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LYOTARD, Jean-François - O inumano considerações sobre o tempo

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Academic year: 2021

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ecolha de «considerações» na sua maior parte destinadasa um público vasto.Alguns prolongamento sà ideia depós-moderno. Os humanosarrastados num desen volvimento inumano a que já não ousamos chamar progresso. O desaparecimento deuma alternativa humana,políti -ca e filosófi-ca, neste processo.

Ainda possível apenas uma resistência, apoiada sobre o outro inumano: a despossessão de si que dormita em cada um,a sua indomável infância.

Banalidade esmagadora, mediática, dos neo --humanismosque hoje em diaseerguem.

Questões decisivas : o tempo, a memória, a matéria.Como a «vida administrada»(Adorno) as anula ao programá-las.

Como as artes visuais,dosomedo pensamento lhes preservam a verdade paradoxal.

ISBN 972-33- 1264-6

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FICHA TÉCNICA

Título original:L'Inhumain.Causeriessur le temps

Tradução: Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre Capa:José Antunes

Impressãoeacabamento: Rolo&Filhos - ArtesGráficas,Lda. I"edição: Editorial Estampa, 1990

2,·edição:Editorial Estampa,1997 Depósitolegal n."112125/97 ISBN 972-33-1264-6

Copyright: © ÉditionsGalilée, 1988

©Editorial Estampa, Lda, Lisboa, 1989 para a língua portuguesa

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ÍNDICE

Prefácio: do humano 9

Se pudermos pensar sem corpo 17

Reescrever a modernidade 33

Matéria e tempo . . . 45

Logos e tekhnê, ou a telegrafia 55

O tempo, hoje 65

O instante, Newman . . ... . .. ... . . . .... . 85

O sublime e a vanguarda 95

Algo como:«comunicação sem comunicação» 113

Representação, apresentação, não apresentável 123

A palavra, o instantâneo 133

Após o sublime, estado da estética 139

Conservação e cor 147

Deus e a marioneta 155

A obediência 167

Scapeland . . . ... . . 183

Domus

e a megalópole . . . ... 191

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PREFÁCIO DO HUMANO

O humanismo administra-«nos»(?) lições. De mil maneiras, fre-quentemente incompativeis entre si. Bem fundadas (Apel) e não funda-das (Rorty), contrafactuais (Habermas, Rawls), pragmáticas (Searle), psicológicas (Davidson) e ético-políticas (os neo-humanistas franceses). Mas assumem sempre o homem como sendo pelo menos um valor se-guro que não necessita ser interrogado. Que tem inclusivamente autori-dade para suspender, interditar a interrogação, a suspeição, o pensa-mento que tudo corrói.

O que é valor, o que é certo, o que é homem, são questões muito perigosas e damo-las por encerradas o mais rapidamente possível. Elas abrem, dizemos, a via ao «tudo é permitido», ao «tudo é possível», ao «nada tem valor», Vejam, acrescentamos, o que acontece aos que ul-trapassam este limite: Nietzsche tornado como refém pela mitologia fascista, Heidegger nazi, enfim, passo...

Mesmo o que, a este respeito, pode existir de inquietante em Kant, o que não é antropológico mas propriamente transcendental e o que na tensão crítica chega até a destruir a unidade mais ou menos pressu-posta num sujeito (humano) como é o caso que me parece exemplar da análise do sublime ou de escritos histórico-políticos, até esses os expur-gamos. Sob pretexto de voltar a Kant, mais não fazemos que resguar-dar o preconceito humanista sob a sua autoridade.

Um mesmo movimento de restauração declara-se também contra a escrita como contra a leitura de textos, as artes visuais,a arquitectura. Em nome de uma recepção pública bem regulamentada, Jauss recusa o texto adorniano: a escrita da Teoria Estética, enodada, incerta, quase selvagem é julgada ilegível. Sejam comunicáveis, está prescrito. O van-guardismo é um velho jogo, falem dos seres humanos humanamente,

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dirijam-se aos humanos, tenham eles prazer em vos receber e receber--vos-ão,

Não é que o humanismo seja simplesmente uma operação de mar-keting, Os que «nos»(?) admoestam não são todos industriais da cultu-ra. Apelidam-se a si mesmos de filósofos. Mas aquilo que é a filosofia, também não deve ser interrogado sob pena de cair na vulga-ridade. Eu não sonho: o que é apontado nas «vanguardas» (o nome é maldoso, reconheço) é algo que já foi declarado aos quatro ventos. Em 1913, Apollinaire escrevia ingenuamente: «Os artistas são, antes de mais, homens que pretendem tornar-se inumanos.» E em 1969, se bem que com um pouco mais de prudência, Adorno escrevia ainda: «A arte mantém-se fiel aos homens unicamente pela sua inumanidade para com eles.»

As «considerações» aqui reunidas - são todas palestras encomen-dadas, destinadas na sua maior parte a um público não profissional, e o resto à confidência - não têm nem função nem valor de manifesto ou de tratado. A suspeita que traem (nas duas acepções da palavra) é simples, ainda que dupla: e se, por um lado, os humanos, no sentido do humanismo, estão em vias de, constrangidos, se tornarem inuma-nos? E se, por outro lado, for «próprio» do homem ser habitado pelo inumano?

Existiriam assim dois tipos de inumano. Éindispensável mantê-los dissociados. A inumanidade do sistema em curso de consolidação; sob o nome de desenvolvimento (entre outros), não deve ser confundida com aquela, infinitamente secreta, de que a alma é refém. Acreditar, como aconteceu comigo, que a primeira possa substituir a última, dar--lhe expressão, é cair no engano. A consequência maior do sistema é a de fazer esquecer tudo o que lhe escapa. Mas a angústia, o estado de um espírito assombrado por um hóspede familiar e desconhecido que o agita, fá-lo delirar mas também pensar - se pretendemos excluí-lo, se não lhe damos uma saída, agravamo-lo. O mal-estar aumenta com esta civilização, a exclusão com a informação.

Muitas destas palestras debruçam-se sobre a problemática do tem-po. Ela é decisiva para a separação em questão. O desenvolvimento impõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa, reter apenas a informação útil no momento, como acontece com a «leitura rápida», Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direcção da coisa desconhecida «no interior». Perde-se o tempo em

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busca do tempo perdido. A anamnese é o antipoda - nem isso, nem sequer existe um eixo 'comum - o outro, da aceleração e da abrevia-ção.

Ilustremos isto numa palavra com um «exemplo» que é efectiva-mente exemplar e acessível aos humanistas: a educação. Se os huma-nos nascessem humahuma-nos tal como os gatos nascem gatos (com poucas horas de diferença), não seria possível - e nem sequer digo desejável, o que torna a questão diferente - educá-los. Que devamos educar as crianças é uma circunstância resultante apenas do facto de elas não se-rem todas pura e simplesmente conduzidas pela natureza, de não esta-rem programadas. As instituições que constituem a cultura preenchem esta falta natural.

Que poderemos chamar de humano no homem? A miséria inicial da sua infância ou a sua capacidade de adquirir uma «segunda» natu-reza que, graças à língua, o torna apto a partilhar da vida comum, da consciência e da razão adultas? Num ponto estamos todos de acordo: esta última assenta e suporta a primeira. A questão é apenas de saber se esta dialéctica, seja qual for o nome com que a enfeitemos, não dei-xa vestígios.

Se fosse esse o caso, seria inexplicável, para o próprio adulto, não apenas que ele tenha de lutar continuamente para assegurar a sua con-formidade com as instituições, e até para as ordenar face a um melhor viver comum, mas que o poder de as criticar, a dor de as suportar e a tentação de se lhes escapar persistam em algumas das suas actividades. E não me refiro apenas aos sintomas isolados, aos desvios singulares mas ao que, pelo menos na nossa civilização, passa igualmente por institucional: a literatura, as artes, a filosofia. Trata-se, também aqui, do rasto de uma indeterminação, de uma infância, que persiste mesmo na idade adulta.

Resulta destas observações banais que podemos tirar partido do tí-tulo de humanidade por motivos exactamente inversos. Desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto aos objectos do seu interesse, inapta no cálculo dos seus benefícios, insensível à razão comum, a criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anun-cia e promete os possíveis. O seu atraso inianun-cial sobre a humanidade, que a torna refém da comunidade adulta, é igualmente o que manifes-ta a esmanifes-ta última a falmanifes-ta de humanidade de que sofre e o que a chama a tornar-se mais humana.

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Mas, dotado dos meios de saber e de fazer saber, de agir e de fazer agir, tendo interiorizado os interesses e os valores da civilização, o adulto pode pelo seu lado aspirar à plena humanidade, à realização efectiva do espírito como consciência, conhecimento e vontade. Que lhe reste sempre a possibilidade de se libertar da selvajaria obscura da sua infância cumprindo essa promessa, é precisamente a condição do homem.

