, apontados como os primeiros a preverem direitos trabalhistas.

No Brasil, os documentos de 1824 e 1891 foram nitidamente influenciados pela concep-ção liberal, ao passo que a Constituiconcep-ção de 1934 representa um documento de caráter social.

(E) Constitucionalismo Contemporâneo (ou “neoconstitucionalismo”)

Tendo como matriz o princípio da dignidade da pessoa humana, tal fase do constitucio-nalismo (que começa a se desenvolver após o encerramento do trágico período das duas Gran-des Guerras Mundiais) traz novos grupos de direitos fundamentais, notadamente relacionados à necessidade de respondermos satisfatoriamente às novas ameaças, reveladas pelas barbáries cometidas durante os conflitos bélicos. Assim, surgem os direitos fundamentais de 3ª, 4ª e 5ª geração. Conforme estudaremos no capítulo atinente à teoria geral dos Direitos e das Garantias Fundamentais, na 3ª geração estão consagrados os direitos de solidariedade/fraternidade; na 4ª os relacionados ao pluralismo, à diversidade, à democracia e à informação; na 5ª teríamos o direito à paz.

É também neste momento que a “força normativa da Constituição” é, de modo cate-górico, confirmada. Como consequência do reconhecimento de que o texto constitucional tem “normatividade” (tem sentido jurídico e todas as suas disposições são de observância obrigatória), suas normas passam a ser manejadas para solver litígios judiciais e atuarem en-quanto parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade das normas inferiores. Ademais, cimentado o ideal de superioridade constitucional, todas as consequências dessa aceitação (de que a Constituição é um documento supremo a todos os demais) se apresentam, como por exemplo, a constitucionalização de todo o Direito.

Em desfecho ao tópico, recomendamos efusivamente que o leitor busque o texto do Min. Luís Roberto Barroso, intitulado “Neoconstitucionalismo - O triunfo tardio do Direito

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Constitucional no Brasil”6. Neste artigo, o autor busca reconstituir, de modo objetivo, a

trajetória percorrida pelo Direito Constitucional nas últimas décadas, na Europa e no Brasil, considerando três marcos fundamentais: o histórico, o teórico e o filosófico. Esses três marcos abraçam as ideias e as mudanças de paradigma que mobilizaram a doutrina e a jurisprudência nesse período, gerando uma nova percepção da Constituição e de seu papel na interpretação jurídica. Em breve resumo, poderíamos dizer que:

- como marco histórico desse novo direito constitucional temos: (i) na Europa con-tinental, o constitucionalismo do pós-guerra, em especial na Alemanha e na Itália, (ii) no Brasil, a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar;

- como marco filosófico, temos o pós-positivismo, cuja caracterização situa-se na confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo. O cenário atual é marca-do pela superação desses modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de ideias, reunidas sob o rótulo genérico de ‘pós-positivismo’;

- como marco teórico, considera-se que foram três as grandes transformações que subverteram o conhecimento convencional relativamente à aplicação do Direito Constitucional: (1) o reconhecimento de força normativa à Constituição; (2) a ex-pansão da jurisdição constitucional; (3) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.

(F) Constitucionalismo do Futuro (ou constitucionalismo vindouro ou do porvir)

Como é de se esperar, a evolução do movimento constitucionalista prosseguiu, de modo que uma nova fase, em sequência ao neoconstitucionalismo, já tem sido identificada.

Intitulado como “el constitucionalismo del ‘por-venir’” por seu idealizador – o jurista argentino José Roberto Dromi7 – o constitucionalismo do futuro identifica sete valores

fun-damentais que as Constituições do futuro deverão observar.

Consoante preceitua o jurista argentino, o constitucionalismo do futuro deve identificar-se com os seguintes valores: (i) a verdade, (ii) a solidariedade, (iii) o consenso, (iv) a continuidade, (v) a participação, (vi) a integração e (vii) a universalidade:

(i) verdade - O Poder Constituinte Originário, no momento de elaborar o texto cons-titucional, deverá avaliar os temas que realmente devem ser constitucionalizados, isto é, inseridos no documento constitucional: somente aqueles que podem ser con-cretizados/efetivados devem ser positivados, evitando, assim, a previsão de ‘promes-sas vazias’, que não serão realizadas. Em suma: fal‘promes-sas e irresponsáveis expectativas não serão toleradas.

