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MANA íí {{11): ): 107'107' MD, MD, 19919955
O MITO COMO HISTÓRIA:
O MITO COMO HISTÓRIA:
UM PROBLEMA DE TEMPO,
UM PROBLEMA DE TEMPO,
REALIDADE E OUTRAS QUESTÕES
REALIDADE E OUTRAS QUESTÕES
Joanna Overing * Joanna Overing *
Os Piar
Os Piaroa são apaixonoa são apaixon ados pados p ela hisela histórtória. Dizer ia. Dizer que que um povo que um povo que habhab itaita as fl
as florestas torestas tropicairopicais s tem um intem um in teresse intenteresse inten so pso p ela históriela história a é contrariaré contrariar "idéias geralm
"idéias geralm ente ente acac eitaeita s"1s"1, , Como os Como os povos amazônpovos amazôn icos apegicos apeg amam -se a-se a seus costumes
seus costumes esespecípecífificos e supocos e supo stamstam ente nente n ão ão dão muitdão muito valo valor ao or ao "pro"pro gresso", conclui-se que eles não têm interesse pela história e são, portan gresso", conclui-se que eles não têm interesse pela história e são, portan to, "a-históricos". Quando afirmo o contrário, não estou me referindo à to, "a-históricos". Quando afirmo o contrário, não estou me referindo à consciência hi
consciência histórstórica que os ica que os Piaroa porvPiaroa porv entura tenhentura tenh am am adquirido a partiradquirido a partir de suas interações com as instituições do Estado venezuelano no último de suas interações com as instituições do Estado venezuelano no último quarto de século. O interesse dos Piaroa pela história não é um fenôme quarto de século. O interesse dos Piaroa pela história não é um fenôme no re cente que possa ser atr ibuído à passage m de um a for ma de vida no re cente que possa ser atr ibuído à passage m de um a for ma de vida i n d í g e n
i n d í g e n a p a r a u ma p a r a u m a o u ta o u tr ar a, m, m o d e r n a o d e r n a e e h i sh i st ó rt ó ri ci ca , à a , à mm e d i d a q u e e d i d a q u e a u ma u m e n t ae n t a seu envolvimento com um Estado nacional e uma economia de mercado. seu envolvimento com um Estado nacional e uma economia de mercado. N
N ãão o ffoorraam m ssuu aas s inin ttee rraa çç õõ ee s s coco m m a a ssoo cc iiee dd aa dd e e iinn dd uu ssttrriiaa l l qq uu e e os os iinn icic iaia rraa mm na h
na h ististória, Aindaória, Ainda qquu ee ta tais cis contatontatos los lhes tenhahes tenha m apm ap resentadresentad o umo um a históa histó ria e uma historicidade específicas, antes dos mesmos os Piaroa não eram ria e uma historicidade específicas, antes dos mesmos os Piaroa não eram um "povo sem história". Na verdade, entretanto, decidimos se um povo é um "povo sem história". Na verdade, entretanto, decidimos se um povo é “histórico" ou "a-histórico" dependendo do conceito de história que ado “histórico" ou "a-histórico" dependendo do conceito de história que ado tamos.
tamos. E
Emm Society against the State,Society against the State, Clastres (1977:16) apresenta-nos uma Clastres (1977:16) apresenta-nos uma versão particularmente interessante da defesa da "a-historicidade" quan versão particularmente interessante da defesa da "a-historicidade" quan do efabora um modelo de poder político centrado em dois modos diferen do efabora um modelo de poder político centrado em dois modos diferen tes — o
tes — o coercicoercitivo e o tivo e o não-coercitivo. Cnão-coercitivo. C lastres parte lastres parte da premda prem issa de issa de que que oo p
p oo dd ee r r ppoolílítiticco o eenn ttrre e os os ppoovvoos s aamm aazzôô nn icic oo s s é é nn ããoo --ccooeerrccititiviv oo , , EE m m sseegg uu idid aa,, associa o poder político coercitivo àquelas sociedades em que o poder associa o poder político coercitivo àquelas sociedades em que o poder p
p roro vv éém m dd a a inin oovvaaçãçã o o sosocicialal. . SS eegguu nnddo o o o aauutoto r, r, "o "o pp oo dd eer r ppoolílítictic o o cocommo o coco erer --ção ou violência é a marca das sociedades
ção ou violência é a marca das sociedades históricas,históricas, ou seja, das socie ou seja, das socie dad
dad es es que que contêm em si contêm em si a causa da inovação, da mua causa da inovação, da mu dança, dança, da hisda histortoriei iei--dade" (Clastres 1977:16; ênfase do autor). Por outro lado, as sociedades dade" (Clastres 1977:16; ênfase do autor). Por outro lado, as sociedades ond
histó-10
10 88 O MITO COMO O MITO COMO HISTORIHISTORIAA
ri
ria (Clastres a (Clastres 1971977:7:16)16). Como faz . Como faz papa rte de srte de s ua argua arg umum enen tação tação a a idéia deidéia de que a inovação está na base da coerção política, os Piaroa teriam concor que a inovação está na base da coerção política, os Piaroa teriam concor dado
dado cocom elm ela, em parte, a, em parte, pelo menos no passado, ppelo menos no passado, p orém orém discordariam dódiscordariam dó veredicto — segundo o qual', por esse motivo, eles não teriam interessè veredicto — segundo o qual', por esse motivo, eles não teriam interessè p
peella a hhisistótóriria,a,
A mais famosa de todas as formulações da a-historicidade dos povos A mais famosa de todas as formulações da a-historicidade dos povos indígenas é a de Lévi-Strauss em
indígenas é a de Lévi-Strauss em The Savage Mindt The Savage Mindt onde ele estabelece onde ele estabelece
sua famosa
sua famosa distdistinçãinção o (mui(muitatas vezes ens vezes en tendida tendida de mde m odo equivocaodo equivocado) entredo) entre sociedades "quentes" e "frias" (Lévi-Strauss 1966:233; 1973). Ao estabe sociedades "quentes" e "frias" (Lévi-Strauss 1966:233; 1973). Ao estabe lecer esse contraste, o autor separa os povos dotados de história dos que lecer esse contraste, o autor separa os povos dotados de história dos que não a possuem. Ele argumenta que estes últimos deliberadamente subor não a possuem. Ele argumenta que estes últimos deliberadamente subor dinam a história ao sistema e à estrutura, e por causa dessa subordinação dinam a história ao sistema e à estrutura, e por causa dessa subordinação as
as sociedades osociedades o nde eles vinde eles vivem podem vem podem ser chamadser chamad as de as de "frias". "frias". Ele obserEle obser va que, ao
va que, ao contrário da nossa sociedacontrário da nossa socieda de de "q"q uu enen tete ” ” ((e e histórhistórica)ica), carac, carac teriteri zada pe
zada pe la crença na la crença na efieficácicácia do a do progressprogresso e pela neceo e pela nece ssidadssidad e e ávida deávida de mud
mud anças, a anças, a "sociedade f"sociedade friria" a" é obstinadamé obstinadam ente fiente fiel el a a um passado conum passado con cece bi
biddo o cocommo o uum m mm ooddeelo lo aatteemm ppoorraal l e e nnãão o cocommo o uumm a a eettaappa a do do pproro cceesssso o hhisis tórico. Lévi-Strauss afirma que as "sociedades frias" combinam o tempo tórico. Lévi-Strauss afirma que as "sociedades frias" combinam o tempo mít
míticico com o to com o tempemp o preso pres enteente ; ; assassim, para im, para elaelas, há us, há u mm a coexistência, ea coexistência, erhrh um "regime atemporal”, de seres mitológicos com seres humanos, que um "regime atemporal”, de seres mitológicos com seres humanos, que "viajam juntos pelo tempo" (Lévi-Strauss 1966:233). Essa atemporalidá-; "viajam juntos pelo tempo" (Lévi-Strauss 1966:233). Essa atemporalidá-; de, segundo ele, é um princípio que visa a
de, segundo ele, é um princípio que visa a eliminação da história,eliminação da história, de tal; de tal;
modo que os homens não podem ser outra coisa que não imitadores dè modo que os homens não podem ser outra coisa que não imitadores dè um mundo anterior composto de seres criadores (Lévi-Strauss 1966:236). um mundo anterior composto de seres criadores (Lévi-Strauss 1966:236). Marx defende posiç
Marx defende posição semão sem elhante quando elhante quando distdistingue, emingue, em Precapitalist Precapitalist E
