A
influência das escolinhas de
arte sobre a criatividade
infantil
I . Introdução
MARIA INÊs GARCIA DE FREITAS e SUELENA DE OLIVEIRA VIEIRA ,..
1. Introdução; 2. Formulação do problema; 3. Método; 4. Resulta-dos; 5. Discussão; 6. Resumo.
O termo "criatividade" refere-se às habilidades características, como as de pegar fatores conhecidos e combiná· los em formas novas e diferentes e as de pensar de uma forma única, tendo fluência de pensamento e idéias, flexibilidade, originalidade e elaboração, que vão determinar se um indivíduo tem o poder de apresentar um comportamento criativo notável. Geralmente, tem-se a idéia de que criatividade é uma qualidade que apenas alguns privilegiados possuem, e que as pessoas comuns não. No entanto, a psicologia admite que, exceto nos casos patológicos, as pessoas têm, num certo grau, todas as habilidades em potencial. Deste ponto de vista, podemos esperar "atos criativos" em quase todos os indivíduos e que as pessoas comumente consideradas "criativas" apenas possuem talento criador em maior quantidade dentro do continuum da habilidade em questão. Existe, evidentemente, uma correlação positiva
entre criatividade e inteligência (QI), embora a sua extensão exata seja desconhecida; mas a inteligência, segundo Guilford, não é o único fator determinante, e a criatividade estende-se muito além do campo intelectual. Guilford (1950) declara que muito pode ser feito para desenvolver a potencialidade criadora que existe na maioria das pessoas, por meio do reforço das funções envolvidas e pela utilização adequada das capa-cidades individuais_ Freqüentemente, são feitas críticas aos atuais sistemas educacionais que impedem o desenvolvimento das funções criativas da personalidade (embora seja impossível criação sem aprendizagem prévia dos fatos) ; a criança nas escolas é, geralmente, pressionada a se conformar às normas, impedindo a manifestação das suas verdadeiras possibilidades. Por outro lado, segundo a afirmação de Piaget, a educação artística da criança, considerada como um complemento da educação intelectual e social em geral, seria um meio de enriquecer a personalidade infantil no seu todo, permitindo-lhe uma maior afirmação pela criação em todos os setores de atividade. A educação artística deve ser antes de tudo uma educação da capacidade de criação que se manifesta na criança pequena, com a finalidade de levar ao desenvolvimento da expressão espontânea original infantil, desenvolvendo a sensibilidade e capacidade perspectiva. Diversos autores modernos, dentre os quais Prudhommeau, Read etc., mostram que o desenho exprime uma tomada de posição afetiva por parte da criança, mais do que um conhecimento objetivo. Prolongando a percepção infantil, o desenho é a expressão de uma atitude original diante dos objetos, do meio em que ela vive. Os trabalhos de S. Morgens-tern levam à conclusão de que o desenho reflete os conflitos (infantis e adultos), constituindo uma forma de sublimação e de catharsis.
Para Augusto Rodrigues, fundador da Escolinha de Arte do Brasil, a criança tem maiores possibilidades de ajustamento às situações da vida quando estimulada pela arte, o que vem apoiar o pensamento de Piaget, numa aplicação prática direta. Quando a criança exprime-se livremente, sem bloqueio, ela passa a identificar-se melhor com ela mesma e com o mundo.
Mas como definir a criatividade em termos objetivos? As interpre-tações de "eventos criativos" são muitas vezes superficiais do ponto de vista psicológico, não fornecendo a possibilidade de se estabelecer uma hipótese testável de uma maneira concreta. A solução deste problema parece-nos ser o emprego de um método, baseado na teoria fatorial da personalidade, que distingue fatores comuns a todas as atividades criado-ras. Pela análise fatorial foi possível chegar-se a uma teoria compreensível da inteligência, conhecida como "estrutura do intelecto", na qual se encontram as habilidades do pensamento criador. Os estudos de Guilford (1950) determinaram que a produção criativa depende de habilidades pertencentes à estrutura do intelecto, combinadas de maneira tal que dão origem ao pensamento criador. Desde seus primeiros estudos sobre esse assunto, Guilford determinou os principais fatores responsáveis pela criatividade, que se encontram relacionados com um tipo de pensamento
chamado "divergente", e que permite a produção de respostas variadas e diferentes, já que o produto não é completamente determinado pela informação dada.
