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Nem sempre amar é tudo (de Salma Ferraz): mas é preciso saber rir dessa verdade

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Academic year: 2021

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Nem sempre amar é tudo (de Salma Ferraz): mas é preciso saber rir dessa verdade

Christina Ramalho Universidade Federal do Sergipe No ensaio ―Sob o signo do humor e do drama: contos de Salma Ferraz‖, em que refleti sobre o livro de contos O ateu ambulante (2001) da escritora paranaense Salma Ferraz, ressaltei, entre outros, a capacidade que Salma tem de, reunindo ―humor, drama, tragicomédia, crônica, ironia, crítica à sociedade patriarcal, referências literárias diversas, algumas, inclusive, sob forma parodística‖ (2008, p.93), apresentar a leitores e leitoras uma representação da vida que toca simultaneamente o cotidiano palpável e o âmbito dos disfarces ficcionais. Naquela ocasião, vi em contos como ―A sacerdotisa de Baco‖, ―Rosa Cheira‖ e ―A felicidade é azul‖ um apelo imediato à simpatia do/a receptor/a, fruto do ritmo divertido e bem estruturado de cada texto, em que o convite à continuidade da leitura é inegável, tão curiosas e inusitadas são as ―cenas‖ que vão compondo os atos quase teatrais das narrativas.

Esses traços de estilo permaneceram em A ceia dos mortos (2007) e agora, com Nem sempre amar é tudo, definem a contista Salma Ferraz. Paranaense radicada há muitos anos em Florianópolis, Salma é Doutora em Literatura Portuguesa pela UNESP, Professora Associada de Literatura Portuguesa da UFSC, pesquisadora da área de Teopoética, especialista nas obras de Pessoa, Eça e Saramago, com muitos livros e artigos publicados, e contista premiada em diversas ocasiões. A trajetória como contista teve início, em livro, com Em nome do homem, de 1999, e terá vida longa, dada a criatividade da autora e o anúncio sobre Espelho Magro, ainda no prelo, feito na orelha de Nem sempre amar é tudo. Saborear os cinco contos de Nem

sempre amar é tudo tem, portanto, caráter metonímico, quando se sabe que,

no conjunto da obra ficcional autora, uma identidade própria foi sendo construída e permite hoje que se reconheça o ―estilo Salma Ferraz‖ de escrever contos. Vamos à experiência metonímica.

Irreverência é a primeira marca de Salma Ferraz, que, no entanto, sempre inova forma e conteúdo de modo a provocar em nós, leitoras e leitores, a expectativa e a surpresa. Desta vez, entretanto, ela provoca desde o título conclusivo, que não se pretende metafórico, porque atinge diretamente o estômago do romantismo: ―Nem sempre amar é tudo‖. E não para por aí. Logo, na página de abertura do livro, continua: ―Quase sempre é nada‖. Ou seja, opondo o nem sempre/tudo e o quase sempre/nada, a autora nos faz

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penetrar na temática do amor, considerada em seus extremos: plenitude e ausência.

Diante de tal contundência, que pensar de ―Nem sempre amar é tudo‖, ―Biscoitos‖, ―Efeito Melancia = Mulheres Frutas‖, ―Ruhe in Frieden!‖ e ―Valsando enquanto a morte não chega‖? No mínimo, que serão textos que sustentam o título-tese. Mas as primeiras páginas já romperão com essa expectativa. O que encontraremos não é um discurso preocupado em defender uma tese, mas uma saborosa mescla de relatos do cotidiano somados a engenhosos recursos ficcionais em que, tal como se assinalou acima, o surreal parece avizinhar-se da realidade e vice-versa. Híbridos, os textos navegam entre a crônica e o conto. Da voz narrativa que revela a prñpria inscrição da mulher, professora e ―ex-romântica‖ Salma Ferraz na realidade brasileira da ―Floripeia‖ ─ termo que Salma toma emprestado da poeta Catarinense Regina Carvalho ─ ao constante convite ao diálogo com supostas ―leitoras‖, os contos adquirem o tom da crônica e quase fazem crer que o que ali se apresenta são tão-somente revelações biográficas. Exemplo disso é ―Tenho um defeito inconfessável que sñ às leitoras confesso: adoro fuçar carteira, bolso e gavetas, de homens desconhecidos, é claro.‖, de ―Nem sempre amar é tudo‖. Todavia, incrementados com linguagem ora irreverente, ora sarcástica, ora mesmo poética, e consubstanciados por acontecimentos nada convencionais, os mesmos contos nos fazem esquecer a primeira pessoa que neles se havia revelado para penetrar nos mistérios das personagens que vão se desenhando nos acontecimentos narrados.

