• Nenhum resultado encontrado

Giras de morte e vida: a circulação de mestres e encantados no terecô maranhense 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Giras de morte e vida: a circulação de mestres e encantados no terecô maranhense 1"

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

1

Giras de morte e vida:

a circulação de mestres e encantados no terecô maranhense1

Martina Ahlert – UFMA2

Resumo: No terecô, religião afro-brasileira do Maranhão, as pessoas se relacionam com entidades chamadas de encantados. Por meio de obrigações, visitas, giras e trabalhos, com elas são compartilhados saberes e corpos de pais e mães de santo, suas casas, suas famílias. Esta mistura de espaços e substâncias é também uma vivência heterodoxa do tempo, que remete simultaneamente à ancestralidade e ao futuro. Se por um lado, as relações entre encantados e sujeitos se desdobram nas experiências de vida de ambos, este trabalho busca discutir o desfazer destes laços. Este desligamento se materializa nos corpos que envelhecem e perdem força, na diminuição dos clientes e nos ritos por ocasião da morte. A morte é elemento central do texto, visto que homens, mulheres e também entidades participam dos seus rituais. É igualmente significativa, pois, enquanto efetiva uma despedida e uma transformação na condição do sujeito, instaura um novo movimento de pessoas e encantados – faz girar morte e vida. A partir destes momentos em campo, o artigo procura pensar no caráter ínfimo que nos é dado conhecer destas experiências, diante dos nossos limites de circulação, compreensão e movimento.

Palavras-chave: Religiões afro-brasileiras, ontologia, morte.

Este texto discorre sobre algumas questões que surgiram na pesquisa de campo da minha tese de doutorado em antropologia social. Ele trata de um dos sentimentos mais presentes no compartilhar do campo – a solidão – e remete a uma experiência que gesta boa parte da vida das pessoas – a morte. Estes dois temas estão relacionados na existência de pessoas e encantados com os quais convivi e convivo, em Codó, no interior do Maranhão.

Codó é referenciada como a cidade onde teria surgido o terecô – ou tambor da mata, verequete - uma religião afro-brasileira de provável origem banto, com elementos jeje-nagô (Costa Eduardo, 1948; Ferretti, M., 2001; Barros, 2000; Araújo, 2008; Brandim, 2011), cuja língua ritual é o português e onde são incorporados,

1

Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

(2)

2 especialmente, porém não exclusivamente, entidades conhecidas como encantados – seres que tiveram vida terrena, entretanto desapareceram desse nosso plano de existência. Passaram, neste momento, a fazer parte da Encantaria, um entre mundo de onde se deslocam para nos visitar, dançar, dar conselhos, fazer trabalhos e curas. Os encantados frequentam as casas e as tendas de pais e mães de santo da cidade (também chamados de mestres), lugar por excelência da realização de giras, trabalhos e festejos em homenagem aos santos e às entidades.

Nas tendas, os encantados – que podem ser organizados em famílias (Ferretti, M., 2000) – dançam a partir dos pontos que cantam junto com tamborzeiros, mestres e filhos de santo. Entende-se que existam, no Maranhão, três grupos de encantados – os encantados de água doce (encontrados especialmente na região da Baixada), os de água salgada (do tambor de mina, da capital do estado) e os encantados da mata – que formariam a principal família da região de Codó, chefiada por Légua Boji Buá da Trindade (Ferretti, M., 2001; Barros, 2000; Cunha, 2013). Seu Légua ou Velho Légua é a entidade mais conhecida do local e possui numerosa família (se afirma somarem mais de quinhentos membros). Sua personalidade, assim como a de alguns de seus parentes, é marcada pelo apego à bebida alcoólica, pela propensão a causar confusão e por uma postura irreverente e provocadora. Seus relacionados, assim como ele próprio, são associados ao período da escravidão, à mata e à lida com os animais.

Nos salões codoenses, os encantados da mata dividem espaço com outras entidades, como orixás, caboclos e caboclos de pena, voduns do tambor de mina maranhense, pretos velhos, pombagiras etc. Igualmente, o terecô está combinado, de diversas maneiras, com a umbanda e com o candomblé, que tiveram suas primeiras tendas construídas em Codó no século passado, respectivamente nas décadas de 1930 e 1980. Acredita-se que, atualmente, existam cerca de duzentas e cinquenta tendas chefiadas por pais e mães de santo no local, além de quartos e altares que se proliferam nas casas da cidade.

Um pai, mãe ou filho de santo (um “brincante” do tambor) recebe, durante sua vida, ou mesmo durante uma gira3, diversos encantados. Não é incomum que um brincante não saiba dizer o número exato de encantados que recebe, pois, alguns deles, se manifestam raramente ou de passagem – já que, na incorporação, um corpo que se abre se torna vulnerável à presença das entidades. Em outros momentos, é difícil

3

Forma como são chamados os rituais com pontos cantados nas tendas (com ou sem acompanhamento do tambor). Uma gira pode ser também chamada de “toque”, “tambor” ou mesmo “terecô”.

