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Mestre Eckhart - A Mística de Ser e de Não Ter

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MESTRE ECKHART

MESTRE ECKHART

A

A

 Mística de Ser e de não T Mística de Ser e de não Terer

Centro de Investigação e Divulgação

Centro de Investigação e Divulgação

Publicações CID

Publicações CID

 Espiritualidade/5  Espiritualidade/5

Coordenadores:

Coordenadores:

 Aredngelo R. Buzzi  Aredngelo R. Buzzi  Leonardo Boff  Leonardo Boff

MESTRE ECKHART

MESTRE ECKHART

A Mística de Ser e de não Ter

A Mística de Ser e de não Ter

Coordenação e introdução de

Coordenação e introdução de

 Leonardo Boff, O.F.M.  Leonardo Boff, O.F.M.

Tradução de

Tradução de

 Raimundo Vier, O.F.M.  Raimundo Vier, O.F.M.  Fidelis Vering, O.F.M.  Fidelis Vering, O.F.M.  Leonardo Boff, O.F.M.  Leonardo Boff, O.F.M.

VOZES VOZES

Petrópolis

Petrópolis

1983

1983

Editora Vozes Ltda. Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luis, 100 Rua Frei Luis, 100 25600 Petrópolis, RJ 25600 Petrópolis, RJ Brasil Brasil Diagramação Diagramação Beatriz Salgueiro, Beatriz Salgueiro,

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 Dedico este texto aos c

 Dedico este texto aos confrades dominicanos doonfrades dominicanos do  Brasil, da mesma Ordem de

 Brasil, da mesma Ordem de Mestre Eckhart, pelosMestre Eckhart, pelos apóstolos, pastores, confessores, doutores, místicos e apóstolos, pastores, confessores, doutores, místicos e mártires que deram à Igreja no

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INTRODUÇÃO ... 6

Mestre Eckhart: A mística da disponibilidade e da libertação ... 6

O CAMINHO DO SEGUIMENTO ... 6

O CAMINHO DA MÍSTICA ... 7

A QUESTÃO FUNDAMENTAL DE TODA MÍSTICA ... 8

COMO SE EXPRIME A MÍSTICA ... 9

A VIDA DO MESTRE ECKHART ... 12

A OBRA LITERÁRIA DE MESTRE ECKHART ... 15

A QUESTÃO FUNDAMENTAL DA MÍSTICA E A PROPOSTA DE ECKHART ... 16

O TOTAL DESPRENDIMENTO E A PERFEITA LIBERDADE COMO CAMINHOS À UNIDADE ... 19

OBSTÁCULOS À COMPLETA DISPONIBILIDADE ... 20

MEIOS PARA A PERFEITA DISPONIBILIDADE ... 21

MESTRE ECKHART E A MÍSTICA DE LIBERTAÇÃO ... 22

TEXTOS ... 26

O LIVRO DA DIVINA CONSOLAÇÃO ... 27

II. O HOMEM NOBRE ... 45

III. CONVERSAÇÕES ESPIRITUAIS ... 50

1. A VERDADEIRA OBEDIÊNCIA ... 50

2. QUAL A ORAÇÃO MAIS FORTE E QUAL A OBRA MAIS EXCELENTE ... 51

3. OS PREOCUPADOS, CHEIOS DE SI MESMOS ... 51

4. COMO É ÚTIL RENUNCIAR EXTERIOR E INTERIORMENTE ... 52

5. O QUE FAZ A ESSÊNCIA E O FUNDAMENTO SEREM BONS ... 52

6. O DESPOJAMENTO E A POSSE DE DEUS ... 53

7. COMO O HOMEM DEVE AGIR DA FORMA MAIS RAZOÁVEL POSSÍVEL ... 54

8. O EMPENHO CONSTANTE NO MÁXIMO CRESCIMENTO ... 55

9. COMO A INCLINAÇÃO PARA O MAL PODE TORNAR O HOMEM PIEDOSO ... 55

10. COMO A VONTADE TUDO PODE E COMO TODAS AS VIRTUDES RESIDEM NA VONTADE COM A CONDIÇÃO DE QUE SEJA RETA ... 56

11. O QUE O HOMEM DEVE FAZER QUANDO É PRIVADO DE DEUS E QUANDO DEUS SE ESCONDEU ... 57

12. A QUESTÃO DO PECADO: COMO A GENTE DEVE SE COMPORTAR QUANDO SE ENCONTRA EM PECADO ... 59

13. OS DOIS ARREPENDIMENTOS ... 59

14. A VERDADEIRA CONFIANÇA E A ESPERANÇA ... 60

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16. A VERDADEIRA PENITÊNCIA E A ETERNA BEM-AVENTURANÇA ... 61

17. COMO O HOMEM DEVE MANTER-SE EM PAZ QUANDO NÃO SE ENCONTRA EM AFLIÇÃO EXTERNA, COMO CRISTO E MUITOS SANTOS, E COMO DEVE SEGUIR A DEUS ... 62

18. DE QUE MANEIRA O HOMEM, CONFORME A SITUAÇÃO, PODERÁ ACEITAR ALIMENTOS FINOS, VESTES NOBRES E ALEGRE COMPANHIA, QUE LHE CABEM SEGUNDO O COSTUME ... 63

19. POR QUE DEUS FREQÜENTEMENTE TOLERA QUE PESSOAS DE BEM SEJAM IMPEDIDAS NA PRÁTICA DO BEM... 64

20. QUE O CORPO DE NOSSO SENHOR SEJA RECEBIDO FREQÜENTEMENTE E DA MANEIRA E DEVOÇÃO COM QUE ISTO SE DEVE FAZER ... 64

21. O ZELO ... 66

22. COMO SE DEVE SEGUIR A DEUS DE MANEIRA PERFEITA ... 68

23. AS OBRAS INTERIORES E EXTERIORES ... 69

IV. O DESPRENDIMENTO, A COMPLETA DISPONIBILIDADE, A TOTAL LIBERDADE ... 74

V. TRÊS SERMÕES DO MESTRE ECKHART ... 80

1. DEUS É UM ... 80

2. DEUS É UM, ELE É UM NEGAR DO NEGAR ... 82

3. A EXCELÊNCIA DE MARTA SOBRE MARIA ... 84

VI. LEGENDAS DO MESTRE ECKHART ... 90

1. DE UMA BOA IRMÃ E DA BOA CONVERSAÇÃO QUE TEVE COM MESTRE ECKHART ... 90

2. DO BOM-DIA ... 90

3. MESTRE ECKHART E O GAROTO NU ... 91

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 Leonardo Boff, O.F.M.

A mística não conhece confissões. Ela perpassa todas as religiões. É a irrupção de Deus dentro da vida humana. Embora dentro, Deus está sempre para além de todas as religiões. Ele se comunica a todos e se deixa encontrar por todos os que O procuram.1

Basicamente discernimos dois caminhos de encontro com Deus; eles não se excluem, mas se  permeiam; não obstante, cada qual possui características próprias: é o caminho do seguimento e o

caminho da mística.

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O caminho do seguimento é o caminho da fé.2 Caminhar na fé implica mover-se na obscuridade, convencido «das realidades que não se vêem» (Hb 11,1). Por isso vigora sempre um componente de esperança em toda fé verdadeira (cf. Hb 11,1), esperança de que o não visto e o não experimentado exista de fato e constitua nossa plenitude. O cristianismo deu a sua versão ao caminho da fé na forma de seguimento de Jesus Cristo, expoente supremo da fé (cf. Hb 12,2). Seguir Jesus supõe conhecer sua gesta histórica e o valor último que lhe atribuímos. O cristianismo crê que nele Deus mesmo se entregou totalmente e mostrou seu verdadeiro rosto. Em conseqüência disto, toda a vida, as atitudes, os gestos e o destino de Jesus se apresentam como determinantes  para a existência humana assim como Deus quer que a vivamos. Então crer cristãmente significa seguir o mais possível Jesus Cristo; segui-lo na vida, no seu projeto histórico e, se for necessário, em seu destino.

Seguir Jesus na vida: a vida de Jesus foi mareada particularmente por duas paixões: amor ao Pai e amor aos oprimidos. O amor ao Pai se reveste de profunda intimidade num diálogo filial. Jesus experimenta o Mistério último não como abismo mas como ternura, Abba (papaizinho), fonte inesgotável de amor e compaixão para com todos, particularmente com perdidos e desamparados (cf. Mt 5,45; Lc 15). Desta experiência, Jesus deriva uma prática de solidariedade para com os marginalizados e pecadores. Irrompe seu amor para com os oprimidos. Deles é preferentemente o Reino dos céus (Lc 6,1). O serviço desinteressado a eles equivale ao verdadeiro culto a Deus e constitui o critério derradeiro de nossa salvação (Mt 25,40).