6. Disponível em múltiplos sites. Acessamos, em 04.12.2019, o seguinte: https://www.migalhas.com.br/ dePeso/16,MI24089,91041-Neoconstitucionalismo+O+triunfo+tardio+do+Direito+Constitucional+no

7. DROMI, José Roberto. La Reforma Constitucional: El Constitucionalismo del “por-venir”. In: ENTERRIA, Eduardo Gar-cia de; ARÉVALO, Manuel Clavero (coord). El Derecho Público de Finales de Siglo: Una Perspectiva Iberoamericana. Madri: Fundación BBV, 1997, p.107-116.

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(ii) solidariedade - Em uma nova leitura do ideal de igualdade, com essa premissa al-meja-se a solidariedade entres os diferentes povos, bem como a implementação de um tratamento digno para a pessoa humana e a busca pela justiça social. É também uma premissa conectada ao ideal de cooperação, aceitação, tolerância e busca pela agregação constitucional das diversidades.

(iii) consenso - O texto constitucional deve ser fruto de um consenso democrático. (iv) continuidade - Sabemos que os documentos constitucionais não podem ser

imu-táveis, sob pena de perderem completamente a identidade com a realidade (tão dinâmica e mutante) que eles pretendem normatizar. Por isso, a previsão de um mecanismo de alteração da Constituição é esperada. No entanto, tais modifi-cações não podem abalar o projeto básico daquele documento, esfarelando sua identidade ou causando uma descontinuidade lógica. Nesse contexto, vale frisar que os direitos já consagrados constitucionalmente devem ser resguardados e pro-tegidos contra tentativas de afastamento, bem como devem ser continuamente aprimorados.

(v) participação - Quanto à participação popular, Dromi vislumbra sua essencialidade, na tentativa de sublimar o apático comportamento dos indivíduos diante da vida política do Estado. O cidadão deve ser, portanto, incluído, de modo a atuar efeti-vamente para consagrar uma real democracia participativa e o Estado Democrático de Direito.

(vi) integração - Os documentos constitucionais do futuro devem buscar meios que permitam uma integração espiritual, moral, ética e institucional entre os povos. O constitucionalismo adquirirá, portanto, caráter transnacional.

(vii) universalidade - No intuito de preservar a dignidade da pessoa como vetor univer-sal, preocupa-se o constitucionalismo do futuro com a universalização dos direitos fundamentais para todos os povos.

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Pois bem, esforçado leitor. Agora que já estudamos esse ponto importante da matéria, vale apresentar, em finalização ao tópico, um esquema:

2. CONCEPÇÕES DE CONSTITUIÇÃO

2.1. Introdução

Partindo da premissa de que a definição precisa do vocábulo “Constituição” é tarefa árdua, eis que o termo se presta a mais de um sentido, reconhece-se uma gama variada de concepções que tencionaram desvendá-lo, cada qual construída a partir de uma dis-tinta forma de entender e explicar o Direito. Em que pese serem todas muito diversas e possuírem bases teóricas muitas vezes opostas, são de grande valia doutrinária, pois foram possivelmente adequadas em algum momento histórico (ou segundo um específico pris-ma de análise) e fornecem os elementos para a síntese dialética que o constitucionalismo contemporâneo oferta hoje.

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Far-se-á referência, nos itens seguintes, aos sentidos e as concepções de maior reper-cussão que disputam a conceituação adequada do termo.

2.2. Constituição sob o prisma sociológico

Ao conceito sociológico associa-se o alemão Ferdinand Lassalle que, em sua obra “A essência da Constituição”, sustentou que esta seria o produto da soma dos fatores reais de poder que regem a sociedade.

Segundo esta concepção, a Constituição é um reflexo das relações de poder vigentes em determinada comunidade política. Assemelhada a um sistema de poder, seus contornos são definidos pelas forças políticas, econômicas e sociais atuantes e pela maneira como o poder está distribuído entre os diferentes atores do processo político. Isso significa que Constituição real (ou efetiva) é, para o autor, o resultado desse embate de forças vigentes no tecido social.

