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Academic year: 2021

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“A BABEL”

E findo o grande espetáculo, toda sorte de brocados restara ao longo do picadeiro.

“Este, sem dúvida, foi menor que o de amanhã e mais vulgar ao virá além, já que a arte, como a alquimia, ousa purificar seus elementos primordiais através da destilação cotidiana para atingir a almejada quintessência.”, dizia o mago Zinanch Abha, a um interlocutor anônimo, visivelmente assombrado com aquele seu número de transmutar grosseiro chumbo em ouro e depois revertê-lo novamente chumbo, questionando-o do por quê não enriquecia ficando com o mais precioso dos metais, “Pois, se eu assim não procedesse seria indigno de toda sabedoria alcançada em cinqüenta anos de experimentos e evolução. É isso que para mim consiste num bem mais valioso que o dourado elemento – o vil metal, como bem dizem os poetas.”.

Dos holofotes mortos, no pináculo daqueles mastros intermediários, delineava-se agora apenas o brilho opaco de suas velhas carcaças prateadas, abaixo deles, a da rede estendida, e, de permeio, destacavam-se os esquálidos trapézios inertes. Às vezes, o anão, de nome Dalila ou o seu porquinho-da-índia, riscavam as sombras rumo a qualquer lugar, enquanto Rei Leão, bocejava indolente, banguela, apoiando o focinho nas próprias patas. No interior do trailer número quatro — o menor dos nove que circundavam os fundos do circo

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—, dividindo espaço com jaulas, caminhões, feno, latrinas em cubículos de compensado, cavalos adestrados, armaduras de lata, calhambeques da alegria, maçaricos de carbureto e a quinquilharia absoluta do imenso universo festivo —, encontrava-se despida e desolada, Hava, a mulher-macaco, “E sei que aqueles malditos espelhos estão me tornando realmente mais horrível a cada dia, sinto que breve terei barba verídica e não projetada”, deitada num catre de lona grosseira parda ao lado de um outro, no qual ressonava seu companheiro — Théo, o medíocre mágico, Bilhardo Contreras —, a mussitar de quando em quando, “Nada nesta mão, nada nesta outra”, fazendo o hálito de cachaça se evolar pelos lábios murchos — crespos nas últimas rugas —, preenchendo o abafado ambiente com o acre fedor dos botequins mais reles, nos quais, misturam-se pela fatalidade das orbitas ébrias, moscas aos destilados, “Há na distinta platéia um voluntário?”; e a mulher insone, apalpando os sovacos cabeludos, ouvindo o metódico estalejar da chuva no teto metálico, sem lhe dar ainda a devida importância e por quase duas horas, até que uma goteira zunisse intermitente sobre a frigideira gordurosa sobre a bacia improvisada como pia e a fizesse saltar do catre em pêlo, aos humores afetados, “Só me falta agora me pedirem para ser a mulher-peixe”, para, irada, atirar ao inferno o utensílio inteiro e pressentir os cacos dos pratos tinindo, mesmo antes que a tal frigideira ensebada estrepitasse metálica, espatifando o vaso de louça e

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os dois copos vazios de geléia, sobre a velha caixa — de fundo falso, a traquitana dos implacáveis serrotes assassinos — agora a lhes servir de mesa. “E que diacho foi isso agora, Hava? Será que nos apedrejam?”; “Durma seu bêbado maldito, que te emborco este urinol no crânio, pois já me bastam as agruras desta vida!”.

E o vale entre as serras ia acolhendo as águas torrenciais dos morros naquela longa madrugada de personagens alertas, grudadas aos postigos dos reboques, premunindo no negrume nefasto do chuá-chuá, a catástrofe que, de fato se sucedeu, ilhando-os em seus corroídilhando-os limites metálicilhando-os já nilhando-os primeiros sinais de uma manhã agonizante, com o cenho carrancudo de tenebroso crepúsculo invernal.

Permaneceram, então, presos às suas janelinhas, gritando de um trailer ao outro — num tipo de parlamento comadresco —, assistindo ao dilúvio, tomados de dor, revolta e uma pasma admiração, quase infantil pela estupenda força da natureza.

Assim, de ares estupefatos, viram a torrente lamacenta levar, primeiro os cubículos e suas latrinas — fazendo borbotar as fossas improvisadas, abertas sem higiene ou pudor; depois, arrastar os entulhos do cotidiano, presentes no terreiro dos fundos, entre a lona arqueada do ganha-pão e o semicírculo dos veículos e vagões domésticos, em que se prostravam numa espécie de impotente e reverencioso temor.