Seguir Jesus no seu projeto histórico: o Reino de Deus constitui a proposta de Jesus. Reino traduz a utopia mais fundamental do coração humano: um mundo onde todo o diabólico e o sinistro

1 Sobre o tema da mística existe uma literatura considerável; citaremos alguns títulos apenas como orientação: R. Otto, West-hstliche

 Mystik, Gotha 1926; A. Brunner,  Der Sch,ritt über die Grenzen. Wesen und Sinn der Mystik. Würzburg 1972; C. Albr ec h t,  Das mystische Erkennen, Bremen 1958; A, Mager,  Mystik a/s  seelische Wirklichkeit, Graz 1945; J. Tyzi a k,  Morgenkindische Mystik, Düsseldorf 1949; F.-D. Ma as z.  Mystik im Gresprhch, Wiirzburg 1972; A. Mercier (org.),  Mystik und Wissenschaftlichkeit, Berna e Frankfurt 1972; H. Urs von Balthasar e outros, Grundfragen der Mystiic, Einsiedeln 1974; R. C. Zaehne r,  Mysticism, Sacred and  Profane. Oxford 1957; J. M ar é ch a I, Etudes sur Ia psychologie des mystiques, 2 vol. Bruxelas-Paris 1937-1938; A. Stolz, Théologie

de ia mystique, Chevetogne 1947; Vários, U nciersta,nding Mysticism (edited by R. Woods). N. York 1980.

2  Para esta temática são representativos: H. Echegar ay, A prática de Jesus, Petrópolis 1981; J. Sobrino, Cristología desde América

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tenham sido superados; onde a criação não é mais ameaça à existência humana; onde as relações humanas e sociais se regem pela justiça, amor, fraternidade e perdão; onde o ser humano se descobre filho de um Pai amoroso. Jesus propõe este projeto como sendo a vontade de Deus não como imposição mas como proposição. Por isso junto com o anúncio do Reino de Deus se encontra sempre o convite à conversão, vale dizer, à acolhida por parte dos ouvintes. Este Reino não cai  pronto do céu; significa um processo imenso onde Deus e o homem constroem juntos, cada qual à

sua maneira, o novo céu e a nova terra. Toda realização humana de fraternidade, toda transformação da sociedade que propicia mais vida para todos, toda superação do espírito de vingança constituem mediações que concretizam e antecipam o Reino de Deus. Segue Jesus de verdade não tanto aquele que o professa como Senhor e Deus encarnado mas aquele que toma a sério sua causa e se faz agente de construção do Reino dentro da história.

Seguir Jesus em seu destino: a prática derivada da proposta de Jesus provocou um conflito com os distintos agentes históricos de sua sociedade e religião. Jesus teve de sofrer o que todos os  profetas e transformadores deste mundo sofreram: a maledicência, o isolamento, a perseguição e a

condenação à tortura e à morte. Assume tal injunção com hombridade. O martírio é o preço a pagar  pela fidelidade à causa jamais traída. Quem se propõe seguir Jesus sabe que deve viver a

bem-aventurança das perseguições como o seu Mestre (Mt 5,10s).

Como se depreende, caminhar na fé na forma do seguimento de Jesus envolve crer apesar da contradição; é esperar contra a esperança; encerra resistir quando tudo ao derredor vacila. O discípulo não é maior que o Mestre (Mt 10,25) e pode conhecer a mesma configuração dolorosa na cruz (Jo 21,18-19). Aqui não se fala de grandes elevações e arroubos espirituais. Eles podem existir, como Jesus no monte Tabor (Le 9,28-36) ou na inundação da alegria no Espírito Santo que lhe arranca uma oração arrebatada (Le 10,21-23). Mas a característica fundamental do seguimento se realiza na prática ética, no compromisso transformador do mundo, no serviço humilde aos deserdados deste mundo. A fé e o seguimento convivem com a solidão (Jo 16,32) e até com o sentimento de desamparo por parte de Deus (Mc 15,34). O que importa é a decisão da vontade de  permanecer fiel e de sustentar, contra todas as aparências, a unidade e a comunhão com Deus: «não

seja o que eu quero, mas o que tu queres» (Mc 14,36). A disponibilidade e prontidão em fazer a vontade do Pai constituem a marca registrada do comportamento de Jesus (cf. Mc 14,36; Mt 26,39; Lc 22,42; Jo 4,34; 5,19; 20,30.36; 6,38; Fl 2,8; Rm 15,3; Hb 10,7-9). Esta determinação de crer sem ver, de aderir sem experimentar e de resistir apesar de não enxergar nenhuma saída constitui uma nota característica do caminho do seguimento.3

É bem verdade que pertence também ao seguimento de Cristo a experiência daquilo que S. Paulo chama os dons do Espírito. Especialmente a quem se deixa assimilar pela prática e mensagem de Jesus é dada a sabedoria da vida, o sentido do serviço fraterno, a intuição do verdadeiro rumo das coisas (1Cor 12 e Rm 12). Mas tudo isto se ordena à fortificação da convivência fraterna. O que permanece mesmo não são os carismas extraordinários como a  profecia, a ciência e o falar em línguas (1Cor 13,8); o que permanece é o «melhor dom», o amor que nunca se acaba (1Cor 12,31; 13,8). É ele que nos mediatiza a salvação. Sem ele nenhuma visão, nenhum estremecimento do espírito em contata com o Uno, nenhum mergulho no Mistério insondável que perpassa todas as coisas resiste diante de Deus e se sustenta definitivamente.

Apesar deste caminho da obscuridade no seguimento a Cristo pode, aqui e acolá, irromper o clarão da experiência mística que Paulo traduziu na fórmula: «Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). Mas ele só se torna possível àqueles que conduziram a vida em Cristo e no Espírito de Cristo.

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Comecemos por esclarecer a palavra mística pois ela já nos introduz nas características deste

3 Cf. A. Schulz, Nachfolge and Nachahmen, Munique 1962; H. D. B e t z,  Naehfolge und Nachahmung Jesu Christi im NT, Tübingen

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caminho de encontro com Deus. Mística é um adjetivo (em grego mystikós) da palavra mistério caminho de encontro com Deus. Mística é um adjetivo (em grego mystikós) da palavra mistério (mystérion).

(mystérion).44  Na Bíblia do Antigo e do Novo Testamento a palavra  Na Bíblia do Antigo e do Novo Testamento a palavra mistériomistério  possui  possui váriosvários

significados. Primeiramente significa o segredo humano que não deve ser revelado: os desígnios significados. Primeiramente significa o segredo humano que não deve ser revelado: os desígnios secretos do rei (Tb 12,7.11; Jt 2,2), os planos de guerra (2Mc 13,21), os projetos íntimos do amigo secretos do rei (Tb 12,7.11; Jt 2,2), os planos de guerra (2Mc 13,21), os projetos íntimos do amigo (Eclo 22,22; 27,16.21). Pode significar também o desígnio último de Deus só conhecido pelas (Eclo 22,22; 27,16.21). Pode significar também o desígnio último de Deus só conhecido pelas  pessoas

 pessoas especialmente especialmente inspiradas inspiradas por por Deus Deus (Dn (Dn 2,28.29.47). 2,28.29.47). Para Para Paulo Paulo o o grande grande mistério mistério ——  projeto fundamental

 projeto fundamental do Pai do Pai — é — é Jesus Cristo, Jesus Cristo, escondido desde sempre escondido desde sempre e somente re somente revelado agora evelado agora àà Igreja pelos apóstolos (1Cor 2,6-16; Ef 3; Cl 1,26-29). Na Igreja antiga a palavra mistério (em Igreja pelos apóstolos (1Cor 2,6-16; Ef 3; Cl 1,26-29). Na Igreja antiga a palavra mistério (em latim se traduzia comumente por sacramentum) constitui a chave principal para expressar a fé latim se traduzia comumente por sacramentum) constitui a chave principal para expressar a fé cristã.

cristã.55 Mistério designa o plano eterno de Deus de salvação dos homens e de libertação da criação, Mistério designa o plano eterno de Deus de salvação dos homens e de libertação da criação, em realização desde o princípio do mundo, prefigurado nas religiões, mais densamente articulado em realização desde o princípio do mundo, prefigurado nas religiões, mais densamente articulado no Antigo Testamento, plenamente concretizado em Jesus Cristo e tornado presente no tempo pela no Antigo Testamento, plenamente concretizado em Jesus Cristo e tornado presente no tempo pela Igreja mediante a palavra, os sinais sacramentais, as celebrações litúrgicas e a prática dos cristãos. Igreja mediante a palavra, os sinais sacramentais, as celebrações litúrgicas e a prática dos cristãos.

Este mistério possui essencialmente uma dimensão cósmica (mystérion kosmikón) pois Este mistério possui essencialmente uma dimensão cósmica (mystérion kosmikón) pois  pervade

 pervade toda toda a a criação criação e e ordena ordena tudo tudo para para culminar culminar em em Cristo Cristo e e no no Espírito Espírito e e finalmentefinalmente desembocar no Pai. Mística e místico é tudo o que se refere a este mistério. Em outras palavras, as desembocar no Pai. Mística e místico é tudo o que se refere a este mistério. Em outras palavras, as realidades profanas e sagradas se fazem sacramentos e mistérios na medida em que deixam realidades profanas e sagradas se fazem sacramentos e mistérios na medida em que deixam transparecer o Mistério (o plano divino) a que servem. Mística é

transparecer o Mistério (o plano divino) a que servem. Mística é aquela pessoa que consegue ver naaquela pessoa que consegue ver na história e em todas as articulações da existência humana este fio condutor divino que tudo une, história e em todas as articulações da existência humana este fio condutor divino que tudo une, tudo ordena e tudo eleva.

tudo ordena e tudo eleva.