Ecoco nnoommic ic FFoormrm atatíoíonns,s, d d uas visões da histuas visões da história radicalmeória radicalme nte diferentes aonte diferentes ao
longo do desenvo
longo do desenvo lvimento lvimento das fordas formações socmações sociaiaisis, Ele estabelece , Ele estabelece um conum con traste en
traste en tre, de um tre, de um ladlado, o compromiso, o compromisso das sociedaso das socieda des pré-capitalistásdes pré-capitalistás com a tradição, a comunidade e a história repetitiva, e, de outro, o valor com a tradição, a comunidade e a história repetitiva, e, de outro, o valor atribuído pelo
atribuído pelo capitalicapitalismsm o ao progresso o ao progresso e à histe à história cumória cum ulatiulativa. No casova. No caso daque
daque las, o las, o processo e o processo e o progresso são suboprogresso são subo rdinados rdinados à estrutura à estrutura e à cone à con tinuidade,
tinuidade,
É verdade que os Piaroa, e os povos amazônicos em geral, não cos É verdade que os Piaroa, e os povos amazônicos em geral, não cos tumam
tumam definidefinir a r a história shistória sociocial al huhu mm ana ana em teem termos de rmos de umum a sucessão evoãa sucessão evoã lucionãria de etapas. Tanto Lévi-Strauss quanto Marx têm razão quando lucionãria de etapas. Tanto Lévi-Strauss quanto Marx têm razão quando afirmam que esses povos não dariam valor a uma tal concepção. De fato) afirmam que esses povos não dariam valor a uma tal concepção. De fato) a vi
a visão piarosão piaro a a de sude su a a próppróp ria históriria história tem a tem umum a a característica característica " " invinvolutoluti- i-va". Segundo eles, todos os seres (inclusive os Piaroa) perderam, ao fina) va". Segundo eles, todos os seres (inclusive os Piaroa) perderam, ao fina) do tempo de criação, muitos dos poderes tecnológicos que haviam criado do tempo de criação, muitos dos poderes tecnológicos que haviam criado e adquirido antes, Na exegese dessa história realizada pelos
(lide-0 MITO COMO HISTÓRIA
0 MITO COMO HISTÓRIA 110099
res espe
res espe cialicialistas dos Pstas dos Piaiaroaroa), a per), a per da da desses poddesses pod eres teve um eres teve um efeefeititoo p poossii tivo
tivo sobre sobre o o desendesen volvimvolvim ento ulterior ento ulterior da vida social da vida social piaroa.piaroa. É É a nossa his- a nossa his-torici
toricidade dade que tenque ten de de a associa associar hisar históritória socia social a al a desenvolvimento tecndesenvolvimento tecn oo lógico, e em seguida a identificar ambos com o "progresso". Em lógico, e em seguida a identificar ambos com o "progresso". Em conse-qüência das associações feitas entre historicidade e progresso social e qüência das associações feitas entre historicidade e progresso social e tecnológico, as quais estão profundamente arraigadas no nosso pensa tecnológico, as quais estão profundamente arraigadas no nosso pensa m
m ento socento sociaial, pol, por um processo mr um processo m ental muitental muito simples passamos a ver o simples passamos a ver aqaq ueue les que não compartilham da nossa concepção muito específica de histo les que não compartilham da nossa concepção muito específica de histo ricidade
ricidade (q(que ue não passa de uma não passa de uma questão questão dada nossanossa história) como mem história) como mem b
broro s s dd e e ssoo cciieeddaa dd ees s eessttááttiiccaas s e e aa--hhiissttóórriiccaass. . TTeennddo o ffeeitito o eessssaas s oo bb ssee rrvv aa ções, certamente não surpreenderei o leitor ao afirmar que, a meu ver, é ções, certamente não surpreenderei o leitor ao afirmar que, a meu ver, é um eq
um eq uívoco rotular de uívoco rotular de "povo"povos sem história" s sem história" oos s povos amazônicos,povos amazônicos, O que vai n
O que vai nos levar a concluir se oos levar a concluir se os ams am eríndios seríndios se interessam e interessam pelapela história ou se não possuem tal interesse é apenas a definição de história história ou se não possuem tal interesse é apenas a definição de história que resolvermos aceitar, a deles ou a nossa, Quanto a esta questão, é mui que resolvermos aceitar, a deles ou a nossa, Quanto a esta questão, é mui to importante assumir uma postura relativista (modificada), como a de to importante assumir uma postura relativista (modificada), como a de Vernant (1982), para quem tipos diferentes de ordem cultural implicam Vernant (1982), para quem tipos diferentes de ordem cultural implicam p
p rráá ttiicc aas s hhisis tótó rricic aas s dd iiffeerreenn tteess. . OOuu, , coco mmo o oobbsseerrvva a SSaahhlilinns s eemm Is Is llaanndds s ooí í H
Hisistotoryry,, onde onde ele examele exam ina umina um a historia historicidade pcidade p olinésiolinésia muita muito especifo especificaica:: culturas diferentes, historicidades diferentes! (Sahlins 1985:X). Porém, culturas diferentes, historicidades diferentes! (Sahlins 1985:X). Porém, uma tal postura relativista tem suas ramificações. Por exemplo, o próprio uma tal postura relativista tem suas ramificações. Por exemplo, o próprio ato de afirmar a possibi
ato de afirmar a possibilidade de vlidade de v ariação nos modariação nos modos de produos de produ ção ção da hisda his tória tem conseqüências expressivas para a questão do tempo e sua tória tem conseqüências expressivas para a questão do tempo e sua con-ceituação. Segundo esta concepção, cada historicidade contém, de uma ceituação. Segundo esta concepção, cada historicidade contém, de uma forma ou de outra, uma noção de tempo que lhe é específica, A historici forma ou de outra, uma noção de tempo que lhe é específica, A historici dade que Clastres e Lévi-Strauss atribuem às "sociedades históricas" traz dade que Clastres e Lévi-Strauss atribuem às "sociedades históricas" traz em seu bojo nossa concepção familiar de tempo linear e progressivo. Para em seu bojo nossa concepção familiar de tempo linear e progressivo. Para esses doi
esses dois autores, tal como para s autores, tal como para Marx, a alta valoriMarx, a alta valorização dos aspezação dos aspe ctosctos lineares e progres
lineares e progressivos sivos do tdo temem po no pensampo no pensam ento mento m oderno toderno tem em salisaliênciaência soc
socialial, T, T ambamb ém o tempo social é viém o tempo social é visto costo como lineamo linea r e progressir e progressivo, vo, dondon de de aa inovação soc
inovação sociaial e a l e a mm udanudan ça serem ça serem encaradencarad as as cocomo a mo a própria essênprópria essên ciacia da história. Por outro lado, uma vez que aceitamos que os modos de pro da história. Por outro lado, uma vez que aceitamos que os modos de pro dução da história podem variar, segue-se que é possível predicar histó dução da história podem variar, segue-se que é possível predicar histó ria
rias específicas específicas s com base em conccom base em conc epções depções d iferentes do tiferentes do tempo. empo. Pode-se,Pode-se, então, explorar a importância do tempo como
então, explorar a importância do tempo como valor variávelvalor variável na criação na criação da historicidade. Assim, antes que se possa emitir um juízo válido a res da historicidade. Assim, antes que se possa emitir um juízo válido a res p
peeitit o o dde e uumm a a ""hhiissttoorriicciiddaaddee" " aamm aazzôônnicic aa, , ddeevv ee--sse e eexxaa mm iinn aar r ccoom m mm uuiitata atenção
atenção o o modo complexo como omodo complexo como os ameríndios vêern a s ameríndios vêern a relação relação enen tre tre hishis tória, tempo e processo social. O tempo, tal como a historicidade, tem seu tória, tempo e processo social. O tempo, tal como a historicidade, tem seu lado
1 1 0 O MITO COMO HISTÓRIA
Mitologia como realidade fantasma, ou: Existirá uma metafísica indígena?