(3)

3 reconhecer um encantado, haja vista a possibilidade dele se “apresentar” de maneiras muito dessemelhantes. Existem alguns encantados, entretanto, que se manifestam durante grande parte da vida de um sujeito, acompanhando o passar dos anos e participando de momentos fundamentais da trajetória de famílias – fazendo, por exemplo, partos, aproximando casais, participando de funerais de entes queridos e demarcando espaços nos ambientes domésticos. Desta feita, durante a vida dos pais e mães de santo, determinados encantados podem ser companhia frequente nos rituais e no cotidiano. No texto, vou sugerir, inspirada em outros autores (Goldman, 1984; Espírito Santo, 2010; Cunha, 2013; Pina Cabral e Silva, 2013), que ao pensar nos brincantes estamos diante de uma determinada ontologia ou noção de pessoa. Entretanto, além disso, pretendo mostrar como se colocam processos que poderíamos chamar de desconstituição e transformação destes sujeitos. Com este objetivo, incialmente conto sobre o momento pelo qual passava uma das mães de santo que conheci durante a pesquisa de campo, pois suas experiências expressavam aspectos que pretendo destacar nesta minha escrita.

PARTE 1 - Os cadernos de Ernesto

Dona Luizinha é uma mãe de santo de pouco mais de setenta anos. Em 2010, época em que iniciei a pesquisa de campo em Codó, ela vivia no perímetro urbano há mais de três décadas. Nascida na roça, havia durante a vida “feito de um tudo”: quebrou coco babaçu, limpou terrenos, plantou, vendeu laranja em festa de santo, costurou, criou três filhos. Dois deles migraram e viviam em Caldas Novas no estado de Goiás, a filha mais velha morava perto de sua casa. Em torno da casa ainda se reuniram seus irmãos e irmãs, cunhados, filhos e netos.

A modesta casa de Luiza possui, no espaço imediatamente contínuo à cozinha,

uma tenda de terecô. A Tenda Espírita de Umbanda4 Santa Helena – seu nome oficial -

é cuidadosamente decorada com bandeiras, altares, fitas e desenhos. Ela foi/está se constituindo e se transformando com a passagem do tempo. Como ocorreu com os barracões de outros pais e mães de santo da cidade, também o de Luiza começou “humildezinho” e cresceu com a colaboração de encantados e pessoas (filhos de santo, clientes, visitantes e parentes). A constituição das tendas é, em alguma medida,

4

A denominação “Tenda Espírita de Umbanda” foi assumida pela maior parte dos pais de santo, independente de terem como “chefes de croa” (donos da cabeça), orixás, caboclos ou encantados.

(4)

4 homóloga à trajetória de pais e mães de santo – tanto porque começaram desconhecidos, quanto porque se tornaram quem são a partir da colaboração de diversas agências.

Neste sentido, de forma geral, os mestres de Codó sentiram os primeiros sinais de “mediunidade”5 ainda em sua infância. Não é incomum ouvir o contar de delicadas histórias onde, ainda crianças, foram tomados por entidades no meio da plantação ou quando faziam serviços domésticos, desaparecendo e sendo encontrados em toques e giras de tambor. Dificuldades de visão, sonhos estranhos, confusão mental, loucura, doenças diversas não descobertas por médicos, foram e são sinais de mediunidade. Nas histórias que conheci, surgiam em torno dos sete, oito anos de idade. Caminhos diversos – que em grande parte dependiam do fato de já haver, ou não, mediunidade na família de cada sujeito – levavam ao diagnóstico de “problema com encantado”. Passava-se, então, a procurar um especialista – outro mestre, já experiente – para “suspender as correntes”, ou seja, aliviar os sinais e as intervenções das entidades por alguns anos. Alguns pais e mães de santo moraram na casa destes mestres por certo período, outros apenas os visitaram algumas vezes, não mantendo contato contínuo com os seus salões.

Como a mediunidade é vista como “de nascimento” se entende que é praticamente impossível se livrar dela, desta forma, passado algum tempo, os encantados voltam a se manifestar no cotidiano das pessoas. É preciso então reconhecer sua presença, perguntar o que desejam, aprender a controlar o corpo quando eles descem ou sobem - em suma “assumir a responsabilidade”, o que inclui, muitas vezes, o início do trabalho “com mesinha” (fazendo rezas e curas) e, posteriormente, a construção de um salão. A partir deste momento, o engajamento na relação com os encantados torna pais e mães de santo pessoas “sabidas” e procuradas para diversos trabalhos e alívio de angústias. Entende-se, entretanto, que a força de um mestre – seu poder, sua eficácia – é fornecida pelos encantados, de forma que, quanto mais um pai de santo trabalha, mais expedito ele se torna. A força, portanto, é proporcional à dedicação à religião, às promessas e tabus que cumprem, às oferendas que destinam às entidades. Não é, efetivamente, um pai de santo que trabalha, mas seus encantados, contudo, resquícios dos trabalhos (energias, forças ruins) permanecem no corpo do mestre, o que torna a atividade de chefia de uma tenda algo cansativo, ou como afirmam na cidade, algo “pesado”.

