Luísa Parreira Coelho Vieira de Campos
Doença Mental
e prestação de cuidados
U n i V e r s i D a D e C a t ó L i C a e D i t o r a L i s B o a 2 0 0 9
Índice
Abertura 13 Introdução 17
Capítulo um
Da doença mental à prestação de cuidados 23 1. Esquizofrenia: paradigma das doenças mentais 23 2. Do hospital para a comunidade 30
2.1 A desinstitucionalização na evolução do tratamento da esquizofrenia 31
2.2 O tratamento integrado 32 2.3 A desinstitucionalização no âmbito
das políticas de Saúde Mental 35 2.4 O peso da doença nas sociedades 40 2.5 O peso da doença nas famílias 42
3. Da perspectiva da recaída do doente ao impacto da doença nos cuidadores 45
Capítulo dois
Do Burden à Experiência de prestação de cuidados 51 1. Ponto de partida: “burden on the family” de Treudley (1946)
2. Ponto de chegada: A “experiência da relação de prestação de cuidados”
de Szmukler e colaboradores (1996) 65
Capítulo três
O papel das variáveis sociodemográficas e clínicas 73 1. Variáveis relacionadas com o doente
e com a doença 75 2. Variáveis relacionadas com o cuidador 91 3. Variáveis relacionadas com a estrutura da família 115
Capítulo quatro
Avaliação da prestação de cuidados, recursos pessoais e sociais 119 1. Modelo teórico stress-appraisal-coping 119 2. Percepção positiva da prestação de cuidados,
percepção da doença e aspectos relacionais 126 3. Recursos pessoais e sociais 137
3.1 Coping 138
3.2 Suporte social 142
3.3 Coping, suporte social e burden 147
4. Modelo stress-appraisal-coping e experiência de prestação de cuidados 151
Capítulo cinco
Conclusão: Uma síntese do estado da arte 157
Índice Esquema Esquema 1. Necessidades das pessoas com perturbações mentais 34
Índice Figuras
Figura 1. Modelo “stress-coping” da prestação de cuidados 68
Índice Quadros
Quadro 1. Síntese dos resultados relativos às relações
entre o burden e os comportamentos sintomáticos do doente 81
Quadro 2. Síntese dos resultados relativos às relações
entre o burden e a idade do cuidador 96 Quadro 3. Síntese dos resultados relativos às relações
entre o burden e a etnia do cuidador 98 Quadro 4. Síntese dos resultados relativos às relações entre o burden e a classe social/rendimentos do cuidador 100
Quadro 5. Síntese dos resultados relativos às relações
Abertura
Os anos 50 e 60 do séc. XX marcaram o início da passagem dos doentes psiquiátricos dos hospitais para a comunidade, processo designado de desinstitucionalização. Esta mudança levou a que o sistema familiar passasse a ocupar um papel fundamental junto destes doentes, tornando-se no principal
recurso assistencial. Este facto levou ao reconhecimento dos
potenciais efeitos prejudiciais da prestação de cuidados nos cuidadores informais, comummente designado de burden, uma expressão originalmente proposta em meados do século XX e que se mantém até hoje, significando “sobrecarga”.
Ao longo das últimas seis décadas, desenvolveu-se um importante corpo de investigação centrado no burden familiar. Diversas limitações foram sendo apontadas a esta conceptu-alização, nomeadamente, os problemas de operacionalização que a visão dicotómica do burden coloca e a redutibilidade do conceito, ao considerar apenas as repercussões negativas da prestação de cuidados. Começou, assim, a considerar-se que a prestação de cuidados informais não teria apenas uma
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repercussão negativa podendo, igualmente, contribuir para um desenvolvimento pessoal positivo e para um amadurecimento importante nos cuidadores.
Com este livro, que faz uma revisão teórica e empírica da investigação desenvolvida no âmbito da prestação de cuidados informais na doença mental grave, pretendemos contribuir, em termos teóricos, para um melhor conhecimento e sistematização da investigação realizada neste âmbito (quer nacional, quer internacional); e, em termos práticos, para o desenvolvimento de intervenções que integrem, não apenas a atenuação de factores de risco, mas também a promoção de factores protectores da experiência de prestação de cuidados.