Consequentemente, não existiria entre as duas versões do humanis-mo mais que uma diferença de acento. Uma dialéctica ou uma herme-nêutica bem ordenadas resultariam na sua conciliação. Afinal, basta que os nossos contemporâneos recordem que é próprio do homem a sua falta de próprio, o seu nada, ou a sua transcendência, para poder afixar o letreiro de «completo».

Não me agrada esta pressa. O que apressa, o que esmaga, é o que acabo sempre por constatar ter tentado sob os mais diversos nomes, trabalho, figurabilidade, heterogeneidade, dissentimento, acontecimen-to, coisa, preservar: o inconciliável. (E não sou o único, razão pela qual escrevo«nósn.) Que a diferença insensível seja votada a ter senti-do, enquanto oposição, num sistema dito estruturalista, é uma coisa; outra é que ela seja prometida ao devir-se sistema. Como se a razão não tivesse que duvidar da sua vocação para extrair o indeterminado, dando-lhe depois forma, e que desta acção não pode deixar de sair triunfante. Écontudo apenas ao preço desta dúvida que a razão é ra-ciocinante.

Eis um motivo de princípio, digamos, para manter à distância toda a especulação reconciliadora. A apreciação da situação contemporânea fornece a esta reserva um outro alimento. Épreciso antes de mais re-cordar que se o título de humano pode e deve caminhar entre a inde-terminação nativa e a razão instituída ou a instituir-se, também o pode e deve o inumano. Toda a educação é inumana visto que não funciona sem contrariedades e terror, e refiro-me à menos controlada, menos pedagógica, aquela que Freud chama de castradora e que o faz dizer, a propósito da «boa maneira» de educar as crianças, que de qualquer forma será má (nisto próximo da melancolia kantiana). E inversamen -te, tudo o que no instituído pode, por vezes, deixar transparecer o in-fortúnio e a indeterminação é de tal maneira ameaçador que o espírito razoável não pode deixar de temer, justificadamente, uma força inu-mana de desregulação.

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Mas o acento, posto desta maneira sobre o conflito, legitima-se ho-je, mais do que nunca, devido a uma alteração, que creio ser profun-da, da natureza do sistema.

É preciso tentar compreender esta alteração, sem a tornar patética mas igualmente sem a negligenciar. Deve tomar-se por inconsistente um pensamento que não faz caso disto e que «cobre» descrições, se-jam elas contrafactuais, isto é, ideais ou utópicas (e sobretudo essas), como se nada se opusesse mais hoje que há dois séculos à sua verdade ou à sua concretização. O termo pós-moderno serviu, mas não muito bem a julgar pelos resultados, para designar algo desta alteração.

Veremos nas páginas seguintes como nos é possível procurar des-crevê-la seguindo a hipótese geral, positivista, de um processo de com-plexização, de entropia negativa, ou para ser mais simples, de desen-volvimento. Esta hipótese não é apenas sugerida pela convergência das tendências que animam todos os subconjuntos da actividade contem-porânea, ela é o próprio argumento do discurso que cientistas, tecnó-logos e seus filósofos acreditados mantêm a propósito das suas pesqui -sas, de forma a legitimar científica e tecnologicamente a possibilidade do seu desenvolvimento. É inevitavelmente um discurso de física geral, com a sua dinâmica, a sua economia, a sua cibernética. Todo o discur-so de física geral é um discurdiscur-so de metafísica, isto desde os tempos de Aristóteles e de Leibniz.

Este discurso é igualmente aquele que serve a quem decide em polí-tica, socioeconomia para legitimar as suas opções: competitividade, melhor repartição de cargos, democracia na sociedade, na empresa, na escola e na família. Não inclui, no entanto, os direitos do homem, ori-ginários de um horizonte completamente diferente, e que não podem ser chamados a reforçar a autoridade do sistema, da mesma forma que este não pode fazer desses mesmos direitos, por construção, mais do que um caso episódico.

Não faço minha esta hipótese do desenvolvimento porque ela é uma maneira, mais precisamente ela é a maneira de a metafísica, inter -dita para sempre ao pensamento, restabelecer sobre ele o seu direito. De o restabelecer não no pensamento (se se excluir aquele que ainda se afirma filosófico ou seja metafisico) mas fora dele. A metafisica, sen-do impossível como tal, torna-se realidade e adquire assim o direito sen-do facto. Esta situação define bastante bem aquilo a que ainda recente-mente chamávamos de ideologia,não sendo esta tão notável como

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sis-tema de ideias quanto o é como poder de realização. O «desenvolvi-mento» é a ideologia do tempo presente, ele realiza o essencial da me-tafisica, que tem sido muito mais um pensamento de forças que um pensamento do sujeito.

Se prosseguirmos com o argumento, tal como é aqui colocado, aca -bamos por concluir que o sistema pelo qual a indeterminação nativa é obrigada, «forçada» a existir, mesmo que o seja sob o disfarce da per-missividade, não advém da razão do humano, ou seja das Luzes; re -sulta de um processo de desenvolvimento, no qual o que está em jogo não é o homem mas a diferenciação. Esta obedece a um princípio sim-ples: entre dois elementos, sejam eles quais forem, cuja interligação se -ja estabelecida logo à partida, é sempre possível introduzir um terceiro termo que assegurará uma melhor regulação. Melhor significa de maior confiança mas igualmente de maior capacidade. A ligação ini-cial aparece, assim mediatizada, como um caso particular numa série de regulações possíveis. A mediação não implica apenas a alienação dos seus elementos face ao seu enquadramento; permite modulá-lo. E quanto mais «rico» for o termo mediato ou seja, ele próprio media-tizado, mais numerosas são as modificações possíveis, mais flexível o seu enquadramento, mais flutuante o nível de trocas entre os seus ele-mentos, mais permissivo o seu relacionamento.

A descrição é abstracta. Seria mais fácil ilustrá -la se recorrêssemos a elementos, tão diversos na sua aparência como são os parceiros eco-nómicos ou sociais, as células de um órgão ou de um organismo, os constituintes da molécula ou do núcleo, as divisas monetárias, os po-deres militares adversos. As novas tecnologias e os media são aspectos dessa mesma diferenciação.

O que impressiona nesta metafisica do desenvolvimento é que ela não precisa de nenhuma finalidade. O desenvolvimento não está mag-netizado por uma Ideia como seja a da emancipação da razão e da li-berdade humanas. Reproduz-se acelerando-se e estendendo-se segundo a sua própria dinâmica interna. Assimila os acasos, memoriza o seu valor informativo e utiliza-o como nova mediação necessária ao seu funcionamento. Não necessita senão de um acaso cosmológico.

O desenvolvimento não tem um fim, mas tem um limite, o da espe-rança de vida do Sol. A explosão prevista desta estrela é o único desa-fio que se coloca de forma objectiva ao desenvolvimento. A selecção natural dos sistemas não é de ordem biológica mas cósmica. Écom o

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intuito de realçar este desafio que se preparam desde já todas as pes-quisas, seja qual for o sector de aplicação, que estão em curso nos paí-ses dítos desenvolvidos. O interesse dos seres humanos encontra-se agora subordinado ao da sobrevivência da complexidade.

E como o desenvolvimento acaba por ser exactamente aquilo que subtrai à análise e à prática a esperança de uma alternativa decisiva ao sistema, como a política que «nós» herdámos dos pensamentos e das acções revolucionárias se encontra para sempre sem emprego (indepen-dentemente de nos regozijarmos com isso ou de o lastimarmos) a ques-tão que aqui coloco é a seguinte: que mais resta de «político» que não seja a resistência a este inumano? E que mais resta, para opor resistên-cia, que a dívida que toda a alma contraiu com a indeterminação mise-rável da sua origem, da qual não cessa de nascer? Ou seja, com o ou-tro inumano?

Esta a divida que temos para com a infância e que não é saldada. Mas basta não a esquecer para resistir e, talvez, para não ser injusto. Esta é a tarefa da escrita, do pensamento, da literatura, das artes, aventurar-se a prestar testemunho.

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SE PUDERMOS PENSAR SEM CORPO

ELE

Vocês, os filósofos, colocam questões sem resposta, que assim de-vem permanecer para que mereçam o nome de filosóficas. Uma ques-tão equacionada só pode ser, segundo vocês, uma quesques-tão técnica. Era técnica. Foi tomada por sendo filosófica. Desviam então a vossa aten-ção para uma outra que aparenta ser impossível de resolver e que deve resistir a toda e qualquer conquista do entendimento. Ou então, o que acaba por ser o mesmo, declaram que o facto de a primeira questão ter sido resolvida se deve à mesma ter sido mal colocada. E atribuem a vocês mesmos o privilégio de manter irresolúvel, ou seja bem coloca-da, a questão que a técnica, ao acreditar tê-la solucionado, mais não fez que a maltratar. Uma solução tem para vocês o valor de uma ilu-são, é uma verdadeira falta para com a integridade devida ao ser, e por aí fora. Vida longa à vossa paciência. Poderão sempre resistir à custa desta incredulidade. Não se espantem no entanto se por causa desta irresolução, o leitor caia no aborrecimento.