5

Termo utilizado em sentido diverso da denominação do espiritismo kardecista, para definir a possibilidade de alguém receber uma entidade (em transe ou possessão).

(5)

5 Luiza lembra que quando era criança, via espíritos que a convidavam para brincar. Ela subia em árvore e rolava no chão, imitando estes seres e fazendo disso suas brincadeiras. A mãe Chiquinha – sua avó, que a criou desde que nasceu – não entendia o que se passava com a menina, “porque não tinha essas coisas de espiritismo lá” e a recriminava violentamente. Aos quatorze anos, Luiza se casou com um primo e passou a residir em um povoado no interior de Codó (ela era da região do Parnaíba, fronteira com o Piauí). Depois do casamento as aflições relacionadas à sua mediunidade apareceram com maior intensidade e os encantados que antes vinham para brincar, agora a faziam sumir durante dias, “correndo louca” dentro das matas na zona rural. A intervenção das entidades era algo de foro coletivo e social: se mostrava publicamente e afetava seu casamento, na medida em que atrapalhava o cumprimento do que eram consideradas suas obrigações como esposa. A mãe de santo recorda com carinho do marido falecido, quando lembra que nunca a recriminou por seus “problemas” e sempre a procurava, com seus empregados, quando desaparecia.

As aflições diminuíram quando Luiza passou a frequentar a casa de um mestre, em um povoado próximo àquele em que residia. Ainda que tenha participado de algumas giras e festas nesta casa, considerava que o início de sua experiência enquanto médium foi muito solitário. Seus companheiros eram os encantados e um grupo de árvores que, com o passar do tempo, foram lhe ensinando o que sabia sobre a Encantaria6. Depois colocou uma “mesinha” e, quando já vivia na cidade, no início dos anos oitenta, construiu sua tenda.

Tal como os outros brincantes, Dona Luizinha recebia/recebe diversos encantados. Com alguns deles convivi durante o campo, outros não cheguei a conhecer. Há anos atrás, ela trabalhava com um encantado chamado Ernesto. Ernesto era um senhor velhinho e muito sabido, que era consultado nos trabalhos (especialmente de cura), onde era inquirido sobre o atendimento aos clientes. Recebido em situações de consulta, seu diagnóstico era escrito, por ele mesmo, em um caderno. Quando, depois de uma sessão, a mãe de santo retomava a consciência, era seu marido – que sabia ler melhor do que ela (ela não conhecia a escrita na época) – quem lhe dizia o que Ernesto

6

Segundo Luiza, três árvores – um pé de pitomba, um de violeta e um de jatobá – a ensinaram a fazer curas e atendimentos. Elas ficavam próximas a sua casa e sempre que chegava alguém em busca de ajuda, ela os consultava, acendendo uma vela em frente a cada uma delas. A relação entre as árvores e as entidades é um aspecto recorrente nas pesquisas sobre religiões afro-brasileiras, sendo mencionada desde os primeiros trabalhos sobre a presença negra no Brasil. No tambor de Mina cada entidade tem uma árvore que a representa (Ferretti, M., 2000).

(6)

6 anotara no caderno. Depois que o marido morreu, a própria Luiza conseguia, inexplicavelmente, entender “os garranchos” de seu encantado.

Luiza nunca soube onde os cadernos de Ernesto ficavam guardados, pois eram depositados em um lugar conhecido apenas pelas entidades – a lembrar que o transe a deixava inconsciente. Há cerca de sete anos, sem querer, ela os encontrou. Mexendo nas páginas e lendo o que compreendia, se recordou de uma grande quantidade de pessoas que ela, com seus encantados, havia acompanhado. Percebeu que muitas delas, ainda que passassem em frente a sua casa, não conversavam nem agradeciam seu trabalho. A mágoa diante do esquecimento e da falta de gratidão das pessoas a levou a uma sensação que expressou na frase: “era como se eu tivesse ido embora da terra. Como se eu tivesse saído do meu corpo, numa agonia muito grande” (Diário de campo, 17/05/2011).

Os cadernos de Ernesto voltaram a desaparecer - provavelmente pela ação de algum encantado recebido pela mãe de santo – porém, desencadearam uma importante tomada de decisão: a partir daquele momento, Luiza desenvolveu a intenção de parar de trabalhar como mãe de santo. Essa decisão, entretanto, não dependia apenas dela, mas estava sujeita à negociação com os encantados. A partir disso, não aceitou novos filhos ou filhas de santo em casa e foi diminuindo o número de brincantes da tenda. Igualmente, restringiu a quantidade de giras e recusou diversos trabalhos e consultas, passando a falar sobre fechar seu salão. Ao deixar de fazer estas atividades, Luiza também reduzia a presença dos encantados, logo, sua eficácia como mestre e seu poder. Ao diminuir sua inserção neste sistema de prestações e contraprestações, negociava com os encantados a redução gradual de sua “força” ou da energia deles proveniente.