É, assim, um livro que se destina a um público muito vasto, tanto estudantes e investigadores – medicina, psicolo-gia, enfermagem, serviço social, terapia ocupacional – como profissionais, nomeadamente, psicólogos clínicos, psiquiatras, enfermeiros, técnicos de serviço social e de saúde, terapeutas ocupacionais, gestores, planificadores de cuidados e, final-mente, aos próprios cuidadores informais de pessoas com doença mental grave.
“A minha experiência com a doença mental foi-se modificando no sentido positivo, com o tempo, com a própria experiência e com a ajuda que fui conseguindo em vários campos. Aprendi a não desejar o impossível, a valorizar o essencial, e a perceber que a doença mental não “pode”, não deve, ser contagiosa para que a família continue firme, unida e se puder feliz.
Para que tal aconteça a doença mental não deve ser o parente pobre da saúde em geral.
[Os Doentes] devem ter direitos como todos os outros, e também deveres, para se poderem realizar como cidadãos e não serem excluídos da sociedade. Não deve ser só a família a suportar esta situação que, em geral, é difícil e muito desgastante.”
Introdução
Ao longo das últimas seis décadas, desenvolveu-se um importante corpo de investigação centrado no burden familiar (Burden on the family, Treudley, 1946), expressão que, em português, é normalmente traduzida por sobrecarga familiar. Diversas limitações foram sendo apontadas a esta conceptu-alização, nomeadamente, os problemas de operacionalização que a visão dicotómica do burden coloca (objectivo versus subjectivo) e a redutibilidade do conceito, ao considerar apenas as repercussões negativas da prestação de cuidados; daqui decorre a necessidade de uma abordagem centrada na forma idiossincrática como cada cuidador percebe, sente, experiencia a prestação de cuidados informais, devendo ser considerada a avaliação da dimensão positiva desta experiência.
A partir da década de 90, alguma investigação centrou-se nas experiências dos cuidadores informais, compreendidas a partir dos modelos teóricos que combinavam teorias do sistema e do stress-appraisal-coping (Lazarus & Folkman, 1984). Começou, assim, a considerar-se que a prestação de cuidados
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informais não teria apenas uma repercussão negativa podendo, igualmente, contribuir para um desenvolvimento pessoal positivo e para um amadurecimento importante nos cuidadores. Foi proposta, em alternativa ao burden, a conceptualização da experiência da relação de prestação de cuidados (Experience
of Caregiving, Szmukler, Burgess, Herrman, Benson, Colusa
& Bloch, 1996).
A experiência de prestação de cuidados parece, assim, possuir algumas vantagens, do ponto de vista teórico e prático. É um conceito mais lato, que contempla alguns aspectos positivos decorrentes da relação e permite que os resultados possam ser construídos, não só em termos de morbilidade, mas também em termos de bem-estar psicológico.
Uma vez que, em Portugal, a investigação centrada na prestação de cuidados mais especificamente na sua dimensão positiva, encontra-se ainda num estado inicial, considerámos fundamental a realização de uma sistematização da investigação internacional e nacional desenvolvida ao longo das últimas décadas. Partimos, necessariamente, da conceptualização clássica do burden e explorámos, no final deste percurso, um conceito recente, alternativo e mais lato – experiência de
prestação de cuidados – que nos alerta para a existência de uma
possível dimensão positiva da prestação de cuidados informais, uma dimensão de recursos e de potencialidades e que, por isso mesmo, deverá ser trabalhada em contextos de saúde mental.
A leitura deste livro possibilitará, assim, uma maior com-preensão da variabilidade das experiências dos cuidadores informais e das variáveis envolvidas; e, neste sentido,
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pretendemos que contribua para o desenvolvimento de inter-venções que integrem, não apenas a atenuação de factores de risco, mas também a promoção de factores protectores da experiência de prestação de cuidados.
O livro divide-se em cinco capítulos. No primeiro capítulo – Da doença mental à prestação de cuidados – iniciamos com uma breve abordagem à esquizofrenia (considerada o paradigma das doenças mentais); em seguida, realizamos um percurso desde o hospital psiquiátrico até à comunidade, no qual salientamos um conjunto de aspectos que permitem compreender algumas vicissitudes da prestação de cuidados informais à pessoa com doença mental grave. Neste capítulo, realçamos a importância do movimento de desinstitucionalização e as suas repercussões ao nível do tratamento do doente, das políticas de saúde mental e do peso da doença nas sociedades e nas famílias.