Mas não é essa a questão. Na espera, envelhece o Sol. Explodirá dentro de 4,5 mil milhões de anos. Já ultrapassou um pouco a metade da sua vida. Écomo um homem de quarenta e poucos anos dotado de uma esperança de vida de oitenta. Com o seu fim, terminarão igual-mente as vossas questões insolúveis. Talvez se mantenham sem respos-ta, impecavelmente bem colocadas, mas não haverá mais onde as colo-car, nem lugar para existirem. Explicais: não podemos pensar no fim

Texto escrito a partir da gravação de uma sessão do Seminário realizado no Gra-duiertenkolleg da Universidade de Siegen (RFA) em Novembro de 1986, por iniciativa do seu director, Hans Ulrich Gumbrecht.

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puro e simples do que quer que seja pois fim é limite e éne~~sárioes-·· _tar dos jlois lados do limite para o conceber. Da mesma forma, o fim

deve ser perpetuado em pensamento para que se reconheça como fim. Ora isto é verdadeiro para os limites do pensamento. Mas após a mor-te do Sol, não haverá pensamento para reconhecer que era da mormor-te que se tratava.

Acredito que esta é a única questão séria que se coloca aos huma-nos de hoje. Diante dela tudo parece fútil. Guerras, conflitos, tensões políticas, movimentos de opinião, debates filosóficos, até paixões, tu-do está desde logo morto se essa reserva de infinito da qual retiram ac-tualmente a energia para diferenciar as respostas se, em suma, o pen-samento como busca deve afinal morrer com o Sol. Talvez a palavra adequada não seja morte. Mas essa explosão que há-de vir, inevitá vel, é como se aquilo que fica esquecido diariamente nos vossos jogos de pensamento chegasse desde já e tornasse esses jogos póstumos, fúteis. Falo do que é proscrito das vossas escritas, a matéria. A matéria

en-quanto o de ener ia se desfaz e se -;efaz sem

ces:-saro À escala corpuscular e/ou cósmica, digo. Não me re Iro ao bravo -rmmdo terrestre, da boa imanência transcendente do pensamento para com os seus objectos análoga à do olho para com o visível ou do

habi-tuspara com ositus.

Dentro de 4,5 mil milhões de anos, falecida a vossa fenomenologia, as vossas políticas utópicas, ninguém restará para tocar o dobre nem para o ouvir. Será demasiado tarde para compreender que o vosso uma «vida espiritual» que, feitas as contas, subrepticiamente, mais não era que uma forma de vida terrena. Espiritual porque humana, humana porque terrena, da terra dos mais vivos entre os vivos. O ho-rizonte do pensamento, a sua orientação, o limite ilimitado e o fim sem fim que ele supõe, é à experiência corpórea, sensível, sentimental e cognitiva de um ser vivo muito sofisticado mas terreno,que o pensa-mento os vai buscar.

A terra desaparecerá, o pensamento cessará, deixando esse desapa-recimento absolutamente impensado. É o horizonte mesmo que se ani-quila e nesta imanência a vossa transcendência. A morte, se bem quel': limite, é por excelência aquilo que se oculta e se adia e que por isso ocupa tantas vezes o pensamento, esta morte que afinal é a vida do es-pírito. Mas a morte do Sol implica a morte do espírito pois é a morte da morte como vida do espírito. Nada há a substituir nem a

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diferen-ciar se nada sobreviver. Este aniquilamento é totalmente diferente queles sobre os quais vocês criticam a propósito da «nossa» morte, da-quela que faz parte do lote dos seres vivos pensantes. E falar em ani-quilamento é ainda demasiado patético. Trata-se de uma mudança do estado da matéria, ou seja das formas de energia. Esta mudança basta para tornar nula qualquer antecipação do estado da pós-explosão. Os romances de ficção política imaginam o desértico frio de um mundo humano após uma guerra atómica. A explosão solar não ficará a dever-se a uma guerra humana. Não deixará atrás de si um mundo hu-mano devastado, desumanizado, não deixará sequer um último sobre-vivente para prestar testemunho do que se passou e escrevê-lo. Desu-manizado é apesar de tudo ainda do domínio do humano, do humano morto mas pensável porque morto no sentido humano, mas reerguido em pensamento. O que ficar após a explosão solar, não permitirá a existência de vivalma, nem um só ser humano, terreno, inteligente, sensível e sentimental para testemunhar o acontecimento pois ele dissi-par-se-áno fogo juntamente com o horizonte da terra.

Digamos: o Sol, a Ur-Erde de Husserl, dissipa-se em calor e em nuvens de matéria. Considerada como matéria, a terra não é, de modo algum, originária, pois está submetida a alterações do seu estado, vindas de mais ou menos longe, da matéria, da energia e das leis da sua transformação. AErde é um arranjo de matéria-energia. Este arranjo é transitório, alguns milhares de milhões de anos, discute-se. Anos lu-nares. Muito pouco, se comparado ao cômputo cósmico. O Sol, a nos-sa terra e o vosso pennos-samento não terão sido mais que um estado es-pasmódico de energia, um instante de ordem estabelecida, um sorriso esboçado pela matéria a um canto do cosmos. Vocês, os incrédulos, acreditam, demasiado até, neste sorriso, na conivência das coisas com o pensamento, na finalidade do todo. Vocês terão sido, como o resto do mundo, vítimas das relações de ordem estabelecidas neste canto, se-duzidos por aquilo a que chamam de natureza, uma congruência do espírito e das coisas; Claudel falava de um conhecimento, Merleau--Ponty de um quiasma do horizonte e do olho, o banho onde se banha o espírito. A explosão solar, a simples ideia dessa explosão, deveria despertar-vos da vossa euforia. Vejam: vocês tentam colocar o aconte-cimento no seu quod, no advindo do «Só chegará» antes de qualquer «quididade» não é? Pois bem, permitam-me então posicionar a explo-são do Sol como o quodem si mesmo, após o que nada será possível.

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Apenas desta morte, Epicuro teria confirmado o que diz da morte:

-P

l:t

.

--

-

-da tenho a ver com ela pois quando ela cá estiver não estarei eu e

en-I

~anto cá estou ~estã efu:A morte humana está incluída na vida do espírito humano. A morte solar implica uma disjunção irreparavel -mente excluente entre a morte e o pensamento: se há morte, então não ~. Negação pura e simples. Neniiüffiã conjugação põssí-vel entre os dois. Ocorrência incontestápõssí-vel, desastre. Qualquer aconte-cimento, qualquer catástrofe que conhecemos e sobre os quais reflecti-mos não terão sido mais que ténues simulacros.

Ora este acontecimento'é fatal. E, sendo assim, vocês não se ocu-pam dele, permanecendo ocupados com a vida do espírito e a fenome-nalidade terrena.Como Epicuro dizem: enquanto ela cá não estiver, es-tou cá eu e continuo a filosofar no tépido ambiente da conivência ho-mem-natureza. Mas apesar de tudo com o triste pensamento reserva-do: depois de mim o cataclismo. O cataclismo da matéria. Concordem que esta é uma grande divergência entre o nosso pensamento e o pen-samento clássico e moderno do Ocidente: a evidência da não existência @JlatJlTez~ mas apenas do monstro materiiij"doRêve de d'Alembert,

v

~

-a chôra do Timeu. A natureza foi o nosso inte utor nas coisas.

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matéria não nos pergunta nada nem espera nenhuma resposta ssa.

---

---

-Ignora-nos. Criou-nos da mesma maneira que fez os corpos, ao acaso e segundo as suas leis.

Ou então procuram antecipar o desastre, evitá-lo com os meios do seu ordenamento que são os das leis da transformação da energia. De-cidem enfrentar o desafio da mais que provável extinção da ordem so-lar e do vosso pensamento. E a tarefa então, a única, é bem perceptí-vel e foi iniciada há muito tempo: simular as condições da vida e do pensamento de tal forma que uma ideia permaneça materialmente pos-sível após a modificação do estado da matéria provocada pelo desas -tre. Esse é o grande objectivo de todas as pesquisas técnico-científicas de hoje, seja qual for o seu âmbito de investigação, desde a dietéticaà neurofisiologia, à genética e ao tecido de síntese até à física dos cor-púsculos, à astrofísica, à electrónica, à informática e ao nuclear. E pa-reçam o que parecerem ser os objectivos próximos: saúde, guerra, pro-dução, comunicação, em benefício do ser humano, dizem eles.