Como já acenamos no início, a mística é um fenômeno universal. O cristianismo lhe dá a sua Como já acenamos no início, a mística é um fenômeno universal. O cristianismo lhe dá a sua versão centrada em Cristo, no Espírito, na Trindade, na graça que nos faz templos de Deus, na versão centrada em Cristo, no Espírito, na Trindade, na graça que nos faz templos de Deus, na Providência divina etc. Não intencionamos aqui identificar as características da mística cristã. Providência divina etc. Não intencionamos aqui identificar as características da mística cristã.66

Queremos tão-somente refletir sucintamente sobre a questão de base de toda mística, de sua Queremos tão-somente refletir sucintamente sobre a questão de base de toda mística, de sua linguagem. Isso nos ajudará a entender a mística do mestre Eckhart.

linguagem. Isso nos ajudará a entender a mística do mestre Eckhart.

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Toda mística, cristã ou pagã, vive de uma experiência radical: aquela da unidade do mundo Toda mística, cristã ou pagã, vive de uma experiência radical: aquela da unidade do mundo com o supremo Princípio ou do homem com Deus. Trata-se de uma experiência

com o supremo Princípio ou do homem com Deus. Trata-se de uma experiência imediataimediata de Deusde Deus ou simplesmente do Uno.

ou simplesmente do Uno.

Esta experiência imediata da unidade tem como trans-fundo outra experiência não menos Esta experiência imediata da unidade tem como trans-fundo outra experiência não menos fundamental: aquela da dualidade e da separação: Deus-criação; eu-mundo; uno-múltiplo. A fundamental: aquela da dualidade e da separação: Deus-criação; eu-mundo; uno-múltiplo. A experiência da disjunção faz sofrer e

experiência da disjunção faz sofrer e exaspera o desejo de unidade.exaspera o desejo de unidade.

A unidade é fruto de uma busca radical. Eclode como termo de um processo, não raro A unidade é fruto de uma busca radical. Eclode como termo de um processo, não raro extremamente oneroso. Se ela é objeto de uma experiência

extremamente oneroso. Se ela é objeto de uma experiência imediata,imediata, não é, entretanto, um dadonão é, entretanto, um dado imediato. Constituirá sempre um complexo problema para a interpretação resolver esta aparente imediato. Constituirá sempre um complexo problema para a interpretação resolver esta aparente contradição. A unidade não é algo que se opõe à multiplicidade. A unidade de que falam os contradição. A unidade não é algo que se opõe à multiplicidade. A unidade de que falam os místicos é unidade da multiplicidade, com ela, nela e por ela. A experiência de unidade faz com místicos é unidade da multiplicidade, com ela, nela e por ela. A experiência de unidade faz com que se supere, ao nível

que se supere, ao nível da experiência, o fosso que separa Deus e da experiência, o fosso que separa Deus e o mundo.o mundo.

Como chegar à unidade do múltiplo com o uno, do homem com Deus? Eis a questão Como chegar à unidade do múltiplo com o uno, do homem com Deus? Eis a questão essencial. A resposta se orienta por

essencial. A resposta se orienta por duas vias arquetípicas com suas correspondentes linguagens.duas vias arquetípicas com suas correspondentes linguagens. Uma consiste na

Uma consiste na mística do desnudamentomística do desnudamento do mundo, do deserto, da radical pobreza e dodo mundo, do deserto, da radical pobreza e do esvaziamento interior e exterior. Busca Deus para além de qualquer realidade. Tudo se esvai diante esvaziamento interior e exterior. Busca Deus para além de qualquer realidade. Tudo se esvai diante dele. Resta apenas a fímbria de um sinal passageiro. O espírito mergulha de tal forma no Uno que dele. Resta apenas a fímbria de um sinal passageiro. O espírito mergulha de tal forma no Uno que se unifica (fica uno) com Ele no esquecimento místico de todos os seres e também de si mesmo. O se unifica (fica uno) com Ele no esquecimento místico de todos os seres e também de si mesmo. O

44  Para um estudo minucioso sobre o termo mistério, veja o meu artigo: O que significa propriamente Sacramento, em  Para um estudo minucioso sobre o termo mistério, veja o meu artigo: O que significa propriamente Sacramento, em  Revista Revista

 Eclesiástica Brasileira,

 Eclesiástica Brasileira, 34 (1974), 860-895,34 (1974), 860-895,

55 Veja o  Veja o lúcido artigo de L. Bouyer, "Mystique", emlúcido artigo de L. Bouyer, "Mystique", em La Vie Spirituelle, La Vie Spirituelle, suppl. maio (1949). 3-23.suppl. maio (1949). 3-23.

66 Cf. H. Ur s von Balthasa r, "Zur Ortsbestimmung christlicher Mystik", em Cf. H. Ur s von Balthasa r, "Zur Ortsbestimmung christlicher Mystik", em Grundfragen der Mystik,Grundfragen der Mystik, 37-71; F.-D. Maas z,37-71; F.-D. Maas z, Mystik im Mystik im

Gresprlich,

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centro atrai de tal maneira os raios que eles coincidem com a fonte da luz. centro atrai de tal maneira os raios que eles coincidem com a fonte da luz.

A linguagem da mística do desnudamento se recolhe no silêncio sacrossanto. Tudo o que se A linguagem da mística do desnudamento se recolhe no silêncio sacrossanto. Tudo o que se disser é tagarelice. A experiência não se diz, vive-se.

disser é tagarelice. A experiência não se diz, vive-se. A outra via é a da mística da

A outra via é a da mística da inserção no mundo.inserção no mundo. Penetra-se nas realidades que nos tocaPenetra-se nas realidades que nos toca viver. A partir da busca i

viver. A partir da busca insaciável de Deus o mundo se sacramentaliza nsaciável de Deus o mundo se sacramentaliza como lugar de sua presença;como lugar de sua presença; o mundo se torna então transparente. Deus reside em sua intimidade; é o Coração do coração, o o mundo se torna então transparente. Deus reside em sua intimidade; é o Coração do coração, o sem Fundo do fundo, a luminosidade de

sem Fundo do fundo, a luminosidade de cada ser.cada ser.

A linguagem desta mística se articula com a especulação e com o discurso altamente A linguagem desta mística se articula com a especulação e com o discurso altamente simbólico e evocativo da l

simbólico e evocativo da louvação (doxologia).ouvação (doxologia).  Na mística do

 Na mística do desnudamento se enfatiza a desnudamento se enfatiza a unidade na diástase. Por um unidade na diástase. Por um momento rompem-semomento rompem-se os véus da separação Deus-homem e se celebra o esponsório místico entre Deus e o homem. A os véus da separação Deus-homem e se celebra o esponsório místico entre Deus e o homem. A dualidade persiste porque um não é o outro mas ela é transponível numa unidade inefável.

dualidade persiste porque um não é o outro mas ela é transponível numa unidade inefável.  Na mística

 Na mística da inserção da inserção se acentua se acentua a diástase a diástase na unidade. Na na unidade. Na experiência Deus experiência Deus emerge comoemerge como o sempre Maior. A unidade existe como algo a ser continuamente buscado e eclode na medida da o sempre Maior. A unidade existe como algo a ser continuamente buscado e eclode na medida da intensidade da busca.

intensidade da busca.

Em ambos os caminhos místicos a experiência da unidade em Deus ou da unidade de Deus Em ambos os caminhos místicos a experiência da unidade em Deus ou da unidade de Deus no mundo exige um preço a pagar: impõe um tirocínio árduo. Ela não se dá a espíritos medíocres, no mundo exige um preço a pagar: impõe um tirocínio árduo. Ela não se dá a espíritos medíocres, distraídos e preguiçosos. Nem aos meramente curiosos das possibilidades da mente. Ela irrompe distraídos e preguiçosos. Nem aos meramente curiosos das possibilidades da mente. Ela irrompe nos exigentes consigo mesmos, nos limpos de coração e naqueles que a desejam com todo o nos exigentes consigo mesmos, nos limpos de coração e naqueles que a desejam com todo o coração e com toda a alma. Se o desejo não for exercitado até as suas possibilidades mais radicais coração e com toda a alma. Se o desejo não for exercitado até as suas possibilidades mais radicais não se criam as condições da paixão mística.

não se criam as condições da paixão mística.

