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Ler Os Clássicos Hoje - Os Maias

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Academic year: 2021

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(1)

MARIA ALMIRA SOARES

OS

CLÁSSICOS

Ler

Hoje

os maias

EÇA DE QUEIRÓS

NOVO PROGRAMA Metas Curriculares 11.º ano

(2)

MARIA ALMIRA SOARES

OS

CLÁSSICOS

Ler

Hoje

Os maias

Eça de Queirós

(3)

ÍNDICE GERAL

APRESENTAÇÃO ... 5

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-LITERÁRIA ... 6

Realismo ... 6

Eça de Queirós e o realismo português ... 8

Biografia de Eça de Queirós ... 9

OS MAIAS ... 11

Importância e valor literário de OS MAIAS ... 11

Características do texto narrativo ... 12

O romance ... 15

Visão global da obra e da sua estruturação ... 30

EDUCAÇÃO LITERÁRIA – TEXTOS ESCOLHIDOS DE OS MAIAS ... 32

Representação de espaços sociais e crítica de costumes ... 32

Espaços e seu valor simbólico e emotivo ... 39

Representações do sentimento e da paixão: diversificação da intriga amorosa ... 42

Pedro da Maia ... 42

Carlos da Maia ... 43

Ega ... 44

Características trágicas dos protagonistas .... 48

Afonso da Maia ... 48

Carlos da Maia ... 48

Maria Eduarda ... 49

A descrição do real e o papel das sensações .... 54

A descrição do real e o papel das sensações. Linguagem, estilo e recursos expressivos ... 59

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ÍNDICE REMISSIVO

Ação 6, 13, 16, 17, 18, 19, 22, 25, 26, 57 Ação central 15, 17, 18, 19 Biografia 9 Características trágicas 48, 52 Catástrofe 23, 33, 37, 52, 53 Comédia de costumes 17 Comparação 38, 60, 62, 63 Complexidade 14, 15, 19, 20 Contextualização 6 Crítica de costumes 7, 24, 32, 36, 37 Descrição 12, 13, 14, 29, 41, 54, 59, 62 Diálogo 12, 13, 14, 38, 51

Discurso indireto livre 14, 15, 38

Espaço 12, 15, 19, 22, 24, 36, 40, 41, 57, 58, 62 Estilo 8, 59 Estruturação 14, 30, Extensão 15, 20, 28, 29 Intriga 12, 14, 15, 17, 24, 26, 31, 42, 45, 46, 53 Ironia 8, 13, 28, 37 Linguagem 59 Metáfora 38, 60, 62, 63 Monólogo 12, 13, 15 Narração 12, 13, 14, 18, 21, 22 Paixão 18, 25, 26, 35, 42, 46, 47, 48, 49 Personagens 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 26, 27, 28, 29, 36, 38, 52 Personificação 62, 63 Pluralidade 16, 19, 46 Protagonistas 19, 24, 25, 46, 48, 51, 52, 53, 62 Realismo 6, 7, 8, 15, 47 Reconhecimento 52 Recursos expressivos 36, 38, 41, 59, 60, 62, 63 Reprodução do discurso no discurso 14, 36

Romance 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 28, 29, 30, 31, 40, 41, 45, 46, 52, 62

Sensações 14, 54, 57, 58, 59, 60 Sentimento 7, 25, 26, 42, 46 Sinestesia 38, 62, 63

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Subtítulo 30, 31 Tempo 7, 11, 12, 13, 16, 19, 20, 21, 23, 26, 31, 40, 48, 56, 57, 58, 61 Texto narrativo 12, 15, 17, 19, 21, 29 Título 9, 30, 31 Tragédia 25, 26, 41, 47, 51, 52, 62 Uso expressivo do adjetivo 38, 60, 62, 63 Uso expressivo do advérbio 38, 60, 61, 62, 63 Valor emotivo 39, 40, 41

Valor simbólico 39, 40, 41 Visão global 30

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APRESENTAÇÃO

O Programa de Português do Ensino Secundário, «Educação Literária», 11.º ano, inclui Os Maias, obra cujo valor literário, histórico -cultural e patrimonial é indiscutível. Sem prejuízo da concordância com esta inclusão, não deverão deixar de ser pondera-das algumas dificuldades de leitura, compreensão e interpretação deste romance por parte dos alunos do 11.º ano. A completa fruição da obra passa pela ultrapassagem dessas dificuldades.

É sabido que a leitura dos clássicos é essencial em educação literária, mas também não deixa de ser conhecida a dificuldade de penetração nesses textos, provocada por múltiplos fatores. Sendo assim, os alunos necessitam de instrumentos que os incentivem e os ajudem a encontrar o caminho mais proveitoso e não os deixem desistir perante os obstáculos à leitura.

Este auxiliar da leitura de Os Maias, que aqui apresento, pretende prestar aos alunos a necessária ajuda capaz de os levar a ler com o melhor proveito.

Assim, para além da informação de ordem lite-rária e contextual que enquadra a obra e ilumina a sua compreensão, são apresentadas, para cada um dos excertos selecionados, sequências de questões e respetivas respostas. Esta questionação incide preci-samente nos temas do domínio da «Educação lite-rária» presentes no Programa. A relação leitura do texto/questão/resposta facultará aos alunos os recur-sos necessários ao desenvolvimento do seu percurso neste domínio: por um lado, a experimentação e o conhecimento -treino do tipo de questionação espe-rável; por outro lado, os saberes necessários à lei-tura de um texto literário clássico e especificamente deste romance.

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CONTEXTUALIZAÇÃO

HISTÓRICO-LITERÁRIA

Realismo

Na história da literatura portuguesa, a segunda metade do século xix é a época do Realismo. O romance de Eça de Queirós, Os Maias, foi publi-cado em 1888, constituindo, assim, um marco importantíssimo do movimento realista.

Durante o século xix, com o evoluir da sociedade e da situação política portuguesa, o Romantismo, que vigorara durante a primeira metade do século, tornou -se um movimento decadente, desligado da realidade. O sentimentalismo romântico perdeu autenticidade e cristalizou num modo de fazer litera-tura alheado das mudanças sociais que pediam outra atitude, outro olhar e outros objetivos literários.

Uma nova geração de jovens escritores antirro-mânticos – a Geração de 70, por se ter formado nos anos setenta do século xix – luta e clama pelo Rea-lismo. Trata -se de uma geração muito influenciada pela cultura francesa que pôde conhecer, graças ao desenvolvimento das comunicações, sobretudo da ligação por via férrea entre Portugal e Paris.

De facto, passado o período conturbado das lutas liberais, a «Regeneração» (situação política que instituiu estabilidade no país) permitiu algum progresso material, nomeadamente no capítulo das comunicações.

Todavia, como o Romantismo estava muito enraizado na cultura portuguesa, a ação da Geração de 70 – para além da própria criação literária rea-lista – revestiu enérgica intervenção pública, em que sobressaem as «Conferências do Casino». Numa dessas conferências, intitulada «O Realismo como nova expressão da Arte», Eça de Queirós afirmou

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as linhas fundamentais da nova escola literária, o Realismo.

Linhas fundamentais do Realismo:

– a criação literária realista tem como ideal a reforma dos costumes sociais e concretiza -se através do romance;

– o romance realista, através da representação pormenorizada da vida social (hábitos, figuras, gostos, realizações) faz a análise crítica dos cos-tumes, expondo com clareza os seus males para que possam ser corrigidos;

– a literatura realista tem, pois, objetivos da

ordem da crítica social; não se limita a ser, como era o Romantismo, «a apoteose do sen-timento»1;

– a literatura realista deve ter, como temas, a vida social sua contemporânea e, como recursos, a observação pormenorizada, a experiência, a análise;

– a razão, a análise racional, deve sobrepor -se à subjetividade sentimental romântica que sub-metia a razão aos sentimentos.

O Realismo levou algum tempo a implantar -se no panorama literário português e, assim, só prati-camente no último quartel do século xix se publica-ram obras realistas. Eça de Queirós sobressai dentre os escritores realistas portugueses e Os Maias são, sem dúvida, a sua obra -prima, o grande romance realista da literatura portuguesa.

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Eça de Queirós e o realismo

português

Ler os romances de Eça de Queirós é uma das melhores formas de ficar a conhecer o realismo por-tuguês. Eles constituem o que de melhor se produ-ziu, em termos de romance, na segunda metade do século xix, em Portugal.