Os fatores isolados, comuns à criatividade são:
1. Fluência de pensamento, compreendendo fluência verbal (segundo Thurstone, a habilidade de produzir rapidamente respostas sob forma de palavras a exigências simbólicas específicas); fluência associacional; fluência ideacional (que possibilita produção de muitas idéias).
2. Flexibilidade que, segundo Guilford (1957), é a habilidade de pro-duzir "uma diversidade de idéias, quando há liberdade para fazê-lo". Podemos distinguir flexibilidade espontânea (definida como "ausência de um tipo de rigidez caracterizada como perseveração") e flexibilidade adaptativa, que envolve variações na "estratégia mental", isto é, possibi-litando ao indivíduo encarar um problema de um modo incomum a fim de resolvê-lo.
3. Originalidade considerada como uma habilidade paralela à flexibi-lidade adaptativa com informação semântica. Os critérios para distinguir as respostas originais são: baixa freqüência estatística na população, relação remota com a informação dada, inteligência ou engenhosidade., 2. Formulação do problema
O objetivo principal desta pesquisa é verificar até que ponto uma edu-cação artística precoce pode estimular o desenvolvimento da criatividade potencial que existe na criança. Deste modo, as crianças habituadas às atividades artísticas devem conseguir melhores resultados nas situações em que é necessário o emprego de' criatividade, evidenciando, portanto, seu desenvolvimento neste setor.
Nossa hipótese é que elas receberam orientação artística nos moldes de escolinhas de arte, apresentando características indicadoras de maior desenvolvimento da capacidade criativa do que as que nunca tiveram este tipo de experiência.
3. Método 3.1 Sujeitos
A amostra constituiu-se de 60 crianças, distribuídas em dois grupos: grupo 1 (crianças com "experiência criadora") e 2 (crianças sem este tipo de experiência). Os sujeitos foram selecionados de acordo com os seguintes critérios:
1. Experiência de atividade de desenvolvimento criador, representada pela freqüência de pelo menos dois anos a uma escolinha de arte (para
o grupo 1) ou nenhuma orientação no sentido deste desenvolvimento (para o grupo 2).
2. Nível intelectual bom.
3. Idade entre 9 e 11 anos. Esta limitação deve-se ao fato de que crianças menores, por razões ligadas ao próprio processo de desenvolvimento da personalidade, não fornecem no Z-teste (empregado como instrumento de medida) os determinantes necessários para a avaliação da criatividade. 4. Nível socioeconômico médio ou médio-superior. Esta determinação foi imposta por razões práticas, devido ao fato da freqüência às escolinhas de arte, por nós selecionadas, ser predominantemente constituída de crianças deste tipo.
Os sujeitos foram selecionados nas seguintes escolas, correspondentes aos critérios acima mencionados:
1. Para o grupo 1: Escolinha de Arte do Brasil e Colégio Andrews, que tem o mesmo padrão de ensino artístico e orientação da Escolinha. 2. Para o grupo 2: Colégios Santo Antônio Maria Zaccaria, Nossa Se-nhora das Vitórias e Santa Úrsula.
3.2 Procedimento
Numa primeira etapa, aplicou-se o teste de Raven (forma coletiva) em 150 crianças das escolas já mencionadas, pertencentes ao quarto ano primário e admissão. Pediu-se, além disso, que as do grupo 2 indicassem se já tinham tido alguma experiência em escolinha de arte, e por quanto tempo, a fim de que pudessem ser afastadas da amostra; e pediu-se às crianças das escolinhas de arte que dissessem há quanto tempo freqüen-tavam a escola.
Os dois grupos foram constituídos pela seleção de 60 crianças clas-sificadas pelo Raven no percentil 75, sendo 30 delas crianças com pelo menos dois anos de atividades de criação livre (grupo 1) e 30 sem este tipo de experiência (grupo 2).
Na segunda etapa, tentou-se medir o desenvolvimento das capaci-dades criativas dos sujeitos, a fim de comparar os resultados dos dois grupos. Esta comparação foi feita por uma análise dos critérios estabe-lecidos por Guilford: flexibilidade, fluência e originalidade.