No capítulo II partimos do conceito de “burden on the
family”, proposto por Treudley (1946) e abordamos as
con-tribuições subsequentes. Este ponto termina com a síntese das principais limitações subjacentes à conceptualização do
burden, algumas delas justificativas da proposta alternativa
da experiência de prestação de cuidados.
No capítulo III realizamos uma revisão dos contributos da investigação. Analisamos os resultados obtidos em relação ao papel das variáveis sociodemográficas e clínicas do doente e do cuidador, da doença e da família no burden e na experiência de prestação de cuidados. O capítulo termina com a síntese das principais dificuldades e limitações metodológicas dos estudos desenvolvidos, nesta área de investigação, até à década de 90.
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Segue-se o capítulo IV – Avaliação da prestação de
cui-dados, Recursos pessoais e sociais – no qual aprofundamos os
aspectos teóricos e apresentamos as investigações recentes que procuraram ultrapassar as limitações apontadas no final do capítulo anterior. Iniciamos com a explicitação do modelo
stress-appraisal-coping; em seguida, centramo-nos numa revisão
de investigações que exploraram a percepção positiva da prestação
de cuidados, da doença e dos aspectos relacionais; e os recursos pessoais e sociais, e, no final, terminamos com a apresentação
de trabalhos que tiveram como objecto de estudo a experiência de prestação de cuidados e que procuraram validar o modelo
stress-appraisal-coping.
Chegamos ao final deste livro – Capítulo V – no qual efectuamos uma, muito útil, Síntese do estado da arte, no âmbito da prestação de cuidados informais na doença mental.
* *
Antes de partirmos para o primeiro capítulo consideramos fundamental clarificar, sob o ponto de vista conceptual, os seguintes termos e expressões que doravante iremos utilizar em abundância, designadamente, relação de prestação de cuidados (caregiving); burden familiar (family burden); e burden do cuidador (caregiver burden).
Em primeiro lugar, importa compreender que a utiliza-ção do termo burden familiar ou a sua existência pressupõe, à partida, uma relação de prestação de cuidados (caregiving). Ao longo do livro, a expressão de prestação de cuidados refere- -se à prestação de cuidados informais, ou seja não profissional
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ou técnica; da mesma forma, quando é referida a palavra cuidadores, esta diz respeito aos cuidadores informais. Neste contexto, a prestação de cuidados informais implica uma relação entre duas pessoas adultas que possuem, normalmente, relações de parentesco – a pessoa que presta os referidos cuidados designa-se por cuidador (caregiver) e a pessoa que os recebe (care recipient) é o doente. A primeira encerra em si uma responsabilidade não remunerada e não antecipada em relação ao outro; o outro é portador de doença mental grave (sem tratamento curativo disponível), necessitando de acentuados cuidados, sendo de salientar que não possui capacidade para realizar as recíprocas obrigações associadas às relações adultas normativas. Por conseguinte, fala-se de burden quando ao papel familiar já existente se associa o papel de prestar cuidados (Gallop et al., 1991; Gubman et al., 1987; Tessler et al., 1989; ideia e autores cit. in Schene, Tessler & Gamache, 1994).
Outra clarificação importante centra-se na utilização das expressões family burden e caregiver burden. Esta questão, discutida em artigos de revisão fundamentais, tais como os de Maurin e Boyd (1990) e Schene e colaboradores (1994) poderá, possivelmente, conduzir a alguma ambiguidade aquando da leitura de trabalhos relativos a este tema. Desta forma e, apesar do conceito se ter desenvolvido a partir da expressão “Burden on the family” (Treudley, 1946) – que significa burden na família/burden familiar, a grande maioria dos trabalhos realizados nesta área foram desenvolvidos a partir de amostras constituídas por cuidadores primários sendo, por isso, utilizada
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muitas vezes a expressão “caregiver burden” (Schene et al., 1994).
Finalmente, resta referir que, ao longo deste livro, iremos utilizar, indiferenciadamente, as expressões experiência da
relação de prestação de cuidados, experiência de prestação de cuidados e experiência de cuidar; e que optámos pela utilização
do conceito original em inglês burden, e não pela sua tradução (sobrecarga).