Na negociação com os encantados, o pai ou mãe de santo não tem como controlar de forma total os encaminhamentos e suas consequências. No caso de Luiza, desde que iniciara os pedidos para parar de trabalhar, sentia que um dos seus braços não tinha mais a funcionalidade de antes. Compreendia que seus problemas físicos com o braço eram resultado da ação das entidades que com isso lhe diziam que, já que não trabalharia mais, não precisava daquele braço em sua forma perfeita. Em suas falas – nas mais diversas conversas – fazia menção ao descaso de clientes e amigos, ao sofrimento que a ingratidão lhe causava, à tamanha tristeza que produziu em si o desejo de diminuir suas atividades como mãe de santo. Essa pequena história, de grandes proporções na trajetória de Luiza, lança luz sobre três ideias relacionadas entre si: o

(7)

7 desfazer dos laços entre pessoas e encantados, a solidão (resultado da ingratidão), e por fim, as situações de morte.

1.1 – Desfazendo relações

A ingratidão e o sofrimento narrados por Luiza falam sobre pessoas que passam grande parte de suas vidas engajadas com a constituição de relações com os encantados – ou seja, que vivem em um mundo que não faz sentido sem a participação de diversos seres (Cardoso, 2007)7. Seu reclame – e de outros pais de santo que, de forma semelhante, faziam relatos sobre o esquecimento - só pode de ser compreendido em sua dramaticidade e complexidade quando se considera que ele opera sobre determinada noção de pessoa. Se Dona Luizinha se ressente da ausência do agradecimento das pessoas no que concerne aos trabalhos que desempenhou e, ao mesmo tempo, reconhece que quem trabalha são seus encantados (e deles provém sua força) é porque, em alguma medida, os seres que ocupam seu corpo são também ela mesma.

Antes de fazer estas afirmações, é importante deixar claro que, os mestres do terecô passam grande parte de suas vidas construindo relações com as entidades. A aproximação e a afinidade não são dadas de partida, mas produzidas em momentos onde a “interaction is crucial for a reciprocal learning process” (Cunha, 2013). Os mestres, portanto, precisam cumprir tabus e realizar diversas atividades – como rezas, oferendas, trabalhos, rituais e consultas – que vão formando quem são e também o que sabem.

Quando Luiza aciona a mágoa e o lamento, afirmando que busca negociar o fim de suas atividades como mãe de santo, ela também fala sobre esses diversos engajamentos que são tidos, como afirmei no início do texto, como pesados, desgastantes, poluidores. Ela dizia se “sentir velha”, algo que não remetia apenas ao adiantado de sua idade biológica, mas ao compartilhar de substâncias que acontece entre os mestres, os encantados, os filhos de santo e os clientes. Se por um lado, com os encantados, os mestres compartilham força e também seus corpos, ao acompanharem seus filhos de santo eles estão pessoalmente implicados na forma como eles se comportam (de forma que tudo o que um filho de santo faz também reflete em seu mestre). Igualmente, como mencionei anteriormente, quando procurados para resolver

7

Sigo aqui a sugestão de Vânia Cardoso que entende que a macumba carioca, antes do que uma identidade religiosa específica, “marca uma socialidade – um imaginário e um “ver o mundo” – inextricavelmente marcada pela presença de espíritos” (2007, p. 317).

(8)

8 casos e angústias dos clientes, os pais e mães de santo trabalham com forças e elementos considerados ruins – que, mesmo com os rituais de proteção e limpeza – deixam alguns resíduos no seu corpo. Esses resíduos se acumulam e pesam com o passar dos anos. A relação com os encantados, portanto, ao mesmo tempo em que produz força e poder, envelhece corpos e os marca com a presença das entidades – os debilita - como o braço disfuncional de Luiza ou as cicatrizes e marcas resultantes de sua ação.

Quando um pai ou mãe de santo decide por ‘aposentar-se’ das funções na chefia de uma tenda, ele toma uma decisão que em nada é leviana ou simples. A diminuição das atividades relacionadas aos encantados também significa uma redução da presença deles em sua vida e na vida daqueles que participam de um salão, o que resulta no arrefecimento do poder e da eficácia de um mestre. Alguns antropólogos têm chamado atenção para o caráter compósito das pessoas, questionando não apenas a compreensão ocidental de indivíduo moderno, mas também chamando atenção para a importância das relações que compõe um sujeito (Strathern, 2006; Gordon, 2009), para os processos de mutualidade que estão para além das relações (Pina Cabral e Silva, 2013) ou mesmo à participação das entidades na constituição da pessoa (ver, para o candomblé, por exemplo, Goldman, 1984). No caso do terecô de Codó, me parece possível afirmar, com Diana Espírito Santo, que há uma noção de pessoa “múltipla, plural, expansiva, conectada” (2010, p. 498), de forma que:

o que existe entre o médium e eles [espíritos] melhor se compreenderá como um projeto contínuo de pessoa em construção – os seres de ambos jamais se encontram em estado fixo ou imutável, mas se nutrem congruentemente um do outro, especificando-se na prática e numa aprendizagem de si, ao longo do tempo (Espírito Santo, 2010, p. 517).