Sabem, a técnica não é uma invenção dos homens. Talvez o con-trário. Tanto antropólogos como biólogos admitem que o organismo vivo, mesmo o mais simples como sejam os infusórios, pequenas algas

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existentes na beira das poças, sintetizadas pela luz há já milhões de anos, são um dispositivo técnico. Étécnico qualquer sistema material que filtre informação útil à sobrevivência, que a memorize e a trate, e que induza, a partir de uma instância reguladora, determinadas condu-tas, ou seja, a intervir sobre o meio ambiente assegurando pelo menos a sua perpetuidade. O ser humano não é por natureza diferente de um tal objecto. O seu sistema de captura de dados não é excepcional se comparado ao de outros seres vivos. É apenas omnívoro em matéria de informação, sendo o seu sistema regulador (códigos e regras de tra-tamento) mais diferenciado e a sua capacidade de armazenamento mais elevada. Encontra-se sobretudo dotado de um sistema simbólico, que o torna ao mesmo tempo arbitrário na sua semântica e na sua sin-taxe, o que lhe garante uma maior independência face ao que o cerca no mais imediato, e recursivo (Hofstadter) o que lhe permite tomar co-mo referência, para além das informações em si, a maneira de as tra-tar, isto é, ele mesmo. Ou seja, de lidar com as suas próprias regras de uma forma organizada como se se tratassem de informações e de indu-zir outras maneiras de as tratar. Éem suma uma organização viva, não apenas complexa, eu direi antes replexa. Pode curar-se a si pró-pria na qualidade de meio como em medicina, de órgão como numa actividade finalizada, de objecto como na reflexão (e refiro-me tanto à estética como à especulativa). Pode inclusivamente abstrair-se de si mesma e ter apenas em conta as suas regras de tratamento como em lógica e matemática. O limite que se opõe a esta recursividade simbóli-ca reside nas necessidades resultantes do losimbóli-cal onde está, seja qual for o nível méta- do seu funcionamento, ou seja, manter simultaneamente as regulações que asseguram a sua sobrevivência no meio em que se en-contra. Não é exactamente isto o que funde a vossa transcendência na imanência? Ora até aos nossos dias, este meio é o terrestre. A sobrevi-vência da organização pensante exige modificações para com este meio para que aquilo a que chamamos corpo humano se possa perpetuar. Isto é igualmente verdade para o funcionamento méta- por excelência que é o pensamento filosófico. Para pensar é preciso pelo menos respi-rar, comer, etc. Será sempre necessário «ganhar a vida».

O corpo pode ser considerado como o hardware do complexo dis-positivo técnico que é o pensamento. Sem o seu bom funcionamento as vossas operações extremamente complexas, as meta-regulações de potência três ou quatro, as desregulações controladas que vocês tanto

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apreciam, são impossíveis. A vossa filosofia do fim sem fim, da morte imortal, da diferença incessante, do incidível, é uma expressão, e pode ser a expressão por excelência, da meta-regulação. Como se esta por sua vez se tomasse como referência enquanto méta-, Pois muito bem, mas não esqueçam que esta faculdade de mudar de nível referencial não advém de outro sítio que não seja o do poderio simbólico e recur-sivo da linguagem. Ora este último é nem mais nem menos que a for-ma for-mais complexa das «memórias» (vivas e mortas) que regulam todos os seres vivos e que criam objectos técnicos melhor adaptados ao meio ambiente que os conjuntos mecânicos. Dito de outra forma, a vossa fi-losofia não é possível uma vez que o conjunto denominado «homem» está dotado de um sistema lógico muito sofisticado. Mas também este software, a linguagem humana, está dependente do estado do hardwa-re. Este, por sua vez, será consumido pela explosão solar que arrastará na sua combustão o pensamento filosófico da mesma forma que arras-tará qualquer outro.

O problema das tecno-ciências enuncia-se então: garantir a este software um hardware que seja independente das condições da vida terrestre.

Seja: tornar possível um pensamento sem corpo, que persiste após a morte do corpo humano. Só a este preço a explosão será pensável e a morte do Sol será uma morte como as outras que conhecemos. Pen-sar sem corpo é a condição para poder penPen-sar na morte dos corpos, solares e terrestres, e em pensamentos dissociáveis dos corpos.

Mas sem corpo num sentido preciso: sem o comp'jxo organismo vivo terrestre conhecido como o corpo humano. Não sem hardware, como é evidente.

Em princípio a solução é muito simples: conceber um hardware ca-paz de «alimentar» um software que seja igualmente complexo, e digo: replexo, como o é o cérebro humano actual, só que em condições não terrestres. Isto significa apenas: encontrar, para o «corpo» em ques-tão, um «alimento» que nada deva aos componentes bioquímicos sin-tetizados à superfície da Terra pela acção da energia solar. Ou então ser capaz de realizar tais sínteses em qualquer lugar que não seja a Terra. Numa conclusão que serve os dois casos, conceber um hard ca-paz de suster o nosso soft ou o seu equivalente, mas que este se con-serve a partir de fontes de energia disponíveis no cosmos.

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elec-•

trónica, a fotónica e a informática conjugadas, abrem as portas à construção de objectos técnicos, de capacidade não apenas física mas cognitiva e que «extraem» (ou seja seleccionam, tratam e consomem) as energias de que necessitam para funcionar sob formas amplamente propagadas pelo cosmos.

Isto quanto ao hard. Em relação ao soft com o qual estas

máqui-nas têm de estar equipadas, ele é objecto de pesquisas sobre inteligên-cia artifiinteligên-cial e das polémicas que as rodeiam. Vocês, filósofos, escrito-res, artistas, desprezaram desde muito cedo o reles desempenho dos programas que os logiciais actuais produzem. É certo que estas «má-quinas de representar», como diz Monique Linard, de pensar, são fra-cas se comparadas com o cérebro humano comum, mesmo pouco exer-citado.

Poderemos sempre argumentar que os programas que «entram» nesses computadores são elementares e que será necessário aguardar o progresso da informática, nas linguagens artificiais, na transmissão de mensagens. Éverosímil, mas a objecção maior reside exactamente no princípio destas inteligências. Foi resumida em algumas teses por Hu-bert L. Dreyfus. A decepção causada por estes órgãos de «pensamento sem corpo» provém do facto de as operações serem efectuadas em ló-gica binária, aquela que se impôs com a lóló-gica matemática de Russell e Whitehead, a máquina de Turing, o modelo neuronal de McCulloc e Pitts, a cibernética de Wiener e von Neumann, a álgebra de Boole, a informática de Shannon.

Ora, objecta Dreyfus, o pensamento humano não raciocina em ter-mos binários. Não trabalha por unidades de informação (os bits), mas por configurações intuitivas e hipotéticas. Aceita dados imprecisos, ambíguos, que não se apresentam seleccionados segundo um código ou uma capacidade de leitura pré-estabelecidos. Não negligencia os apar-tes, as margens de uma situação. Não é apenas focalizado mas tam-bém lateral. Pode discriminar o que é importante e o que não é sem fazer uma recolha e uma selecção exaustiva dos dados e sem testar a sua importância face ao fim pretendido, através de uma série de en-saios e de erros. Como Husserl mostrou, o pensamento ausculta um «horizonte», visa um «noema», um tipo de objecto, uma espécie de monograma não conceptual que lhe fornece configurações intuitivas e que abre «à sua frente» um campo de orientação e de espera que é mais do que um frame (Minsky). E neste «desenquadrado» que seria

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mais como um esquema. ele avança na direcção do que procura «esco-lhendo». ou seja. separando e reunindo os dados de que precisa mas sem dispor no entanto de critérios pré-estabelecidos que determinam à partida o caminho da escolha. Não deixaremos de associar a este qua-dro a descrição que Kant fazia do processo de pensamento que deno-minou julgamento reflexivo: uma maneira de pensar não dirigida por regras de determinação dos dados, mas que demonstra eventualmente ser capaz de elaborar estas regras a partir de resultados objectivos de-pois da reflexão.

Esta descrição do pensamento reflexivo oposta ao pensamento de-terminante não esconde. nem em Husserl nem em Dreyfus, o que fica a dever à experiência perceptiva. Existe um campo de pensamento da mesma forma que existe um campo de visão (ou de audição); o espíri-to orienta-se aí tal como o olho no entendimenespíri-to sensível. Esta analo-gia dominava já os trabalhos de Wallon em França. por exemplo. e os de Merleau-Ponty. É«bem conhecida». Importa no entanto salientar que não é extrínseca mas intrínseca. Não descreve apenas um pensa-mento analógico. no seu processo. com uma experiência perceptiva. 1 Descreve um pensamento que se processa analogicamente, e não

logi-.camente, nada mais. Onde os processos do tipo: «assim como .... do mesmo modo ... »; ou: «como se...• então». ou ainda: «como op está para o q. o r está para osão privilegiados relativamente aos proces-sos digitais do tipo «se.... então ...» e «p não é não -P». Estas são as operações paradoxais que constituem a experiência do corpo. do corpo dito «próprio», fenomenológico. no seu espaço-tempo de sensibilidade e percepção. Eis porque seria conveniente tomá-lo como exemplo na produção e programação das inteligências artificiais. se entendermos que as mesmas não se limitam à faculdade de raciocinar logicamente.