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Espumavam, então, os tubos de carbureto, girando como satélites perdidos entre a desordem descomunal, roçando nas tolas galinhas de três patas, atritando contra as paralíticas motocicletas do globo da morte, sumindo no roldão multicolorido de plumas, cadeiras, fantasias, sacos de ração, baldes de esterco, latas de querosene, flores de pano, gaiolas com as pombas adestradas, “Ai, que lá vão também meus pêlos de macaco”, cartas de baralho, maiôs de trapezistas, o anão Dalila — casual como sempre —, as bolas de malabarismo, barris de serragem, bandeirolas festivas, “E, ora viva se aquela não é a minha horrível cabeça de primata! Olha lá seu borrachão, venha ver que espetáculo, há um tomate maduro enfiado minha boca, na boca dela. Será o nariz do palhaço Pirulito? Venha ébrio duma figa, venha ver” — eufórica, nua, agarrada às barras do postigo, sacolejando as alvas banhas de criatura descuidada, púbis descomposto (um cavanhaque de Fidel) resvalando na porta, nádegas molengas em malabarismos naturais, cabelo desgrenhado, tinto —, “A mulher-macaco morreu, afogou-se. Venha ver, venha!”.

E o grande mastro, cedeu. A lona murchou, feito um bolo tirado do forno às pressas, caindo sobre as outras estacas menores que circundavam o pilar principal, permanecendo côncava, imóvel, austera, dando à antiga casa de espetáculos, um solene tom de vulcão extinto, com a exótica cratera úmida, emergindo a apenas dois metros do chão —

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acima de linha dágua —, parda, podre, remendada aqui e acolá com retalhos de couro cru.

Passam boiando como naus sem rumo, a cesta das cobras, os carvões do fogão, as latas de querosene, as bandeirolas esmaecidas, os sacos de ração.

O destemido homem bala mergulha no torvelinho em busca de seu canhão. Théo se mexe na cama, suspira, mussita, “Que linda voluntária temos aqui”, sucumbe ao coma alcoólico. Nas barras da janela navega, inchado, de barriga para cima, o porquinho-da-índia, “Olha o Fifi, pobrezinho dele, lá vai, lá vai...”, a roda das facas, o baú dos piratas, as delgadas estolas púrpura das acrobatas gêmeas, o profano ataúde do horror, “Bem que este aqui, poderia seguir lá dentro de pés juntos”, os apócrifos cenários da guerra turca — com seus escudos, galhardetes e cimitarras, recortados de ripa e trabalhados a pincel —, os extravagantes painéis da bilheteria, “Desejava mais deste mundo injusto; livrei-me, enfim, da mulher-macaco, mas deste estorvo, não há meios. Ou há?”, agora flutuam sobre a correnteza o carrinho do pipoqueiro e uma caixa de rabeca, “Deve haver algum..” — coça o púbis (eriça as barbas de Fidel), senta-se em seu catre, pondo-se de frente para companheiro encachaçado —, “Algum método rápido, indolor, eficiente. Aquela frigideira me parece muito leve, ele acordaria ao primeiro golpe... A faca! Não, a faca não, sou muito patife para ver sangue jorrando...”

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E dessa forma pôs-se continuamente a meditar por quais humanas vias poderia assassinar o amásio — condoendo-se dele a cada reflexão mais aguda —, contemplando-o, já não do catre adjunto, mas metida entre a nefasta desordem da cozinha rudimentar, sentindo impávida e alheada, o nômade habitáculo adernar pela força das águas barrentas, “Penso que este raticida provocaria amplos rombos em suas tripas grossas”, como se o eixo que o atava a boléia do velho veículo, houvesse se soltado no momento da máxima flutuação. Mas, só quando a noite caiu novamente — e já não sabia se estavam ainda no perímetro circense ou navegando pelas adjacências — teve a idéia de erguer Théo até o alçapão e, discretamente, jogá-lo para fora. Sem dúvida, no delírio alcoólico em que ainda se encontrava, afogaria-se na intermitente enxurrada. A hora era propícia; no breu tétrico daquela hora ninguém veria nada. O homem surgiria morto, culparia-se a inundação, o destino, o descuido, a cachaça. A idéia lhe parecia esplêndida, porém possuía os seus inconvenientes, tais como: erguê-lo, passá-lo pela abertura quadrada de alguns quarenta por quarenta centímetros e, por fim, fazer com que rolasse sobre o teto e caísse — rezando para que não despertasse nesse meio tempo — no caudal diluviano. Tarefa operosa demais para uma mulher. Especialmente para uma, que acabara de se livrar para sempre da rudeza simiana que tanto a atormentara, “Mas como balança este trem da

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Leopoldina, não Hava?”; “Que trem da Leopoldina, monstrengo velho?”; “Da Federal, então?”.