 Na mística, portanto, existe a experiência da unidade seja imergindo em Deus seja imergindo  Na mística, portanto, existe a experiência da unidade seja imergindo em Deus seja imergindo no mundo, sempre contudo no transfundo da dualidade. Como expressar a unidade na diferença e a no mundo, sempre contudo no transfundo da dualidade. Como expressar a unidade na diferença e a diferença na unidade? Como viver Deus no mundo e o mundo em Deus? A

diferença na unidade? Como viver Deus no mundo e o mundo em Deus? A dialética édialética é oo instrumento que a linguagem utiliza para expressar a unidade na diversidade e a diversidade na instrumento que a linguagem utiliza para expressar a unidade na diversidade e a diversidade na unidade.

unidade.77 A dialética consiste naquela forma de articulação do pensamento mediante a qual cada A dialética consiste naquela forma de articulação do pensamento mediante a qual cada coisa aparece imbricada na outra. Para o pensamento dialético nada há de absolutamente disjuntivo. coisa aparece imbricada na outra. Para o pensamento dialético nada há de absolutamente disjuntivo. Tudo é colocado num movimento conjuntivo, num processo copulativo e numa marcha Tudo é colocado num movimento conjuntivo, num processo copulativo e numa marcha coincidencial. O sim e o não, a vida e a morte constituem pólos dialéticos de uma mesma verdade e coincidencial. O sim e o não, a vida e a morte constituem pólos dialéticos de uma mesma verdade e de um mesmo supremo princípio.

de um mesmo supremo princípio.

Em razão disto, a linguagem mística se reveste de paradoxos: Deus é tudo e Deus é nada. O Em razão disto, a linguagem mística se reveste de paradoxos: Deus é tudo e Deus é nada. O mundo é infinito e o mundo é finito. As trevas são luminosas e a luz é tenebrosa. O

mundo é infinito e o mundo é finito. As trevas são luminosas e a luz é tenebrosa. O grande saber égrande saber é não saber e o absoluto saber consiste em não saber que não se sabe. A questão da dialética nos não saber e o absoluto saber consiste em não saber que não se sabe. A questão da dialética nos encaminha assim para o problema da linguagem própria da mística.

encaminha assim para o problema da linguagem própria da mística.88

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Toda mística vive, como asseveramos, da experiência imediata da unidade. Esta é a Toda mística vive, como asseveramos, da experiência imediata da unidade. Esta é a característica protoprimária que cabe aprofundar com mais detalhe. Como se há de compreender o característica protoprimária que cabe aprofundar com mais detalhe. Como se há de compreender o caráter imediato da experiência?

caráter imediato da experiência?  Nosso conhecimento

 Nosso conhecimento comum e comum e científico científico opera opera mediante mediante conceitos, modelos conceitos, modelos e palae palavras. Asvras. As  palavras

 palavras substituem substituem as as coisas coisas e e os os paradigmas paradigmas organizam organizam o o caos caos de de nosso nosso conhecimentoconhecimento construindo a realidade conhecida. A mediação faz com que nosso acesso à realidade não seja construindo a realidade conhecida. A mediação faz com que nosso acesso à realidade não seja  jamais cara-a-cara. Construímos um

 jamais cara-a-cara. Construímos uma ponte entre ela e nós.a ponte entre ela e nós.

77 Boas reflexões se encontram em M. de Gandillac, "La 'dialectique' de Maitre Eckhart", em Vários, Boas reflexões se encontram em M. de Gandillac, "La 'dialectique' de Maitre Eckhart", em Vários, La tnystique rhe'nnue, La tnystique rhe'nnue, Paris 1963,Paris 1963,

59-94; S. Br et o n, "Les methamorphoses du langage religieux chez Maitre Eckhart", em

59-94; S. Br et o n, "Les methamorphoses du langage religieux chez Maitre Eckhart", em  Recherches de science  Recherches de science religieuse,religieuse, 67 (1979),67 (1979), 373-396,

373-396,

88 Cf. Y.  Cf. Y. Congar, "Langage des spirituels et langage des théologiens", emCongar, "Langage des spirituels et langage des théologiens", em La mystique rhénane, La mystique rhénane, 15-34; A. M. Haas, 'Die 15-34; A. M. Haas, 'Die Problematik vonProblematik von

Sprache und Erfahrung in der deutschen Mystik", em

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Aqui aflora um problema de grande envergadura: a ponte que é? É parte da própria Aqui aflora um problema de grande envergadura: a ponte que é? É parte da própria realidade? Se for parte da própria realidade, então a pergunta fica irrespondida, pois continua a realidade? Se for parte da própria realidade, então a pergunta fica irrespondida, pois continua a questão: como acedemos à realidade? É nossa subjetividade? A questão permanece porque questão: como acedemos à realidade? É nossa subjetividade? A questão permanece porque  perguntamos:

 perguntamos: onde onde ficou ficou a a realidade? realidade? É É projeção projeção de de nossa nossa subjetividade? subjetividade? Podemos Podemos responder,responder, obviando uma longa discussão filosófica, que a mediação é a própria realidade mas num outro obviando uma longa discussão filosófica, que a mediação é a própria realidade mas num outro modo de ser, adequado à nossa consciência. Dito em palavras simples: conheço a mesa

modo de ser, adequado à nossa consciência. Dito em palavras simples: conheço a mesa mediantemediante aa imagem que faço da mesa. Esta imagem refaz a realidade consoante a estruturação própria do imagem que faço da mesa. Esta imagem refaz a realidade consoante a estruturação própria do conhecimento. Este se processa na forma da abstração das qualidades concretas da mesa. Assim conhecimento. Este se processa na forma da abstração das qualidades concretas da mesa. Assim nossa imagem (idéia)

nossa imagem (idéia) da mesa não é pesada como a realidade da mesa, nem possui cor, nem éda mesa não é pesada como a realidade da mesa, nem possui cor, nem é quadrada como o é a mesa.

quadrada como o é a mesa.  Na

 Na história história do do pensamento pensamento humano humano constata-se constata-se uma uma discussão discussão sempre sempre de de novo novo retomada:retomada: estamos condenados a apenas representar a realidade sem jamais entranhar-nos nela numa estamos condenados a apenas representar a realidade sem jamais entranhar-nos nela numa comunhão direta e imediata? Não existiria o conhecimento intuitivo, diferente daquele comunhão direta e imediata? Não existiria o conhecimento intuitivo, diferente daquele representativo?

representativo?

A mística testemunha que é possível um conhecimento sem a mediação. Tocamos A mística testemunha que é possível um conhecimento sem a mediação. Tocamos imediatamente o real. Isso implica que

imediatamente o real. Isso implica que nos fazemos uma coisa só com o real.nos fazemos uma coisa só com o real.  Nisso  Nisso reside reside oo segredo íntimo da experiência mística: a experiência da unidade de tudo com o supremo Princípio. segredo íntimo da experiência mística: a experiência da unidade de tudo com o supremo Princípio. Só pode falar da unidade quem se sente um com o Uno. E só se sente um com o Uno quem tem Só pode falar da unidade quem se sente um com o Uno. E só se sente um com o Uno quem tem acesso direto a Ele e se dá conta de que ele e o Uno não são

acesso direto a Ele e se dá conta de que ele e o Uno não são absolutamente,absolutamente, de formade forma totaltotal ee  simples

 simples duas realidades. Vigora uma unidade dialética eduas realidades. Vigora uma unidade dialética entre eles.ntre eles.

Sustentar esta unidade não equivale, repetimos, a afirmar uma unidade monolítica, dura e Sustentar esta unidade não equivale, repetimos, a afirmar uma unidade monolítica, dura e sem diferenciação. Dizemos que é uma

sem diferenciação. Dizemos que é uma unidade dialética,unidade dialética, a saber, uma unidade na diferença. Sera saber, uma unidade na diferença. Ser um com Deus sem deixar de ser eu; ser um com o mundo sem que a consciência deixe de ser um com Deus sem deixar de ser eu; ser um com o mundo sem que a consciência deixe de ser consciência. Se fosse uma unidade simples, nem teríamos consciência da diferença nem falaríamos consciência. Se fosse uma unidade simples, nem teríamos consciência da diferença nem falaríamos da unidade. Só podemos falar

da unidade. Só podemos falar da unidade no transfundo da diferença.da unidade no transfundo da diferença.

Por ser dialética, esta unidade só brota dentro de determinadas condições, minuciosamente Por ser dialética, esta unidade só brota dentro de determinadas condições, minuciosamente analisadas pelos místicos: concentração total, desnudamento interior completo e liberdade plena analisadas pelos místicos: concentração total, desnudamento interior completo e liberdade plena face a tudo para além do bem e do mal. Enquanto nos perdemos na discussão sobre o bem e o mal, face a tudo para além do bem e do mal. Enquanto nos perdemos na discussão sobre o bem e o mal, ainda não experimentamos a unidade. Vivemos, sofremos e lutamos no reino das diferenças e da ainda não experimentamos a unidade. Vivemos, sofremos e lutamos no reino das diferenças e da dualidade. Experimentar unidade implica ter religado tudo, também o mal, também o inferno, dualidade. Experimentar unidade implica ter religado tudo, também o mal, também o inferno, também o nada a Deus.

também o nada a Deus.  Na

 Na verdade verdade só só entende entende estas estas frases frases quem quem está está no no processo processo de de busca busca da da unidade. unidade. NelasNelas mesmas, estas frases não são evidentes nem comunicam a experiência. Mas quem está criando as mesmas, estas frases não são evidentes nem comunicam a experiência. Mas quem está criando as condições para que ecloda a unidade percebe o aceno e a direção verdadeira.

condições para que ecloda a unidade percebe o aceno e a direção verdadeira.

