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Anemia Falciforme e Rim

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Academic year: 2021

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Anemia falciforme e Rim

1 Introdução

A anemia falciforme é a doença hematológica hereditária mais frequente no mundo, caracterizada como uma hemoglobinopatia autossômica recessiva. Foi reconhecida primeiramente na África Ocidental, onde a alta prevalência de hemoglobina S (HbS) nesta região representou, provavelmente, um benefício de sobrevida, uma vez que a presença do traço protege contra a malária. Entretanto, ela passou a apresentar um problema de saúde por todo mundo, porque a HbS se espalhou por toda África, em torno do Mediterrâneo, Oriente Médio, Índia, América do Norte e América do Sul 1.

Segundo o Ministério da Saúde do Brasil, o gene pode ser encontrado com frequência de 2% a 6% nas regiões do país, aumentando para 6% a 10% na população afrodescendente brasileira. No Nordeste do Brasil, a prevalência do gene é de 3%, chegando a 5,5% no estado da Bahia. Em Pernambuco estima-se uma prevalência de 3,5%, segundo estudo realizado em maternidades públicas do estado 2.

O gene da hemoglobina falciforme (hemoglobina S ou HbS) resulta da substituição da glutamina normal por valina, na sexta posição da subunidade

β-Anemia Falciforme e Rim

Kátia Cronemberger Sousa

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globina, alterando assim a configuração da molécula de hemoglobina e aumentando a aglutinação dessas moléculas durante hipóxia celular ou tecidual, desidratação ou estresse oxidativo. Essa aglutinação diminui a elasticidade dos eritrócitos e pode distorcer a sua forma para uma característica de foice, resultando em sua destruição prematura (hemólise) e episódios vaso-oclusivos frequentes e disseminados, com subsequente lesão dos órgãos de forma aguda ou crônica 1,3.

A doença falciforme (DF) ocorre em homozigotos para a HbS ou em heterozigotos quando a HbS coexiste com outra hemoglobina anormal (hemoglobina C, cadeias β da talassemia). O traço falciforme ocorre nos heterozigotos para HbS, ou seja, quando a outra molécula de HbS é normal3.

A importância de se estudar o tema é devido a baixa expectativa de vida nos portadores de anemia falciforme, sobretudo nos pacientes com doença sintomática, apesar da sobrevida de crianças até os 20 anos de idade ter melhorado nas últimas décadas. Além disso, doença falciforme (DF) gera nefropatia falciforme (NF) em 14% dos casos, aumentando ainda mais a mortalidade desses pacientes1.

Pacientes com DF associados a quaisquer fatores de risco como: hipertensão, proteinúria de alcance nefrótico, hematúria, anemia grave e hiperfiltração, apresentam maior probabilidade de evoluir para doença renal crônica (DRC) 4.

2 Fisiopatologia

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O fator fisiopatológico condutor é a polimerização de HbS. A mutação das cadeias de β-globina da molécula HbS tende a cristalizar-se formando unidades de polímeros quando privadas de oxigênio. A polimerização distorce a arquitetura e muda o formato dos glóbulos vermelhos, aumentando sua avidez e causando falcização. A polimerização é dinâmica e depende de três variáveis independentes: o grau de hipóxia celular, a concentração intracelular de hemoglobina e a presença ou ausência de hemoglobina fetal (HbF).

O principal determinante da severidade da doença é a taxa e a extensão da polimerização da HbS, que conduz os dois principais processos fisiopatológicos: a vaso-oclusão com lesões de isquemia – reperfusão e a anemia hemolítica 1,3.

A vaso-oclusão ocorre em todos os pacientes, muitas vezes desencadeada por inflamação e, tipicamente, encontrada em estados clínicos de infecção, hipóxia, hipovolemia, hipotermia, acidose e hiperosmolaridade. A vaso-oclusão é provavelmente causada pela dinâmica interação “adesiva” endotélio- leucócito-eritrócito nas obstruções das vênulas pós-capilares e pré-capilares por hemácias rígidas e deformadas. As oclusões microvasculares episódicas e a decorrente isquemia podem ser interrompidas pela restauração do fluxo sanguíneo e reperfusão, que promovem ainda mais estresse inflamatório e lesão tecidual 1.