Eça de Queirós, durante a sua formação inte-lectual, absorveu, pela leitura, as influências do realismo francês que já se desenvolvera e afirmara através de grandes romances. Além disso, os prin-cípios e objetivos, que o Realismo propugnava, conjugavam -se muito bem com o carácter da sua escrita literária e mesmo com o seu modo de estar na vida.

Eça era mordaz, sarcástico, dono de um espírito crítico lúcido e certeiro, iluminado por uma ironia tão fina quão eficaz. Associava, ao seu inigualável sentido de humor, uma grande capacidade de obser-vação crítica do real social. Através do seu sentido crítico, ele era um português distanciado dos modos retrógrados em que a vida social portuguesa se cris-talizara e que teimavam em persistir, atrasando a evolução cultural do país.

Eça de Queirós, através de uma escrita imbuída de um estilo inconfundível, preciso, esteticamente agradável, irónico, foi o grande obreiro do ideal realista português. Trabalhava admiravelmente a língua portuguesa, ao serviço do seu fino poder de observação. Deste modo, deixou -nos retratos ines-quecíveis do Portugal seu contemporâneo, em que, ainda hoje, fruímos, simultaneamente, a lúcida compreensão da realidade social e o gozo mordaz da sua representação irónica.

Não é, pois, exagero, afirmar que a obra de Eça de Queirós é a trave -mestra do romance realista português e o seu máximo expoente.

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Biografia de Eça de Queirós

José Maria de Eça de Queirós nasceu na Póvoa de Varzim, em 1845.

A sua primeira educação escolar decorreu no Colégio da Lapa, no Porto, a partir de 1855. A partir de 1861, frequentou a Faculdade de Direito de Coimbra até 1866, ano em que, já formado em Direito, se instalou em Lisboa, em casa dos pais. Nesse mesmo ano, inscreveu -se como advogado no Supremo Tribunal de Justiça.

A sua primeira obra, publicada ainda nesse ano, surge na Gazeta de Portugal sob a forma de folhetim e intitula -se Prosas Bárbaras.

Ainda em 1866, parte para Évora. Aí, funda e dirige um jornal da oposição, Distrito de Évora. Em 1867, regressa a Lisboa e, no final desse ano, parti-cipa no Cenáculo, espécie de clube intelectual de intuitos revolucionários.

Em 1869, faz uma viagem ao Egito, assistindo à inauguração do Canal do Suez. A experiência desta viagem é a base dos relatos que publica no Diário de Notícias sob o título de «Port -Said a Suez».

Em 1870, publica, em colaboração com Rama-lho Ortigão, O Mistério da Estrada de Sintra. Neste mesmo ano, é nomeado administrador do concelho de Leiria e obtém o primeiro lugar na classificação das provas que presta para cônsul de 1.ª classe.

Em 1871, publica com Ramalho Ortigão As Far-pas e participa nas Conferências do Casino.

A partir deste ano, prossegue a sua carreira diplo-mática, sendo cônsul em Havana e Newcastle. Viaja pela América.

Em 1876, publica o romance O Crime do Padre Amaro e, em 1878, O Primo Basílio.

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Em 1886, casa com Emília de Castro Pamplona, condessa de Resende e, em 1888, é nomeado cônsul em Paris e publica Os Maias.

Nos anos seguintes, continua a publicar e a intervir na vida cultural portuguesa, permanecendo sempre como cônsul em Paris. Morre em 1900, em Paris.

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OS MAIAS

Importância e valor literário

de

OSMAIAS

Ler Os Maias é conhecer a Lisboa da segunda metade do século xix, naquele sentido, defendido por muitos, de que se conhece melhor a História e a sociologia de um dado momento de um povo atra-vés da leitura de um romance do que de um ensaio de cariz histórico. De facto, Os Maias dão -nos o retrato do quadro histórico, dos meios sociais, dos espaços físicos e geográficos onde se move todo um conjunto de personagens representativas de uma época.

O poderoso génio criativo de Eça de Queirós, para compor personagens representativas da vida social do seu tempo, faz de Os Maias um inigualável ponto de observação de Portugal e, sobretudo, de Lisboa, no último quartel do século xix.

Com a leitura deste romance, ficamos a conhecer os costumes sociais, em áreas que vão dos diverti-mentos à educação, passando pela culinária, pelo vestuário, pelos transportes, pelos hábitos culturais e amorosos, numa visão simultaneamente ampla e pormenorizada.

A este valor, advindo da exímia representação da vida social, acrescem duas outras características lite-rárias que tornam a leitura deste romance extrema-mente apetecível:

– o tom da escrita: humorístico, caricatural,

irónico;

– o brilhantismo linguístico com que Eça de

Queirós narra, descreve, constrói os diálogos. A construção do romance é também uma demonstração de bem escrever. Os Maias paten-teiam a arte literária de construir e sequencializar grandes painéis coletivos, sem deixar de, neles,

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inscrever, com nitidez, os acontecimentos nucleares da intriga em que agem as personagens principais.

Trata -se, pois, de uma obra que é um marco da qualidade literária atingida pelo romance portu-guês, no período realista.

Características do texto narrativo

Texto narrativo

Os Maias são um texto narrativo e, dentro deste género textual, um romance.

Como texto narrativo que são, contam ao leitor os acontecimentos ficcionais que constituem a sua intriga, dispondo -os numa certa ordem sequencial. Tais acontecimentos são situados no tempo e no espaço, em estreita conexão com as personagens. Estas mantêm, entre si e com o meio, uma teia de relações.

No caso d’Os Maias, a elaboração e o desenvol-vimento dos referidos elementos (intriga, tempo, espaço, personagens) exigem uma narrativa extensa e complexa a que chamamos romance.

Os Maias são, pois, um romance. Nele, o enca-deamento dos eventos e sequências narrativas é urdido de modo a simular o acontecer natural. As

personagens vão -se insinuando subtilmente,

dei-xando que o andar da narrativa revele a função e o lugar específicos de cada uma na história que está a ser contada.

São vários os modos de expressão de que uma narrativa dispõe e pode utilizar segundo a sua eco-nomia própria. Os principais são: a narração; a des-crição; o diálogo; o monólogo.

A arte de narrar consiste na combinação adequada destes vários modos de expressão. Por exemplo:

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– as páginas finais de Os Maias reabrem Lisboa ao regresso de Carlos e Ega e, numa romagem de memória, passados dez anos, reativam a intensa descrição dos lugares e das persona-gens, que nos tinham sido já antes descritas, mas, agora, muito mais decadentes;

– a mensagem final do romance é expressa em forma de diálogo: a ironia do declarado pessi-mismo, do «vencidismo» de Carlos e Ega, é dei-xada no ar através das falas de um diálogo entre os dois amigos («– Ainda o apanhamos!»), que correm para o americano, a caminho de uma jantarada.

Narração

N’Os Maias, como aliás na generalidade das nar-rativas, o modo de expressão básico é a narração. É a narração que faz avançar os fios da história, a corrente verbal -base que vai derivando, segundo as necessidades narrativas, para a descrição, para o diálogo ou para o monólogo. A narração é dinâ-mica, flui no tempo, urdindo os acontecimentos; a descrição é estática, constitui uma pausa no andamento da ação e destina -se a «desenhar» as personagens retratando -as ou a dar a imagem de lugares.

Descrição

Os Maias, como romance realista, usam assidua-mente a descrição e uma descrição pormenorizada que constrói imagens fiéis ao real. As descrições deste romance queirosiano são quase fotográficas; lê -las é ter a sensação de caminhar pela Lisboa do século xix, com o Chiado, o Grémio Literário, a Havaneza, os teatros, os hotéis, as ruas e as praças, e encontrar «gente» da época como se a sua vida, a sua cor, a seu movimento, a sua voz fossem reais.

Eça de Queirós é um exímio estilista da des-crição dos ambientes, compondo, com meticuloso cuidado, quer espaços interiores ou exteriores, quer

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retratos de personagens. Depois da leitura destas descrições, o sentido queirosiano dos pormenores

deixa -nos, na memória, tecidos, tons, texturas,

luzes, ruídos, gestos, olhares, aromas, as mais fugazes ou impressivas sensações térmicas, auditi-vas, visuais. Deste modo, mergulhamos em toda a complexidade e variedade da atmosfera roma- nesca.