Oposta a esta, tem-se a Constituição escrita (ou jurídica) que, ao incorporar num texto escrito esses fatores reais de poder, os converte em instituições jurídicas. Todavia, essa Cons-tituição escrita não passa de um mero “pedaço de papel”, sem força diante da Constituição real, que seria a soma dos fatores reais de poder, isto é, das forças que atuam para conservar as instituições jurídicas vigentes.

Como num eventual embate entre o texto escrito e os fatores reais de poder estes últimos sempre prevalecerão, deverá a Constituição escrita sempre se manter em consonância com a realidade, pois, do contrário, será esmagada (como uma simples “folha de papel”) pela sua incompatibilidade com o que vige na sociedade.

O autor exemplifica a essencial consonância entre o texto escrito e a realidade fática com uma interessante metáfora:

Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta árvore é uma figueira”. Bastará esse papel para transformar em figuei-ra o que é macieifiguei-ra? Não, natufiguei-ralmente. E embofiguei-ra conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fábula, produzindo maçãs e não figos.8

Por outro lado, quando há inequívoca correspondência entre a Constituição real e a escrita, estaremos diante de uma situação ideal, em que a Constituição é compatível com a realidade que ela pretende normatizar. Deste modo, para Ferdinand Lassalle, só é eficaz aquela Constituição que corresponda aos valores presentes na sociedade.

2.3. Constituição sob o aspecto político

A percepção de Carl Schmitt, elaborada na clássica obra “Teoria da Constituição”, ventila um novo olhar sobre o modo de se compreender a Constituição: não mais arraigada à distribuição de forças na comunidade política, agora a Constituição corresponde à “decisão

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política fundamental” que o Poder Constituinte reconhece e pronuncia ao impor uma nova existência política.

Sob o prisma político, portanto, pouco interessa se a Constituição corresponde ou não aos fatores reais de poder, o importante é que ela se apresente enquanto o produto de uma decisão de vontade que se impõe, que ela resulte de uma decisão política fundamental oriunda de um Poder Constituinte capaz de criar uma existência política concreta, tendo por base uma normatividade escolhida.

Para o autor, a compreensão do vocábulo “Constituição” passa ainda pela aceitação de que o documento constitucional é um conjunto de normas que não estão conectadas por nenhuma unidade lógica. Os dispositivos só se assemelham no aspecto formal, pois estão todos inseridos num mesmo documento e não podem ser alterados por lei ordinária; sob o ponto de vista material os dispositivos integrantes da Constituição variam: enquanto uns são cruciais para a comunidade (porque referem-se à estruturação do Estado ou aos direitos fundamentais), outros só estão ali para se protegerem de uma modificação por lei ordinária, pois não trazem conteúdo de grande relevância jurídica e política.

A leitura que o autor faz dessa diversidade de normas na Constituição cria uma dicotomia que as divide em “constitucionais” (aquelas normas vinculadas à decisão política fundamental) e em “leis constitucionais” (aquelas que muito embora integrem o texto da Constituição, sejam absolutamente dispensáveis por não comporem a decisão política fundamental daquele Estado).

Desta forma, constitucionais são somente aquelas normas que fazem referência à decisão política fundamental, constituindo o que hoje denominamos de “normas materialmente cons-titucionais”. Todos os demais dispositivos inseridos na Constituição, mas estranhos a esses temas, são meramente leis constitucionais, isto é, nos dizeres atuais: somente formalmente constitucionais.

2.4. Constituição em sentido jurídico

Na percepção jurídica a Constituição se apresenta enquanto norma superior, de obediência obrigatória e que fundamenta e dá validade a todo o restante do ordenamento jurídico.

Esta concepção foi construída a partir das teses do mestre austríaco Hans Kelsen, que se tornou mundialmente conhecido como o autor da Teoria Pura do Direito. Observe-se, porém, que a teoria pura não é somente o título de uma obra e sim de um empreendimento que tencionava livrar o Direito de elementos estranhos a uma leitura jurídica de seu objeto – isto é, visava desconsiderar a influência de outros campos do conhecimento como o polí-tico, o social, o econômico, o ético e o psicológico, uma vez que estes em nada contribuíam para a descrição das normas jurídicas – possibilitando que o Direito se elevasse à posição de verdadeira ciência jurídica.