Mostrou-se recentemente, que a hemólise contribui para o desenvolvimento da vasculopatia progressiva, caracterizada pela disfunção endotelial e alterações proliferativas da íntima e na musculatura lisa dos vasos sanguíneos. O grau de hemólise está associado ao desenvolvimento de

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hipertensão pulmonar em doença falciforme. Um importante papel é atribuído a hemoglobina livre, que inativa o óxido nítrico e produz espécies reativas de oxigênio. Esses dois fatores podem contribuir para a hipercoagulabilidade e a vasculopatia 3.

• Nefropatia falciforme (NF)

A DF altera substancialmente a estrutura e função renal, tais alterações ocorre pela complexa fisiopatologia vascular. A medula renal é particularmente sensível aos efeitos da hipóxia por causa de sua alta taxa de consumo de oxigênio.

A medula renal é relativamente hipoxêmica e hiperosmótica, com viscosidade sanguínea aumentada na circulação medular e fluxo de sangue medular lento, levando a dilatação e a congestão dos vasos retos em condições de hipoxia. Esse ambiente, facilita a falcização dos eritrócitos, a formação de microtrombos intravasculares e a obstrução do fluxo de sangue através dos vasos retos. Tal fisiopatologia medular, em exames histopatológicos, leva a edema, cicatrizes focais e fibrose intersticial, resultando em atrofia tubular 4,5.

O infarto isquêmico nos vasos retos, provoca, por vezes, necrose de papila. Verificou-se que o defeito de concentração é reversível em crianças quando a falcização é prevenida com múltiplas transfusões com concentrado de hemácias, mas torna-se irreversível com a progressão da idade. Os adultos com DF não conseguem a concentração de urina acima de 450mOsm/kgH2O 6,7.

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Com a isquemia medular, os pacientes com DF evoluem com aumento na liberação de prostaglandinas vasodilatadoras e aumento no fluxo sanguíneo renal (FSR), ocasionando o aumento na taxa de filtração glomerular (TFG). Tem sido sugerido, que a disfunção endotelial da hemólise pode induzir vasodilatação no córtex, como hiperfiltração e hipertrofia glomerular, em contraste com o predomínio de vaso-oclusão na medula 1,4.

Em pacientes jovens com DF com função renal normal, os rins são aumentados e possuem uma superfície capsular lisa. Nas etapas iniciais da nefropatia falciforme, a biópsia renal mostra hipertrofia glomerular, depósitos de hemossiderina e áreas focais de hemorragia ou necrose, ambas as arteríolas aferentes e eferentes desses glomérulos podem estar dilatadas5.

Os pacientes adultos jovens com DF mostram um padrão distinto de disfunção glomerular, com prejuízo na permeabilidade seletiva glomerular, aumento do coeficiente de ultrafiltração, hiperfiltração glomerular e proteinúria. Com o tempo, achados histológicos renais na DF incluem, proliferação mesangial, espessamento e duplicação da membrana glomerular, glomerulosclerose, deposição tubular de ferro, congestão dos vasos retos, edema e inflamação tubulointersticial e fibrose 4,5.

P a d r ã o h i s t o l ó g i c o m a i s c o m u m d e s e r e n c o n t r a d o é a glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF) do tipo perihilar e menos frequentemente, a glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP) com presença de expansão mesangial e duplicação da membrana, ou seja, como achado isolado ou em associação com GESF. Foi proposto que esta forma de GNMP é causada por glóbulos vermelhos fragmentados alojados em loops capilares isolados e fagocitados pelas células mesangiais, estimulando a

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expansão do mesângio e a deposição de uma nova membrana basal. A ausência particular de complexos imunes e de depósitos eletrodensos diferencia esta da GNMP idiopática. Outra variante mais rara de NF é a microangiopatia trombótica e na avaliação da imunoflorescência, a presença de reagentes imunes são geralmente considerados inespecíficos 1,4,5.

A microscopia de imunofluorescência em pacientes com GESF demonstrou coloração irregular para IgM e C3 em áreas de esclerose, e lesões de GNMP demonstram na parede de capilares coloração para IgG, IgM, IgA, C3 e C1q. Na Microscopia eletrônica de glomérulos, em pacientes com NF com proteinúria ou síndrome nefrótica, visualiza-se o apagamento dos processos podocitários, com lesões ocasionais da parede capilar, geralmente associada a interposições mesangiais parciais ou completas 5.