A particular estruturação deste romance exige que a sua primeira parte seja bastante descritiva: nela, o leitor é inserido no ambiente social e físico e são -lhe apresentadas as personagens nucleares.

Diálogo

No entanto, à medida que a intriga começa a ganhar ritmo e velocidade narrativa, o diálogo é fre-quente e torna -se abundante. Trata -se de diálogos muito bem construídos, com grande naturalidade e maleabilidade segundo as personagens intervenien-tes. Os quadros sociais de conjunto, tantas vezes fic-cionados n’Os Maias, são vivíssimos, empolgantes até – como no episódio do jantar do Hotel Cen-tral – e vivem da bem conseguida combinação entre narração, diálogo e descrição.

Reprodução do discurso no discurso – Discurso indireto livre

Outro modo de expressão, de que Eça de Queirós é um grande criador, é o discurso indireto livre. Este modo discursivo mistura características da narração e do diálogo:

– por um lado, mantém os aspetos formais da narração, ou seja, do discurso indireto (pon-tuação; verbos no passado e na terceira pessoa; referência das personagens na terceira pessoa); – por outro lado, quanto aos aspetos semânticos

e vocabulares, introduz no discurso as carac-terísticas próprias da personagem como se se tratasse de uma intervenção sua em diálogo.

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O uso do discurso indireto livre faz o leitor reconhecer os tiques, o olhar, os hábitos verbais da personagem, senti -la como presença viva, mas, simultaneamente, distanciada, mediada pela obser-vação externa, indireta, do discurso do narrador. Este facto produz, muitas vezes, efeitos irónicos, humorísticos, caricaturais ou reflexivos, críticos.

Monólogo

Em consequência do progressivo desenvolvi-mento da complexidade narrativa do romance, a intriga atinge o seu clímax, ou seja, o momento da descoberta do parentesco entre Carlos e Maria Eduarda. A partir daí, tudo se encaminha para o desfecho: a separação dos dois e o seu afastamento de Lisboa, palco da ação central; a morte de Afonso da Maia.

É neste momento do romance que a problemá-tica mais subjetiva, em torno das reações de Carlos da Maia, exige, por vezes, a presença do monólogo interior em que ele pensa e sofre os seus dilemas.

O romance

Dentro do género narrativo, Os Maias são um romance cujos traços definidores são:

– a extensão volumosa da sua narrativa; – a complexa atmosfera psicossocial criada; – o número de personagens denso, variado, plural; – o ritmo temporal predominantemente lento,

aproximando -se do acontecer quotidiano. Sendo um romance, Os Maias são ainda um romance realista, pois dão corpo literário ao sentido social que o Realismo atribui à literatura. Os Maias são também um romance de espaço, a «pintura» de um meio histórico, de um ambiente social.

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Pluralidade de ações

A ação de Os Maias articula -se

fundamental-mente em dois planos:

– o da trajetória da família Maia;

– o da sucessão de quadros representativos da decadência social de Portugal no século xix. A trajetória da família Maia reparte -se por três tempos diferentes:

– o tempo de Afonso da Maia, personagem

que se mantém ao longo do romance, desde a juventude até à morte, acompanhando toda a ação;

– o tempo de Pedro da Maia, tempo curto de uma personagem que se esvai em si mesma, vítima do seu exacerbado sentimentalismo romântico;

– o tempo de Carlos da Maia, o protagonista da ação principal.

A ação principal do romance, protagonizada pela família Maia, não se limita aos acontecimentos íntimos desta família, mas torna -se mais complexa através do seu enquadramento em ações secundárias que constroem a época de cada geração:

– Afonso da Maia surge inserido no tempo das lutas liberais e dos exílios românticos, embora venha a acompanhar a ação até ao final; – Pedro da Maia insere -se no período dos

exces-sos sentimentais do clima ultrarromântico; – Carlos da Maia é contemporâneo da

«Regene-ração», do tempo em que o constitucionalismo monárquico está já estabelecido.

Há, pois, n’Os Maias, uma pluralidade de ações que se entrecruzam.

Os acontecimentos que envolvem de perto as personagens da família Maia, ou aquelas de que são íntimas, marcam a linha nuclear da ação,

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constituindo o seu primeiro plano. Nele, as perso-nagens são desenhadas em grandes planos aproxi-mados com traços bem nítidos. A economia desta linha da ação é fortemente dramática.

Simultaneamente e enquadrando a ação central, há um vasto plano de fundo, em que se desenvolve a comédia de costumes.

Este plano é constituído por uma série de qua-dros de conjunto, em que se cruza grande quan-tidade de personagens secundárias. Aí, a ação não integra uma intriga dramática nem evolui através de marcadas peripécias ou acontecimentos excecio-nais, mas segue o ritmo aproximado do acontecer natural.

Cada um destes quadros de conjunto fraciona -se em múltiplas breves ações, apontamentos, ao sabor dos encontros e desencontros das muitas persona-gens e dos motivos sociais que as põem em movi-mento. Trata -se de um tecido narrativo lenta mas sabiamente urdido, produzindo uma visão caleidos-cópica.

O cruzamento destes dois planos da ação de Os Maias – o central e o de fundo – faz -se pela pre-sença das personagens principais nesses quadros de conjunto:

– a pacatez provinciana dos serões de Santa Olá-via é perturbada pelas traquinices de Carlos; – o brilhantismo das noites do Ramalhete

evi-dencia a vil inveja do Dâmaso;

– os encontros clandestinos de Carlos e da Con-dessa apimentam as maçadoras terças -feiras em casa dos condes de Gouvarinho;

a superior serenidade de Carlos acalma os

fáceis ânimos de Ega e de Alencar, no jantar do Hotel Central;

– a presença de Carlos dá um tom de entusiasmo e de animação às corridas de cavalos;

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– Carlos escapa -se da insuportável maçada do sarau da Trindade, manifestando, assim, o seu olhar crítico.

A multiplicidade sucessiva de largos quadros sociais, com uma conotação sempre inferior à do plano restrito da família Maia, vai retardando o fio da ação central, através da sua plural e descansada corrente, entretecida de múltiplas ações secundá-rias.

De outro modo, o fio da ação central estrutura -se com maior tensão, relacionando eventos que repre-sentam momentos de excecionalidade na trajetória das personagens. Eis, em síntese, o fio condutor da ação no plano central:

Carlos da Maia, filho de Pedro e neto de Afonso, é separado, em bebé, da irmã Maria Eduarda. Esta separação é devida a motivos passionais: a mãe, Maria Monforte, movida por uma paixão fugaz por um conde italiano, abandona a família, levando consigo a filha e deixando o filho, Carlos, com o pai e o avô. A partir daqui, os irmãos ignoram mutua-mente a própria existência. Nessa ignorância, vão reencontrar -se e apaixonar -se um pelo outro: trá-gico amor incestuoso que põe fim a todos os ideais de vida profissional e social de que Carlos sonhara ser o expoente e mensageiro, reformador da deca-dente vida romântica do país.

Neste plano da ação central, a narração é mais linear e tem um ritmo mais dramático do que no plano de fundo em que decorre o «viver» da bur-guesia lisboeta.

O dramatismo presente na ação central assenta nas seguintes características:

– ritmo crescente do relacionamento entre Car-los e Maria Eduarda;

– acumulação de subtis dúvidas e ameaças de que uma fatalidade escondida, disfarçadamente

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referida aqui e ali, poderá, mais tarde, abater -se sobre a família Maia: a supersticiosa fatalidade do Ramalhete; os fatais olhos negros de Pedro da Maia; as parecenças fisionómicas, que ainda se não sabe corresponderem a parentescos; a falta de certeza absoluta sobre o destino final da filha de Maria Monforte;

– a erupção repentina e surpreendente da peripé-cia do drama, ou seja, da trágica identificação de Carlos e Maria Eduarda como irmãos; – o dilema vivido por Carlos da Maia perante a

descoberta de que a mulher que ama é a irmã cuja existência desconhecia;

– a catastrófica morte de Afonso e a destruição de qualquer possibilidade do futuro sonhado, quer no plano amoroso, quer no plano social. A complexidade da ação de Os Maias resulta do entrelaçamento (sábio, coerente e coeso) entre:

– a síntese dramática da ação central;

– a pluralidade de ações secundárias que consti-tuem a crónica de costumes.