Ao examinar a "história heróica" dos polinésios, Sahlins (1985:cap. 2) defende sua historicidade específica. Ele observa que ela é específica em parte por se r form ula da em um a co sm ologia peculiar à cultura polinésia. E através da m itologia polinésia que um estrangeiro conseg ue ter acesso a essa cosmologia, pois o mito é o gênero por meio do qual a cosmologia indígena se revela. E por intermédio do mito que os postulados referen tes ao universo se exprimem e se explicam. Os ciclos míticos abordam questões metafísicas básicas a respeito da história e do desenvolvimento dos tipos de coisas ou seres que há no mundo, e tam bém suas m odalida des de ser e relacionamentos. A historicidade polinésia torna-se ainda mais específica na medida em que se associa a uma teoria social que é característica do modo de vida polinésio. Assim, Sahlins (1985:cap. 2) demonstra, com relação aos polinésios, q ue tanto a mitologia/cosmologia
quanto a teoria social podem ser constitutivas de uma modalidade espe cífica de historicidade. P ode-se a rgu m entar de modo análogo com rela ção ao que designarei como a "história dos deuses falíveis" dos Píaroa. O fato de seus deuses serem falíveis e não heróicos é coerente com o ethos
da Amazônia, m ais igualitário que a teoria social polinésia, que envolve um conceito de hierarquia.
A análise feita por Sahlins da historicidade polinésia é, no sentido mais positivo, uma abordagem radical. Isto porque há na antropologia fortes preconceitos que, por vezes, tornam difícil para nós reconhecer tanto a historicidade do mito quanto a teoria e prática sociais que são
constitutivas do mesmo. Por exemplo, partimos do pressuposto de que o mito se opõe à história. S egun do nossa visão do mundo, a história diz re s peito a evento s veríd ic os que seguem um percurso linear e progressivo,
enq uan to os eventos da mitologia não passam de rea lidades fantasmas, as quais são relativamente pouco relevantes quanto a qualquer mundo real de ação e ex periência, Nossos próprios conceitos de rea lidade te n dem a fornecer o padrão com base ao qual exam inamos os conteúdos dos mitos, e é por esse motivo que boa parte da discussão geral sobre o mito gira em torno de questões que, de outro modo, seriam inexplicáveis. Assim, os. ev en tos míticos são co ntrapostos n ão ap en as à história, como também às descobertas científicas modernas referentes às propriedades físicas do universo. A base da confusão é o fato de que teorias da exis tência, cujo teor é essencialmente social, são contrastadas com teorias a:
O MITO COMO iITSTÓRiA
seu alcance quan to a seu propósito. Nã o adm ira, pois, que o evento m íti co, um a vez despido de su a significação social, moral e histórica, seja vis to como deficiente. Afirmo, porém, que o "problema" do mito não é uma
questão de deficiência, e sim de excesso.
Há um preconceito contra a mitologia particularm ente eviden te nos escritos de Lévi-Strauss, que nos volumes de suas M y th o lo g iq u e s a p r e
sen ta um estudo m agistral de sua estrutura, Em bora ele veja um a conti nu idad e entre o em preend ime nto da história e o da mitologia, não se d eve im agin ar que Lévi-Strauss esteja afirman do q ue o conteúdo d a mitologia deve ser levado a sério, nem por nós nem pelos povos indígenas. Na v er dade, ele susten ta não ter m uita confiança na história ocidental, e asse
ve ra que ela inevitav elm ente cria ficções (Lévi-Strauss 1966:242-243). Mas se o conteúdo da história (ocidental) não é muito bem-visto dentro do esq uem a ge ral lévi-straussiano, o que ele diz sobre os possíveis méri tos da mitologia é ainda mais crítico. No capítulo final de The Na ked Man,
ele conclui que "temos de nos res ign ar ao fato de que os mitos nad a nos dizem de instrutivo a respeito da ordem do mundo, a natureza da reali da de e a origem e o destino d a hum anid ade " (Lévi-Strauss 1981:639). De uma p erspectiva diferente da lévi-straussiana, podem os reformular o dile ma de m odo a pergu ntar: o que, ex atamen te, querem os incluir no mun do real? Porém, para Lévi-Strauss, que tem mais certezas quanto a essas questões, o mundo real é aquele que é revelado pelo empreendimento científico. Assim, para ele, os eventos apresentados pela mitologia são, em relação a esse mu ndo re al revelad o pe la ciência, irracionais e falsos, e portanto comparáveis "apenas à história menor, menos importante: a história dos cronistas mais obscuros" (Lévi-Strauss 1981:242-243).
A história que para L évi-Strauss seria um sab er mínimo é, pa ra os Píaroa, reple ta de saber. Como, pois, e nc arar contradições tão fortes entre os julgam entos dos inve stigadores ocidentais e os dos povos indígenas? Até que ponto e de que modo podemos levar a sério as conclusões dos Piaroa quanto à validade de seu próprio sistema de conhecimento? Basi camente, o que Lévi-Strauss está dizendo é que, ao menos quanto à mito logia, não devemos levar os julgam entos dos indígen as nem um pouco a
sério. Sua argu m entação base ia-se no pressupo sto de q ue a mitologia é irrelevante para aq uela realidade q;ue é conhecida e m ape ad a pelas ciên cias naturais e por nossa filosofia dá ciência. Porém, não seria de se es p e rar que se desse o contrário, um a Vez qu e todos concordam qu e n a m eta física ind ígen a muitas dás proposições básicas referentes às mod alidades de estar no mun do são incom patíveis com m uitas das proposições que são pressu po stas pelos biólogos e físicos modernos.
1 1 2 O MITO COMO HISTÓRIA
Do ponto de vista do cientista, os postulados indígenas a respeito da realidade são fantasmagóricos. Por exemplo: a idéia piaroa de que os ani mais vivem como seres humanos em seus lares primordiais do tempo míti co, d ebaixo da terra, certam ente seria um a afronta à sensibilidade cientí fica. O mesmo pode-se dizer da idéia de que os poderosos líderes piaroa
(os r u w a t u) têm o po de r de anda r no " tem po-a ntes" do passad o mítico,
ou a de que espíritos m onstruosos sem elhantes a ogros, com arm aduras de con quistadores espa nhó is, foram criados no tem po mítico para gu ar dar hoje os recursos da selva. Esses postulados sobre a realidade não são com patíveis com as teorias científicas refere ntes ao real. Se ja como for, as afirmativas de Lévi-Strauss a respeito da natureza do real implicam que existe uma única realidade, e que apenas a ciência pode revelá-la. Como o m undo qu e é aprese ntado pelos ciclos míticos é considerado fan tástico pelos câno nes dessa rea lidade, a m itologia dos povos ind ígen as é um equívoco. Como m uitos de seus postulados sobre a realidade se expri m em m edian te a ex ege se do mito, conclui-se, pois, qu e não se pode falar com prop riedade de um a metafísica indígena.
A visão unitária da realidade: o dilema materialista
Tal visão unitária da realidad e é sem elhante à qu e é exp ressa claramen te por Gell (1992:esp. 54-56) em seu recente estudo da metafísica do tem po em sua obra The An throp olog y oí Time. Segundo ele, o tempo linear e
progressiv o é u n ív ersalm en te o único modo de experimeutar o tempo e
também, ao que parece, de exprimi-lo. Gell ataca o relativismo cultural de D urkhe im e Lévi-Bruhl e as afirmações de antropólogos como Leach, Lévi-Strauss e R. Barnes, em suas análises de culturas "não-tecnológi-cas" (para em pre ga r o termo de Gell), no sentido de q ue os m em bros de tais culturas teriam concepções próprias e diversas do tempo — por exe m plo , tem p o cíclico, sin crônic o ou in verti d o (G ell 1992;c aps. 1, 3, 4 e 5).
Segundo Gell, tais autores dão a entender que os povos "não-tecnológi-cos" co nseg uiram criar postulados m etafísicos que pod em ter aplicação
geral, ao lado dos nossos, e que portanto são tão válidos quanto os nos
sos. Ele acusa Durkheim e outros relativistas culturais de estarem desse modo fazendo metafísica, o que não seria atribuição do cientista social. Para Gell (1992:55), a m etafísica deve p erm an ece r nas m ãos de filósofos e metafísicos ocidentais; e os antropólogos, quando analisam a diferença, devem limitar-se a descre ver as "crenças con tingentes" dos povos
indí-O M iTindí-O Cindí-OM indí-O HISTÓRIA 1 1 3
gen as — isto é, crenças q ue não teriam eleito sobre o temp o linear u n i versalm ente válido, nem sobre qu alque r outra categoria de uma m etafí sica materialista moderna, Quem não age assim está errado, pois dá a entender que uma outra metafísica é possível.