Se a mística é uma experiência imediata de Deus então não poderia ser expressa por Se a mística é uma experiência imediata de Deus então não poderia ser expressa por nenhuma mediação, nem palavras, nem símbolos, nem gestos. Efetivamente a maioria dos místicos nenhuma mediação, nem palavras, nem símbolos, nem gestos. Efetivamente a maioria dos místicos nada diz. Vive, vê, contempla, goza, sofre, participa. Para que dizer se ele é um com o Uno? Quem nada diz. Vive, vê, contempla, goza, sofre, participa. Para que dizer se ele é um com o Uno? Quem sabe não diz; só quem não sabe diz. Mas como o Uno se dá também na palavra, alguns místicos sabe não diz; só quem não sabe diz. Mas como o Uno se dá também na palavra, alguns místicos falaram e nos legaram escritos seus.

falaram e nos legaram escritos seus.

Apesar de se sentirem um com a palavra, sentem que a palavra não constitui a realidade Apesar de se sentirem um com a palavra, sentem que a palavra não constitui a realidade fundamental e una. Ela tenta balbuciar a experiência da unidade, mas não produz a unidade; pode, fundamental e una. Ela tenta balbuciar a experiência da unidade, mas não produz a unidade; pode, no máximo, evocá-la e despertar em nós o desejo da busca.

no máximo, evocá-la e despertar em nós o desejo da busca.

Em razão da diferença entre experiência e linguagem, a gramática dos místicos é

Em razão da diferença entre experiência e linguagem, a gramática dos místicos é sui generis. sui generis. O descuido das propriedades do discurso místico fez com que se

O descuido das propriedades do discurso místico fez com que se originassem polêmicas infrutíferasoriginassem polêmicas infrutíferas e até condenações odiosas, como é

e até condenações odiosas, como é o caso exemplar do Mestre Eco caso exemplar do Mestre Eckhart.khart.

Primeiramente o místico intenciona exprimir a unidade do todo. A unidade não é uma parte Primeiramente o místico intenciona exprimir a unidade do todo. A unidade não é uma parte ao lado de outras. É o todo. Mas as palavras são sempre palavras das partes; o discurso é sempre ao lado de outras. É o todo. Mas as palavras são sempre palavras das partes; o discurso é sempre regional. Não existe uma palavra que expresse tudo e o todo. Cada palavra é uma entre outras do regional. Não existe uma palavra que expresse tudo e o todo. Cada palavra é uma entre outras do dicionário. Por isso há muitas palavras, já

dicionário. Por isso há muitas palavras, já que nenhuma delas pode dizer tudo. Oxalá houvesse umaque nenhuma delas pode dizer tudo. Oxalá houvesse uma só palavra. Por ela

só palavra. Por ela teríamos compreendido tudo, abarcado tudo, visto tudo e teríamos compreendido tudo, abarcado tudo, visto tudo e expresso tudo.expresso tudo.

O místico experimenta o todo. Como vai expressá-lo? É impossível com o vocabulário O místico experimenta o todo. Como vai expressá-lo? É impossível com o vocabulário

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humano. Daí se entenda o porquê dos superlativos, das hipérboles, das combinações de termos contraditórios empregados pelos místicos. Assim se lêem expressões como essencial, supra-eminente, superinfinito, hipercósmico, superdivino. Ou então paradoxos como douta ignorância, sóbria ebriedade e outros deste jaez. A linguagem dos místicos é como uma hipérbole que atinge o seu equilíbrio somente quando ultrapassa a perfeição do círculo.

Continuamente e de forma quase obsessiva diz o místico: indizível, incompreensível, misterioso. Quando, a despeito de toda limitação, ousam dizer algo, sentem que mais blasfemam do que louvam a Deus, mais mentem do que expressam a verdade.

Tauler, discípulo do Mestre Eckhart, com referência à Trindade, escreve: «Tudo o que se  pode dizer deste mistério não é essencialmente verdade, antes assemelha-se à mentira».9 O mesmo

Tauler conta o seguinte episódio: um mestre louvava a Deus em palavras. Outro mestre, então, lhe replicou: «Cala-te, pois blasfemas a Deus»!10 A beata Ângela do Foligno em arrebatamento místico

exclamava: «Minhas palavras me fazem horror, ó suprema obscuridade, minhas palavras são maldição, são blasfêmias. Silêncio, silêncio, silêncio, silêncio...»11  Outras vezes, quando comunicava experiências divinas, dizia: «Eu blasfemo».12  Entretanto o Mestre Eckhart teve a seguinte frase condenada pelo Papa João XXIII: «Deum ipsum quis blasphemando Deum laudat».13 Traduzindo: «Mesmo blasfemando a Deus a gente louva o próprio Deus» (DS 956).

Outras vezes as formulações parecem contradizer a gramática filosófica e teológica. Assim,  por exemplo, o Mestre Eckhart dizia: «Omnes creaturae sunt unum purum nihil » (DS)14: «Todas as criaturas são um puro nada». São João da Cruz diz o mesmo: «Todo o ser das criaturas, comparado com o ser infinito de Deus, é nada. Também a alma, cativa das coisas criadas, é nada e desce mais abaixo do nada, aos olhos de Deus.»15 Não é raro encontrar formulações assim: «Se Deus existe como as criaturas existem, então Deus não existe». Outras vezes topamos com expressões de teor  panteísta: «Tudo é um. Tudo é Deus»! A razão filosófica o teológica não se permite falar desta

maneira. Mas ela opera com mediações, conceitos com alcance e limites bem definidos. Ao passo que a mística, em razão do que vê e experimenta, extrapola continuamente para se adequar ao que não pode ser expresso adequadamente. O saber da ciência vive na divisão. O experimentar do místico vive da unidade.

Em segundo lugar, para se fazer justiça à linguagem dos místicos, importa dar-se conta de sua natureza específica.16 Ela não intenciona descrever o mundo em sua objetividade; quer traduzir

uma experiência do espírito. Ao dizer, por exemplo, «o mundo é nada» não quer fazer uma afirmação sobre os objetos, mas sobre o sentir do sujeito. O sujeito se encontra de tal maneira imerso em Deus e percebe Deus tão dentro de cada ser, que Deus ocupa todos os espaços. Os objetos existem na medida em que o místico como que os vê sendo tirados do nada pelo amor de Deus. O absoluto é tão absoluto que um desvio dele assume a característica de um desvio absoluto. Isto é o que o místico experimenta. A luz de Deus é tão luminosa que nossa luz não passa de trevas exteriores. Quem quiser ganhar tem que perder (cf. Jo 12,25); se almejar o Uno tem que se esvaziar de tudo até poder ser plenificado só pelo Uno. Como dizia com acerto Simone Weil: «Ser nada,  para estar no seu devido lugar no todo».17

Para o pensamento da objetividade, o mundo possui sua densidade própria e consistência relativa. Não é um nada. Mas aqui nos movemos dentro de outro registro, diferente daquele dos místicos. O místico não nega o mundo e não há como negá-lo. Mas não vê o mundo a partir do mundo. Contempla-o a partir de Deus, em Deus, com Deus e para Deus. O mundo é relação e pura relação; não existe, é nada, fora desta relação divina que continuamente o cria e o tira do nada. O místico vê o nada presente na origem de cada ser; e o nada não permanece na origem passada;

9 Sermo 28,1, em F. V etter, Die Predigten Taulers (Deutsche Texte des Mittelaters, XI), Berlim 1910, 114. 10Sermo 30,2, em F. V e t te r, op. cit., n. 60c, p. 293.

11 Cf. Le livre des visions et instructions, Paris 1895, 84. 12 Id. 21.

13 Lateinische Werke, 3, 949. Os dados completos das citaç5es de Eckhart serão fornecidos mais adiante. 14 Deutsche Werke, 1, 220.

15Subida ao monte Cannelo, livro I, cap. 4

16 Cf, A. Mercier, "Mystik und Vernunft", em Mustik und Wissenschaftlichkeit, 9-25. 17 La pesamteur et la grdce, Paris 1948, 41.

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continua presente no originário de cada criatura; ela permanentemente sai, pelo gesto criador de Deus, do nada, num processo que o místico capta porque se coloca dentro de Deus.

Este caminho da busca da unidade com Deus é diverso do outro, do seguimento. A mística supõe, como o seguimento, a fé. Mas a fé do místico possui uma ressonância de experiência  pessoal, de profundidade subjetiva e de vibração interior que não necessariamente está presente no

seguimento. No seguimento pode persistir a fé sem a comoção; a fé é uma decisão da liberdade que se orienta preferentemente pelo comportamento ético.