Kelsen estruturou o ordenamento de forma estritamente jurídica, baseando-se na cons-tatação de que toda norma retira sua validade de outra que lhe é imediatamente superior. Segundo o autor, no mundo das normas jurídicas uma norma só pode receber validade de outra, de modo que a ordem jurídica sempre se apresente estruturada em normas superiores

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fundantes – que regulam a criação das normas inferiores – e normas inferiores fundadas – aquelas que tiveram a criação regulada por uma norma superior.

Essa relação de validade culmina em um escalonamento hierárquico do sistema jurídico, uma vez que as normas nunca estarão lado a lado, ao contrário, apresentarão posicionamentos diferenciados em graus inferiores e superiores.

Para exemplificar sua teoria, Kelsen sugere que partamos de um fenômeno jurídico individual, como uma sentença. Acaso se pergunte por que a mesma é obedecida, o autor soluciona a questão remetendo o questionador ao código que autoriza ao juiz decidir o caso através da prolação da decisão – já que o código funciona como norma superior fundante que confere validade jurídica à sentença.

Mas a esta pode seguir-se outra pergunta, relativa à razão de o código ser válido. Por mais uma vez Kelsen nos remete a norma superior que dá validade ao código: o legislador está devidamente autorizado pela Constituição a editar as leis; deste modo, ao fazê-lo, está obedecendo a Constituição.

Esta última, todavia, também compõe o sistema normativo e, como todas as outras normas, depende que algo lhe confira validade: se uma norma somente adquire tal status a partir de uma outra norma, será preciso admitir que existe uma norma fundamentando a Constituição9.

Pode ser que a atual Constituição vigente em determinado Estado tenha sido criada me-diante uma lei autorizada pela Constituição anterior, retirando sua validade deste documento. Mas este último também pode ter sua validade questionada e assim sucessivamente, até se chegar à primeira Constituição daquele Estado, provavelmente criada através da emancipação de um Estado frente a outro – revolução ou declaração de independência.

Ainda assim, frente a essa primeira Constituição (que não esteja em disputa e seja, por-tanto, eficaz10), a questão da validade permaneceria imperiosa, principalmente porque se não

for devidamente resolvida, toda a cadeia de fundamentação deixa de fazer sentido: afinal, acaso se perca o fundamento da Constituição, esta não estará apta a validar mais nada, os códigos perderiam seu suporte e, por conseguinte, os atos que nele se fundamentam também. O sistema desmoronaria.

Essa cadeia de validade ou hierarquia do Direito deve, portanto, encontrar um ponto final sob pena de se chegar ao infinito, já que toda norma dependerá de uma superior e assim indefinidamente.

A busca por esse último alicerce da ordem normativa levou Kelsen a construir a teoria da norma fundamental, que irá justificar a validade objetiva de determinada ordem jurídica positiva. Chega-se a esta norma básica quando não se admite um único passo para trás na

9. SGARBI, Adrian. Hans Kelsen. Ensaios Introdutórios. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 13.

10. Para nosso autor a Constituição deixa de ser considerada em disputa e torna-se globalmente eficaz quando as normas estão sendo obedecidas, isto é, servindo de parâmetro para as condutas, ou quando as normas não são devidamente observadas, mas os funcionários estão efetivamente punindo, através da aplicação de sanções, aqueles transgressores.

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cadeia de validade jurídica, pois ela será a norma superior por excelência, única a não depender de outra que lhe dê suporte.

E esta independência é característica que decorre do próprio sentido que ela possui: não é um documento factual, mas sim algo pressuposto. Kelsen explica melhor:

A norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no intermi-nável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. [...] Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental. [...] Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum (grifo nosso)11.

Ao se valer, pois, dessa pressuposição – de que há uma norma básica, através da qual todas as outras podem ser identificadas numa sequência de atribuição de validade –, Kelsen demonstrou se submeter à influência de Kant no que diz respeito a aceitação de que em todo ramo do conhecimento haverá de se reconhecer alguma pressuposição12.