Assim, Gell (1992:55) faz uma distinção entre os “sistemas de cren ças contingentes" dos sujeitos da etnografia, que não são válidos, e as
“teses metafísicas racionalmente expostas" pelos filósofos ocidentais, “como as defend idas po r Kant em sua Crítica da Razão Pura", que são
válidas. Com relação a essa distinção, Gell afirma que as crenças que são culturalm ente relativas são con ting entes e dep end em das crenças mais gerais que têm a característica de ser universalmente verdadeiras com relação à experiência humana do mundo. Como, de acordo com Gell (1992:56), as crenças contingentes a respeito do mundo são por definição inválidas, elas tamb ém não dão nen hu m a contribuição à nossa com preen são (correta) da verdade, necessidade, lógica e tempo. Para ele, tais cren ças conting entes são "expressas, com preend idas e levadas à prática à luz de premissas lógico-metafísicas uniformes, porém implícitas, e apenas à
luz delas" (Gell 1992:56] ênfase minha). Para Gell, o tempo, por exem plo, “é inteiram ente unitário em todas as culturas" (Gell 1992:esp. 54).
Assim, ele argumenta que existe apenas uma metafísica do tempo váli da, a qual é absoluta e universalmente adotada — ainda que de modo implícito ou subconscieute. Gell conclui que a tarefa da metafísica é declarar verd ades a respeito do m undo: pode hav er "sistemas m etafísi cos ve rdad eiros" , m as não falsos. Os consid erado s falsos (do pon to de v is ta científico) não seriam metafísicos e sim con tingentes.
Gell afirma tamb ém qu e cabe ao antropólogo dizer ao nativo — o qual aceita um postulado falso — que ele está enganado. Segundo o autor, "o m ap a do m und o do sujeito etnográfico só po de ser avaliado (vis to tal como é) à luz do mundo ao qual ele supostamente se refere, que é o m undo real, e não um m undo im aginário que seria real se o m ap a do sujeito etnográfico fosse verdadeiro" (Gell 1992:324). Os inhames não dançam à noite; as borboletas não são feiticeiras, E o tempo tem um fluxo natural, linear, qu e não pod e ser alterado: não h á ritual que possa fazê-lo se comprimir, saltar para trás ou para a frente, Gell conclui que seria "pura con descendên cia" da parte do observador externo não criticar as ilusões do sujeito etnográfico. O observ ado r externo, pro sseg ue ele, é "deten tor de conhecim entos codificados [a respeito do m undo real] acu m ulado s po r meio de es tratég ias de pes qu isa o bje tiva s” (Gell 1992:325) as quais são "inacessíveis" aos sujeitos nativos, qu e "se limitam a m ani p u lar prem is sas cultu rais de m odo prático" (G ell 1992:325), O
observa-1 observa-1 4 O M i T O C O M O m S T Ó H I A
dor externo, ao con trário do nativo, vê-se po rtanto na posição de po der fazer uma crítica racional dessas premissas culturais b asea da nas desco berta s da ciência.
Gell defende uma descrição unitária da existência, e deste modo tam bém promove a pop ular filosofia do materialísmo, Deve-se observar que o materialismo, como qualquer outro sistema metafísico, afirma prin cípios fund am entais re feren tes à na turez a do m und o os quais têm força pre scritiva. Faz p arte do credo do m ateria lista a crença n a onic om petê n-cia das ciênn-cias naturais. Como explica Walsh (1967:303), o materialista vê o mundo como um imenso mecanismo, e comp reende tudo que acon tece como resultado de causas naturais, Todos os outros fenômenos, como
os que caracterizam a vida psicológica, social, religiosa ou moral, devem ser avaliados e com preendidos com base nessa perspectiva,
Mais um a vez nos vemos diante do grande divisor de ág uas d a teo ria ocidental: a distinção entre natu reza e cultura. Neste caso, a naturez a é vista como objetiva, mecânica e unitária, enquanto a tradição (por sua subjetividade e diversidade) é considerada não -natural, e portanto não-real. Esta visão de m undo materialista cria sérios problem as pa ra a antro polo gia . Com o observa S hw eder (1991:52-56) ao d efen d er um a "a n tro polo gia pós-nie tzscheana'', noss o campo in felizm ente adquir iu os atribu tos de uma realidade fantasma. Para esse autor, o dilema é o seguinte: cultura, tradição e sociedade passaram a ser vistas como coisas imaginá rias, sem nenhuma referência, portanto, a qualquer mnndo real. Ele observa que um a saída (entre muitas) ado tada pelos antropólogos para esc ap ar do dilema m aterialista é reduzir o cultural aos fatos ''concretos" do natu ra l (Shw eder 1991:56). É esta a saída ad ota da po r Gell. Tal soln-ção par te do pressuposto de que os demônios e os deuses não têm ne nh u m a relação com a realidade, enq nan to as leis do pens am ento (qne pe r tencem à natureza), por exemplo, são reais. Não admira, pois, que quase sempre haja uma divergência entre a avaliação dos fatos feita pelo mate rialista e a que é realizad a por alguém que pra tique a religião ou siga o credo m oral em questão.
Reduzir a cultnra a determ inante s ex ternos — ou, de outro ponto de vista (mas que dá no mesmo), ao imaginário — é um a m aneira de esq ui var-se de respo nd er à pergun ta: como devemos interp retar as afirmativas
das pessoas que m anifestam um a forte convicção de que deuses e dem ô nios não a pe nas existem como tam bém são seres dotados de eficácia? De modo geral, as pessoas não se convencem de que seus postulados de rea lidade são ilnsórios ou m eras m anifestações de falsa co nsciência2. Para elas, tais postulados (p, ex., quando um sogro fica zangado ele se
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forma em um a onça para atacar o genro) não apena s esclarecem a exp e riência, mas tam bém constituem um a forma de conhecimento do m undo. É quanto a este ponto, em particular, que a posição materialista atua no sentido contrário da tarefa da antropologia de co m preende r os julga m en tos de conhecimento feitos por pessoas que d efendem expressam ente prem is sas a re speito da exis tê ncia do m undo que são diferente s das m ate
rialistas.
O que fazemos com o realmente construído? Duas visões
Na intro dução de seu livro M im esis and Alt erity, Taussig (1993:XV) per gunta, em tom de brincadeira, por que motivo o que nos parece mais imp ortante na vida é construído — não é na da mais, na da m enos que "um construto social". Ele prossegu e: "Como seria bom se este real de ve rd a de se abrisse. Como eu queria f.,,j esta cumplicidade com a natureza da natureza! Mas quan to mais a quero, m ais me dou conta de que jam ais vou consegui-la. N em eu, nem você" (Taussig 1993:XVII). O antor deci de en tão exa minar o poder social do faz-de-conta, ou a realidade do rea l m ente construído através do qual todos nós somos obrigados a viver nos
sas vidas (Taussig 1993:IX). D esse modo, Tau ssig assu m e um a posição r quanto a uma discussão crucial na antropologia.
De sde o início, boa par te da discussão em antropologia gira em tor- é no da tenta tiva de resolver o dilema de como interp reta r a convicção das : pessoas de que denses, dem ônio s e espíritos exis te m de fato. Poré m, até
o momento, não há nen hum sinal de consenso a respeito de como en ten der esses "pressupostos de realidade fantasma", como Shweder os deno
mina ironicam ente, A ten dê nc ia é a cristalização e m d nas posições rígi-céric.iéÇ das, polarizadas e intransigentes, expressas cada vez mais em termos do
posiç ões extr em as de univ ersalism o e rela tivis m o cultnra l, Por exem plo , p ara S hw eder os antr opólo gos devem d esc arta r a idéia u ltr ap assad a de que existiria uma única realidade uniforme, e aceitar a coexistência de "mundos objetivos múltiplos". Em outras palavras, os deuses dos nativos são tão reais qnanto as verdades do físico (Shweder 1991:68-69). Um boro exemplo da posição oposta é a visão de CeII (1992:324-325), para quem cabe ao antropólogo realizar uma "crítica da cultura''. G elí simplesm ente não lev a a sério a visão dos nativos, e só ace ita como re alm ente reais as verdades dos físicos.
Pelo visto, voltamos à es taca zero. O n bem (1) afirmam os que o sujei to etnográfico, embora plenamente capaz de exercer ações práticas, é
O MITO COMO HISTÓRIA
inca pa z de dese nvolve r raciocínios filosóficos e prem issas culturais a res peito do m undo que seja m co rreia s; ou bem (2) suste nta m os que os pos tulados metafísicos locais a respeito da realidade (p. ex.: os deuses exis tem) deve m se r interpretad os do m e s m o m o d o que os da física; ambos
são projeções parciais e até certo ponto ima ginárias, e po rtanto não há porque diz er que um é m enos verd adeiro que o outro.