Em todos os homens religiosos há um componente de mística e de seguimento. Por isso dizíamos que eles se permeiam e, de forma alguma, se excluem. Em todos a fé jamais é pura objetividade da vontade; há também uma dimensão de interioridade, de sentido gratificante e de experiência de Deus. Deus jamais é somente ponto de referência para o seguimento. Jesus não é apenas um modelo e arquétipo de urna existência humana ideal à luz do desígnio do Eterno. Cristo  possui uma imanência nas pessoas, seu Espírito continua a iluminar a existência, exatamente lá

onde se faz noite. O místico, entretanto, vive absorvido nesta imanência de Deus cm todas as coisas ou das coisas em Deus. O mundo perde consistência definitiva e se transfigura em sinal de uma realidade divina inefável. O místico também conhece um árduo caminho ético e ascético. É condição de toda mística de encontro com o Uno. Só os puros verão a Deus. Mas eles não apenas vêem a Deus; saboreiam Seu advento na história, na alma, nos acontecimentos. O mundo está dependurado num ponto supremo. E este é Deus.

Passemos agora ao Mestre Eckhart. Nele de certa forma se encontram os dois caminhos. A hegemonia, entretanto, possui a mística. Mas ela nunca se basta a si mesma. Ela conduz a um caminho de desprendimento e de perfeita liberdade que permite vislumbrar Deus em todas as coisas. Sua síntese de fé e de experiência, de reflexão e de intuição constitui uma das maiores expressões do cristianismo histórico. Dele muito temos de aprender.

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A mística é uma resposta às crises do tempo. Havia condições materiais, religiosas, políticas e ideológicas que favoreciam a emergência da experiência mística. O tempo em que viveu o Mestre Eckhart é marcado por profundas rupturas. A grande síntese medieval entre ciência e fé, entre trono o altar, entre evangelho e história estava prestes a se dissolver. A luta renhida entre o Papado e a  poderosa família imperial dos Staufer (especialmente Frederico II, 1212-1250) levou a enfraquecer  profundamente estes dois poderes. Os Papas acabaram no exílio babilônico de Avignon (1309-1377). As catástrofes naturais impactaram os espíritos do tempo, como terremotos, enchentes, febre negra que introduziu na arte, pela primeira vez, o motivo da dança da morte. É o tempo do «outono da Idade Média» (Huizinga). A crise histórica se reflete no pensamento; impera o nominalismo: as  palavras são meras palavras (nomina, flatus voeis) e não colhem a realidade das coisas. Os

significantes ficam arbitrários ao sabor dos que dispõem de poder.

Em situações assim de desorientação dos espíritos e de vacilação de todas as instâncias de referência e de legitimidade, faz-se sentir fortemente a necessidade de uma nova verdade. Ela deve  possuir uma evidência em si mesma, para além das contendas religiosas e políticas. A ruptura é

costurada e a desarmonia superada. A experiência religiosa imediata, o acesso direto à fonte da verdade, a Deus, constituem os conteúdos existenciais consistentes da mística. Ela não afasta Deus do processo histórico. Reintrodu-lo com novo vigor a ponto de ser experimentado.

Esta mística já se notava na última fase do grande teólogo e místico franciscano S. Boaventura (t 1274). Nas místicas Matilde de Marburgo (t 1283) e Hadewijch (t 1260) ganha força  poética e influencia significativamente os inumeráveis conventos femininos de Flandres, Alemanha

e França.

Os dominicanos doutos recebem o encargo pastoral de acompanhar estes conventos femininos (cura monialium). Dentre tantos aflora o mais genial dos místicos medievais, o mais

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especulativo e ousado da mística cristã, o Mestre Eckhart. Pouco sabemos de sua vida.18  Sejam

aqui elencadas algumas datas:

1260: nasceu em Hochheim perto de Gotha na Turíngia. Muito jovem ainda entrou para a Ordem dos Dominicanos que havia sido aprovada em 1216 pelo Papa Honório

1277: encontramos Eckhart estudando artes em Paris, o que incluía lógica, gramática, retórica, música, astrologia, geometria e aritmética. Aí certamente conheceu os famosos  professores Siger de Brabant (1240-1280), grande aristotélico, e João Duns Scotus, sutil doutor

franciscano.

1280: estuda Eckhart teologia no Studium Generale da Ordem dos Pregadores em Colônia. Aí é aluno do doutor universal, S. Alberto Magno, cientista, filósofo e teólogo aristotélico.

1293-1294: regressa a Paris para lecionar, como bacharel, as Sentenças de Pedro Lombardo (t 1160) que era o texto-base para os estudantes de teologia.

1294: é enviado ao convento de Erfurt como Prior e é nomeado vice-provincial (vigário) da  província da Turíngia.

1302-1303: retorna a Paris para doutorar-se em teologia. É nomeado ordinário da faculdade como exegeta dos textos bíblicos. É o tempo em que começa a ser chamado de «Mestre» (Meister, Magister).

1303-1311: é provincial da Saxônia abrangendo todo o norte da Alemanha e Holanda, incluindo 47 conventos de frades e 9 de religiosas dominicanas. Assume uma função administrativa de grande envergadura com a fundação de novos conventos, com a direção espiritual dos irmãos e irmãs e com a condução de negócios e acertos com os mais distintos senhores feudais.

1310: no capítulo geral de Estrasburgo, Eckhart é eleito vigário-geral (substituto do superior-geral dos Dominicanos) com especiais encargos de reforma para toda a Boêmia. Neste mesmo ano os confrades do sul da Alemanha, sabendo de sua habilidade e senso espiritual, o elegeram como seu Provincial (Província Teutônica).

1311: aguçam-se as rivalidades teológicas entre as duas grandes escolas em Paris, os franciscanos e os dominicanos. Eckhart é enviado a Paris para assumir a cátedra. Escreve a famosa obra Opus tripartitum e confecciona vários comentários bíblicos. Mais místico que polemista, Eckhart deixa Paris.

1314-1322: encontramo-lo em Estrasburgo como vigário do Geral da Ordem. Sua função  principal reside na pastoral das religiosas conventuais e na direção espiritual. Em função disto viaja

muito e prega amiúde ao povo, na língua alemã.

1323/1324: é enviado a Colônia como diretor do Studium Generale. Dedica-se ao ensino da teologia, à pregação ao povo e à produção intelectual.

1326: o arcebispo de Colônia, o franciscano Henrique II de Virneburg, inicia um processo inquisitorial contra o Mestre Eckhart por supostas doutrinas heréticas. Começa então, como sói acontecer com as instâncias doutrinais até os dias de hoje, um verdadeiro processo kafkiano acerca das várias sentenças do Mestre. A comissão designada pelo arcebispo elenca 120 proposições do Mestre Eckhart tiradas de seu livro  Da divina consolação, das obras latinas e dos sermões em alemão. É verdade que Eckhart possui um estilo paradoxal e que suas pregações exigiam subtilidade em seus ouvintes. A linguagem dos místicos, como já consideramos anteriormente, não é aquela dos pregadores e dos teólogos; ela é evocadora de uma experiência que o povo fiel também faz, embora não tenha condições de articulá-la num discurso transmissível e universalizante. Eckhart protesta contra este procedimento de arrancar frases de toda uma imensa

18  Para a biografia de Mestre Eckhart, vejam-se os títulos mais significativos: J. K o c h, "Kritische Studien zum. Leben Meister

Eckharts" (em duas partes), em Arehivum Fratrunz Praedieatorum, 29 (1959), 5-51; 30 (1960), 5-52. Id., "Zur Einführung", em Meister  Eekhart der Frediger, Festschrift zum Eckhart-Gedenkjahr (Por Udo M. Nix e R.-L. Oechslin), Friburgo 1960, 1-24; J. Quin t,  Meister  Eelehart, Deutsche Predigten und Traktate, Munique 1959, 10-50; M. H. Lauren t, "Autour du proces de Maitre Eckhart. Les documents des Archives Vaticanas, doc. VIII", em Divus Thomas 39 (1986), 436-444; J. Ancelet-Hustache, Maitre Eckhart. Les traités, Paris 1971, 5-33; Freiheit and Gelassenheit. Meister Eckhart heute (coleção de estudos publicada por Udo Kern), Munique-Mainz 1980, 9-19.

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obra. Apela para o privilégio de isenção conseguido pelos dominicanos e franciscanos e pede para ser julgado pela Sé Apostólica ou pela Universidade de Paris.