Neste sentido, quando os pais ou mães de santo negociam o distanciamento com os encantados, em última medida, a intensidade do sofrimento fala também de uma despedida que é a de si próprio. É preciso, pois, reinscrever-se de outra forma no mundo (Vianna, 2014), com um poder de ação diminuído e, portanto, de uma forma mais vulnerável. O desfazer dos laços fala dessa incompletude da pessoa e da sua contínua transformação enquanto tal.

(9)

9

1.2 A solidão

Mas, se por um lado estamos discorrendo sobre os engajamentos entre pessoas e encantados, por outro, ao remetermos ao evento do encontro com os cadernos de Ernesto, temos que atentar que a fala de Luiza também coloca sobre a relação com outras pessoas – vizinhos, parentes, clientes – de onde emergem sentimentos de ingratidão e esquecimento. Surge aqui, como pretendo sugerir, outro aspecto importante de como os mestres experienciam sua própria ação no mundo, a possibilidade da solidão. Ela, diziam as pessoas em Codó, era a pior coisa que poderia acontecer com a vida de alguém, era “se sentir abandonado” – era encontrar-se na situação na qual Luiza se percebia, sendo paulatinamente esquecida por aqueles com os quais estabelecera relações de cuidado e companhia.

A solidão era vista como ameaçadora: Seu João Tavares, também pai de santo da cidade, me contou sobre as previsões de futuro feitas por sua avó, a terecozeira Dona Maria Pretinha, que “disse que eu era o último da família, que eu era o herdeiro de tudo, o último da família. E eu ia terminar meus dias de vida só, numa casa. E o pessoal ia chegar e dizer: “E aí tio João como é que vai o senhor?”. E eu não quero que isso aconteça porque a solidão mata... E eu sempre peço a Deus que isso não aconteça” (João Tavares, 03/09/2011).

Temida por seu João e considerada por Luiza a pior coisa da vida, a solidão não é um receio individual ou pessoal. Ela é sempre referendada como algo assustador, temido e universal, que pode acontecer com qualquer pessoa. É constituída pela ausência de família, pela falta de amparo e pelo abandono, sendo um medo presente (quando alguém se distancia) e um receio sobre o futuro e o envelhecimento. Diante do esquecimento, da falta de gratidão, da ausência dos cumprimentos e das visitas, se está ainda mais exposto à solidão.

Em Codó existem pessoas que ‘encarnam’ esta situação temida, como, por exemplo, os trabalhadores sem família e sem parentes que vêm para a cidade ocupar algum emprego; homens que chegam para atividades transitórias no campo ou os funcionários de alguma obra temporária. Essas pessoas são vistas com estranheza porque “andam sozinhas”. Evidentemente, eu, que morava só (distante da minha família) e assim andava pela cidade, descortinava um sentimento de estranheza muito parecido ao desses outros trabalhadores temporários. Além das constantes perguntas sobre minha família, sobre possíveis namorados ou maridos, eu era continuamente alvo

(10)

10 de sugestões de cuidado e atenção na circulação pela cidade. Andar sozinha, ou estar sozinha, era algo perigoso, digno de atenção e mesmo de pena.

Apesar de minhas escolhas remeterem à temida solidão, Luiza, algumas vezes, fazia aproximações entre a minha vida e a dela. Dizia que queria ter podido ter a minha vida - que entendia como andar por diversas cidades, conhecer pessoas e lugares diferentes. Expunha que seu desejo, quando moça, era ser “mulher livre” e viajar pelo mundo, trabalhando um pouco em cada destino, guardando dinheiro para continuar se movimentando: “Eu chegava aqui, eu trabalhava um mês, dois meses. Pegava meu dinheiro, ia pra Fortaleza. Lá eu trabalhava tempos e tempos. De lá eu iria pra outro lugar. E ia andar o mundo inteiro, não sabe... Era isso que era a minha vontade, era isso que era o meu desejo” (Luiza, 03/10/2011).

Alguns acontecimentos ocorreram na vida da mãe de santo que a impossibilitaram de exercer esse seu anseio de liberdade. Quando contava, explicitava dois deles: o casamento – que a tinha comprometido com toda uma vida esperada como mulher no contexto do interior do Maranhão; e a mediunidade (que se refere, abaixo, como “arrumação”):

Mas aí, por causa da ruindade que eu supria, de um desejo, eu me casei com esse homem, aí piorou. Aí eu me casei e emprenhei. Meu marido não foi uma pessoa muito exemplar, mas foi bom. Aí foi só eu me casar e apareceu essa outra arrumação que eu não tinha. Aí pronto, a coisa piorou, tudo, acabou. Aí hoje eu sou essa pessoa, mas nunca foi assim que eu me sentia... (Luiza, 03/10/2011).