Não nos veriam os em um a situ ação tã o absurda se, a parti r do sécu lo XVII, a filosofia não tivesse com eçado a elim inar de se u cam po de in te resses todas as questões práticas, e juntamente com elas todo o particu lar, o local, o temporal. Costume, tradição, sociedade, palavras, canções, rituais — tudo isso passou a ser encara do com desc onfiança, a ser visto
como ilusão, em oposição ao mu ndo rea l e objetivo da na ture za física. O mundo h u m a n o é visto como irreal. É desse dilema q ue Taussig tenta
escapar, S hwe der tem toda razão quando afirma que o tema da antropo logia, tal como esta disciplina costuma ser concebida, consiste em postu lados de rea lidade fantasm a sustentados por outras pessoas. Todo aquele que d efende — ainda que com uma atitude m odesta — uma perspectiva m odernista é incapaz de respe itar a diversidade e a multiplicidade: tudo se reduz a construções sociais, a invenções d a tradição, e po rtanto a irrea-lidades.
Gell, ao rejeitar a m ultiplicidade em um gesto ca lculadam ente imo-desto, está seguindo um tema que, segundo Toulmín (1992:33-44), é comum na filosofia mod erna d esde De scartes. Este tem a é a afirmação da irrelevância da etnografia e da história para a investigação verdad ei ramente filosófica. Segundo se costuma afirmar, problemas que na ver dade são filosóficos devem ser expressos em termos que sejam ind ep en dente s de q ualq ue r situação histórica ou concreta, Em outras palavras, questões de epistemologia, filosofia natural e m etafísica devem ser m an tidas fora do alcance da an álise c o n te x t u a l , onde, por exemplo, é de se
espe rar que as exp eriências desta ou daq uela cu ltura sejam relevantes, Esta é a posição de Gell quando ele repreende seus colegas antropólogos por se m eterem a fazer m eta física. É claro que ele próprio está fa zendo metafísica qua ndo assume a posição categórica que defende. A m eu ver, ao;evidenc iar sua próp ria posição metafísica, G ell dá um passo ad m irá vel, na m edid a em q ue a maioria dos antropólogos não explicita seus pos tulados metafísicos contingentes, Buscando esta claridade, espero no decorrer deste texto explicitar meus pressupostos e reflexões a respeito dé tais questões, explicando, por exemplo, por que me sinto à vontade p a ra fa la r de um a m etafís ica — ou de um a ontologia ou cosm olo gia —
O MITO COMO HISTÓRIA 1 1 7
Como o temporal, o local e o prático foram expulsos da filosofia
Em sua ob ra recente Cosmopolis, Toulmin estabelece um con traste entre
os posicionamentos filosóficos dos séculos XVI e XVII. Ao fazê-lo, o autor diz muita coisa relevante sobre as atitudes presentes e passadas quanto à relação en tre o em pre en dim ento etnog ráfico e o filosófico. Toulmin afir ma tam bém que as realizações dos hum anistas do século XVI foram revo lucionárias o suficiente para que sejam colocadas, ao lado das realiza ções mais teóricas do século seguinte, como responsáveis pelo desenvol vimento do modernismo. Segundo ele, a criação do modernismo seguiu duas linhas, um a hum anista e a outra racionalista, Em bora não fosse ine vitável que elas se desenvolvessem como linhas mutuamente excluden-tes dentro do pensamento europeu, foi o que de fato ocorreu. Isto se deu devido ao estreitam ento e à descontextualização radicais que o correram
em bo a pa rte da filosofia seiscen tista — o que Toulmin (1992:17-20) vê mais como um a estratégia de defe sa contra-ren ascen tista do que como um gesto revolucionário.
Ev identemente, as discussões que se travam atualmen te no campo da an tropologia não são novas. No contexto da polêm ica em qu estão, a posiç ão relativ am ente p luralista de Taussig e S h w eder alin ha-se co m o clima intelectual do hum anism o qu inhentista, en qu anto a de Lévi-Strauss e Gell estão de acordo com a visão mais unitária do pensamento seiscen tista. Por volta do início do século XVII, houv e u m a acen tuad a m ud anç a da modéstia intelectual dos humanistas em relação ao compromisso dos seiscentistas com a busca da Certeza (Toulmin 1992:36-44). Como esta m uda nça é relevante p ara a atual discussão q ue se trava no seio da an tro polo gia com rela ção às discordância s quanto à avaliação — e po rtan to a
comp reensão e a com unicação — do conhecimento indígena, vale a p ena resum ir aqui a visão que Toulmin tem dessas épo cas no campo d a histó ria das idéias.
Segu ndo Toulmin, no século XVI, em que a atitud e ge ral era a de que "nad a do que é hum ano me é estranho", a etnografia fornecia m uni ção para o debate filosófico. O temperamento especulativo e teórico dos estudiosos renascentistas, observa o autor, "coexistia com o gosto pela v arie da de d a ex pe riênc ia co n cr eta 1' (Toulmin 1992:27). M on taign e, po r exemplo, argum entava que o m elhor era se dedicar a acum ular experiên cias tanto no mundo n atura l qüa nto no hum ano, bem como visões diver sas desses mu ndos, e nesse ínterim não pron un ciar julgam entos re fere n tes a questões de teoria geral. Assim, a reação de muitos humanistas lei gos (como Montaigne) aos relatos dos exploradores europeus foi a de
O MITO COMO HISTÓRIA
incluir as desco bertas de novas populações no cabe dal geral de dep oi mentos sobre a vida hum ana, de tal modo que houvesse lug ar no esq ue ma geral de conhecimentos para informações etnográficas. Segundo Toulmin (1992:27-28), o respeito desses estudiosos pelas possibilidades racionais da experiência h um ana, vivenciada por meio de exemplos con
cretos, é um dos m aiores méritos do human ismo re nasce ntista. Esse res peito pela div ersidade concre ta tinha im plicações para as possib ilidades
de criação de uma teoria abstrata. No projeto de construção de teorias, esses seguidores quinhentistas do ceticismo clássico impuseram limites às possibilidades de fazer generalizações com base na experiência, que lhes pa recia possivelm ente infinita. Por esse motivo, eles enc arava m com tolerância a existência de uma diversidade de posições referentes tanto às questões humanas quanto ao mundo natural. Para eles, as posições filosóficas específicas não pe rm item p rovar ne m refutaT na da (Toulmin
1992:29-30)4,
No século XVII, m uitas das colocações e dos intere sses m ais em an-cipadores dos hum anistas foram deixados d e lado. Por exemplo, tanto a etnografia quan to a história com eçaram a p erde r valor. No Dis cur so sobre o M é to d o , Descartes confessa que quando jovem sentia fascínio pela
etnografia e a história, mas explica que conseguiu deixar para trás o inte-Tesse por tais assuntos. Ca m inhando no sentido contrário ao do pe ns a m ento renasc entista, Descartes d e s v a lo riz o u as i d é ia s tradic ion ais em
favor de universais culturais, cujo sta tu s seria garantido pela "clareza e
distinguibilidade" que se man ifestariam para todos os pen sado res refle xivos (Toulmin 1992:32-33, 189), A tolerância e o pluralismo, típicos valo res humanistas do Renascimento (exemplificados pelos escritos de Mon-taigne), que previam a possibilidade de, por intermédio da discussão racional, os indivíduos chegarem ao menos a concordar civilizadamente que estavam em desacordo, tornou-se no século XVII uma opção intelec tual inaceitável (Toulmin 1992:55). Em um contexto de busca da Certeza, o pluralismo e a m ultiplicidade sofreram um a desvalorização a bsoluta. O pensam ento intele ctual europeu, antes m arc ado pelo in te resse nas ques
tões "tocais, temporais, p r á tic a s ", cada vez mais passou a adotar um a
visão exc 1usivarnen to "geral, atem po ral e te ór ica " (Toulmin 1992:36;
ênfases do autor).