Dos neologismos bem-humorados à exploração irônica e às vezes sarcástica do vasto repertório verbal que envolve as relações amorosas, Salma nos arranca da estagnação e nos faz sentir mágoa, surpresa, pavor, desejo de vingança, êxtase e decepção, alcançando, assim, o desejado pacto entre autora e leitores/as. Termos e expressões como ―centrimetrossexual‖, ―o paulista das bolachas dinamarquesas‖, ―colorado das glñrias‖, ―passadonoia‖, ―‖bundocosmo‖, ―neobundas‖, ―bundalopithecus‖, ―egobunda‖, ―Lattes celestial‖, além de trechos em alemão inseridas em pontos cruciais do conto ―Kuhe in Frieden!‖, surpreendem pela facilidade com que Salma revoluciona o repertório verbal para engendrar o sentido das situações narradas. Para melhor retratar o aspecto linguagem e dimensionar o jogo que Salma faz com as palavras, cito um trechinho de ―Efeito Melancia = Mulheres Frutas‖: ―Ódio às bundas burguesas! Ódio às bundas pocotñs! Ódio às chinocas! Ódio a todas as bundas da Playboy! Ódio às bundas da Praia Mole! Ódio às bundas melancias! Ódio às tanajuras! Ódio ás trepadeiras bípedes! Ódio à bundarização do Brasil, na qual a mulher só vale pela bunda que carrega. Estava sofrendo de bundopatia crônica‖. Mas somente lendo os contos

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poder-se-á ter a dimensão desse recurso, que tem seu ápice no conto ―Biscoitos‖, quando surge a expressão ―LU FOREVER‖.

Sustentando a criatividade da linguagem, Salma usa ainda o hipertexto. Ao final de cada conto, encontramos a reprodução de uma obra de arte que, diretamente relacionada a um trecho do conto que aparece citado em itálico, estabelece um diálogo e nos faz repensar o sentido com que o tema ―amor‖ foi tratado no conto que acabamos de ler. As obras eleitas por Salma foram A suplicante, de Camille Claudel; Natureza Morta, de Claude Trouille;

viva la vida, de Frida Kahlo; Mulher na lareira e A valsa, também de Camille

Claudel. Claudel faz-se, assim, um referente explícito, pelas obras apresentadas, e implícito, por sua biografia, de que ―o amor nem sempre é tudo‖.

Ampliando o hipertexto, temos ainda extensas notas de rodapé, que corroboram a face híbrida do livro. Comentando as citações dos contos, traduzindo expressões em alemão, elucidando aspectos artísticos e históricos relembrados, Salma Ferraz imprime às notas de rodapé um caráter provocador, porque exige que leitoras e leitoras busquem essas notas e, dessa forma, sigam o roteiro criativo da autora. Em certo momento, a voz narrativa chega a dizer: ―Se você for uma mulher cérebro e não uma analfabunda, leia a nota de rodapé‖.

Outra presença curiosa, também utilizada na segunda edição de A

ceia dos mortos, é uma pergunta dirigida a leitores e leitoras, pedindo que

comentem o conto lido ou o tema em questão. Acompanhando a pergunta, a página oferece linhas em branco, que ficam à espera da intervenção criativa e crítica de um/a suposto/a leitor/a.

