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O Ator Andrógino 1 Por Alex Beigui

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Academic year: 2021

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O Ator Andrógino1

Por Alex Beigui

RESUMO

Trata-se de uma abordagem preliminar acerca da qualidade andrógina presente no corpo do ator a partir do trabalho de observação dos métodos e dos conceitos acerca da fisicalidade e de minha prática atoral. Esboçaremos aqui um desenho dos primeiros passos dessa experiência, enquanto possível campo de investigação do movimento cênico, procurando apontar as principais fontes desse (corpo-pensamento) na linha de investigação estética e ética do fazer teatral. Apontaremos de modo parcial algumas vertentes do tema da androginia com o intuito de melhor entender a questão nos diferentes eixos de exploração da metáfora do ator andrógino como campo intermediário de realização e de leitura da pré-expressividade da ação. Por se tratar de uma pesquisa em estado experimental, relataremos seu ponto de partida inicial enquanto procedimento de construção do jogo cênico e enquanto campo conceitual ativador da linguagem sensório-discursiva do ator.

BIOGRAFIA

Alex Beigui é ator, graduado em Letras (UFPB) e mestre em Artes Cênicas (UFBA). Lecionou Literatura Brasileira e Teoria Literária na Universidade Estadual da Bahia, onde fundou o Grupo NATUA de Teatro com membros da comunidade rural. Apropriou para o teatro Antígona de Sófocles, A Educação pela Pedra de João Cabral de Melo Neto, The

Oval Portrait de Edgar Alan Poe, entre outros. Escreveu, dirigiu e atuou no monólogo Anima, resultado prático de sua pesquisa de mestrado. Atualmente exerce a função de

Orientador de Arte Dramática no TUSP e cursa doutorado em Dramaturgia Brasileira na USP, onde desenvolve pesquisa sobre os Grupos: Teatro por um Fio de Nadja Turenko e Studio Stanislavski de Celina Sodré.

1 Esse artigo/relato também poderia se chamar: “O Ator na Era de Aquário”; “O Ator na Era Científica”; ou,

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Ainda que a questão da androginia faça parte de toda uma tradição mítica, procurarei aqui percorrer as etapas do seu desenvolvimento no meu trabalho de ator, atentando para o seu surgimento no meu corpo, assim como tentarei demarcar a linha que une os aspectos existenciais (físico-psíquico-espiritual) à forma (questão estética) adotada em minha prática cênico-discursiva.

O princípio andrógino como parte propulsora do movimento cênico juntamente com a questão teórico metodológica surgiu em meu trabalho em 1999, mais especificamente no processo de criação e reflexão sobre a encenação Anima. Ainda que o conceito de “Anima” tenha sido amplamente discutido pela teoria dos arquétipos proposta por Jung, sendo sua discussão posta enquanto bipolaridade, isto é, lado alado com o seu aspecto oposto-complementar Animus, o que estava em jogo para mim, naquele momento, era a apropriação de um conceito sobre o qual eu pudesse justificar e apoiar uma proposta prática de montagem. Contudo, o conceito não era um pretexto, mas uma necessidade real de caminho.

A forma de operacionalização desse conceito dentro do meu estudo acerca do Teatro Piollin (interseção entre as linguagens cênica e literária presentes no processo de realização do espetáculo “Vau da Sarapalha”) pareceu-me não só viável, mas inevitável. Ao analisar as duas estruturas, percebi que poderia criar um trabalho prático que as cruzasse ao meio, possibilitando uma intervenção mas direta por meio da figura “Luisa”. Tratava-se não de um trabalho ilustrativo, mas de uma proposição que surgisse da própria ambigüidade em jogo. Depois de muita reflexão, decidi que o foco seria a ausência da personagem “Luísa”, arquétipo feminino dentro do conto de Guimarães Rosa. O processo ocorreu então por meio de uma análise precisa das imagens literárias responsáveis, num primeiro momento, pela “composição” da personagem.

Até então resolvi seguir o caminho mais fácil: o da observação, seguida da aplicação de alguns recursos mais próximos da figura ficcional em questão. Foi então que percebi que o conto Sarapalha oferecia-me pouco uma vez que a narrativa apresentava Luisa como fantasma. Por outro lado, e a encenação proposta por Luiz Carlos Vasconcelos, advinda do Conto, a retratava como elemento ilustrativo de uma ação (cena dos bonecos que desciam no barquinho pelo rio de fogo). “Luísa” era uma incógnita, existindo tão

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somente no meu projeto de ator. Havia, nesse sentido, um impulso sobre sua ausência, espécie de necessidade criativa sobre aquele universo feminino em jogo.

Após a conclusão do trabalho, resolvi revisitar alguns pontos da pesquisa. Permitiu-me refletir a encenação de modo mais próximo com a pesquisa acerca do corpo andrógino do ator que vinha lentamente e paralelamente desenvolvendo em oficinas e em grupos experimentais de teatro. Os procedimentos de construção foram recolocados a partir não mais de duas linguagens (literária/cênica), mas do meu próprio corpo como espaço andrógino de feitura e pensamento. Isso ocorreu, sobretudo, devido a dois acontecimentos.