Complexidade do tempo, do espaço e dos protagonistas

Tempo

O discurso narrativo refere e relaciona entre si acontecimentos que ocorrem no tempo. Assim, no discurso narrativo, são claramente visíveis os regis-tos de tempo através dos verbos, dos advérbios, das datas.

Exemplificando:

– «O antepassado, cujos olhos se enchiam agora...

fora, na opinião...»

– «... partiram ontem para Londres...» – «... no Outono de 1875...»

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No romance, cada sequência de acontecimentos é temporalmente alongada ou abreviada, conforme a sua importância relativa para o seu significado global:

– se for muito importante, é narrada com mais demorados pormenores e maior aproximação ao tempo do acontecer natural;

– se não for importante, pode ser rapidamente resumida ou até passar subentendida, sem qual-quer referência.

Por exemplo: há um certo momento em que, de uma viagem de Carlos a Santa Olávia, nada é narrado. Este evento é elidido. Sobre ele, apenas lemos: «Foi no sábado» e «No sábado seguinte». E, no entanto, sabemos que decorreu uma semana de que nada ficamos a saber.

Outra forma de acelerar a passagem do tempo é o resumo rápido e muitíssimo genérico: «Outros anos tranquilos passaram sobre Santa Olávia.»

Todavia, não é este o tratamento do tempo que predomina n’Os Maias. Neste romance, o trata-mento predominante do tempo tende a aproximar o seu ritmo do acontecer natural, do dia a dia.

Exemplificando:

– «Carlos, nessa manhã, ia visitar...»; – «No Ramalhete, depois do almoço...»; – «Na manhã seguinte, às oito horas

pontual-mente...»;

– «Três semanas depois, por uma tarde quente...». Outra forma de encarar a complexidade do tempo n’Os Maias é observar a extensão temporal da história narrada e de que modo se reparte a sua organização.

O marco temporal mais recuado corresponde à juventude de Afonso da Maia (sensivelmente na segunda década do século xix) e a última referência de tempo é «janeiro de 1887».

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Assim, a história narrada n’Os Maias estende -se por cerca de sessenta anos, a que se acrescentam os dez (de 1877 a 1887) correspondentes ao intervalo entre o afastamento de Carlos no estrangeiro e o seu regresso a Lisboa.

Todavia, no discurso narrativo, a organização deste tempo da história não é sempre feita por ordem cronológica direta.

Vejamos:

1 – No início do romance, estamos já no outono de 1875 e Afonso da Maia é já um velho que pre-para o Ramalhete pre-para o regresso de Carlos da Maia, o seu neto, já adulto.

2 – Em breve, passadas oito páginas e através do uso do mais -que -perfeito – o tempo verbal do pas-sado mais recuado – somos levados para o tempo mais recuado da história: a juventude de Afonso da Maia.

A partir deste movimento narrativo de inversão temporal, uma analepse, a narração vai, então, pros-seguir contando o passado durante sensivelmente oitenta páginas: o casamento de Afonso; o nasci-mento de Pedro; o exílio de Afonso; o regresso de Afonso; o casamento de Pedro; o nascimento dos filhos de Pedro, Maria Eduarda e Carlos; a fuga da mulher de Pedro; a educação de Carlos em Santa Olávia; a formação de Carlos em Medicina e a sua viagem pelo estrangeiro; Afonso e o restaurado Ramalhete aguardando a instalação de Carlos em Lisboa (a narração reencontra -se com o momento do início do romance, o outono de 1875).

3 – De novo no outono de 1875, a partir daí e durante cerca de dois anos, o fluir temporal vai decorrer segundo a ordem cronológica direta até janeiro de 1877.

4 – Finalmente, depois de dez anos elididos da narração, o tempo volta a ser tratado demorada-mente, durante o dia em que Carlos, acompanhado por Ega, peregrina por Lisboa e pelas memórias que lhe estão associadas.

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Perante esta organização do ritmo temporal da narração, verifica -se – de acordo com a centralidade das ações narradas – uma oscilação entre grande rapidez e grande lentidão narrativas:

– os acontecimentos anteriores a 1875 são narra-dos num ritmo genericamente rápido;

– os acontecimentos correspondentes aos dois

anos que se iniciam no outono de 1875 são narrados lentamente;

– a ausência de Carlos no estrangeiro durante 10 anos é resumida em duas páginas;

– o último dia, final, de revisita de Carlos e Ega aos lugares da ação, centrando -se nas memórias dos dois, alonga -se por 26 páginas.

Espaço

De um modo geral, as ações ficcionadas n’Os Maias ocorrem em lugares real e historicamente existentes.

Neste romance, o espaço é geralmente citadino: «A pacata Lisboa adormecida ao sol...».

Os lugares, onde predominantemente decorre a ação, pertencem à Lisboa burguesa dos fins do século xix:

– o Chiado, o Loreto, o Aterro, lugares onde se passeia em amenas cavaqueiras;

– o S. Carlos, o Trindade, o Grémio Literário, cuja intenção cultural é desmentida pela reali-dade predominantemente sentimental; – o Hotel Central, onde à roda da mesa se discute

alegre e levianamente a viabilidade do país; – o hipódromo, lugar de suposta diversão que

acaba pífia e tristonha;

– a Vila Balzac, a «Toca» e outros lugares da rela-ção amorosa clandestina, de adultério reinante.

(24)

No entanto, outros lugares estão presentes no romance:

– a Lisboa com a sua atmosfera citadina,

contrapõe -se a quinta de Santa Olávia que, pelo seu ambiente saudável, pelos seus ares lavados, a água pura, a natureza, é o lugar de retiro da família Maia nos momentos críticos, o lugar da educação de Carlos;

– Sintra é o lugar burguês dos passeios, do vera-neio, muito conotado com vivências poéticas e sentimentais;

– Coimbra é o lugar tradicionalmente

acadé-mico, onde Carlos vive a boémia estudantil e se forma em Medicina;

– o estrangeiro (sobretudo Paris, mas também a Inglaterra) é um lugar mítico: padrão que evi-dencia a inferioridade nacional, no entender de Afonso, adepto da vida à inglesa; representação do chic parolo do Dâmaso que idolatra o bou-levarzinho parisiense.

Porém, entre todos os espaços ficcionados no romance, há um, o Ramalhete, que merece menção especial, por ser:

– o lugar onde vive a personagem nuclear da nar-rativa, Carlos da Maia;

– a casa cujos interiores mais vezes e com mais pormenor são descritos;

– um lugar que simboliza e reflete, através da evolução do seu aspeto, o grau de felicidade dos seus donos (perde a aparência de fachada

tristonha e jesuítica, de aspeto austero, freirá-tico, para receber Carlos; adorna -se luxuosa-mente e revive festivaluxuosa-mente, durante o tempo

de boémia dourada de Carlos e dos seus ami-gos; regressa, durante a catástrofe final que atinge a família, à imagem de casarão

som-brio, fachada tristonha, coberto de tons de ruína).

(25)

O espaço n’Os Maias ocupa um lugar substancial através de extensas e pormenorizadas descrições que «fotografam» a Lisboa burguesa oitocentista.

Nessas «imagens» feitas de palavras, para além da dimensão física, é ainda mais importante a dimen-são social.

Tratando -se de um romance realista de crítica de costumes, torna -se muito importante representar literariamente a atmosfera social de cada lugar.

O retrato da decadência de uma burguesia que nada faz de progressivo, de útil, de eficaz para a transformação do país, deve muito à presença des-tes espaços sociais, em que apenas se conversa, se joga, se ri, se come, se namora, se inveja e se intriga, numa indolência destrutiva das possíveis energias reformadoras da sociedade.

Protagonistas

A personagem nuclear do romance, o seu verda-deiro protagonista é uma família, a família Maia, que se articula em três gerações sucessivas. A relação geracional dos seus elementos transporta caracterís-ticas identitárias que se refletem no comportamento de cada geração.

Cada uma destas gerações organiza -se em torno de uma personagem masculina que, por sua vez, faz par com uma personagem feminina, vive numa roda de amigos íntimos e integra -se numa dada situação histórica:

– Afonso da Maia e D. Maria Runa;

– Pedro da Maia, Maria Monforte e o seu grande amigo Alencar;

– Carlos da Maia, o seu íntimo amigo João da Ega e Maria Eduarda.