Toulmin. vê uma ligação entre a expulsão categórica de todas as preoeupações prá ticas da filosofia e os distúrb io s sociais e políticos cre s
cente s do século XVII. O autor observa qu e, de ac ordo com estudos re ce n tes sobre a história socioeronômica do início do século XVII, a partir de 1610 generalizaram-se. os distúrbios sociais e o retrocesso. Nesse clima
O MITO COMO HISTÓRIA
de ex trema intranqüilidade, a busca da certeza con verteu-se em recurso político. No início do século , o confronto religioso en tre p ro testan te s e
católicos tornou-se altamente politizado, intensificando-se em toda a Europa e explodindo na violência brutal da Guerra dos Trinta Anos. Até certo ponto, a aceitação hum anista da incerteza, am biguidade e d iferen ça de opinião foi respon sabilizada pelo d esenvolvimento dessa intra nq üi lidade. E m um período de turbu lência, "o ceticismo filosófico toino u-se
m e n o s atraente, enquanto a certeza tornou-se mais atraente" (Toulmin
1992:71; ênfases do autor). Segundo Toulmin, o raciocínio era mais ou m enos o seguinte: "Se a incerteza, a am bigüid ade e a aceitação do p lu ralismo levaram na prática à intensificação da g uer ra religiosa, cheg ou a hora de descobrir um m é t o d o rac iona l de dem onstrar que uma dad a dou
trina filosófica, científica ou teológica é essencialmente correta ou errô ne a" (Toulmin 1992:55; ênfase do autor). Os filósofos pa ssa ram a julg ar irrelevante, dada a espécie de construção de teoria que lhes interessava, qu alquer tipo de conhecim ento prático que, po r sua próp ria natureza, não pudesse ser senão contextual. Assim, descartaram o oral, o específi co, o local e o tem poral. Nas p alav ras de Toulmin, "os a x i o m a s a b s t r a t o s e s t a v a m in, a d i v e r s i d a d e c o n c r e t a e s t a v a out" (Toulmin 1992:33; ênfases
do autor).
Até mesmo a ética passo u a ab strair das circunstâncias concretas. No R enascim ento , os filóso fos abo rdavam as questões m orais por m eio da aná lise de casos. Acreditava-se que o bom julgamen to moral se ba se a va no respeito às circunstâncias d etalha das de tipos específicos d e casos. Porém, a partir da década de 1650, os platônicos de Cambridge, por exemplo, passaram a tratar a ética como um campo de teoria g eral ab s trata, "divorciada dos problemas concretos da prática moral" (Toulmin
1992:31-32). O que é notável, do ponto de vista antropológico, é que a filosofia moral mo dern a tende a continu ar se interessan do po r princípios atemporais e universais de teoria ética, com base no pressuposto de que o Bom e o Justo, tal como a M ente e a M atéria, ob ed ecem a princípios que podem ser afirmados em termos gerais (Toulmin 1992). Agir de outra forma seria negar o s t a t u s da ética como filosofia, a qua l por definição se
transformou em um prog ram a descontextualizado, onde é necessário afir m ar os problemas como verdad eiros para qu alqu er contexto ou situação histórica.
Em bora a filosofia moral p retend a limitar seus interesses ao un iver sal, seu s t a t u s é o de um campo de estudos menor, ou meno s racional, do
qu e a epistem ologia. Isto po rqu e os cientistas do século XVII res tring i ram o próprio conceito de "racionalidade" a argumentos teóricos que
1 2 0 O M ITO COM O HISTÓRIA
atingissem um a c erteza qu ase m atemática {e é provavelm ente por isto que Gell, em sua análise da questão do tempo, restringe a discussão "metafísica" do tópico aos argumentos "racionais", e portanto formais, da filosofia mo dern a). Assim, pa ra o filósofo dog m ático, a física teórica seria um cam po p ara o estudo e a discussão racionais, mas não a ética, o social, o direito. Foi essa a transformação ocorrida na filosofia moderna: negar a idéia renascentista de que a compreensão da epistemologia envolve não apenas questões intelectuais, mas também questões morais (Toulmin 1992:41). Se a ciência moderna separou o fato do valor, a filoso fia m od erna fez o mesmo. De mu itas m aneiras, a filosofia tamb ém elimi nou do repertório de seus interesse s diversos aspectos do que significa viver como ser hum ano — um ser social e cultural.
A diversidade do certo e as versões conflitantes
N as ciências natu ra is hoje em dia, as discussões a re speito de quais m ode los da realidad e são ap ropriados vão de vento em popa. Segu ndo Toul min, a "m od ern ida de " nas ciências naturais, desenvo lvida a partir do racionalismo rígido e da visão u nitária d a na ture za prom ovidos pelos influentes cientistas e filósofos do século XVII, está "morta e enterrada" (Toulmin 1992:10). Os princípios e pressupostos que para Kant se aplica vam à ciência na tura l em gera l se revelaram, no final das contas, especí ficos da física newtoniana5. Nas ciências naturais, o desenvolvimento dos métodos sempre esteve associado à prática e à solução de problemas. Assim, como Toulmin (1992:10-11) observa, uma evolução constante das idéias e métodos m odernos dentro das ciências naturais tem dado origem a tod a um a nova geraç ão de idéias a respe ito do m étodo científico que escapam das críticas fatais dirigidas às concepções estreitas que os cien tistas do século XVII tinham dos métodos da ciência, inextricavelmente ligadas à sua busca da certeza absoluta. Sh w edei enfatiza que, se muitos aspectos do programa da ciência atual — que visa descobrir a realidade — são in ev it avelm en te subje tivos ou arbitrário s, isto não é m otivo para
ap ree ns ão (Shvvedor 1991:66),
Todo um setor influe nte da filosofia segu e o exem plo d as ciências naturais, de m odo que \ filosofia analítica, com base na observação da práti ca cientifica, conseguiu firmar o princípio de que não há motivos
p ara se crer na existência de princípios necessário s univ ers ais — fora das investigaçõ es p ura m en te formais —. senão com relação a um conjunto
O MITO COMO l(!STÍ)H!,\
específico de pressupostos6. Se Kant pr ess up un ha a existência de um ú ni co esqu em a conceituai fixo que teria de ser adotado por toda men te racio nal, para muitos dos filósofos que Shweder (1991:59) chama de "pós-posi-tivístas", o conhecimento depende da teoria. Para epistemólogos "pé-na-terra" como W ittgenstein, Quine, N elson Goodm an, I. Lakatos, M ary Hes-se e Paul Feyerab end, a idéia de que h á uma única realidade objetiva,
ou uma ú nica teoria da realidade a qu e todas as outras teorias po dem ser reduzida s, não faz mais sentido. A idéia de que o m undo objetivo pod e ser repre senta do por completo se for rep resen tado de um único ponto de vista não seria aceita por tais epistemólogos. Eles admitem uma plurali dade de conhecimentos, cada um dos quais só pod e oferecer um a visão
parcial, assim, o físico pode perfeitam ente trab alha r ora com "um mund o
de ondas", ora com "um mundo de partículas", conforme for mais ade quado a seus propósitos (Goodman 1984:278). Em segundo lugar, eles aceitam a idéia de que todas as teorias da realidade são, até certo ponto, atos de projeção imag inativa7. Em suma, há muito tempo que um elem en to interpretativo foi incorporado às concepções filosóficas da ciência enquanto atividade que busca a objetividade, como se percebe, por exemplo, nos textos filosóficos a respeito da utilização crítica da metáfora nas ciências n atura is15.
Mais ainda: não há por que sup or que uma postura de plu ralism o
metafísico resulte em "bagunça relativísta" ou "confusão filosófica", como poderíam argumen tar, em causa própria, os que se guem um a orien tação mais unitária. Em primeiro lugar, a metafísica é um campo de natu reza no tadam ente (ou lame ntavelm ente, dep end end o do ponto de vista)
especulativa, quer "nas mãos" do filósofo ocidental, quer nas do cosmó-logo indíge na. Os postulados metafísicos não são apriorísticos nem tam pouco têm b ase em píric a. Ele s necessariam e nte são defendidos com
argumentos retóricos e/ou lógicos; são esclarecedores e iluminadores^ porém — ta l como ocorre nas dis cussões lite rária s —, n un ca é possív el chegar a uma conclusão aparente, senão dentro da versão de mundo que está sendo apresen tada. Não existem dados absolutamente ne utros aos quais possamos recorrer pa ra a tacar ou defende r uma dada teoria m eta física 15, Com o o bse rva W alsh (1967), em m eta física qu ase tudo é disc utis vel; assim, não admira que haja tantas variedades diferentes da nossa; m etafísica ocidental; realismo, irrealismo, idealismo, m aterialism o, natu-; ralismo, racionalismo, relativismo, essencialismo, nominalismo etc. Como foi observado tanto por Wittgenstein quanto por Goodman (1978), há
diversas lingua gen s ou teorias (da ciência, da psicologia, das artes, da
122 O MITO COMO HISTÓRIA
sup or q ue é possíve l redu zi-las a uma só (p. ex., à física new ton iana j á fim de propo r a descrição definitiva do mundo . Como diz Goodm an a res peito da posição que ele próprio defende em Ways of Worldmaking, “pas
samos de uma verdade única e um mundo fixo e descoberto para uma diversidade de certezas e até mesmo versões ou mundos em formação conflitantes" (Goodman 1978:X).