O primeiro devido à reapresentação de Anima em São Paulo e para um público reduzido de pessoas, especialistas em teatro, o que de um lado facilitava um retorno mais analítico da questão; por outro, dificultava uma discussão mais ampla da mesma.

A primeira apresentação do monólogo causou-me espanto. As pessoas não comentavam o resultado, mas queriam saber sobre o processo, passei a explicar o que para mim era absolutamente óbvio. Todavia, quanto mais eu explicava, menos elas entendiam. Havia uma preocupação em verticalizar a discussão para o âmbito da sexualidade. No entanto, estava convencido que por mais que a questão da androginia estivesse ligada ao sexo, o problema era de outra ordem. Como eu era, em Anima, um ator assumindo as diversas faces de uma mulher (Luisa), conclui que a referência ao sexo adviera daí. O que para mim não deixava de ser uma referência imediata demais, previsível demais.

O segundo acontecimento surgiu em um novo trabalho. Estreei Eu Pierre Rivière

que Degolei minha Mãe, meu Pai, minha Irmã e meu Irrmão, cuja construção exigia um

referencial físico masculino e animal. Para minha surpresa o princípio andrógino permanecia de modo latente. Comparei os registros e passei a trabalhar com duas máscaras andróginas de base (uma facial e uma corporal). A androginia por mim identificada como ponto de partida de criação no meu trabalho de ator estava mais ligada à identificação de um estilo no sentido de Edward Sapir, ou seja, tratava-se de linguagem e não somente de sexualidade como as primeiras prerrogativas apontavam.

Nesse sentido, o teatro ocidental tinha pouco a oferecer em termos de manancial teórico-metodológico ao ator. Parti para uma investigação mais profunda sobre a questão. Utilizando-me da literatura sobre o tema da androginia e da minha própria experiência na coordenação e realização de treinamentos para atores, pude constatar a presença de três

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vertentes mais sistemáticas sobre o tema. A primeira relaciona-se à referência mitopoética e psicológica que envolve o assunto. Dentro disso, o estudo mais significativo é o de June Singer acerca da inteireza primordial contida no andrógino. Para ela, seguindo a trilha junguiana:

“Androginia não é apenas uma solução

temporária para problemas contemporâneos. O princípio da androginia não é reativo, mas intrínseco. Para ela, a resolução de nossas dualidades psíquicas não está no embate entre elas, mas no amor ativo de uma pela outra, ou seja, no estado de Androginia. Dos primórdios do tempo chegamos à origem da vida neste planeta. De um nêutron, que são duas partículas em uma, chegamos à geração da primeira forma de vida. O conceito de Dualidade na Unidade é a essência do Arquétipo da Androginia”.2 O problema do ajuste que une mito e psique na composição do arquétipo pessoal do ator foi-me revelado a partir da comparação de duas partituras de trabalho que me fizeram reconhecer um princípio de unidade na multiplicidade. Tanto em Luisa como em Pierre Rivière a máscara andrógina funcionou como fio condutor do processo e da composição.

Uma segunda vertente acerca da teoria da androginia envolve o aspecto antropológico do princípio andrógino em determinadas comunidades. Sobre isso, os poucos conhecidos “mahus” de Bora-Bora na Polinésia são exemplares.3 O aspecto sócio-cultural

que funda o princípio andrógino da experiência dos “mahus” inaugura a idéia de um ser

2 SINGER, June. Androginia: Rumo a uma Nova Teoria da Sexualidade. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São

Paulo, Editora Cultrix, 1995. pp.11-25.

3 No Léxico do Taitiano Contemporâneo, temos a seguinte definição: “Mahu: homem que tradicionalmente

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“semifeminino”, líder responsável pela continuidade de uma tradição. Finalmente, a terceira corresponde à qualidade ambígua do sujeito atoral apontada por Yoshi Oida, conhecido ator do CRTI de Peter Brook:

“Você sabia que homens e mulheres que são apenas machos e fêmeas jamais serão bons atores? O bom ator deve ser um pouco homossexual. Veja Sugimura (célebre atriz). É mulher, incontestavelmente, mas tem alguma coisa de viril, pois sabe o que é feminilidade aos olhos de um homem. Está constantemente consciente da imagem que passa de si mesma para eles. Comparada a ela, o ator Untel não passa de um simples macho. No dia a dia, ele tem um ar viril, mas no palco falta-lhe sedução, já não conhece aquilo que, nele, seduz as mulheres. Um ator deve ser capaz de se transformar em mulher interiormente, a fim de saber passar a imagem do que é um homem sedutor para uma mulher”.4

A concepção acima reforça o dado de uma interioridade do princípio andrógino que, segundo Oida, define em grau qualitativo a atuação de um ator. No entanto, a androginia enquanto elemento de composição aparece em diferentes códigos de representação (literário, plástico, musical, arquitetônico) o que demonstra a amplitude da questão. Teríamos, portanto um largo espaço de atuação do princípio.