Podemos ver. por esta objecção, que o que torna inseparáveis o pensamento e o corpo. é muito simplesmente o facto deste último ser o indispensávelhardwaredo primeiro, a sua condição material de exis-tência é que cada um deles é análogo ao outro no seu relacionamento com o respectivo ambiente (sensível. simbólico). sendo o próprio rela-cionamento em si do tipo analógico nos dois casos. Encontramos nesta descrição uma forte razão para não apoiar a hipótese recentemente in-troduzida por Putnam da «separabilidade» de princípio da inteligên-cia, através da qual era sua intenção legitimar o empreendimento da inteligência artificial.

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ELA

Haveria aqui com que nos satisfazermos, nós filósofos. Pelo menos com que apaziguar uma parte das nossas inquietações. Um campo per-ceptivo tem limites mas são limites que se encontram fora de alcance. Um objecto visual, se bem que ofereça ao olhar uma das suas faces, esconde sempre outras. Uma visão correcta e focalizada rodeia-se sem-pre de uma zona curva ondc;o.xj§íveI se dissimula sem no entanto es-tar ausente. Disjunção inclusiva. E n~ me refiro à memória que só por si põe em causa o olhar mais simples. ~_yisão actual conserva consigo a imagem percepcionada no instante anterior sob outro ãngu-lá. Antecipa a de há pouco. Destas síntese resultam identificações de õbjectos, que nunca chegam a ser completas e que um olhar u tenor pC;derá sêmpre solicitar, anular. E o olho, nesta experiência, encontra--se constantemente em busca do reconhecimento, da mesma forma que o espírito o pode estar de uma descrição completa do objecto que ele procura pensar, sem que no entanto o observador possa, a qualquer momento, afirmar que reconhece perfeitamente o objecto, uma vez que o seu campo de apresentação é absolutamente individual em cada caso e que um olhar verdadeiramente observador não pode esquecer que há sempre mais ainda para ver, a partir do momento em que o objecto visto tenha sido «identificado».

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.~(reconhecimento » percepti-vo não satisfaz nunca a exigência lógica da descrição completa.

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a expenêncla, a subtilidade. a incerteza. a fê no mesgotável sensível, que conotamos ao falarmos com seriedade de analógico, e não ai)eiiãSã um modo de transporte dos dados sobre uma superficie de inscrição que não é originariamente a sua. Da mesma forma, também a escrita é mergulhada no campo das frases, por onde avança à custa de tentativas, de ensaios, ao encontro do que «quer dizer» e não igno -rando nunca, quando pára, que o que fez foi suspender por um ins-tante (que pode ser toda uma vida) a sua exploração e que, para além desta escrita parada, estão uma infinidade de palavras, de frases e de sentidos latentes, sofredores talvez, e tantas coisas «para dizer» como no principio. A verdadeira «analogia» requer que a máquina pensante ou representadora se insira no meio dos seus «dados» como os olhos se inserem no visual ou a escrita na língua (no sentido mais amplo). Não basta que estas máquinas simulem pouco mais ou menos os resul-tados da visão ou da escrita. Trata-se de (o francês tem esta expressão

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·bonita e adequada) «dar corpo» ao pensamento artificial de que elas são capazes. E é este o corpo, ao mesmo tempo «natural» e artificial, que será necessário transportar para longe da terra antes da sua des -truição, se o que se pretende é que o pensamento sobrevivente à explo-são solar seja algo diferente do miserável esqueleto binarizado de que se constituía anteriormente.

Com efeito, se assim fosse teríamos alguma razão para não deses-perar com a tecnociência, Se um tal «programa» é ou não realizável, nada sei. E terá fundamento pretender pôr num programa uma expe-riência que desafia, senão a programação, pelo menos o programa, co-mo é o caso da visão do pintor ou da escrita? Esta é uma experiência ao vosso dispor. Afinal, isto é para vocês um problema urgente, o da compreensão da linguagem comum pelas vossas máquinas. Problema com o qual se deparam, em particular, na situação de interactividade entre o terminal e o operador. É nesta interacção que reside o contacto entre a vossa inteligência artificial e a inteligência ingénua transporta-da nas línguas ditas «naturais», imergitransporta-da nelas.

Mas há uma outra questão que me inquieta. Será outra? Existe uma imbricação do pensar e do sofrer. Disseram vocês que estas pala-vras, estas frases em instância de escrita, estas nuances e estes timbres em latência ao redor da pintura e da música a criar, não se deixam en-cerrar. E mesmo quando inscritos sobre a folha ou a tela, continuam a «dizer» outra coisa diferente do que «queriam ter dito», pois são mais velhos que a intenção actual, sobrecarregados de utilizações, ou seja li-gados a outras palavras, frases, nuances, timbres. Exactamente por is-to constituem um campo, um «mundo», o «bravo»mundo humano de que vocês falam mas que na verdade é mais uma opacidade de além--horizontes a serem desbravados. Quando pensamos em descrever o pensamento sob a forma de uma selecção de dados e da sua articula-ção, calamos a verdade: os dados não são dados mas dáveis e a selec-ção não é uma escolha. Pensar, assim como escrever ou pintar, é qua-se s6 receber o que nos chega a partir dos dados. Na discussão tida so-bre estes assuntos no ano passado em Siegen, a ênfase foi exactamente colocada sobre o tipo de vazio que o artista-guerreiro japonês ao cali-grafar, o comediante ao actuar, devem obter do seu corpo e do seu es-pírito, um certo tipo de suspensão dos motivos habituais do espírito que se encontram associadas aos habitus, às disposições do corpo. Éa este preço, disseram-nos Glen e Andreas - e vocês a pensar que eu

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concordaria, com as ajudas de Dôgen, Diderot e Kleist - que o pincel acabará por encontrar as formas «certas», que a voz e o gesto cénicos se verão dotados dos tons e alturas «certos». Este lançamento no va-zio, esta evacuação, contrariando uma actividade identificatória, selec-tiva, conquistadora, não são conseguidos sem sofrimento. Não quero com isto dizer que a graça de que falava Kleist, a graça do traço, do timbre, do volume, seja conquistada, isso seria presunçoso, mas ela chama-se. É necessário desobstruir o corpo e o espírito para que ela possa tocá-los. Isto não se consegue sem sofrimento. Éo prazer do ad-quirido que se perde.

Também aqui, teriam por certo reparado, é preciso passar pela ex-periência do corpo, recorrer a casos exemplares de ascese corporal pa-ra poder compreender e fazer compreender esta espécie de limpeza do espírito, tão necessária para que ele possa pensar. O que nada tem a ver com a «tabula rasa», com o que se pretendia (em vão) em Descar-tes, que o pensamento conhecedor começasse do zero, o que, parado-xalmente, só pode ser um recomeçar do zero. Mas naquilo a que cha-mamos pensar, o espírito não é por nós «dirigido» mas suspenso. Não lhe fornecemos regras mas ensinamo-lo a acolher. Não desbastamos o terreno para construir com mais luz, entreabrimos uma clareira onde a penumbra do quase dado poderá entrar e modificar o seu contorno. Um exemplo deste trabalho pode ser encontrado, mutatis mutandis, na Durcharbeitung freudiana. Onde se vê com clareza, sem querer insistir nisto, com que dor o pensamento a trabalhar é pago. Este pensamento não tem qualquer ligação especial com a combinação estabelecida de símbolos. Mas a combinação quando procura e aguarda a sua regra pode estar intimamente ligada ao pensamento.

A dor de pensar não é um sintoma que, vindo de qualquer parte, se instala no espírito em vez de ocupar o seu verdadeiro lugar. Éo próprio pensamento em si que, convertido àirresolução, decide tornar--se paciente e querer não querer, querer, exactamente, não querer dizer em vez do que deve ser significado. Reverência feita a este dever, que ainda não tem nome. Este dever talvez não seja uma dívida, mas ape-nas o meio pelo qual o que ainda não é, a palavra, a frase, a cor, há--de chegar. De maneira que o sofrimento de pensar é um sofrimento do tempo, do acontecimento. Resumindo: será que as vossas máquinas de pensar, de representar, sofrem? Que futuro poderão ter se não pas-sam de memórias? Dir-me-ão que pouco importa, desde que pospas-sam

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«concretizam a relação paradoxal dos ditos «dados», que são apenas quase-dados, dáveis, tal como acabo de descrever. Não acredito em nada disto.