Em sum a, m esmo dentro da nossa próp ria tradição filosófica, não existe uma metafísica única, em particular com respeito ao complexo e fascinante tema do tempo. Trata-se de uma área em que cada nova teo ria rapidamente substitui a anterior, No momento, os mais brilhantes cos-mólogos físicos estão gerando teorias do tempo — como a teoria das "on dulações" ["ripple" theory of time] — que, quanto aos postulados gerais,
parecem mais pró xim as à te oria am azônica dos m undos possív eis do que dos relatos unitários dos materialistas. Nesta teoria recente, temos uni versos pais e universos filhos, cada um existindo d entro de sua zon a de temp o específica, de vez em qu ando esb arrand o um no outro — o que gera caos geral, e talvez esplendor criativo.
En quan to a ciência e a filosofia há m uito tem po deixaram pa ra trás o compromisso estreito com a busca da certeza, tal como se desenvolveu através do racionalismo intransigente dos filósofos e cientistas do século XVlf, os conceitos que os autropólogos têm tanto dos métodos quanto da filosofia da ciência estão m uitas vezes ba stan te d esatualizado s, Não é raro en con trar visões ultrapas sad as da prática científica tanto entre os que criticam quanto entre os que defendem a metodologia científica10. Muitos antropólogos continuam desejando atingir o ideal positivista — ou seja, obter o que lhes parece ser o status de cientista de verdade den
tro da comunidade científica, ao ser capaz de desvelar a verdadeira rea
lidade — tal como faz o cientista11. Devido à forte tendência positivista que hã na antropologia, os antropólogos continuam a buscar a verd ad ei ra realidade a fim de atingir aquela cumplicidade com a natureza que tanto desejam. Isto leva muitos deles a desco nfiarem profu ndam ente do tema que estão estudando, que é, ao mesmo tempo, exatamente o tópico distintivo da antropologia: a tradição. Nosso tema reduz-se a meros "pos tulados de realidade im aginários" ou a crenças contingen tes (não-natu-rais), É essa situação irônica que leva Shweder (1991:cap. 1) a se julgar na o brigação de defe nde r o desenvolvimento de u ma antropologia "pós- posítiv is ta " e "pós-nietz scheana", a qual, uecessaria m ente , esta rá mais em harm onia com a prática e a teoria da ciência atual. .
o MITO COM O HISTÓRIA 1 23
A volta ao específico, o local e o temporal
Para Gell, a etnografia em n ad a ajud a a filosofia a resolver seus pro ble mas. Segu ndo ele, os antropólogos não devem env ered ar por esp ecu la ções metafísicas, nem mesmo involuntariamente. As questões que esse autor leva nta são sérias, e portanto precisam ser (mais um a vez) trazidas à baila. Na verdade, se ele estiver com a razão, muitos de nós estamos cometendo graves equívocos em nossas descrições das cosmologias e m etafísicas indígenas e dos conceitos ind ígena s de tempo, espaço etc. Porém a pergu nta p ermanece: até que ponto devemos levar a sério a crí tica de Gell, se tanto dentro da antropologia quanto fora dela há muitos que não concordam com esse autor quando ele afirma que o contexto deve ser eliminado? Assim, por exemplo, um antropólogo como Withers- poon sente -se perfeita m ente à vonta de para afirm ar que "os N avajo têm um a con tribnição significativa a da r ao estudo filosófico da lingua ge m e da arte, e à nossa com preensão das relações en tre fenômenos m entais e fenô m eno s físicos" (W ítherspoon 1977:12). Na filosofia, Ch arles T aylor (1986) apresenta seu projeto em Philosophical Papers como "antropolo
gia filosófica", enqu anto Toulmin, tam bém um destacado filósofo, ob ser va que agora, no final do século XX, não acreditamos mais que os estu dos de etnog rafia e história "não possam nos ensina r na da que seja inte lectualm ente relevante a respeito, por exemplo, da naturez a hum ana"
(Toulmin 1992:188), E afirma que há poucos ramos da filosofia que podem se dar ao luxo de ignorar as contribuições dessas disciplinas (Toulmiu
1992:189).
A inda no campo da filosofia, A lístair M aclntyre (1985) dedic a um livro inteiro , A íte r Virtue, à tarefa de demonstrar a importância da
cou-textua lização cultural e histórica dos problem as filosóficos. O auto r dá ênfase, particularmente (mas não exclusivamente), à ética, e vê os sécu los XVIII e XIX, m arcados pe la preo cup açã o com as gen eralizaçõ es em forma de lei e com a desc ontextua lizaçã o, como séculos ca racterizados por "um a form a curio sa de cegueira" do ponto de vis ta do d esenv olv i
mento moderno da teoria social (Maclntyre 1985:92). Maclntyre apela p ara a antr opolo gia e a his tó ria para lev antar no campo da filosofia d is
cussões sobre as diversas maneiras como os problemas morais são deba tidos e abord ado s nes te ou naq ue le contexto cu ltural e histórico12, S eg un do ele: "Uma m oralidade q ue n ão seja a m oralidade de algum a socieda de em particular, não existe em lugar algum" (Maclntyre 1985:265-266). Suas posições contra a universalidade e sua defesa da contextualização vão além das fronteiras da ética, estendendo-se também aos poderosos
1 2 4 O M ITO COM O HISTÓRIA
argumentos a respeito da verdade e racionalidade que os filósofos analí ticos utilizam tanto, os quais, se gu nd o ele, só pode m ser justificados d en tro do contexto de um gênero específico de investigação histórica. Cite mos uma p assagem de M aclntyre que resume be m sua posição;
''Assim como os princípios e pressupostos que para Kant se aplicavam à ciên cia natural se revelaram, no final das contas, específicos da física newtonia-na, assim também os princípios e pressupostos que Kant julgava se aplica rem à ética em geral terminaram se revelando específicos de uma moralida de em particular, uma versão secularizada do protestantismo que veio a constituir uma das bases do individualismo liber al moderno" (Maclntyre
1985:266).
Pode a filosofia abordar questões etnográficas?
Embora no campo da filosofia esteja havendo, sem dúvida, uma volta ao temporal, ao específico e ao local, cabe também à antropologia discutir a relevância do contexto para temas qu e até recentem ente sem pre foram encarad os, ao men os pelos filósofos, como pe rten cen tes ao âmbito da filo sofia. Trata-se de um a série de qu estões imp ortantes, tais como teorias da mente, matéria, espaço, tempo e mesmo moralidade. É o antropólogo — não o filósofo, n em m esm o o cientis ta político — que, como p a rte de sua rotina de trabalho , exp lora a m ultiplicidade , a d iversidade e o con texto com relação a tais temas. Até recentemente, com os escritos de filó sofos como Charles Taylor e Alistair Maclntyre, a filosofia moderna — por motivos históricos — tem desprezado os deta lh es etn ográ ficos e estu
dos de caso, e mesmo quando se interessa por eles não se aprofunda no assunto. Os que vêm discutindo em anos recentes a "questão da racion a lidade", por vezes apelam para a autoridade da etnografia, citando a famosa obra de Ev ans-Pritchard sobre a bruxaria entre os Azande. Porém, as obras de etnografia são pouco citadas pelos filósofos, e as afirmativas feitas por povos não-o cidentais a respeito do m und o em que vivem ou de seus sistemas éticos não aparecem com freqüência nos textos filosóficos. E o antropólogo que tenta entender os postulados não-ocidentais a res p eito d a re a lid a d e e os aspecto s c o n t e x t u a i s do direito, da política, da
m oralidade e da soc iedade. Como já afirmei em outra ocasião (Overing 1985a), a maioria do s fatos com qu e o etnóg rafo lida e stá explicitamenLe associad a a contextos e valores.