A liberdade que Luiza almejava no movimento entre diferentes cidades foi cerceada pelo casamento e pela relação com os encantados. Mesmo depois de mais velha entendia que os filhos que criou sem o marido (que faleceu cedo) e as atividades da manutenção da sua tenda lhe “prendiam” à cidade – e por isso, tanto para ela quanto para outros pais de santo, diminuir as atividades na chefia de um salão significava também sentir maior liberdade no uso do seu tempo.

Quando eu ouvia essas afirmações, ser mulher livre e temer a solidão pareciam posições aparentemente contraditórias – intensificadas nas afirmações de Luiza de que não conseguiria imaginar sua vida sem dançar seu terecô e sem sua família. Essa duplicidade de desejos aparecia também nos conselhos que me dava, visto que, embora eu fosse, para ela, mulher livre – repetidamente sugeria que eu tivesse filhos, que eu me casasse, que eu procurasse não ficar sozinha. Além de chamar atenção para o limite da

(11)

11 ideia de contradição em relação ao temor da solidão, Luiza demonstrava “um mundo onde a liberdade da pessoa singular é um dos valores centrais, mas onde a centralidade desse valor assenta sobre a possibilidade iminente da violência, da desumanização, do cativeiro” (Pina Cabral e Silva, 2013, p. 09). Neste sentido, uma pessoa sozinha é, em alguma medida, uma não pessoa – haja vista não ser ninguém sem os outros.

Demonstrar gratidão, considerar, mas também rezar, fazer oferendas, trabalhar, emprestar ou compartilhar o corpo (na relação entre pessoas, pessoas e encantados) é, sugiro aqui, constituir-se a si próprio e tornar pessoas possíveis. Se o cansaço e a velhice são parte das trajetórias de mães de santo, o que se teme é, ao fim, apesar de todo o investimento e engajamento com entidades, clientes e parentes, encontrar-se sozinho. A solidão e o esquecimento são, portanto, ameaças – sempre iminentes - àquilo que as pessoas (ainda que continuamente em transformação) são. Como então pensar o desfazer dos laços com os encantados – que resulta também na diminuição da relação com as pessoas – se esta escolha parece exatamente contribuir para a solidão?

Deixo a pergunta em suspenso para trazer um terceiro elemento para pensar a relação entre pessoas e encantados: os mortos ou mesmo a existência da morte. A partir de alguns casos específicos, acompanhados em campo, busco aspectos importantes para pensar tanto às questões de ontologia as quais venho me remetendo, quanto às possibilidades de movimento das pessoas e das entidades. Como pretendo sugerir ao final do texto, solidão, esquecimento e morte não são apenas parte da vida (que é “cheia” de coisas, como dizem na cidade), mas sentimentos e retóricas motores da existência.

PARTE 2 – Morte e vida

Os mortos não são percebidos como encantados e não fazem parte do panteão do terecô. Eles são vistos como familiares que, ainda que não mais presentes fisicamente – embora materializados em imagens e fotografias – fazem parte das redes de cuidado, companhia e lembrança. Eles auxiliam, portanto, nas formas de evitar a solidão e, ao mesmo tempo, recebem investimentos nas relações sociais, especialmente pelo cultivo de sua memória entre os vivos. Segundo um amigo de Codó, por exemplo, ter filhos era uma importante medida para evitar a solidão e também para ser lembrado depois da morte, como me disse: “Martina, mas quando você morrer, quem é que vai lembrar de você? Se você não tiver filhos, quem vai lembrar?”.

(12)

12 Por ocasião de uma morte, o enterro é um momento que possibilita a união ou o encontro dos familiares que estão próximos ou distantes (Mapril, 2009). Neste contexto, é importante trazer o corpo daqueles que morrem longe de Codó para ser enterrado na cidade. Embora diferentemente de outros lugares onde existe uma relação direta entre o enterro e a terra ancestral (Borges, 2011; Bloch, 1971), também aqui trazer o corpo permite com que se inicie uma serie de rituais conhecidos como “visitas”, que buscam manter viva as recordações do falecido (escrevo mais sobre as visitas na sequência do texto)8. Parece-me que a solidão é considerada de uma tristeza tão demasiada que mortos fazem companhia aos vivos, enquanto esses cultivam, continuamente, a lembrança de seus mortos. Com o intuito de desenvolver o argumento central desse texto, opto por discorrer sobre três momentos que por um lado, sintetizam um conjunto de atividades relacionadas à morte – como as visitas e as giras de tambor; e, por outro, destacam as agências de pessoas e de encantados, chamando atenção para momentos em que também as entidades sofrem com a despedida (ao mesmo tempo em que são colocadas em movimento).