3 Manifestações clínicas da nefropatia falciforme

• Hematúria

A hematúria está entre as manifestações renais mais comuns da NF, podendo apresentar-se como hematúria microscópica ou macroscópica. A hematúria reflete a congestão capilar, especialmente nos vasos medulares, com extravasamento de hemácias para o lúmen tubular.

Além disso, existe a possibilidade da hematúria ter origem no rim esquerdo, pelo chamado fenômeno do nutcracker, onde a compressão da veia renal esquerda entre a aorta e a artéria mesentérica superior leva ao aumento

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da pressão sanguínea na veia, aumentando assim a anoxia relativa na medula renal, o que promove a crise de falcização com dor e hematúria1.

A hematúria também pode refletir a presença de necrose papilar renal causada por vaso-oclusão nos vasos retos ou uso frequente de analgésicos para dor óssea, como antiinflamatórios não hormonais. Além de hematúria indolor com achados radiográficos assintomáticos, a necrose papilar pode levar a obstrução e infecção do trato urinário, bem como, dor intensa em flanco e febre.


Em casos raros, a hematúria é causada por carcinoma medular renal, um tumor invasivo local de crescimento rápido, que geralmente se apresenta nas primeiras décadas e pode causar morte dentro de 2 anos do diagnóstico, sendo mais comum em traço falciforme que na DF. Essa neoplasia pode apresentar-se com hematúria, dor, massa renal ou sintomas constitucionais. Sua patogênese é essencialmente desconhecida 8.

• Infecção de trato urinário

Indivíduos com DF têm maior suscetibilidade a infecções bacterianas. Além da imunidade diminuída resultante da autoesplenectomia, há deficiências na opsonização por anticorpos que predispõe a infecções bacterianas. Os organismos mais comumente isolados incluem E. coli , espécies de Klebsiella e outras enterobacterias gram-negativas 1.

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A proteinúria está diretamente relacionada com a idade e inversamente relacionada com os níveis de hemoglobina. Pacientes quando avaliados com microalbuminúria (30-300 mg/g de creatinina) ou macroalbuminúria (> 300 mg/ g de creatinina), a proteinúria ocorre em até 27% dos pacientes nas três primeiras décadas, e em até 68% dos pacientes mais velhos 1,9.

A síndrome nefrótica, segundo estimativa, ocorre em 4% dos pacientes com anemia falciforme. O desenvolvimento da DRC parece praticamente inevitável, uma vez que o paciente desenvolva síndrome nefrótica 9 .

Estudos recentes, sugerem considerar biopsia renal em início agudo de síndrome nefrótica 5.

• Disfunção na concentração da urina e acidose tubular

Uma deficiência na capacidade de concentração urinária, levando a nocturia e poliúria, é um achado precoce e universal na DF e é menos grave e ocorre mais tarde no curso de pacientes com traço falciforme. O edema nos vasos retos interfere, presumivelmente, com a troca em contracorrente na medula interna, levando assim à diminuição da reabsorção de água livre. Este defeito é reversível por transfusões de sangue com idade inferior a 10 anos, mas é irreversível em pacientes mais idosos. O efeito líquido é que a osmolalidade urinária máxima aos 10 anos é de apenas 400 a 450 mosmol/kg, em comparação com 900 a 1200 mosmol / kg em indivíduos sem doença falciforme 6,10.


No entanto, tanto a geração de hormônio antidiurético quanto a capacidade de diluição urinária permanecem inalterados em pacientes com

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doença falciforme. A preservação da capacidade normal de diluição urinária é resultado da função de reabsorção intacta dos loops superficiais da alça de Henle dos nefróns corticais, que são fornecidos por capilares peritubulares e não pelos vasos retos medulares afetados 7,8.

A diminuição da secreção de hidrogênio distal e de potássio pode levar a uma forma incompleta de acidose tubular renal distal, que pode estar associada à hipercalemia aldosterona-independente 10,11. Embora o mecanismo

exato não esteja claro, a disfunção medular por redução de fluxo sangüíneo e hipóxia podem levar a energia insuficiente para manter o íon hidrogênio e os gradientes eletroquímicos ao longo dos dutos coletores. No entanto, estas deficiências são geralmente ligeiras e tornam-se clinicamente aparentes apenas se houver um factor de complicação, tal como aumento de carga de potássio ou de ácido, desidratação ou durante a rabdomiólise.