Este sofrimento, se é que com efeito ele define o verdadeiro pensa-mento, deve-se ao facto de pensarmos o que já antes foi pensado, o que já está inscrito, e na enorme dificuldade em mantê-lo afastado ou em retomá-lo sob outra forma, para que o que ainda não foi pensado possa chegar e inscrever-se aquilo que o deva ser. Não me refiro ape-nas às palavras que faltam na superabundância das palavras disponí-veis, mas à maneira de as interligar, a despeito de articulações que nos inspiram a lógica, a sintaxe das nossas línguas, os trejeitos adquiridos pela nossa leitura. (A Sepp, espantando-se que todo o pensamento, se-gundo eu, exija e arraste inscrição, eu digo: nós pensamos, e fazemo--lo a partir deste mundo de inscrições já feitas, chamemos-lhe cultura, se quiserem. E se pensamos, é porque no entanto existem lapsos nesta plenitude e é preciso encontrar lugar para estas faltas através da limpe-za do espírito que permite que outra coisa sobrevenha, outra coisa que ainda falta pensar. Mas esta não pode «vir» se não estiver inscrita na sua vez). O ainda não pensado faz-nos mal pois sentimo-nos bem entre o já pensado. E pensar que afinal aceitar este mal, é também, para o dizer sumariamente, encontrar maneira de acabar com ele. Esta a espe-rança que carrega toda a escrita (pintura, etc.); que no fim, será me-lhor. Como não existe fim, a esperança é ilusória. Pois bem seria ne-cessário que o não pensado fizesse mal às vossas máquinas, que faça mal à sua memória, o não inscrito que falta inscrever, percebem? Se-não, porque se meteriam elas a pensar? São precisas máquinas que so-fram com o encobrimento da sua memória. (Mas o sofrimento não tem boa reputação na megalópole tecnologista. Sobretudo o sofrimen-to de pensar. Já nem faz rir, não temos ideia dele. O espírisofrimen-to está no «ludismo», quando não está em performance.

Enfim, o corpo humano é sexuado. Sabemos bem que esta diferen-ça, a dos sexos, é o paradigma do incompleto não apenas dos corpos mas dos espíritos. Émais que certo que existe algo de masculino na mulher e algo de feminino no homem. Senão, como poderia existir num dos sexos a ideia do outro e a emoção por aquilo que lhe falta? Falta-lhe porque existe nele, no mais íntimo do corpo e da mente, as-sim como um velador, na reserva, de lado, indirectamente, no hori-zonte. Inapreensível. Ainda a transcendência na imanência. A ideia de

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sexo que reina na sociedade contemporânea impõe que se esconda esta falha, que se desfaça esta transcendência, que se ultrapasse o «impo-der». Supostos parceiros passam contrato em face de um comum «go: zo», disposição-prazer, da própria diferença sexual. Em contrato fica assente que nem um nem outro sofrerão com esta associação e que ao primeiro sinal de falta, por falta ou não, de desfocalização, de descon-trolo e de transcendência, dá-se a ruptura, a palavra é demasiado for-te, será um abandono puro e simples. E se a moda desejar que de tem-pos a temtem-pos o «amor» seja restabelecido, no seu lugar, em todas as montras de objectos a expor, é a título de relação sexual, «topo da ga-ma», reservado às sumidades do star system e difundido como excep-ção invejável. Vejo nesta disposiexcep-ção o indício de que a tecnociência acostuma o pensamento a negligenciar o diferendo que transporta con-sigo mesma. Não sei se a diferença sexual é uma diferença ontológica. Como sabê-lo? A minha pequena descrição fenomenológica é ainda demasiado branda. A diferença sexual não está apenas ligada ao corpo que experimenta a sua condição de incompleto mas ao corpo incons-ciente, ou ao inconsciente como corpo. Ou seja, separado do pensa-mento, inclusive do pensamento analógico. Esta diferença está por hi-pótese fora de controlo. Éela, talvez, porque inscreve os seus efeitos, como Freud demonstrou ao descrever o que acontece em seguida, sem que a inscrição seja memorizada no sentido da lembrança, é ela que, talvez, pelo inverso dispõe inicialmente o campo de percepção e o campo do pensamento segundo a condição da espera, da fuga de que falei. E parece muito provável que seja ela que define o sofrimento, no entender e no conceber, o sofrimento ocasionado pela impossibili -dade de unificar e de determinar completamente o objecto em vista.

Aquilo que seria, sem a diferença dos sexos, uma experiência neu-tra do espaço-tempo das percepções e dos pensamentos, uma experiên-cia onde este sentimento de incompleto não existiria como infelicidade e que daria lugar a uma simples estética cognitiva pura, ela junta-lhe o sofrimento de um abandono porque ela lhe traz o que nenhum campo de visão ou de pensamento comporta em si, a procura. A faculdade de transcender o dado de que falavam, alojado na sua imanência, encon-tra sem dúvida os seus meios na recursividade da linguagem humana, mas faculdade não é apenas possibilidade, é força e esta força é o de-sejo.

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so-breviver à explosão solar possua em si mesma, na sua navegação inte-restelar, esta força. Que as vossas máquinas não se alimentem apenas de radiações, mas do diferendo irremediável dos sexos.

E é aqui que é necessário retomar a questão da complexidade. Concordo com o pensamento físico de que o desenvolvimento tecno--científico é o aspecto que toma presentemente à superfície da terra um processo de nég-entropia ou decomplexificação em curso desde os primórdios da existência da terra. Concordo que o humano não é, nunca foi, o motor mas sim o efeito, e o portador, o continuador.

Concordo que a inteligência sem corpo, que tudo e todos se esforçam por criar, permitirá reanimar o desafio oposto ao processo de

comple-xificação através do marmoto entrópico que constitui, sob esse ponto de vista, a futura explosão solar. E que com o exílio cósmico desta in-teligência, um lugar de enorme complexidade, um centro de

nêg-entro-pia, terá escapado ao mais provável, ao destino prometido a todo o sistema isolado pelo segundo princípio de Carnot. Exactamente porque esta inteligência não se deixará isolar na sua condição terrestre-solar. Juntando tudo isto, admito que não é o desejo humano de conhecer e transformar a realidade que move a tecno-ciência, mas uma circuns-tância cósmica. Vejam apenas isto: a complexidade desta inteligência excede a dos sistemas lógicos mais sofisticados, é de outra natureza. Ocorpo humano como um todo material, obstrui a separabilidade desta inteligência, o seu exílio, e portanto a sua sobrevivência. Mas o corpo, fenomenológico, mortal, receptor, é ao mesmo tempo o único

analogon disponível para pensar uma certa complexidade da mente. O pensamento utiliza analogias com profusão. Também na desco-berta científica, naturalmente, «antes» de estabelecer a sua operaciona-lidade sobre os paradigmas. Esta potência analogisante pode, por ou-tro lado,voltar a exercer-sesobre a analogia espontânea do corpo per-ceptor para educar o olhar de Cézanne, o ouvido de Debussy a ouvir e a ver dados, nuances, timbres «inúteis» à sobrevivência, mesmo cultu-ral.

Mas, mais uma vez, esta faculdade analogisante de que o corpo e a mente dispõem analogicamente um ao outro e que trocam na arte de inventar, é mínima se comparada com a transcendência irreparável ins-crita no corpo pela diferença dos sexos. Nem o cálculo nem a analogia conseguem decifrar o que sobra desta diferença. Ela faz pensar sem fim, ela não se deixa pensar. A mente não pode ser separada do corpo

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fenomenológico. Mas o corpo sexuado está separado da mente e diri-ge-a. Sentimo-nos tentados a ver nesta diferença uma explosão primor-dial, um desafio que se opõe à mente, comparável à catástrofe solar. Mas não é esse o caso uma vez que ela, reservada no íntimo dos cor-pos e das mentes, provoca infinitamente o pensamento. Ela apenas aniquila o Um. Épara esta complexidade, esta separação sem fim, que deve ser preparado o pensamento pós-solar. Senão, será ainda a

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REESCREVER A MODERNIDADE

.

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Este título, reescrever a modernidade, foi-me sugerido por Kathy Woodward e Carol Teneson, do Center of XXth Century Studies de Milwaukee. Agradeço-lhes. Parece-me bastante preferí"'e1 às rubricas habituais como «pós-moder'ííIdãae», «pós-modermsmo», «pós-moder-no»,

s~uals

é geralmente colocado este hpo de

renexão

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tagem consiste em duas deslocações, a transformação do prefixo

«pós-» em «re-», do ponto de vista léxical e a aplicação sintáxica do prefixo assim modificado no verbo «escrever» em vez do substantivo «modernidade» .

Esta deslocação dupla indica duas direcções principais. Primeira-mente faz realçar a futilidade de qualquer periodização da história cul-tural em termos de«prê-»e de «pós-», de antes e de depois pelo sim-ples facto de não resolver a posição do «agora», do presente a partir do qual é suposto podermos adoptar uma perspectiva legítima sobre um decurso cronológico. Para mim, velho filósofo «continental», tal efeito não deixa de recordar a análise que Aristóteles faz sobre o tem-po no livro IV da Física.Éimpossível, e o sentido é em suma este, de

-terminar a diferença existente entre o que aconteceu (oproteron, o an-terior) e o que está para acontecer (o husteron, e o ulterior) sem situar o fluxo dos acontecimentos face a um «agora». a um now. Mas tam-bém não é menos impossível apoderarmo-nos desse «agora» que é constantemente arrastado por aquilo a que chamamos o fluxo da cons-ciência, o curso da vida. das coisas, dos acontecimentos, como quiser-mos - ele não cessa de se dissipar. De maneira que ele nunca chega a ser demasiado cedo nem demasiado tarde ao mesmo tempo para que Texto de uma exposição traduzido (e modificado) e apresentado na Universidade do Wisconsin, Milwaukee e Madison,em Abril de 1986.Publicado em inglês in Substance, Outono de 1987; em francês in Cahiers de Philosophie, 5, 1988.