2.1 Seu Sebastião

Inicio com uma narrativa de Seu Sebastião - um senhor já idoso, pai de santo de um povoado do interior de Codó - sobre a morte de sua esposa. A conversa aconteceu em uma tenda antiga da cidade, pertencente ao pai de santo Raimundinho Pombo Roxo. Nela, Seu Sebastião figurava como padrinho e por isso estava presente, naquele setembro de 2011, na festa em homenagem aos santos gêmeos, Cosme e Damião. Naquela tarde me disse que, no dia da morte da esposa, ele estava fora de casa, na sede do município, distante cerca de trinta quilômetros do povoado onde vivia, para onde foi utilizar serviços públicos, visitar seus filhos e o amigo Raimundinho Pombo Roxo. Os dois pais de santo eram amigos há mais de uma década, desde que se conheceram em um festejo. Seu Sebastião conta que o amigo sempre o ajudou, mesmo quando ninguém o conhecia na cidade e, por isso, nunca deixaria de frequentar sua tenda. Também não trocaria sua amizade pela de qualquer outro pai de santo.

8 O lembrar-se dos mortos tem como elemento central as visitas, contudo ainda é composto de outras

demonstrações de carinho, como fotos em camisetas, adesivos de carro e também em pequenas lembranças (fotos ou cartões). Luiza guardava as lembranças de morte em um álbum de fotografia que permanecia na sua estante, junto com outros álbuns de seus festejos e das viagens às romarias.

(13)

13 Naquele triste dia, a esposa de Seu Sebastião faleceu em torno das três horas da tarde. Para retornar ao povoado, já que estava na cidade, ele contou com a ajuda dos filhos e de Seu Raimundinho. Eles conseguiram somar algum dinheiro e pagaram o carro que levou o pai de santo para sua casa no povoado (em Codó não há transporte público nem no perímetro urbano e nem no interior). Também foi o amigo quem organizou os dois caminhões que transportaram os conhecidos para o velório, que aconteceu na tenda de Seu Sebastião. Sete dias depois, Raimundinho também organizou a ida para a primeira visita.

A morte aconteceu em maio e naquele setembro, Seu Sebastião ainda não tinha conseguido pagar as dívidas que contraiu para fazer o enterro e a visita. Apesar disso, estava muito feliz porque na ocasião “teve muita comida” e se dançou terecô durante toda a noite. A esposa merecia todo o investimento porque, segundo me disse, enquanto viva, sempre o ajudou. Apesar da tristeza diante da despedida e de considerar que sua vida estava muito mais difícil9, Seu Sebastião me contou de sua satisfação diante de “um bom enterro e uma boa visita” – o que quer dizer que houve fartura de alimentos, que os visitantes foram bem recebidos e que um número expressivo de pessoas esteve presente.

O pai de santo, na ocasião, não mencionou, mas a visita de sete dias é só a primeira de uma sequência de visitas feitas pelos terecozeiros (e por diversos católicos) aos seus mortos. Sendo a primeira, é considerada a mais importante e os parentes que vieram de outras cidades costumam permanecer em Codó para participar do momento. Ou seja, a partir dos rituais que acontecem na ocasião do enterro e que variam entre as casas e entre os casos, um falecimento inaugura o circuito de visitas em homenagem ao morto – havendo a visita de sete dias (com missa ou não), a de quinze dias, a de mês, a de seis meses, a de ano – e, todos os anos, a visita que marca o aniversário de morte. As visitas compartilham das mesmas características mencionadas por seu Sebastião para serem consideradas boas – receber visitantes, alimentá-los abundantemente, proporcionar meios de deslocamento para a ida ao cemitério ou a casa.

Nas visitas são feitas diversas rezas católicas que compreendem pedir a Deus e aos Santos que intercedam pelo perdão dos pecados e pela aceitação do morto nessa passagem – visto o mesmo ser concebido como incapaz de agir em benefício próprio.

9

Desde a morte da esposa, os filhos e netos de Seu Sebastião que viviam na cidade insistiam que ele deixasse o povoado. O local em que vivia sofria com expulsões dos trabalhadores do campo, causadas pela família de um deputado estadual, aparentemente proprietária das terras.

(14)

14 Além das rezas católicas - como o Terço, Salve Rainha e o Bendito do Rosário de Maria, por exemplo -, as visitas realizadas aos mortos que brincavam em tendas de religião afro-brasileiras podem ser acompanhadas de noites de tambor, tocadas para homenagear os encantados que recebia e as principais entidades da tenda.

2.2 Seu João

Se no caso da esposa de Seu Sebastião o tambor foi tocado depois do enterro, seguindo durante a madrugada, a dança pode acontece em diferentes momentos na sequência da morte de um filho, pai ou mãe de santo. Em 2012, quando eu visitava alguns amigos e interlocutores em Codó, no dia imediatamente posterior ao término do festejo da tenda de Pai Aluísio, seu irmão João, faleceu. Apesar de morar em São Luís, ele estava na casa do pai de santo por ocasião da festa e foi neste local que começaram a ser feitos os rituais de seu enterro – que seria realizado na capital.