Antes porém de dirigir-se a Avignon onde estava o Papa, no dia 13 de fevereiro de 1327, diante de todo o povo faz uma profissão de ortodoxia: «Eu, Mestre Eckhart, doutor em sagrada teologia, protesto diante de todas as coisas, tomando a Deus como testemunha, que eu sempre reprovei todo erro sobre a fé e toda corrupção dos costumes, tanto quanto pude, já que tais erros seriam e são contrários à minha condição de mestre e contrários também à minha Ordem. Se,  portanto, se encontrar alguma proposição errônea em fé e moral que eu tenha por acaso escrito, dito ou pregado, em privado ou em público, em qualquer tempo ou lugar, direta ou indiretamente, expondo uma doutrina menos sã e até falsa, então eu a revoco aqui explícita e publicamente diante de todos e de cada um dos que aqui estão presentes, como não escrita ou não dita.»19

Eckhart se dirige a Avignon com seu Provincial e mais três confrades professores de teologia. O processo continua em Avignon, agora reduzido a apenas a 28 proposições, suspeitas de heresia. Eckhart procurou explicar-se junto à comissão constituída para julgar sua doutrina. O efeito parece ter sido minguado porque o Papa João XXII no dia 27 de março de 1329 com a Constituição In agro dominico condenou 28 proposições do Mestre Eckhart. Os admiradores do grande místico cristão ainda hoje sofrem com as palavras duras do Papa na introdução do documento condenatório. Considera Eckhart um inimigo que semeia abrolhos na seara do Senhor (daí o título  In agro dominico). Continua o texto: «Com dor comunicamos que, neste tempo, alguém das terras alemãs, Eckhart de nome, doutor e professor de Sagrada Escritura, da Ordem dos Pregadores, quis saber mais do que era necessário, em dissonância com a sensatez e com as diretrizes da fé, porque afastou seu ouvido da verdade e voltou-se às fabulações».20 O texto final

diz: «Nós... expressamente condenamos e reprovamos os quinze primeiros artigos e os dois últimos como heréticos e os outros 11 citados, como mal soantes, temerários e suspeitos de heresia, igualmente os livros e opúsculos do mesmo Eckhart que contenham os referidos artigos ou alguns deles».21

A instituição religiosa assentada particularmente sobre seguranças que exigem os mecanismos do controle, dificilmente, convive com a experiência dos místicos. Ela possui pouca flexibilidade para entender a linguagem ousada dos que experimentaram o inefável do Mistério. Assim Eckhart ficou na história da espiritualidade como um caso exemplar de um eminente teólogo, depois de tantos anos de ensinamento e de edificação da fé junto ao povo, ter sido vítima da incompreensão curial.

O Mestre Eckhart não assistiu à sua condenação. Em final de abril de 1328 morreu em Avignon. O documento papal o dá já como morto. Mas recorda que, por um instrumento público, Eckhart de antemão havia retratado todos os seus possíveis erros, submetendo-se pessoalmente e seus escritos ao melhor juízo da Sé Apostólica.

Esta retratação antes da morte e da condenação pouco valeu para o destino da obra do grande Mestre. É verdade que teve grandes discípulos como Tauler (1300-1361) e Suso (1296-1366). Místicos como Ruysbroeck (1293-1381), os ingleses Juliana de Norwich, Walter Hilton e mais tarde Teresa d'Ávila e João da Cruz foram influenciados por ele. Mas sobre Eckhart desceu, por causa das condenações, um grande silêncio entre os católicos. Entretanto nunca morreram as intuições do Mestre. Nicolau de Cusa (1401-1464), cardeal, teólogo, diplomata, legado pontifício e  prodigioso sábio, colecionou as obras de Eckhart. A sua Douta ignorância (1440) e a Apologia da douta ignorância (1449) estão explicitamente sob a influência do Mestre Eckhart. O próprio Hegel mostrava-se entusiasmado pelo pensamento dialético do grande místico. A partir do século XIX, com a descoberta dos manuscritos, mais e mais se foi refazendo a imagem de Eckhart. Hoje é venerado como um dos representantes mais dignos e autênticos da mística cristã da união com Deus e da imanência divina nas profundezas dos abismos humanos que Eckhart tão magistralmente conhecia.

19 Veja o texto segundo A. Demp f, Meister Eekhart, Friburgo 1960, 19.

20 Veja a tradução de toda a bula papal, em J. Quin t, Meister Eekhart, 449-455, aqui 449.

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Apesar de todos os seus afazeres, viagens e responsabilidades institucionais, Eckhart  produziu, como outros tantos mestres medievais, uma vasta obra literária. A edição mais crítica

começou em 1936 pela Sociedade Alemã de Investigações (Deutsche Forschungsgemeinschaft) e ainda está em curso.22 São duas grandes partes: a obra latina e a obra alemã. A obra latina já foi concluída, com extremo rigor e minuciosidade. Destacamos os títulos principais:

 Prologi in Opus tripartitum. Coma o nome diz a Obra tríplice se desmembrava num (1) Opus propositionum que deveria encerrar mil questões. Conhecemos o desenvolvimento apenas do  prólogo e da questão, extremamente profunda,  Esse est Deus. Em seguida (2) viria o Opus quaestionum: deveria ser uma espécie de Suma Teológica à semelhança daquela de S. Tomás de Aquino. Não se encontrou nenhum manuscrito. Por fim (3) o Opus expositionum, que encerra as grandes exposições do Mestre sobre o Gênese, o Êxodo, o Livro da Sabedoria e sobre o Evangelho de São João. Dentro desta parte existe ainda um interessante comentário ao pai-nosso e o esquema de vários sermões latinos.

Collatio in libros Sapientiarum e Quaestiones parisienses são textos acadêmicos; guardam interesse porque mostram como Eckhart, mesmo nas questões clássicas, é original e já prenuncia suas intuições básicas.

Em latim se publicam ainda Acta et regesta vitam magistri Echardi illustrantia bem como o Processus contra magistrum Echardum.

A edição das obras em alemão é extremamente dificultosa por razões críticas. Publicaram-se  já 86 sermões (Meister Eckharts Predigten em três volumes por J. Quint) e os Tratados (Meister Eckharts Traktate) que serão apresentados par nós em tradução portuguesa pela primeira vez em nossa história lingüística:

Das Buch der göttlichen Tröstung: O livro da divina consolação.

Von dem edlen Menschen: Do homem nobre.

 Die Reden der Unterweisung: Palestras de instrução, conversações espirituais. Von Abgeschiedenheit: Do desprendimento e da disponibilidade.

Existem ainda algumas legendas sobre o Mestre que apresentaremos também em tradução (Eckhart-Legenden).

Lendo-se a produção alemã do Mestre Eckhart destinada preferentemente ao povo ficamos  pasmados pelas exigências espirituais e intelectuais que fazia a seus ouvintes. Podemos até compreender as apreensões das autoridades eclesiásticas. Poderiam os simples fiéis captar a mensagem tão profunda de um mestre espiritual tão mergulhado no mistério da unidade de Deus? Aos críticos responde: «Que posso fazer se alguém não me entende?... A mim me basta que em mim e em Deus seja verdadeiro o que digo e escrevo».23 No final do livro da divina consolação responde: «Dir-se-á que não se deve falar ou escrever sobre doutrinas profundas para os iletrados. A isso digo: se não é lícito instruir os iletrados, nunca ninguém se fará letrado, e já não haverá quem possa ensinar ou escrever. Com efeito, é por isso que se cuida de instruir os iletrados: para que, de iletrados, se tornem letrados. Se nada houvesse de novo, nada ficaria velho».24

Outra vez tranqüilizava os fiéis com estas sábias palavras: «Quem não entender este discurso, não se preocupe em seu coração. Enquanto o homem não estiver à altura desta verdade, não entenderá o discurso. Mas não deixa de ser uma verdade desvelada que veio imediatamente do coração de Deus».25

22  Veja a edição critica:  Die lateinisehen Werke,  publicada por Konrad Weiss, Josef Koch, Karl Christ, Bruno Decker, Ernst Benz,

Bernhard Geyer, Erich Seeber, Heribert Fischer, Verlag W. Kohlhammer, Stuttgart 1936s. Seguem-se as  Die deutschen Werke  publicadas e traduzidas do alemão arcaico por Josef Quint.

23 Veja o texto na tradução portuguesa mais adiante: Da divina consolação. 24 Id., ibid.

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Seu intuitus mysticus o fazia entender que as profundezas da alma são habitadas pela Palavra de Deus. Esta nasce sempre de novo na alma dos seres humanos desde que estes criem o espaço interior suficiente e se coloquem na plena disponibilidade. Com isso já entramos a expor, sucinta-mente, alguns lampejos da mística do Mestre Eckhart.26

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Provavelmente nenhum místico cristão expressou a experiência de unidade de tudo com tudo e com Deus de forma mais persistente do que o Mestre Eckhart. Evidentemente ele articula esta questão básica dentro do horizonte cristão, particularmente do dogma trinitário. Mas lhe dá urna versão personalíssima que o tornou famoso até os dias de hoje.