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O retrato de cada um dos protagonistas destes três momentos é eximiamente traçado por Eça de Queirós.

Afonso da Maia é um homem culto, sereno, de

bom gosto, equilibrado, sólido, firme, amigo afe-tuoso e solícito; patrão justo e generoso; cidadão exemplar; a síntese das tradicionais e esquecidas virtudes portuguesas, melhorada pelo contacto com a admirada Inglaterra; um «bloco de granito» que, «esmagado pela tragédia», se torna num velho cujos «passos lentos e incertos, muito pesados» desembo-cam na morte de pé.

Pedro da Maia é um homem frágil, de profundos

olhos negros românticos, vítima de uma educação livresca e clerical. Carácter amolecido pelo roman-tismo, dado a melancolias sem razão, endoidecido pelo amor, apaixonado febril, acaba no suicídio. Opõe -se à moral familiar representada por seu pai, Afonso; obedece à moral do sentimento; suicida -se, num desfecho melodramático de herói romântico.

Carlos da Maia, educado à inglesa, destinado a

ser obreiro do progresso, da transformação do país, «formoso e magnífico moço, bem feito, de uma testa de mármore», é apresentado como um ser superior. No entanto, submerso pelo tédio reinante na burguesia lisboeta, deixa -se vencer pelos efei-tos da paixão, dando, assim, primazia aos «genes» românticos que herdara dos pais. Não se empenha profundamente em nada, é um diletante e acaba falhado. É um dandy cujos «hábitos de luxo con-denam irremediavelmente ao diletantismo». Dentre os protagonistas que constituem a família Maia, ele ocupa o lugar mais importante. Está no núcleo da ação e, por isso, é ele a personagem que alcança maior espessura psicológica. Esta sua maior densi-dade vem -lhe das situações complexas que vive:

– os bocejos de saciedade provocados pela frustre experiência amorosa com a Gouvarinho;

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– a abstração radiosa advinda da paixão por Maria Eduarda;

– as fraquezas, as hesitações, as resoluções falha-das, os projetos por concretizar, a comoção com a morte do avô;

– a revolta, o medo, a fuga, a covardia, o choro, o ceticismo, o cinismo, a secura afetiva, o pessi-mismo existencial, durante e depois da tragédia que o atingiu.

Maria Eduarda, que se destaca, dentre as

per-sonagens femininas, é bela, mas discreta. Alta, de

aparência estrangeirada, move -se com um andar

de «deusa». Não representa o feminino apenas enquanto sentimento e emoção, pois tem qualida-des no plano intelectual que a colocam à altura de uma conversa com Carlos e Ega.

Alencar ocupa o lugar de amigo íntimo, no

tempo da geração de Pedro e Maria Monforte, mas sobrevive -lhes até ao reencontro com Carlos. Poeta, é o melhor representante da geração român-tica à qual sobrevive. Surge no romance como «um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro», caricatura do poeta ultrarromântico, que solta frases ressoantes e arrasta as suas poses. Mais tarde, já na geração de Carlos, reaparece como «homem alto, todo de preto, longos bigodes român-ticos» e funciona, então, como recordação agoni-zante de emoções patrióticas perdidas.

João da Ega, «um certo João da Ega», íntimo

de Carlos, o «grande» João da Ega, que «tinha nas veias o veneno do diletantismo», nos tempos de Coimbra, estudava direito e reprovava. Personagem que talvez seja um alter -ego de Eça, ou antes, uma autocaricatura dos seus próprios ímpetos de artista vingador, figura exagerada de literato, perseguidor de ambiciosos planos irrealizados, é um falhado como Carlos. A sua figura, pelo aspeto físico e pela sua função predominante na intriga (apresenta per-sonagens, liga acontecimentos, faz avançar a ação,

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não escapa a ser portador da notícia fatal) tem o seu quê de mefistofélica. Aliás, é referido como «Esse Mefistófles de Celorico». Consciência irónica e crí-tica dos acontecimentos, através de palavras sempre exageradas, acaba por exibir uma certa confusão mental. É teatral, cómico, pueril, incoerente. Não respeita nada, professa o desacato como condição de progresso, mas bajula o Cohen homenageando -o com um jantar e concordando -lhe com as opiniões, só porque quer aproximar -se da mulher, a divina Raquel, por quem está fascinado. Perante a desgraça que avassala o amigo, acaba por surgir «cheio só de compaixão e ternura, com uma grossa lágrima nas pestanas».

Personagens secundárias

Em torno destas personagens fulcrais e, por con-traponto, ajudando muitas vezes a fazê -las emergir, gravita uma série de personagens secundárias.

N’Os Maias, as personagens secundárias, ora frequentes, ora episódicas, ora circunstanciais,

multiplicam -se ao sabor da intenção realista de

construir um painel da sociedade lisboeta, da segunda metade do século xix, segundo um ponto de vista crítico.

Vejamos algumas dessas personagens:

Sequeira e D. Diogo Coutinho: velhos

compa-nheiros de Afonso da Maia;

Steinbroken: embaixador finlandês, olhado

cari-caturalmente;

Vilaça (pai e filho): administradores zelosos da

segurança material da família Maia;

Taveira: o funcionário do Tribunal de Contas; Cruges: o pianista de cabeleira desleixada e

amargo spleen;

Eusebiozinho: o produto mais representativo de

toda a degenerescência física e moral da sociedade portuguesa da altura;

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Craft: inglês, sereno, fleumático, espantado com

a «enormidade» portuguesa;

Dâmaso Salcede: o filho do velho Silva, o agiota;

figura desorbitada de pura sátira, caricatura do fran-cesismo em calão; representante de um dos mais baixos degraus da sociedade lisboeta; bochechudo e balofo, «frisadinho como um noivo de província», aldrabão, vaidoso, oco, cobarde, humilhado, avil-tado; movido pela lisonja, pela inveja, pelo rancor; servil, obcecado pelo chic, ridículo.

Na multímoda personagem que é a burguesia lis-boeta, emergem ainda:

Cohen: o diretor do Banco Nacional, corrupto,

indiferente aos reais interesses do país;

Conde de Gouvarinho: par do reino, político

bacoco, inútil, produzindo discursos ridículos;

Condessa de Gouvarinho: exímia nos processos

de assédio aos favores amorosos de Carlos e nos ges-tos melodramáticos de vítima do abandono;

Raquel Cohen: a divina despertadora de paixões; Melanie, Miss Sara, Teles da Gama, Palma Cavalão, Castro Gomes, D. Maria Cunha, enfim,

um rio interminável de figuras que são tipos sociais, ou seja, têm um comportamento determinado pela sua origem e estatuto social.

Trata -se de personagens representativas de clas - ses, grupos, funções, atitudes sociais. Estas perso-nagens -tipo são as que melhor servem a intenção de crítica social realista: representam de forma cari-catural os males sociais, expondo -os, dando -os a conhecer, tornando -os objeto de análise crítica e de ironia demolidora.

Extensão

Dentre os vários subgéneros narrativos, o romance é a narrativa mais extensa e mais com-plexa. Mais breves e mais lineares são, por exemplo, a novela e o conto.

(30)

Para além desta razão básica, a de serem um romance, outras razões fazem com que Os Maias sejam um romance extenso.

De facto, trata -se de um romance realista cujo principal objetivo é o de ficcionar o viver social, a partir da observação pormenorizada, fotográfica, dos múltiplos aspetos da sociedade. Não é, pois, possível cumprir este desígnio sem desenvolver um extenso volume de discurso narrativo.

Para construir literariamente a imagem realista dos costumes sociais, é necessária uma forte pre-sença da descrição. Neste caso, ou seja, para ser rea-lista, a descrição tem de ser pormenorizada, atenta às cores, aos sons, aos movimentos, às texturas, aos odores, enfim, aos dados dos sentidos capazes de darem ao leitor a sensação de realidade que se pre-tende que ele tenha.

Por outro lado, o objetivo realista, de fazer crí-tica social através da literatura, implica a inclusão de um painel plural, variado, extenso, de personagens secundárias. N’Os Maias, Eça de Queirós monta, com grande mestria, longos quadros de conjunto, onde essas personagens que são tipos sociais se entrecruzam.