Em Nem sempre amar é tudo, o universo amoroso, ao contrário do que diz o título, é, sim, tudo, incluindo aí passeios de barco super românticos e picadas de terríveis micuins; homens saídos do Olimpo para caírem diretamente no Hades; mulheres que fazem ―abundar‖ em nñs o sentimento de injustiça; cenas carregadas de erotismo; Ottos detestáveis; entre outras picardias.

Em ―Nem sempre o amor é tudo‖, o drama é trágico, e a heroína, em primeira pessoa, assume a culpa trágica do erro de julgamento. Apesar do cenário poético, que liriciza a paisagem catarinense, e da presença sempre significativa das bruxas, que anunciam o apocalipse, o desfecho é surpreendente. E a suposta tese de que o amor ―quase sempre é nada‖ parece ganhar argumentos sólidos.

Já ―Biscoitos‖, centrado na personagem Aurora, subverte a lñgica anterior, elencando e caracterizando fracassadas experiências amorosas a partir do enfoque nas cismas e nos comportamentos patológicos quase

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sempre associados ao amor, o conto tem um clímax de grande irreverência que serve de contraponto às reconsiderações da personagem acerca do amor.

Em ―Efeito Melancia = Mulheres Frutas‖, o ensaístico ganha força, mas a argumentação nasce de situações reais e cômicas que revolucionam o ego e a autoestima feminina. O resultado é um manifesto que parece nascer espontaneamente da narrativa.

―Ruhe in Frieden!‖, recriando o cenário cultural da cidade de Pomerode, apresenta uma concepção arcaica de amor e de casamento, materializada no casal Otto e Gertrud. Gertrud personifica a mulher parideira idealizada pelas sociedades patriarcais sustentadas pela economia familiar. No entanto, as tramas do enredo vão revelando o quanto as máscaras sociais podem esconder verdades insuspeitadas.

Quando pensamos já termos apreendido o encaminhamento filosófico e literário desta nova composição de Salma, eis que encontramos ―Valsando enquanto a morte não chega‖ e recebemos o impacto de mais uma surpresa! O intenso lirismo impregnado nos acontecimentos narrados, as reflexões apresentadas sobre a inusitada relação entre amor e celibato e a aparição fulgurante da personagem Frei Ângelo constituem um todo do qual se sai bailando. Mas, só entrando no baile da leitura para saber!

A temática do amor, circunscrita, em Nem sempre o amor é tudo, às relações entre mulheres e homens, oscila entre pêndulos de pessimismo e otimismo, entre mea culpa(s) e ataques frontais à sociedade, entre o ser e o não ser da entrega amorosa. O que se recolhe, visitadas as cinco estações do amor/desamor, certamente dependerá do pacto que cada leitor ou leitora estabeleceu com o livro e com cada conto.

Se pensarmos, contudo, que tudo e nada, em lugar de extremos irreconciliáveis, podem ser ―farinha do mesmo saco‖, talvez saiamos da leitura deste livro repensando os próprios extremos do amor, os conceitos que a respeito dele criamos e, principalmente, os gestos do cotidiano que imaginamos serem motivados pelo amor, mas que podem esconder, isso sim, muitos sentimentos sobre os quais necessitamos refletir.

REFERÊNCIAS

FERRAZ, Salma. Nem sempre amar é tudo. Blumenau: Edifurb, 2012, 77 p. FERRAZ, Salma. Em nome do homem. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. FERRAZ, Salma. O ateu ambulante. 2ª. ed. Blumenau: Edifurb, 2004.

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FERRAZ, Salma. A ceia dos mortos. 2ª. ed. revisada. e ampliada. Blumenau: Edifurb, 2012.

RAMALHO, Christina. ―Sob o signo do humor e do drama: contos de Salma Ferraz . In: CUNHA, Helena Parente. Quem conta um conto. Estudos sobre contistas brasileiras estreantes nos anos 90 e 2000. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p. 93-120.

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