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qualquer coisa como um «agora» possa ser apreendido de uma manei-ra identificável. O «demasiado tarde» assinala um excesso no «partir», no desaparecer, o «demasiado cedo» um excesso no advir. Excesso so-bre o quê? Soso-bre a intenção de identificar, soso-bre o projecto de apreen-der e reconhecer um «sendo» que seja «aqui e agora»,a própria coisa em si.

Quando este argumento é aplicado à modernidade, tem como re-sultado que nem a modernidade nem a dita pós-modernidade podem ser identificadas e definidas como entidades históricas claramente circunscritas, onde a segunda chegaria sempre «depois» da primeira. Falta precisar, pelo contrário, que o pós-moderno está já compreen-dido no moderno pelo facto de que a modernidade, a temporalidade moderna comporta em si o impulso para se exceder num estado que não é o seu. E não apenas a exceder-se nele mas a converter-se nele como uma espécie de estabilidade última como seja a que visa por exemplo o projecto utópico, mas também o simples projecto político presente nos grandes elogios da emancipação. Devido à sua consti-tuição, e sem descanso, a modernidade está grávida do seu pós-mo-dernismo.

Mas, mais que o pós-moderno, o que realmente se oporia à moder-nidade seria a idade clássica. Esta comporta com efeito um estado do tempo, digamos: um estatuto da temporalidade onde o «advir» e o «partir», o futuro e o passado são tratados como se, em conjunto, en-globassem a totalidade da vida numa mesma unidade de sentido. Essa seria, por exemplo, a maneira pela qual o mito organiza e distribui o tempo: ritmando, até os fazer rimar, o princípio e o fim da história por ele contada.

Sob o mesmo ponto de vista, observa-se que a periodização da his-tória está de certa forma ligada a uma obsessão que é característica da modernidade. A periodização é uma maneira de colocar os aconteci-mentos numa diacronia, e esta é comandada pelo princípio de revolu-ção. Da mesma forma que a modernidade contém a promessa da sua ultrapassagem, está da mesma forma indigitada a marcar, a datar o fim de um período e o início do seguinte. Logo que uma nova era é inaugurada e reputada como inteiramente nova, é conveniente ajustar o relógio à nova hora, de a fazer começar do zero. No cristianismo, no cartesianismo ou no jacobinismo este mesmo,gesto designa um Ano Um, o da revelação e da redenção no primeiro caso, da renascença ou

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da renovação no segundo, ou ainda da revolução e da reapropriação das liberdades no terceiro.

Estas três figuras do «re-» revelam um aspecto determinante da questão da rescrita. E é a segunda direcção indicada pela deslocação que denotei logo no princípio. É a própria ambiguidade do termo «reescrever» que assombra a ligação da modernidade com o tempo. Reescrever pode consistir nesse gesto que acabo de descrever, que faz. com que o relógio volte ao zero, que anula o passado, o gesto que a dada altura inaugura o início da nova era e da nova periodização. Esta utilização do «re-» no sentido de um retorno ao ponto de partida, a um começo supostamente isento de quaisquer pressupostos pois sem-pre imaginamos que os sem-pressupostos resultem unicamente do armaze-namento e da tradição das suposições que anteriormente acreditámos serem verdadeiras sem as termos no entanto re-considerado. O jogo que é desta forma jogado entre o «pre-» e o «re-» (aqui com o sentido de retorno) tem por objectivo apagar o «pre-» implicado em pelo me-nos algumas destas antigas suposições. É assim que é necessário enten-der, por exemplo, o nome «pré-história» que Marx dá a toda a histó-ria humana que tenha precedido a revolução socialista aguardada e preparada por ele.

É possível agora clarificar uma segunda acepção, diferente, deste «re-». Ligado de maneira fundamental à escrita, ele não significa de maneira nenhuma um retorno ao começo mas, de preferência aquilo que Freud designou por «perlaboração», a Durcharbeitung», ou seja um trabalho dedicado a pensar no que, do acontecimento e do sentido de acontecimento, nos é escondido de forma constitutiva, não apenas pelo pressuposto anterior, mas também por estas dimensões do futuro que são o pro-jecto, o pro-grama, a spectiva, e mesmo a pro--posição e o propósito de psicanalisar.

Num texto curto, mas memorável, referente à técnica psicanalítica, Freud distingue repetição, rememorização e perlaboração, A repetição, originária da neurose ou da psicose, resulta de um «dispositivo» que permite que o desejo insconsciente se realize, organizando toda a exis-tência do sujeito como um drama. Um destino, uma sina, esta a forma que tomaria a vida de um doente submetido à lei do desejo assim «dis-posta». A história de Édipo foi o modelo de Freud. No destino, o iní-cio e o fim da história rimam no que dessa história ressalta da organi-zação «clássica» de que falei, do tempo, aquela em que os deuses, o

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deus, como escreveHõlderlin, não param de intervir. O dispositivo do desejo formulado pelo oráculo de Apolo estabelece desde logo os acontecimentos maiores com que Édipo irá deparar no decurso da sua história. A vida do rei está como que carimbada, o seu futuro inscrito no passado já revelado, ofatum que ignora e que portanto repete.

As coisas não são pois tão simples como as relato. Tanto na tragé-dia de Sófocles como na análise freutragé-diana, Édipo, ou o doente, procu-ra tomar consciência, descobrir a «procu-razão» ou a «causa» do mal que o atormenta e que o atormentou durante toda a sua vida. Quer relem -brar-se. Quer condensar a temporalidade insubmissa, desmembrada. Este tempo perdido denomina-se infância. O rei Édipo resolve então descobrir a causa do mal, um pecado que estaria na origem da peste que assola a cidade. Deitado sobre o divã o doente parece estar empe -nhado numa busca semelhante. O caso é instruído, convocadas as tes-temunhas, recolhidas informações, como em qualquer romance poli-cial. É assim que se trama a intriga que eu chamaria de segunda cate-goria, que desdobra a sua própria história sobre aquela em que se cumpre o seu destino e que tem por fim encontrar remédio para ela.

É frequente que se entenda «reescrever a modernidade» neste senti -do, o da relembrança, como se se tratasse de reparar e identificar os crimes, os pecados, as calamidades engendradas pelo dispositivo mo-derno - e por fim de revelar o destino que um oráculo, no princípio da modernidade, teria preparado e completado na nossa história.

É sabido como, sob este ângulo, a reescrita pode ser enganadora. O logro reside no facto de as buscas sobre a origem do destino faze-rem elas mesmas parte desse destino. E que a questão do principiar da intriga é posta no fim da intriga porque ela só constitui o fim. E à me-dida que o detective o desmascara, o herói vai-se tornando no culpa-do. Éafinal a razão porque não existe o «crime perfeito», o crime do qual nunca vem a ter-se conhecimento. Um segredo nunca seria um «verdadeiro» segredo se ninguém soubesse que é um segredo. Para que o crime seja perfeito, é preciso que seja conhecido perfeito, e por isso mesmo ele deixa de o ser. Ilustrando de outra maneira, mas permane-cendo na mesma disposição de memória, ao estilo de John Cage, não existe silêncio que se faça escutar como tal e não faça pois qualquer ruído. Entre silêncio e som, entre criminoso e polícia, entre inconscien-te e conscieninconscien-te, a mesma intriga, no fundo, trama uma intimidade.

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as-sim como buscamos, designamos e nomeamos os factos ocultos que imaginamos estarem na origem dos males de que sofremos, ou seja: através de um simples processo de relembrar, não podemos deixar de perpetuar o crime, e de o perpetuar de novo em vez de lhe darmos um fim. Em vez de a rescrevermos de verdade, se é que tal é possível, o que fazemos é escrever mais e realizar a modernidade. Éque o escre-ver é sempre a re-escrita. A modernidade escreve-se, inscreve-se sobre si mesma, numa re-escrita perpétua.

Este logro pode ser ilustrado com dois exemplos. Marx detecta o funcionamento escondido do capitalismo. No centro do processo de emancipação e de tomada de consciência ele coloca a desalienação da força de trabalho. Assim acredita ter podido identificar e denunciar o crime original de onde nasce o infortúnio da modernidade: a explora-ção dos trabalhadores. E como um detective, imagina que ao revelar a realidade, ou seja a sociedade e a economia liberais, como uma menti-ra, permite à humanidade escapar desta grande peste. Sabemos hoje que o que a Revolução de Outubro fez, sob a égide do marxismo, é o que qualquer revolução faz e fará, reabrir a cicatriz. O local e o diag-nóstico podem mudar mas é a mesma doença que ressurge nestas res-critas. Os marxistas acreditaram ter trabalhado para desalienar a hu-manidade e a alienação do homem repetiu-se, apenas se deslocou mini-mamente.