Por razões que não são claras, a função tubular proximal é supranormal na DF. Isto pode manifestar-se tanto pela hiperfosfatemia (devido ao aumento da reabsorção de fosfato), aumento da secreção de ácido úrico, assim como, pela elevação da depuração da creatinina (devido à secreção aumentada de creatinina) em relação à verdadeira taxa de filtração glomerular (TFG). A cistatina C sérica pode ser um indicador mais sensível do declínio renal em comparação com a creatinina sérica 11.

4 Rastreio

Pacientes com DF com idade de cinco anos ou mais, devem ter a função renal avaliada a cada quatro ou seis meses. Adultos maiores de 18 anos são

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examinados a cada dois ou três meses. Alguns indivíduos devem ser rastreados com mais freqüência, como aqueles que recebem terapia com quelantes de ferro8.

A avaliação para todos os pacientes inclui:

• Clearance de creatinina urinário para quantificar função renal • Amostra isolada de urina 1 com avaliação de proteína/creatinina.

Indivíduos que tiverem diminuição de TFG <60 mL / min / 1,73 m2, hematúria, ou macroalbuminúria, devem ser avaliados pelo nefrologista. Na presença de hematúria, é indicado realização de TC de abdome para investigação de cálculos, má formação vascular e carcinoma medular.

5 Tratamento

O tratamento e a recuperação da função renal dependem do processo patológico e específico subjacente. A acidose metabólica pode ser proeminente e deve ser corrigida com bicarbonato de sódio. Pacientes com infecção, depleção de volume e hematúria, devem ter reposição volêmica e investigação com correção das causas precipitantes 1.

A progressão para a DRT é muitas vezes devido a progressão da proteinúria, piora da anemia e / ou aparecimento de Hipertensão arterial. Para controle da microalbuminúria, existem alguns estudos que demonstram o benefício da renoproteção com IECA e BRA, mesmo com normotensão 9,12.

Em alguns trabalhos, como o randomizado de Laurin e colaboradores, a hidroxiureia, indicada em pacientes com mais de 3 episódios de dor óssea ao

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ano, ou síndrome torácica ou anemia grave, foi associada a uma prevalência significativamente mais baixa de albuminúria e progressão para DRC 12.

Referências

1. Johnson RJ, Feehally J, Floege J (eds). Comprehensive Clinical Nephology, 5thed. Elsevier: Philadelphia, United States, 2014, pp 601 - 612.

2. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde da População Negra: Uma Questão de Equidade. Brasília. 2001. 14p.

3. Falk RJ et al. Sickle Cell Disease: Basic Principles and Clinical Practice. New York: Raven Press; 1994. pp 673–680.

4. Nath KA, Hebbel RP. Sickle cell disease: renal manifestations and mechanisms. Nat Rev Nephrol 2015;11(3): 161-171.

5. Ataga KI, Derebail VK. Archer DR. The glomerulopathy of sickle cell disease. Am J Hematol 2014; 89(9):907–914.

6. Scheinman JI. Sickle cell nephropathy. In: Pediatric Nephrology, Holliday M, Barratt TM, Avner ED (Eds), Williams and Wilkins, 1994. p.908.

7. Bayazit AK, Noyan A, Aldudak B et al. Renal function in children with sickle cell anemia. Clin Nephrol 2002; 57(2):127-30.

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8. Lerma EV, Curhan GC, Sheridan AM, Tirnauer JS. Renal manifestations of sickle cell disease. Uptodate 2016. [acesso em 13 mar 2017]

Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/renal-manifestations-of-sickle-cell-disease

9. Marsenic O, Couloures KG, Wiley JM. Proteinuria in children with sickle cell disease. Nephrol Dial Transplant 2008; 23: 715–720.

10.Batlle D, Itsarayoungyuen K, Arruda JA, Kurtzman NA. Hyperkalemic hyperchloremic metabolic acidosis in sickle cell hemoglobinopathies. Am J Med 1982; 72:188.

11. Silva Junior GB, Vieira AP, Couto Bem AX et al. Renal tubular dysfunction in sickle cell disease. Kidney Blood Press Res 2013; 38:1. 12.Laurin LP, Nachman PH, Desai PC et al. Hydroxyurea is associated with

lower prevalence of albuminuria in adults with sickle cell disease. Nephrol Dial Transplant 2014; 29: 1211-8.

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