Foi utilizado para isto o Z-teste de Zulliger. Embora este seja um teste de personalidade global, sua interpretação pode trazer informações precisas a respeito de recursos internos e possibilidades criativas do indi-víduo. As qualidades criativas podem ser apuradas, segundo Zulliger, especialmente pela análise dos seguintes elementos:
K, ou movimento humano bem visto, expressão de capacidade para ati-vidades de pensamento criador.
G+ secundárias (respostas globais), que refletem a capacidade produ-tiva de abstração e síntese.
FC, respostas de forma e cor que expressam a capacidade de controlar a emoção, a concordância emocional com a realidade: boa capacidade de adaptação ao ambiente e canalização da emoção por meios criativos.
Estes elementos foram tomados como indicadores do fator de flexibili-dade no sentido definido por Guilford, de "habiliflexibili-dade de produzir uma diversidade de idéias quando há liberdade para fazê-lo". Quanto à fluên-cia, foi medida pelo número de respostas dadas ao teste e à originalidade, avaliada pelo número de respostas originais, determinadas em função de freqüência estatística estabelecida por pesquisas já feitas sobre o Z-teste.
4. Resultados
Os protocolos dos sujeitos do grupo experimental e do grupo de controle foram analisados em relação aos três fatores pesquisados: flexibilidade, fluência e originalidade. As diferenças entre os grupos de sujeitos foram significantes em relação aos fatores fluência e originalidade (t
=
2,42;P
< 0,05 e
t=
2,31;P
< 0,05, respectivamente) e não se verificou
dife-rença significante no que concerne ao fator flexibilidade (t=
1,37;P
=
n.s. 5. DiscussãoA fluência consiste na capacidade de dar muitas respostas numa deter-minadas situação, sejam elas "criativas" ou não. O fato de o sujeito poder produzir uma grande quantidade de respostas aumenta a probabilidade de aparecerem, entre elas, respostas criativas.
Este fato parece evidenciar-se pela relação entre o aumento dos fatores de originalidade e fluência constatado no grupo 1.
Quanto à flexibilidade, pode-se notar que os sujeitos dos dois grupos apresentam aproximadamente os mesmos recursos internos e as mesmas possibilidades criativas, medidas pelos fatores G, FC e K do Z-teste.
Esses resultados podem ser devidos ao fato de todas as crianças serem criativas, pressuposto do qual partimos para a realização deste estudo. Além disso, uma vez que a variável "inteligência" foi controlada, parece ser razoável que os sujeitos dos dois grupos tenham um grau semelhante de capacidade criativa, no sentido de "habilidade de produzir uma diver-sidade de idéias quando há liberdade para fazê-lo".
Considerando-se os três fatores em conjunto, a pesquisa parece mos-trar que a influência da "experiência criadora livre", tal como é prati-cada nas escolinhas de arte, manifesta-se no sentido de uma maior pro-dução.
Esta produção refere-se a uma facilidade superior de exteriorização das potencialidades criativas internas dos indivíduos. Assim, todas as
crianças da amostra revelaram uma capacidade básica interna de criação. A "experiência criadora" parece ter influído na canalização (no sentido de exteriorização) desta capacidade.
A partir disso podemos supor que a influência da experiência de escolinha de arte faça-se mais no sentido de exteriorização do que no de desenvolvimento, propriamente dito, da capacidade criativa interna, tal como havia sido estabelecido na hipótese.
6. Resumo
Com o intuito de examinar até que ponto uma educação artística precoce pode estimular o desenvolvimento da criatividade potencial infantil, foi conduzido um experimento de comparação entre crianças com educação artística "livre" (experiência em escolinha de arte) e crianças sem tal experiência. A comparação baseou-se nos critérios de criatividade esta-belecidos por Guilford.
A amostra, selecionada a partir de diferentes critérios (idade, nível intelectual e socioeconômico, escolaridade), constituiu-se de 60 sujeitos divididos em dois grupos:
grupo 1: grupo 2:
crianças com experiência criativa; crianças sem experiência criativa.
Os sujeitos foram submetidos ao Z-teste de Zulliger, tendo sido os resultados avaliados pela distribuição t de Student.
Constatou-se que a influência da educação artística parece fazer-se mais no sentido de uma exteriorização da capacidade criativa do que propriamente num desenvolvimento da potencialidade.
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