O MITO COMO HISTÓRIA
Ao contrário dos hu m anistas re nasc entistas, como M ontaigne , os filó sofos modernos ainda não tiveram seu interesse despertado para as modalidades e a p ro fu n d id a d e da d iversidade com que a literatura etno
gráfica pode contribuir para o debate filosófico. A maioria dos filósofos tampouco se interessa pelos tó picos abordado s p or muitos dos postulados
indíg ena s sobre a realidade, que tanto dizem respeito a que stões políti cas, sociais e morais quanto a atributos físicos do mundo. Nesse sentido, acho pouco realista da parte de Gell excluir os antropólogos das discus sões metafísicas, e injusto negar aos povos com culturas diferentes da nossa o direito de ter suas metafísicas e s p e c í f i c a s . Somente quando os
filósofos começarem a discutir as implicações das descrições etnográficas (dando atenção ao todo, e não apenas a fragmentos), como as apresenta das por Witherspoon (1977) em sua magnífica descrição da metafísica navajo em sua obra L a n g u a g e a nd A rt in th e N a v a j o U niverse, que tais
colocações poderão ser abordadas de modo apropriado. Nesse ínterim, é o antropólogo q ue deve se esforçar, tanto qua nto possível, no sen tido de de screv er o que as outras pessoa s dizem a respeito do m undo, e de q ue modo agem nele. Por exemplo, em muitos contextos, na conversação coti
dian a entre os Piaroa, o temp o não é tratado como linear e progressivo. C abe a nós, no mínimo, cha m ar a atenção pa ra a possível relevâ ncia de tais aspectos das metafísicas e práticas não-ocidentais para os interesses de nossos filósofos. Em bora e steja ha ven do u m a volta ao interesse pelo prático no cam po da filosofia, pro vavelm en te será graças aos esforços conscientes de nossa parte que as questões filosóficas serão reformula das de modo a incorporar o caso etnográfico,
A realidade do realmente construído
Gell tem razão em insistir que devemos ter cuidado quando dizemos que as afirmações das pessoa s têm e sta ou aqu ela implicação pa ra elas — em particular, quando nos referim os à relação entre o q ue as pessoas afir
mam e o modo como elas v i v e n c i a m o mundo. As afirmações das pessoas
têm ou não algum a influênc ia sobre o modo como elas de fato v i v e n c i a m
o mundo? Se têm, que tipo de influência? São perguntas muito difíceis de respond er. Porém, a m esma ca utela deve ser exercida tanto pelos ch a m ados "relativistas culturais", qu anto por aque les que, como o próprio Gell, de fen de m um a visão m ais unitária. Assim, por exem plo, seria um erro pressu por que, q uand o as pessoas fazem afirmações a respeito do
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m undo elas não estão em harm onia com os postulados de realidade de um m etafísico kan tiano, ou com os do físico ou biólogo m odernos, um a vez que não há n en h u m a correlação entre tais afirmativas e o modo como
as pessoas v ivenciam o mu ndo na v ida cotidiana.
Tome-se c o m o exemplo a questão da relação entre alguns dos pos
tulados dos Piaroa a respeito da realidade e o modo como eles vivenciam essa realidad e. Os Piaroa sustentam (primeiro postulado de realidade) que os animais eram/são hum anos no “tem po-an tes" dos eventos míti cos. S ustentam tam bém (segundo postulado d e realidade) q ue os animais só vivem na selva hoje porque seus ruw atu (xamãs especialistas) tra ns
formam os seres humanos do "tempo-antes" (que agora vivem com seus pais prim ord ia is so b a terra) em anim ais e em seguida os transferem para a superfície da terra, para a selva. Portanto, a ingestão de carne animal é considerada um ato de canibalismo, e os Piaroa n ã o c o m e m carne que
não ten h a sofrido uma transformação, desta vez da forma animal para a vegetal (terceiro postulado de realidade), realizada pelos ruw atu. Os ruw atu realizam ambas as transformações — de seres humanos em ani
mais e de animais em vegetais — através de sua melopéia ritualística, à noite. Os Piaroa me informaram — não sem um toque de hum or irônico — que n a verdad e eles eram vegeta rianos. De fato, o term o genérico que em preg am p ara de sign ar alimento é "comida vegetal" (fcwawa). Por fim (quarto postulado de realidade), eles afirmam que adoeceríam se comes sem carne q ue n ão tivesse sido transformada em b atata.
O qu e pod e o antropólogo dizer a respeito da relação en tre tais po s tulados e o modo piaroa de v i v e n c i a r o m undo? Em prim eiro lugar, não
podem os p ressu p o r que não haja nenhum a rela ção entr e as duas coisas. Por mais qu e qu eiramo s a cred itar que os Piaroa vivenciam o m undo do mesmo modo que nós — e a meu ver eles de fato têm muitíssimas expe riências em comum conosco —, não podemos partir desse pressuposto e che gar à conclusão de q ue os Piaroa não acreditam no que dizem. Então,
como diferenciar o que eles d ize m ser sua vivên cia do que eles nã o viven
ciam, embora afirmem o contrário? Por exemplo, quando um Piaroa diz que está na v e r d a d e comendo uma batata (ou, em um outro nível, um ser
hum ano), se o que ele está comendo para mim tem tod a a a pa rên cia e o sa bo r de carne de caititu, o que significa v i v e n c i a r? Como se dá a articu
lação en tre o físico e o conceituai? Eis um e nigm a par a o qu al não tenho nenhuma resposta.
O que a mim, como antropóloga, cabe d em onstrar é de qu e modo os postu la dos que enum erei acim a (q ue era m consta nte m ente e de diversas-formas reafirmad os pelos Piaroa que con heci como verd ade s a respeito.
O MITO COM O HISTÓRIA 1 2 7
do mundo) se relacionam com atos específicos do cotidiano dos Piaroa. Recapitulando, os quatro postulados são: (1) os animais que vemos na sel va eram, e ainda são, seres humanos no "tempo-antes" dos eventos míti cos; (2) os anim ais só po de m p ov oa r a selva se o n i w a n g ( x a m õ } os evo
car de seus lares hum anos sub terrâne os e atribuir-lhes formas animais; (3) os animais sofrem em segu ida um a outra transformação re alizada pelo
ru wang, para a form a vegetal, ap ós a qual os membros de sua com unid a
de podem comê-los; e (4) se um Piaroa comer carne que não tiver sido transformada em vegetal, ele adoecerá. As articulações entre estes qua tro postulados e a prática cotidiana são surpreendentemente numerosas:
os postulados estão relacionados à program ação das atividades do dia-a-dia, aos hábitos de caça e consumo, às práticas comerciais, às estruturas gramaticais, às explicações das doenças, à vida política, às normas de propriedade e a in úm eras outras áreas da esfera cotidiana, inclusiv e aos
rituais diários, Ao apo ntar para essas articulações, estou tam bém m os trando que os postulados têm de fato um a relação concreta com as prá ti
cas dos Piaroa e — por intermédio delas — com o modo como eles viven-ciam a realidade. Além disso, na comunidade em que morei, as pessoas passavam boa parte do tem po agin do em conform idade com esse s postu
lados, Limitar-me-ei aqui a alguns exemplos óbvios que dizem respeito ao planejamento e à preparação da caça e do consumo de animais,
Todas as noites, o líder r u w a n g realizava um demorado ritual cujo
objetivo era transformar a carne animal da caça em alim ento vegetal, mais saudável; todos os homens da comunidade participavam como coro, du rante m uitas horas de m elopéia. O ritual ocorria den tro da habitação
coletiva [ c o m m u n a l h o u se], de modo que as mulheres e as crianças
ouviam pelo menos duas horas de cantoria antes de dormir, Todas as manhãs, todos os mem bros da com unidade be biam a água ou o mel sobre
o qual o ru w a n g havia pronunciado intermitentemente, durante o ritual
noturno, as palavras protetoras de seu encantamen to. Quando enc on tra vam algum animal na floresta, não o caçavam se o ritual específico para
a espécie em questão não tivesse sido realizado. Somente depois que o
ru w a n g cantava para pro teger os mem bros de sua comunidade dos peri
gos daquele animal em particular, e depois que todos bebiam suas pala vras, é que o animal era caçado. Normalmente, □ ru w a n g tomava o cui
dado de planejar seu ritual de modo a prever as espécies que deveríam ser encontradas na selva naquela época do ano, mas nem sempre isso se dava. Por exemplo, uma vez, durante minha estada entre os Piaroa, umas crianças que se em brenharam na m ata encontraram inespe radam ente alguns tatus, m as só foi enviada um a exp edição de caça pa ra pe ga r os