Antes de mais nada existe nele uma experiência-choque inaugural: a semelhança que as coisas possuem entre si. Assim, por exemplo, a grande maioria dos homens se admira — para ficar dentro de um exemplo citado pelo próprio Mestre — que uma hastezinha de erva seja tão diferente da outra. Eckhart não vê assim. Para ele, maior admiração ainda é o fato de as coisas serem tão semelhantes: «Em sua suprema pureza todas as hastezinhas são um, como também são um todas as coisas».27

Esta unidade de todas as coisas radica na unidade de Deus. Que seja um, constitui, para o Mestre, a suprema e última realidade de Deus. É mais fundamental que o ser, a bondade, a justiça e o amor. «Bondade e justiça são um vestido que envolve Deus. Tirem de Deus tudo o que o reveste, e tomem-no puro em suas roupas íntimas (Kleider-kammer), quando Ele, descoberto e desnudo, está em si mesmo»28; aí está Deus COMO um e unidade. «Que Deus seja um, isto é a divindade

completa de Deus... Se assim não fora, Deus não seria Deus... Todo número depende do um, mas o um não depende de ninguém».29 Assim é Deus.

A luz desta intuição podia também escrever numa homilia: «Deus não está em nenhum lugar. O menor de Deus repleta todas as criaturas e sua grandeza não se encontra em nenhum lugar»30  porque Ele é a unidade de tudo e de todos os lugares. Tudo dimana deste um. «Ele é a riqueza em  profusão porque é um. Ele é o primeiro e o supremo porque é um. Por isso o Um penetra todas e cada uma das coisas e permanece um, unificando o separado. Por isso é que seis não são duas vezes três, mais seis vezes um. »31

Que é afinal este Um? O Mestre Eckhart responde dentro de uma difícil especulação: «Um significa aquilo ao qual não se pode acrescentar nada... Um é a negação da negação. Todas as criaturas carregam uma negação em si; uma nega a outra. Um anjo tem em si uma negação pelo fato de não poder ser o outro anjo. Deus, porém, é a negação da negação. Ele é um e nega todos os outros, pois nada existe fora de Deus. Todas as criaturas são em Deus e são sua própria divindade e

26 Elencamos alguns dos principais títulos que orientam sobre o pensamento e a mística de Mestre Eckhart: T. Schalle r, "Die

Meister-Eckhart-Forschung bis zur Gegenwart", em FZPhTh, 15 (1968), 262-316; Id., "Zur Eckhart-Deutung der letzten 30 Jahre", em FZPh,Th, 16 (1969), 22-39; T. Degenhar t, Studien ZUM Wandel des Eckhctrtbildes, Leiden 1967; W. M. F u e s, Mystik ais Erkenntnis? Kritische Studien ,tzur Meister-Eckhart-Forschung, Bonn 1978; H. Fischer,  Meister Eckhart: Einführung in sein philosophisches Denken, Friburgo-Munique 1974; U. Kern (e outros), Gesprdch mit Meister Eckhort, Berlin 1982; Id. (e outros),  Frei heit und Gelassenheit. Meister Eckhart heute, Mainz-Munique 1980; A. H a a s,  Meister Eckhart als normative Gestalt geistigen Lebens, Einsiedeln 1979; D. Miet h, Die Einheit volt vita activa wnd vita contemplativa in den deutschen Predigten mui Traktaten Meister Eckharts und bei Johannes Tauler, Regensburg 1969; W. Bõhme (e outros), Meister Eckhart heute, Karlsruhe 1980; E. Soude k, Meister Eckhart, Stuttgart 1973; B. Welt e,  Meister Eckhart. Gedanken zu seinen Gedanken, Friburgo 1979; J. Kop e r,  Die Metaphysik Meister Eckharts, Saarbrücken 1955; H. H o f, Scintilkt animae. Eine Studie zu einem Grundbegriff im Meister Eckharts Philosophie, Lund-Bonn 1952; U. K e r n, "Meister Eckhart", em Theologische Realenzykloplldie, vol. 8, Berlin-N. York 1982, 258-264; K. F. K e 11 e  y, Meister Eckhart crn  Divine Knowledge, New Haven 1977; J. Ancelet-Hustache, Maitre Eckhart et kt mystique rhénane (Maitres srdrituels, 7), Paris 1956; J. A. Bize t,  Mystigues allerno/ruis da XIV. siècle, Aubier-Montaigne 1957; Vários,  La mystique rhénane, Paris 1963; V. Lossk y, Théologie négative et cannaissance de Dieu chez Maitre Eckhart, Paris 1960.

27 Deutsche Werke I, Predigt 22, 519; abreviaremos por DW. 28 DW II, Predigt 40, 687.

29 DW I, Predigt 21, 515. 30 DW II, Predigt 35, 668.

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isto significa a plenitude».32

Dizer que Deus é a negação da negação é dizer que Deus é pura afirmação, que Ele é só  positividade sem padecer qualquer tipo de limitação. Portanto, Deus não é como a criatura que está

num lugar e não pode ocupar simultaneamente todos os lugares. Onde está uma criatura não poderá estar a outra. Deus nega esta negação, porque Ele e somente Ele pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo: «Deus está todo inteiro em cada criatura, em cada uma como em todas».33

Se Deus é assim tão um a ponto de se encontrar na intimidade de cada ser, como é possível então que haja outros seres ao lado dele? Como se passa do Uno para o múltiplo? É possível pensar a Trindade como co-existência do Pai, do Filho e do Espírito Santo, sendo um só Deus?

Eckhart responde que é possível porque esta unidade é radicalmente dinâmica e desbordante de si mesma. Não é apenas uma unidade exclusiva só de Deus (puritas essendi) mas também uma unidade inclusiva em todos os demais seres (plenitudo essendi). Aqui G Mestre pensa a realidade de Deus em termos de espontaneidade vital, de um viver.34 Define assim a vida como um viver: «A

vida significa uma espécie de fervilhamento (exseritionem) no qual uma coisa fermenta e se derrama primeiramente sobre si mesma, efundindo tudo o que ela é naquilo que ela é, antes de desaguar e espalhar para fora. É por este motivo que a emanação das Pessoas em Deus é a razão e o  preâmbulo da criação. »35 Deus é fundamentalmente vida; como dizia já Aristóteles, «o Vivente eterno perfeito»36, o «princípio sem princípio», pois tudo o que vive, em sentido estrito, não recebe

o princípio de sua atividade do exterior; possui-o em si mesmo. A Deus somente cabe em sentido  pleno a vida e o viver.37

Viver é jorrar livremente, sem necessidade de responder por que (quare). «Você pode  perguntar durante mil anos à vida: por que vive? E ela responderá sempre: vivo porque vivo, vivo  por viver. A razão é que a vida tira sua vida de seu próprio fundo e jorra de seu próprio ser. É por

isso que ela vive sem perguntar o porquê, pois que ela vive em si mesma».38 Assim é Deus vivo. Para expressar esta dinâmica imanente à vida e ao Uno, o Mestre Eckhart usa as expressões bullitio e ebullitio, bulição e ebulição.39 Deus é um  processus sine variatione (um processo sem

variação) que está constantemente em bulição e ebulição, fermentando e extravasando. «É necessário que alguma coisa bula (do verbo bulir) totalmente em si mesma para que seja  plenamente perfeita e na ebulição seja mais que perfeita».40 A bulição (bullitio) significa o processo vital da processão das três divinas Pessoas e a ebulição (ebullitio), a ação da SS. Trindade considerada para fora em razão das criaturas. Todo este processo revela a passagem do Uno para o múltiplo sem ferir o Uno. Antes, de sua riqueza fervilhante tudo jorra e se expande.

Eckhart reserva a palavra divindade (Gottheit) para Deus nesta absoluta unidade. E usa a  palavra Deus (Gott) para o processo trinitário e criacional. No fervilhar da unidade eclode a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, que, entretanto, não rompe a unidade porque a natureza divina permanece sempre una e única. Por isso deve-se falar em Unitrindade. O Pai se desdobra no Filho e o Filho retorna para o Pai. Mas para que os dois sejam um, é aspirado o Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho como o nexo e o vínculo entre ambos.

 No processo de geração do Filho, sua imagem absoluta, o Pai gera igualmente todos os demais seres. «Tudo Deus gerou em seu Filho Unigênito e faz com que nós sejamos o mesmo Filho».41Todos são filhos no Filho, gerados nele, com ele e para ele. «Devemos ser um só Filho que o Pai gerou eternamente. Quando o Pai gerou todas as criaturas, gerou-me a mim e eu emanei

32 DW I, Predigt 21, 514.

33 LW II, 247-248: In Eccli. n. 19-20.

34 Para toda esta questão veja V. Losski, Théologie négative et connaissance de Dica chez Maitre Eckhart, Paris 1960, 114s; 350-358. 35 LW II, 22: Exp. in Ex.

36 Metaph. XII, 1072b, 26-30. 37 LW III, 51, n. 62: Exp. in Jo. 38 DW I, 91-92: Predigt 5.

39  Para esta questão veja M. de Gandilla c, "La 'dialectique' de Maitre Eckhart", em La mystigue rhénane, 75-77, e em V. Lossk y,

Théologie négative, 117-120; cf. também 102-103; 366-367.

40 LW IV, 428: Sermo 49, 3. 41 DW II, 651: Predigt 28.

Referências

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