No caso da composição atoral, tentaremos descrever um método de atuação partindo da aplicação de algumas dinâmicas por mim elaboradas a partir da observação do meu

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trabalho de ator e de pesquisador. O objetivo é fazer com que os participantes dialoguem com o arquétipo da androginia no próprio corpo, através de exercícios de cena que, num primeiro momento, procuram neutralizar a identidade como princípio condutor da ação. A intenção é neutralizar qualquer esforço de afirmação, de demarcação de território (masculino / feminino). O aprendiz é levado a uma descaracterização de sua função sexual no mundo do palco como sistema dual de reconhecimento (direito / esquerdo; frente / atrás; em cima / em baixo; vertical / horizontal). Cada atividade proposta visa desterritorializar o ponto de referência comum ao grupo.

Na relação espácio-temporal, poderíamos dizer que o ator andrógino privilegia o eixo sagital de deslocamento, tendo por base sempre o plano médio de movimentação.

Sempre trabalhei com três planos de atuação na construção do decoro: o ático (mínimo), o médio (intermediário) e o solene (máximo).5 Trata-se, neste contexto, de índices de intensidade na apreensão dos diferentes elementos de cena, ou seja, a forma como cada ator se relaciona com o estímulo sugerido, o meio pelo qual cada um tenta resolver a proposição cênica em jogo. Claro que cada intensidade varia de acordo com a circunstância. Todavia, há uma permanência maior ou menor desses planos na configuração corporal do ator. Dificilmente encontramos, principalmente entre atores, uma facilidade de transferência desses planos. Outro ponto necessário no desenvolvimento da pesquisa é a construção, por parte dos atores, de um diário físico no qual eles registrem, distinguindo em que regiões do corpo cada índice de intensidade se dá e como se dá. O objetivo é tentar sempre que possível deixar viva a idéia que para cada sensação existe um esboço conceitual, ainda que precário e insipiente.

O trabalho do aprendiz, nesse sentido, é o de reunir o maior número de imagens possíveis do seu próprio corpo, dispondo para cada uma delas uma equivalência figurativa. Cada dinâmica procura tornar frágil o ator diante de sua experiência com o teatro. Quanto mais convicto da imagem que os outros e ele tem de si, menos andrógino e ambivalentes

5 Para Mario Perniola a palavra latina decorum pressupõe a ligação entre comportamento e efetividade. “O

decorum é determinado por três elementos: pela ‘re de qua agitur’, pelas pessoas que falam e por aquelas que ouvem. Por isso, o orador deve dominar todos os três gêneros de oratória; o ático, que é simples, sem ornamentos, caracterizado por uma negligentia diligens; o médio, rico em metáforas e metonímias, mas plácido e sereno; e, finalmente, o solene, ornamentado, opulento e magnificente”. In: Pensando o Ritual: Sexualidade, Morte, Mundo. Trad. Maria do Rosário Toschi. São Paulo, Studio Nobel, 2000. p. 254. Apropriamo-nos dos gêneros próprios da oratória para a descrição dos movimentos propostos nas dinâmicas individuais e de grupo.

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serão suas respostas. A qualidade andrógina instaura uma camada intermediária entre aquilo que mostramos e aquilo que se mostra independente de nossa vontade. O ator andrógino trabalha com aquilo que sobra, que vaza sobre a moldura, espécie de relaxamento intencional e consciente que surge após o esgotamento físico. Estou na fase de descrição dos exercícios e das atividades, bem como de sua avaliação frente aos depoimentos dos envolvidos. Pra tanto, cada ator paralelamente ao diário físico adquire um baú, no qual ele introduz imagens de sua trajetória, desde seu primeiro trabalho até imagens com as quais se identifica, se afina. Não podemos, por enquanto, falar de método a não ser no sentido literal da palavra: “caminho”; “modo de proceder”.

BIBLIOGRAFIA

BOLLAS, Cristopher, 1992. O Trissexual. In A Sombra do Objeto: psicanálise do conhecido não-pensado; tradução Rosa Maria Bergallo. Imago Ed: Rio de janeiro.

BURR, Chandler, 1998. Criação em Separado: como a biologia nos faz homo ou hetero; tradução Ary Quintilha. Rio de janeiro: Record.

ELIADE, Mircea, 1965. Mephistopheles and Androgyne. New York: Harper & Row.

OIDA, Yoshi, 1999. Um Ator Errante; tradução Marcelo Gomes. São Paulo: Beca Produções Culturais. PERNIOLA, Mario, 2000. Pensando o Ritual: sexualidade, morte, mundo; tradução Maria do Rosário Toschi. São Paulo: Studio Nobel.

SINGER, June, 1995. Androginia: rumo a uma nova teoria da sexualidade; tradução Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Editora Cultrix.

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