Para finalizar a análise da concepção jurídica, deve-se dizer ainda que foram desenvolvidos dois sentidos para o vocábulo “Constituição”:

(i) no primeiro, lógico-jurídico, “Constituição” significa a “norma fundamental hi-potética”, que não é posta, mas sim pressuposta, e que positiva apenas o comando “obedeçam a Constituição positiva”;

(ii) o segundo, jurídico-positivo, traz “Constituição” como norma positiva suprema, que fundamenta e dá validade a todo o ordenamento jurídico, somente podendo ser alterada se obedecidos ritos específicos.

Em conclusão, a concepção puramente normativa da Constituição não considera se o documento constitucional é estabelecido por alguma vontade política, tampouco se reflete fielmente os fatores reais de poder que regem a sociedade. Ao contrário, vê a Constituição enquanto um conjunto de normas jurídicas prescritivas de condutas humanas, devidamente estruturadas e hierarquizadas num ordenamento escalonado, que encontra seu fundamento de validade definitivo e último na norma fundamental, ponto de convergência de todas as normas integrantes do sistema jurídico e fundamento de validade transcendental de toda a estrutura normativa.

11. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 217.

12. “Segundo Kant, o trabalho de se encontrar os elementos universais do conhecimento não se dá sem alguma pres-suposição, através da qual todo o resto obtém sentido” (SGARBI, Adrian. Teoria do Direito. 1ª ed. Brasília: Lumen

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2.5. Concepção culturalista da Constituição (a busca por alguma conexão entre

os sentidos anteriormente apresentados)

Esta acepção desenvolve-se a partir da consideração de que a Constituição é um produto da cultura, pois assim como a cultura é o resultado da atividade criativa humana, o Direito também o é.

Para esta concepção, a Constituição se fundamenta simultaneamente em fatores sociais, nas decisões políticas fundamentais (frutos da vontade política do poder constituinte) e também nas normas jurídicas de dever ser cogentes. Com isso, congrega todas as concepções anteriores, criando o ambiente jurídico favorável ao surgimento de uma Constituição total, com aspectos econômicos, morais, sociológicos, filosóficos e jurídicos reunidos com o fito de construir uma unidade para a Constituição.

Esse conceito de Constituição total agrega, numa mesma e unitária perspectiva, variados aspectos (econômicos, morais, sociológicos, filosóficos e jurídicos), o que afasta a visão estreita acarretada pelo isolacionismo das acepções anteriormente estudadas.

Para a teoria culturalista não parece adequado explicar a Constituição como um mero fato social, como pretenderam os adeptos da concepção sociológica. Isso porque em que pese as perspectivas social, econômica e história influenciarem, claro, o desenvolvimento da ordem jurídica, esta última não se reduz a um simples produto das infraestruturas sociais. Também a limitação da Constituição à decisão política fundamental tem sua importância – especialmente no que se refere à robustez conferida à doutrina do poder originário enquanto tradução da vontade política da nação – mas não explica satisfato-riamente o conceito. Por último, a percepção jurídica também não parece, aos partidários da leitura culturalista, uma acepção completa haja vista se dissociar em demasia das bases empíricas que a produziram, desconsiderando completamente a realidade social concreta que ela visa normatizar.

É nesse sentido que alguns autores têm demonstrado inequívoca predileção pelo cultura-lismo como forma de entender e explicar o conceito de Constituição. De acordo com Dirley: “Devemos, porém, confessar que a concepção de Constituição como fato cultural é a melhor que desponta na teoria da Constituição, pois tem a virtude de explorar o texto constitucional em todas as suas potencialidades e aspectos relevantes, reunindo em si todas as concepções – a sociológica, a política e a jurídica – em face das quais se faz possível compreender o fenômeno constitucional”13.

3. CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES

Não de maneira uníssona, a doutrina, no intuito de classificar as Constituições, apresenta variados critérios tipológicos, alguns meramente formais, outros pretensamente substanciais14.

13. CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 95.

14. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito

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