Do lado filosófico, até hoje. Nietzsche esforçou-se por emancipar o pensamento, a maneira de pensar, daquilo a que chamou metafísica, ou seja deste princípio que prevalece de Platão a Schopenhauer, segun-do o qual o único propósito segun-dos seres humanos é o de descobrir o fun-damento que lhes permita falar de acordo com a verdade e agir de acordo com o bem ou o justo. O pensamento nietzshiano tem por te-ma central o não existir nada «de acordo com», porque nada existe que seja princípio primeiro ou original, um «Grund», como o foi a ideia do Bem em Platão ou, em Leibniz, o princípio da razão suficien-te. Qualquer discurso, inclusive o científico ou o filosófico, é apenas uma perspectiva, uma We/tanschauung.

Mas Nietzsche por sua vez, não resiste à tentação de designar aqui-lo que funde as perspectivas e a que ele chama vontade de poder. A sua filosofia reitera assim o processo metafisico, realiza-lhe mesmo obstinadamente e repetitivamente a essência, pois a metafisica da von-tade pela qual ele dá por concluído o processo é exactamente a mesma

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que encerram todos os sistemas filosóficos do Ocidente moderno. O que Heidegger mostra.

Que a despeito de si mesma a reescrita nietzschiana repita e volte a cometer o mesmo erro e falha, faz-nos reflectir sobre o que seria uma rescrita que escapasse, se é que se pode escapar, à repetição do que é reescrito. O dinamismo do processo de rememorização poderia ser o próprio querer. É o que Freud prevê quando dissocia a Durcharbei-tung, a perlaboração da relembrança, da Erinnerung.

Ao relembrarmos, queremos mais ainda. Queremos agarrar o pas-sado, apreender o que se torna paspas-sado, dominar, exibir o crime ini-cial, o crime original, perdido, manifestá-lo como tal, como se ele pu-desse desembaraçar-se do seu contexto afectivo, das conotações do er-ro, da vergonha, do orgulho, da angústia, as quais ainda hoje se fa-zem sentir e que justamente motivam a ideia de uma origem.

No esforço para encontrar uma causa objectivamente primeira, as-sim como Édipo, esquecemos que a vontade de identificar a origem do mal advém de uma necessidade do desejo. Porque é da essência do de-sejo desejar igualmente libertar-se de si próprio, uma vez que o desejo não é suportável. Pensamos assim pôr fim ao desejo e concretizamos o seu fim (tal é a ambiguidade da palavra

fin

em francês, objectivo e fim: a mesma do desejo). Tentar recordar é provavelmente uma outra maneira de esquecer.

Se é verídico que o conhecimento histórico exige que o seu objecto seja isolado e subtraído a qualquer investida libidinal vinda do histo-riador, então é certo que desta maneira de «redigir» a história, mais não resultará que uma maneira de a «reduzir». Refiro-me a dois senti-dos do conjunto das expressões latinaredigere e inglesa putting down: deitar por escrito e reprimir.Da mesma forma que writing down suge-re ao mesmo tempo a inscrição ou o suge-registo e também o descrédito. Encontramos esta espécie de rescrita em muitos textos históricos. É a mesma que Nietzsche visa nas Considerações Intempestivas quando questiona a armadilha da pesquisa histórica.

É sem dúvida a consciência dessa armadilha, ainda, que leva Freud a renunciar à sua hipótese sobre a origem das neuroses. Atribuiu-a ini-. cialmente ao que denomia «cena primitiva» ,cena de sedução da crian-ça pelo adulto. Ao abandonar o realismo inicial, Freud abre uma via, do outro lado da psicanálise, do lado do seu fim, à ideia de que o processo da cura poderia, deveria ser interminável. Contrariamente à

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rememorização, a perlaboração definir-se-ia como um trabalho sem fim e, portanto, sem vontade: sem fim, no sentido de não ser guiado pelo conceito de um objectivo, mas não sem finalidade.

É pois neste gesto duplo, em direcção ao anterior e ao posterior, que reside a concepção mais pertinente que se possa ter sobre a reescri-ta. Sabe-se que Freud salienta particularmente a dita regra da «atenção igualmente flutuante», regra que o analista deve observar em relação ao paciente. Consiste em dar a mesma atenção a todos os elementos das fases proferidas pelo paciente, por mais insignificantes e fúteis que possam parecer.

A regra diz em suma: não ter preconceitos, suspender o julgamen-to, receber, dar a mesma atenção a tudo o que acontece e à forma co-mo acontece. Por seu lado, o paciente deve respeitar a simetria: liber-tar as palavras, dar livre curso a todas as «ideias», figuras, cenas, no-mes, frases da forma como surgem na sua boca e no seu corpo, em «desordem», sem selecção nem repressão.

Esta regra dá um novo significado à obrigação de ser «paciente»: não suportar de modo passivo e repetitivo a mesma paixão antiga e ac-tual, mas aplicar a sua própria passibilidade, uma mesma resposta ou "répons" para tudo o que surge no espírito, entregar-se aos aconteci-mentos que lhe advêm de «qualquer coisa» que desconhece. Freud de-nomina esta atitude de «associação livre». Éapenas uma maneira de ligar uma frase a outra sem se preocupar com o valor lógico, ético, es-tético da ligação.

Perguntar-me-ão qual a relação desta prática com a rescrita da modernidade. Lembro que o único fio condutor de que dispomos na perlaboração é o do sentimento ou antes, da escuta do sentimento. Um fragmento de frase, um pedaço de informação, uma palavra que ocorra, ligando-se de imediato a uma outra «unidade». Não há racio-cínio, argumento ou mediação. Ao proceder deste modo, aproximamo--nos pouco a pouco de uma cena, a cena de algo. Descrevêmo-la. Ig-noramos o que é. Temos apenas a certeza de estar relacionada com o passado, o mais longinquo e o mais próximo; simultaneamente o nos-so próprio passado e o dos outros. O tempo perdido não é representa-do como num quadro, nem sequer é representarepresenta-do. Éo que representa os elementos do quadro, de um quadro impossivel. Reescrever é regis-tá-los.

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passado. Étambém o que pensa Freud. A análise não está sujeita ao conhecimento mas à «técnica» e à arte. Não resulta na definição de um elemento passado mas pressupõe que o próprio passado seja o pro-tagonista ou o agente que dá ao espírito os elementos com os quais a cena se irá constituir.

Mas a cena não pretende reproduzir fielmente a pretensa «cena pri-mitiva». Ela é «nova» porque é sentida como tal. Pode dizer-se que o já acontecido ainda está presente, vivaço,vivo. Não presente como um objecto, se é que um objecto pode estar presente, mas como uma aura,como uma brisa que sopre ligeira, como uma alusão. Em Busca do Tempo Perdido de Proust, o Sens Unique ou o Enfance Berlinoise de Benjamin operam de acordo com essa mesma techne (obviamente sem se cingir a ela). E correndo o risco de parecer estranho, acrescen-tarei que o processo de atenção livre e igualmente flutuante é objecto dos Ensaios de Montaigne.

Em jeito de conclusão impossível, três observações. Em primeiro lu-gar, mesmo que Freud tenha encarado esta «técnica» como uma arte, como demonstra a palavra grega technê, não deixou de a pensar inscri-ta como um elemento constitutivo num processo de emancipação. Tra-ta-se de, graças a ela, desmontar a retórica do inconsciente, os conjun-tos pré-organizados de significados que constituem o dispositivo nevró-tico' ou psicótico e que organizam a vida do sujeito na forma de um destino. Não me parece que esta hipótese seja ajustada. Ao descrever de forma sucinta o que entendo por rescrever, tinha em mente uma ideia que não poderei desenvolver aqui. Contento-me em assinalar o quanto a dita descrição da reescrita está relacionada com a análise de Kant sobre o trabalho da imaginação inerente ao gosto e ao prazer do belo. Tanto uma como outra atribuem a mesma importância à liberda-de segundo a qual são tratados os elementos fornecidos pela sensibili-dade e ambas insistem no facto de as formas em jogo no prazer estéti-co puro ou na associação e escuta livres serem tão independentes quanto qualquer interesse empírico ou cognitivo o possa ser. A beleza do fenómeno é proporcional à sua fluidez, mobilidade e condição de efémero. O que é ilustrado por Kant em duas metáforas, a da chama inapreensível na fogueira e a do desenho evanescente formado pelas águas vivas de um ribeiro. Por fim, Kant conclui que a imaginação dá «muito a pensar» ao espírito, muito mais do que o trabalho conceituaI do entendimento o possa fazer. Esta tese está ligada à questão do

Referências

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