Deste modo, o romance ganha extensão, volume, como é próprio de uma obra literária cujos objetivos são consentâneos com a corrente literária realista.

Mesmo que consideremos apenas a sua dimensão romanesca, há, n’Os Maias, processos narrativos que contribuem para a sua extensão.

Do movimento realista, fazia parte uma vertente naturalista que pretendia analisar quase cientifica-mente a decadência social, atribuindo -lhe, como causas, a educação, a hereditariedade, o meio fami-liar e social de origem das personagens e, bem assim, das classes que representam.

(31)

Assim, seguindo essa tendência, torna -se necessá-rio narrar os antecedentes de Carlos da Maia, a sua educação, a sua ascendência.

Carlos da Maia falha, também, porque traz em si a marca romântica que herdou de Pedro da Maia e de Maria Monforte, mais intensa do que a lúcida racionalidade da educação de inspiração inglesa a que Afonso o submete.

Maria Eduarda, com a mesma origem, representa o regresso desse passado que, tragicamente, perse-gue e vence os intuitos reformadores de Afonso e de Carlos.

Ora, para dar corpo a esta vertente, de algum modo naturalista, do romance, Eça inclui uma substancial analepse que se avoluma no início do romance.

Assim, sendo Os Maias um romance e, apenas por esta razão, uma narrativa extensa, o facto de serem um romance realista implica processos nar-rativos e estruturais que avolumam o seu caudal narrativo, à imagem e semelhança do fluir do rio da vida.

Visão global da obra

e da sua estruturação

Título e subtítulo

Para além do título Os Maias, o romance apre-senta um subtítulo: Episódios da Vida Romântica.

Tal facto não deve ser encarado como uma sim-ples explicitação de conteúdo, mas como uma pista importante para a compreensão das linhas da sua estruturação.

(32)

É o subtítulo, com o seu carácter abrangente-mente coletivo e com a sua referência à «vida», que indica uma das dimensões do romance:

– a de fresco caricatural da sociedade portuguesa nas últimas décadas do século xix, crónica de costumes, em cujas páginas a vida social pulula e gesticula.

Por sua vez, o título refere a personagem central, a família que se desdobra por três gerações e age numa dimensão diferente: a dimensão das íntimas histórias sentimentais e das relações familiares.

A existência de um título e de um subtítulo encaminha -nos para a análise do modo como o romance está estruturado em dois planos que se ins-crevem um no outro:

– a história da família, mormente de Carlos

(título);

– a crónica social do Portugal oitocentista, persis-tentemente romântico (subtítulo).

Existe, entre estes dois planos, uma articulação coerente que inscreve os episódios da intriga fami-liar nos momentos político -sociais que o país atra-vessa:

– Afonso da Maia / tempo de lutas pela afirma-ção do Liberalismo;

– Pedro da Maia / ambiente de decadência ultrar-romântica;

– Carlos da Maia / o constitucionalismo monár-quico: a «Regeneração».

Claramente, a trajetória da família (anunciada no título) inscreve -se na evolução do Portugal român-tico (referida no subtítulo).

(33)

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

– TEXTOS ESCOLHIDOS

DE OS MAIAS

2

representação de espaços sociais

e crítica de costumes



Texto



A voz do Ega sibilava... Mas, vendo assim trata-dos de grotescos, de bestas, os homens de ordem que fazem prosperar os bancos, Cohen pousou a mão no braço do seu amigo e chamou -o ao bom senso. Evi-dentemente, ele era o primeiro a dizê -lo, em toda essa gente que figurava desde 46 havia medíocres e patetas – mas também homens de grande valor!

– Há talento, há saber – dizia ele com um tom de experiência. – Você deve reconhecê -lo, Ega... Você é muito exagerado! Não senhor, há talento, há saber.

E, lembrando -se que algumas dessas bestas eram amigos do Cohen, Ega reconheceu -lhes talento e saber. O Alencar, porém, cofiava sombriamente o bigode. Ultimamente pendia para ideias radicais, para a democracia humanitária de 1848: por ins-tinto, vendo o romantismo desacreditado nas letras, refugiava -se no romantismo político, como num asilo paralelo: queria uma república governada por génios, a fraternização dos povos, os Estados Uni-dos da Europa... Além disso, tinha longas queixas desses politicotes, agora gente do Poder, outrora seus camaradas de redação, de café e de batota...

– Isso – disse ele – lá a respeito de talento e de saber, histórias... Eu conheço -os bem, meu Cohen...

O Cohen acudiu:

– Não senhor, Alencar, não senhor! Você tam-bém é dos tais... Até lhe fica mal dizer isso... É exa-geração. Não senhor, há talento, há saber.

2 Textos selecionados da edição de «Livros do Brasil»,

(34)

E o Alencar, perante esta intimação do Cohen, o respeitado diretor do Banco Nacional, o marido da divina Raquel, o dono dessa hospitaleira casa da Rua do Ferregial onde se jantava tão bem, recal-cou o despeito – admitiu que não deixava de haver talento e saber. Então, tendo assim, pela influência do seu banco, dos belos olhos da sua mulher e da excelência do seu cozinheiro, chamado estes espíri-tos rebeldes ao respeito dos parlamentares e à vene-ração da Ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o país necessitava reformas...

Ega, porém, incorrigível nesse dia, soltou outra enormidade:

– Portugal não necessita reformas, Cohen, Portu-gal o que precisa é a invasão espanhola.

Alencar, patriota à antiga, indignou -se. O Cohen, com aquele sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, viu ali apenas «um dos paradoxos do nosso Ega». Mas o Ega falava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia ele, invasão não significa perda absoluta de independência. Um receio tão estúpido é digno só de uma sociedade tão estúpida como a do Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só trago, por um país que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguém consentiria em deixar cair nas mãos de Espanha, nação militar e marítima, esta bela linha de costa de Portugal. Sem contar as alianças que teríamos a troco das colónias – das colónias que só nos servem, como a prata de família aos morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise... Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, num momento de guerra europeia, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnização, perdermos uma ou duas províncias, ver talvez a Galiza estendida até ao Douro...

– Poulet aux champignons – murmurou o criado, apresentando -lhe a travessa.

E enquanto ele se servia, perguntavam -lhe dos lados onde via ele a salvação do país nessa catástrofe

(35)

que tornaria povoação espanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heróis, berço dos Egas...

– Nisto: no ressuscitar do espírito público e do génio português!

Sovados, humilhados, arrasados, escalavra-dos, tínhamos de fazer um esforço desesperado para viver. E em que bela situação nos acháva-mos! Sem monarquia, sem essa caterva de políti-cos, sem esse tortulho da inscrição, porque tudo desaparecia, estávamos novos em folha, limpos, escarolados, como se nunca tivéssemos servido.

E recomeçava -se uma história nova, um outro

Portugal, um Portugal sério e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civiliza-ção como outrora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia... Oh! Deus de Ourique, manda -nos o castelhano! E você, Cohen, passe -me o St. Emilion.

Agora, num rumor animado, discutia -se a

invasão. Ah, podia -se fazer uma bela resistência! Cohen afiançava o dinheiro. Armas, artilharia, iam comprar -se à América – e Craft ofereceu logo a sua coleção de espadas do século xvi. Mas gene-rais? Alugavam -se. Mac -Mahon, por exemplo, devia estar barato...

– O Craft e eu organizamos uma guerrilha – gri-tou o Ega.

– Às ordens, meu coronel!

– O Alencar – continuava Ega – é encarregado de ir despertar pela província o patriotismo, com cantos e com odes!

Então o poeta, pousando o cálice, teve um movi-mento de leão que sacode a juba:

– Isto é uma velha carcaça, meu rapaz, mas não está só para odes! Ainda se agarra uma espingarda, e como a pontaria é boa, ainda vão a terra um par de galegos... Caramba, rapazes, só a ideia dessas coisas me põe o coração negro! E como vocês podem falar nisso, a rir, quando se trata do país, desta terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja má, de acordo, mas, caramba, é a única que temos, não temos outra! É aqui que vivemos, é aqui que

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rebentamos... Irra! falemos de outra coisa, falemos de mulheres!