Seu desatino ficou sem resposta. Hava foi até o postigo, abrindo-o com cuidado e tocando a superfície da água que já ia pelo patamar superior, “Ei, tem alguém vivo aí fora?”; “Tem, sim! Quem chama?”; “É Hava do Quatro! E quem responde?”; “É Ronte Cirilo do Seis!; “Essa chuva não pára, Cirilo?”; “Aqui, não parou, Hava, e aí?”; “Vá para o inferno, Cirilo do seis!”; “Nada de brigas, pessoal, temos que nos unir, talvez é hora de harmonia, não vamos levar ao juízo final mais essa desavença, aqui é Berenito do Três!”; “Então vá rezar imbecil!”; “Quem disse isso, quem disse?”; “Calem a boca, vamos ouvir a intensidade da chuva, acho que está cessando”; “Aqui é Morgana do Um, informo que ouço alguém mijando pelo postigo, pare com isso ou nos afogaremos mais depressa!”; “Sugiro que Bilhardo Contreras tire um amplo navio da cartola e nos salve a todos!”; “Teotônio do Cinco, aqui é Quência Nora do Dois, ligue aí aquele rádio Galena, talvez digam algo sobre a tempestade”; “Quência, você viu o anão Dalila? Emprestei-lhe ontem o aparelho!”; “Teotônio do Cinco, aqui é Hava do Quatro, vi o anão Dalila boiando antes do anoitecer, informo que ele não empunhava o teu rádio”; “Aqui é Arméstio do Oito, estamos afundando, meu reboque é muito pesado!”; “Mantenha sangue frio, Arméstio, aqui é Berenito do Três, desmonte as armaduras medievais e jogue as partes pelo postigo!”; “Não leve a mal, compadre Arméstio, aqui é Euler do Sete, mas

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o ideal seria se pudesse fazer o mesmo à sua sogra Girondolla, ela pesa bem mais que os arneses do século XIV”; “Aqui é Edeusina do Arméstio do Oito, por que você não perde a língua na enxurrada, Euler do “Sete?”; “E o mago do Nove, está aí? Zininch Abha, você está aí? Zininch Abha, responda... Zininch Abha!”.

E Morgana do Um, pôs seus três filhos, Mirano, Magonara e Monsani, dentro da barrica de azeitonas, com a qual praticava os festejados números de equilibrismo, pedalando no ar o objeto, “Fiquem aí bonzinhos, quando chegar a hora, eu tampo. Não tenham medo, sairão flutuando; e, assim que a água baixar, estarão salvos”. Então, cautelosa, abriu a pequena janela. Uma marola repentina, trouxe duas laranjas e meia peruca do império inglês para o interior do reboque, Fiquem com as frutas, meus queridos — atirando-as para as crianças com a peculiar habilidade profissional —, depois espalmando as mãos ao redor dos lábios, enfiou o rosto através do postigo, “Como estão as coisas por aí?”; É Ronte Cirilo do Seis quem te responde: há dois buracos em minha parede da direita, Gândara tem o dedo médio metido num, Heralda, o anular no outro, ainda restam os meus; “Meta-os no cu, Cirilo!”; “Identifique-se, quem disse isso: bastardo, desgraçado!”; “Pois não: aqui é Pousada Estrela, 39, quem fala Jordano, o proprietário. E tem mais, essa merda do seu reboque aqui. você acabou de derrubar a varanda do meu estabelecimento. Só não te faço mais buracos porque

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a espingarda ficou submersa lá em baixo, na sala!”; “Desculpe Jordano, Pousada Estrela, 39, estou sem leme!”; “Há garoa lá fora, minha macaquinha, Hava?”; “Garoa, seu urso ébrio? Estamos é boiando na maior inundação do século, navegando ao léu, suspensos na mão espalmada do destino. Continue dormindo, chegará ao inferno sem aflições!”; “Está bem, Hava, então até mais ver. Claro que tudo isso é coincidência e não só porque eu que duvidei do mago Zininch Abha...”; “Duvidou do quê?; “Da veracidade dos seus números, especialmente, do chumbo em ouro. Ele, ofendido, afirmou que choveria eternamente”; “Ah, seu bêbado maldito, você fez isso?”; “Sim fiz, e disse que choveria para todo o sempre, a menos que...”; “Que o quê, fale seu assassino, fale ou te arranco as palavras pela goela!”; “Que como forma de minha remissão, eu diga as três vezes a palavra do perdão. Ou seja, querida, se eu pronunciasse isso estaria vencido, subjugando pela verdade de sua crença ou filosofia ou poder ou seja lá a merda que for”; “Então diga, diga logo, diga Théo!; “Eu não posso”; Por que não pode, quer que eu pegue uma cachacinha?”; “Aceito a cachacinha, mas não posso dizer”; “Toma um copo, a garrafa inteira, diga, Théo, por favor diga...”; “A verdade, é que eu não me lembro das palavras, estava um pouco alto na hora, você sabe”; “Não importa, meu amor, vício é vício eu compreendo, sempre compreendi, agora lembre-se das palavras, você consegue, esforce-se Théo, vamos...”; “Acho que é Laburitus, não, é Baributhus, também não, então é, Damithurus...

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Quer saber de uma coisa, Hava? Mesmo que eu lembrasse, não diria, continuo não entendendo nem acreditando em nada daquele velho esquizofrênico. Prefiro, como você disse antes, prosseguir dormindo e chegar ao inferno sem aflições do que cogitar que aquela balela seja verdade. Afinal, se Theo, o grande Bilhardo Contreras, tem que espremer uma pomba no fundo falso da cartola, como é que ele, sem cartola ou manga, tira ouro do chumbo? Pra cima de mim, não...”; “Aqui é Teotônio do Cinco, não deu jeito mesmo: estou falando do Além, alguém me ouve? Alguém me entende?... Alguém me escuta?...”.

© Gilberto Namura – 2007 – da obra:

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