Dera um repelão ao prato, os olhos humedeciam--se -lhe de paixão patriótica... E no silêncio que se fez, Dâmaso, que desde as informações sobre a rapa-riga do Ermidinha emudecera, ocupado a observar Carlos com religião, ergueu a voz pausadamente, disse, com ar de bom senso e de finura:

– Se as coisas chegassem a esse ponto, se se puses-sem assim feias, eu cá, à cautela, ia -me raspando para Paris...

Ega triunfou, pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no lábio sintético de Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português! Raspar -se, pirar -se!... Era assim que de alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde el -rei nosso senhor até aos cretinos de secretaria!...

In Capítulo VI

Contexto

Através desta conversa durante o jantar no hotel Central, representam -se ficcionalmente os dados do contexto histórico: a crítica situação socioeconó-mica do país; a falta de competência de quem tinha o poder; a falta de honestidade intelectual de quem o criticava; a falta de consciência nacional.

Relacionação com outros textos

Esta discussão dos problemas do país está tam-bém presente em Viagens na Minha Terra: neste livro de Garrett, é, na voz do narrador, que a situa-ção sociopolítica é criticada.

«Se excetuarmos o débil clamor da imprensa libe-ral já meio esganada da polícia, não se ouve no vasto silêncio deste ermo senão a voz dos barões gritando contos de réis.

Dez contos de réis por um eleitor! Mais duzentos contos pelo tabaco!

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Três mil contos para a conversão de um anfiguri3!

Cinco mil contos para as estradas dos aeronautas! Seis mil contos para isto, dez mil contos para aquilo! Não tardam a contar por centenas de milha-res. Contar a eles não lhes custa nada. A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel – a terra e a indústria...»

Educação literária – as questões

1. Indique o espaço social representado neste

texto.

1.1 Identifique o setor da sociedade que cada

uma das personagens representa.

2. Neste texto, está presente a crítica de

costu-mes.

2.1 Através de referências ao texto, justifique a

afirmação anterior; explicite -a.

2.2 Indique os recursos expressivos que dão

viva-cidade e acutilância à crítica.

3. Refira -se à presença de reprodução do discurso

no discurso, explicitando o modo utilizado.

Educação literária – as respostas

1. Este texto é um excerto do grande quadro do

jantar do hotel Central. Nele, está representada a alta burguesia lisboeta com poder económico e social e outros setores com opinião acerca do estado do país.

Através da conversa que vai decorrendo durante o jantar, fica patente a inconsistência das posições intervenientes na situação do país.

1.1 As personagens que animadamente

conver-sam à roda da mesa representam setores componen-tes da sociedade:

3 Anfiguri = texto de sentido obscuro, muito difícil de

(38)

– Cohen representa a banca, a finança;

– Alencar representa as velhas posições dos escri-tores românticos com o seu sentimentalismo e idealismo patriótico, ainda subsistentes e resis-tentes na sociedade portuguesa;

– Ega representa a intelectualidade juvenil e radi-cal, muito crítica e demolidora, mas simulta-neamente muito diletante: muitas palavras; poucas ações;

– Craft representa o ponto de vista estrangeiro, distanciado;

– Dâmaso representa a burguesia individualista e cobarde, totalmente desprovida de consciência nacional.

2.1 A crítica de costumes presente neste texto

atinge os seguintes alvos:

– a incompetência, a hipocrisia e a falta de ver-dadeira consciência dos problemas nacionais e de coragem para os enfrentar e tentar resol-ver, por parte daqueles a quem tal deveria competir;

– a primazia da diversão e da satisfação dos prazeres pessoais, em vez do empenhamento responsável na análise e estudo dos meios para reformar e fazer progredir o país, por parte de quem tem essa responsabilidade, quer por ocupar lugares de poder, quer por se dizer detentor de pensamento crítico sobre o assunto.

2.2 O recurso expressivo que principalmente

contribui para a acutilância e vivacidade da crítica é a ironia. Ela está presente ao longo do texto. Pode-remos fixar -nos nos seguintes momentos:

– «E enquanto ele se servia, perguntavam -lhe dos lados onde via ele a salvação do país nessa catástrofe que tornaria povoação espanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heróis, berço dos Egas...»;

(39)

– «Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia... Oh! Deus de Ouri-que, manda -nos o castelhano! E você, Cohen, passe -me o St. Emilion.»;

– «Mas generais? Alugavam -se. Mac -Mahon, por exemplo, devia estar barato...»;

– «Eis ali, no lábio sintético de Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português! Raspar -se, pirar -se!... Era assim que de alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde el -rei nosso senhor até aos cretinos de secretaria!...»

Alguns exemplos de outros recursos expressivos: – comparação: «como a prata de família aos

morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise»;

– uso expressivo do adjetivo: «levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemniza-ção»; «Sovados, humilhados, arrasados, escala-vrados»;

– uso expressivo do advérbio: «cofiava sombria-mente o bigode»;

– metáfora: «sem esse tortulho da ‘inscrição’»; – sinestesia: «me põe o coração negro».

3. Neste texto predomina o diálogo, uma vez que

se trata de uma conversa à volta da mesa do jantar. Por vezes, todavia, as falas das personagens são introduzidas através do discurso indireto livre, ou seja, a introdução do registo e do tom próprios da personagem no decorrer do discurso narrativo sem apresentar marcas gráficas e morfossintáticas pró-prias do discurso direto.

Exemplo:

«Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, num momento de guerra europeia, seria levarmos uma sova...».

(40)

espaços e seu valor simbólico e emotivo



Textos



A

[...] e o Ramalhete possuía apenas, ao fundo de um terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado às ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um tanque

entu-lhado, e uma estátua de mármore (onde Monsenhor

reconheceu logo Vénus Citereia) enegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres.

In Capítulo I

B

Não era decerto o jardim de Santa Olávia: mas tinha o ar simpático, com os seus girassóis

perfi-lados ao pé dos degraus do terraço, o cipreste e o

cedro envelhecendo juntos como dois amigos tris-tes, e a Vénus Citereia parecendo agora, no seu tom

claro de estátua de parque, ter chegado de Versa-lhes, do fundo do Grande Século... E desde que a

água abundava, a cascatazinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus três pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancoli-zando aquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de náiade doméstica, esfiado gota a gota na bacia de mármore.

In Capítulo I

C

Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez de inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido, que já ninguém ama: uma

ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos membros da Vénus Citereia; o cipreste e o cedro

envelheciam juntos, como dois amigos num ermo; e mais lento corria o prantozinho da cascata, esfiado

saudosamente, gota a gota, na bacia de mármore.

(41)

Contexto

Casas senhoriais, como o Ramalhete que Eça cria literariamente para habitação da família Maia, durante o tempo dourado de Carlos em Lisboa, integram -se no contexto citadino do século xix. Visitar o bairro das Janelas Verdes, onde Eça o situa, é, ainda hoje e através de edifícios remanescentes, reviver essa realidade urbana oitocentista que o romance nos dá a conhecer.

Relacionação com outros textos

Não é raro encontrarmos na literatura, nomea-damente em romances, descrições de casas. Lem-bremos, por exemplo, a famosa Casa do Vale de Santarém, presente em Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett:

«Para mais realçar a beleza do quadro, vê -se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada – com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa; parece -me mais ornada e também mais antiga que o resto do edi-fício que todavia mal se vê... Interessou -me aquela janela. Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?»

Frequentemente, nas obras literárias, é atribuído, ao espaço, um valor simbólico e emotivo. Lembre-mos, por exemplo, o espaço do segundo ato de Frei Luís de Sousa, a casa em que D. Madalena vivera com seu primeiro marido. Trata -se, de facto, de um espaço carregado de sinais ameaçadores do regresso de D. João de Portugal e que angustia extrema-mente a personagem de Madalena.

(42)

Educação literária – as questões

1. Leia seguidamente os três textos acima que,

em momentos diferentes do romance, descrevem o mesmo recanto do Ramalhete; atente nas palavras e expressões realçadas.

1.1 A partir desta leitura, escreva um texto

expo-sitivo em que desenvolva o seguinte tópico: Espaços e seu valor simbólico e emotivo.

Educação literária – as respostas 1.1

Há, n’Os Maias, espaços físicos cujo tratamento literário ultrapassa a descrição realista e lhes confere um valor simbólico e emotivo.

O caso mais saliente é o do Ramalhete que, ao longo do romance, vai mudando a sua conotação emotiva, tornando -se como que um emblema do grau de felicidade e brilho social da família Maia.

O recanto descrito nestes três textos é a parte do Ramalhete que, mais evidentemente, assume esse valor simbólico e emotivo de um espaço. Evolui em três tempos, como a família: antes de Carlos; durante Carlos; depois da tragédia de Carlos.

Assim, a adjetivação e outros recursos expressivos criam, para o mesmo espaço, três conotações sim-bólicas e emotivas diferentes:

– abandono, secura, ruína (antes de Carlos); – conforto, convívio, bom gosto, amenidade

(durante Carlos);

– abandono, decadência, tristeza (depois da tra-gédia de Carlos).

(43)

representações do sentimento

e da paixão: diversificação

da intriga amorosa

Pedro da Maia



Texto



Não tardou de resto a falar -se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Ele tam-bém namorou -a publicamente, à antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janela dela, imóvel e pálido de êxtase.

Escrevia -lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel – poemas desordenados que ia com-por para o Marrare: e ninguém lá ignorava o destino daquelas páginas de linhas encruzadas que se acu-mulavam diante dele sobre o tabuleiro da genebra. Se algum amigo vinha à porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:

– O sr. D. Pedro? Está a escrever à menina. E ele mesmo, se o amigo se acercava, estendia -lhe a mão, exclamava radiante, com o seu belo e franco sorriso:

– Espera aí um bocado, rapaz, estou a escrever à Maria!

Os velhos amigos de Afonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Benfica, sobretudo o Vilaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer a nova daque-les amores do Pedrinho. Afonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camélias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo -se ao quarto do menino, a cheirar regalada-mente o perfume de um envelope com sinete de lacre dourado; e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho à estroinice bulhenta, ao jogo, às melancolias sem razão em que reaparecia o negro ripanço...

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Carlos da Maia



Texto



Maria Eduarda veio encostar -se à janela, Car-los seguiu -a; e ficaram ali juntos, calados, profun-damente felizes, penetrados pela doçura daquela solidão. Um pássaro cantou de leve no ramo da árvore; depois calou -se. Ela quis saber o nome de uma povoação que branquejava ao longe, ao Sol, na colina azulada. Carlos não se lembrava. Depois, brincando, colheu uma margarida, para a interro-gar: Elle m’aime, un peu, beaucoup... Ela arrancou--lha das mãos.

– Para que precisa perguntar às flores?

– Porque ainda não mo disse claramente, absolu-tamente, como eu quero que mo diga...

Abraçou -a pela cinta, sorriam um ao outro.

Então Carlos, com os olhos mergulhados nos dela, disse -lhe baixinho, e implorando:

– Ainda não vimos a saleta de banho...

Maria Eduarda deixou -se levar assim enlaçada pelo salão, depois através da sala de tapeçarias, onde Marte e Vénus se amavam entre os bosques. Os banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por um velho tapete vermelho da Caramâ-nia. Ele, tendo -a sempre abraçada, pousou -lhe no pescoço um beijo longo e lento. Ela abandonou -se mais, os seus olhos cerraram -se, pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente e cor de oiro: Carlos, ao passar, desprendeu as cortinas do arco de capela, feitas de uma seda leve que coava para dentro uma claridade loira: e um instante ficaram imóveis, sós enfim, desatado o abraço, sem se tocarem, como suspensos e sufocados pela abundância da sua feli-cidade.

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Ega



Texto



Mas a cólera outra vez abafou -lhe a voz. E esteve um momento mordendo os beiços, recalcando os soluços, com os olhos reluzentes de lágrimas.

Quando as palavras voltaram, foi uma explosão selvagem:

– Quero -me bater em duelo com aquele mal-vado, a cinco passos, meter -lhe uma bala no cora-ção!

Outros sons estrangulados escaparam -se -lhe da garganta; e batendo furiosamente o pé, esmurrando o ar, berrava, sem cessar, como cevando -se na estri-dência da própria voz:

– Quero matá -lo! Quero matá -lo! Quero matá--lo!

Depois, alucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabridamente pelo quarto, às patadas, com o manto deitado para trás, a espada mal afive-lada batendo -lhe as canelas escarlates.

– Então descobriu tudo – murmurou Carlos. – Está claro que descobriu tudo! – exclamou o Ega, no seu passear arrebatado, atirando os braços ao ar. – Como descobriu, não sei. Sei isto, já não é pouco. Pôs -me fora!... Hei de lhe meter uma bala no corpo! Pela alma de meu pai, hei de lhe varar o cora-ção!... Quero que vás logo pela manhã com o Craft... E as condições são estas: à pistola, a quinze passos!

Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chá-vena de chá. Depois, disse muito simplesmente:

– Meu querido Ega, tu não podes mandar desa-fiar o Cohen.

O outro estacou de repelão, atirando pelos olhos dois relâmpagos de ira – a que as medonhas sobran-celhas de crepe, as duas penas de galo ondeando na gorra, davam uma ferocidade teatral e cómica.

– Não o posso mandar desafiar? – Não.

– Então põe -me fora de casa... – Estava no seu direito.

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– No seu direito!... Diante de toda a gente?... – E tu, não eras amante da mulher diante de toda a gente?...

In Capítulo IX

Contexto

A leitura da representação do amor na literatura não se faz sem deixar na memória do leitor um rasto de lugares:

– cafés onde se escrevem cartas de amor (Pedro); – casas onde os apaixonados recatam a sua

inti-midade (Carlos e Maria Eduarda);

– salões de festas, em que se namora a mulher do amigo (Ega).

Estes lugares são ficcionados a partir do real: – o Marrare, que era um requintado café de

Lisboa fundado pelo napolitano António Marrare. Ficava na rua Garrett e fora, preci-samente, o ponto de encontro da geração de Almeida Garrett;

– a «Toca», nos Olivais, que, no século xix, era um lugar campestre mas próximo da grande cidade e, assim, muito apetecível para os deva-neios da fidalguia lisboeta;

– os salões da alta burguesia, onde, para além das festas que os animavam, como, por exem-plo, os bailes de máscaras, muitos encontros e desencontros amorosos aconteciam.

Relacionação com outros textos

O par amoroso, elemento central da intriga roma-nesca, é talvez o tópico mais frequente no romance. Assim, tomemo -lo como ponto de partida para relembrar outros pares de outros textos da literatura portuguesa:

– Pedro e Inês (Os Lusíadas); – Simão e Teresa (Amor de Perdição); – Madalena e Manuel (Frei Luís de Sousa).

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Educação literária – as questões

1. Os Maias são um romance, ou seja, uma

narrativa complexa em todas as suas dimensões, incluindo a da intriga amorosa, que, de facto, se diversifica em várias intrigas amorosas.

Estas envolvem épocas e protagonistas diferentes, com consequências na forma de representar o senti-mento e a paixão.

1.1 A partir da leitura dos três textos acima e

lembrando a leitura integral do romance, escreva um texto expositivo em que desenvolva o seguinte tópico:

– A pluralidade de intrigas amorosas n’Os Maias, desde o destino fatal de Pedro à maneira do herói romântico, passando pela vivência de pendor mais materialista e realista do amor entre Carlos e Maria Eduarda e pela caricatura do adultério reinante, a que Ega não escapa.

Educação literária – as respostas

1.1 Uma das linhas de desenvolvimento da

com-plexa intriga d’Os Maias diz respeito à paixão amo-rosa. Tanto Pedro como Carlos polarizam em si o papel de homens apaixonados por belas mulheres. Todavia, os modos como os seus amores são lite-rariamente representados não coincidem entre si. Este facto deve -se ao espírito e ideais diferentes que reinam na época de cada um deles.

Pedro vive o seu amor por Maria Monforte como um absoluto que dá sentido à sua vida, como era pró-prio do Romantismo. Arrebatadamente, escreve -lhe cartas. O seu amor por ela muda -lhe a vida. Dá -lhe a força suficiente para enfrentar Afonso e desprezar os seus valores morais. De tal modo a paixão é para ele (um romântico) um ideal de vida, que, perante a traição, não resiste e suicida -se.

Carlos, pelo contrário, é a aposta de Afonso con-tra os malefícios do romantismo exacerbado que lhe matou o filho. Imbuído de uma visão realista e de

Referências

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