Naquele dia, logo que cheguei à tenda, fui requisitada para tirar as fotos do velório – tarefa que desempenhei algumas vezes durante a pesquisa e que era considerada importante, pois o registro com o morto é valorizado (especialmente para não se esquecer dele). Ininterruptamente havia pessoas velando o caixão e perto do horário em que o corpo seria conduzido para São Luís chegaram pais e filhos de santo de outras tendas da cidade para participar de um ritual que aconteceria antes da despedida. Depois de alguns hinos e rezas católicas, vivas foram dadas a São Raimundo, que há poucas horas tinha sido festejado naquele mesmo espaço. Uma roda formada pelos filhos de santo da casa, vestidos de branco e com as cabeças protegidas (embora outras pessoas sem estes mesmos cuidados também participassem) começou a girar ao redor do caixão. Alguns pontos foram cantados e acompanhados pelo tambor.

Abre a porta da capela, bota o povo lá pra dentro. A tenda São Raimundo, ela está de sentimento.

Passando as mãos umas nas outras de forma constante, as pessoas que participavam do ritual ainda cantaram para Seu João Soeira10 e para Xangô, que devem ter tido presença importante no percurso religioso de Seu João. Outros pontos foram cantados e tocados, e alguns encantados se fizeram presentes, para se despedir. Cerca de

10

Seu João Soeira é uma entidade percebida tanto como a entidade Rei de Mina (em São Luís, na tenda de Pai Jorge Itaci [Ferretti, M., 2000, p. 310]) e também como vodunsi velho, em Codó (ibid, p.315).

(15)

15 vinte pessoas incorporaram dentro e fora do salão e foram trazidas para próximo ao caixão. Podíamos ouvir os gritos, o choro e a lamentação dos encantados. Também eles sofriam com a morte e compartilhavam dela.

Mamãe chorou, mamãe chorou,

Quando eu mudei pra viagem, mamãe chorou.

Os encantados deixaram o corpo dos médiuns somente quando foi cantado o último ponto do ritual. A entidade que estava em Seu Aluísio pediu ao Divino Espírito Santo que tomasse conta da alma do padrinho da tenda (seu irmão) e levasse seu espírito. Neste momento, a tenda cantou:

Ô João, já vai, São Raimundo vai te levar. Adeus meu amigo, São Raimundo vai te levar.

Encerrada a sequência de pontos cantados na tenda e a visita de despedida dos encantados, o corpo de Seu João seguiu para a cidade de São Luís. Os encantados recebidos em um ritual de morte, segundo me disseram, comumente são os chefes de croa dos visitantes, que tendo conhecido o morto, aparecem para trazer seus pêsames e se despedir. Contaram-me ainda que os encantados que eram recebidos pela pessoa que faleceu, durante sua vida, também pode “dar passagem” em algum terecozeiro presente, para se despedir do seu “cavalo” e demonstrar sua tristeza.

Além da presença dos visitantes, dos pais e filhos de santo, o ritual também fez constantes menções à ação de São Raimundo, santo da casa, como operador da passagem – ou condutor da pessoa falecida. As referências ao Santo são também referências ao próprio salão (enquanto espaço físico e como alusão às pessoas que o compõem) - visto que a própria tenda “está de sentimento” diante da morte de seu padrinho. Essa ênfase no espaço como compartilhado e sentido coletivamente também aparece na terceira situação que apresento nesta parte do texto, na morte de uma filha de santo da casa de Mestre Bita do Barão.

2.3 Dona Eurides

Dona Eurides faleceu na noite do festejo em homenagem à Santa Bárbara, comemorado na tenda onde brincava desde nova, a Tenda Espírita de Umbanda Rainha

(16)

16 de Iemanjá (onde Luiza também brincava). Quando soubemos da morte, algumas filhas de santo foram imediatamente para a casa de Eurides, que era ao lado da tenda, para iniciar o velório. A casa era pequena e as pessoas estavam na sala próximas ao caixão ou sentadas, em cadeiras de plástico na rua. Velamos o corpo dentro da pequena casa até o dia seguinte, na chegada da irmã da falecida, que vivia em São Luís. Depois de uma reza católica, seguida do hino da Umbanda, Mestre Bita (seu pai de santo), se aproximou do caixão, cantando o ponto de abertura de alguns dos seus trabalhos:

No céu uma estrela brilhou, no mar sereia cantou. Esse é o caminho mais certo que Deus nos guiou.

Enquanto cantava, acompanhado de suas filhas de santo e da diretoria de sua casa, o pai de santo cortava, com uma tesoura, os cordões de conta (guias) que pertenceram a Eurides. As miçangas se espalhavam sobre o corpo, ficando dentro do caixão. Duas filhas de santo da casa cortavam saias e blusas brancas, que também pertenceram à brincante falecida, depositando os pedaços sobre o corpo – segundo me disseram, marcando a passagem entre o status de pessoa morta e viva. Em cortejo, seguimos até o cemitério, enquanto outras pessoas varriam o chão da casa e se destituíam dos objetos que tinham participado do ritual. Eles também precisam ser “despachados”, pois eram considerados impuros.

Apesar da observação dos cuidados e dos procedimentos que marcavam a separação entre vida e morte, também no enterro de Eurides (como aconteceu no velório de Seu João) os encantados – que em outros contextos etnográficos não se fazem presentes nos rituais por ocasião de morte (como no tambor de mina, por exemplo)11 – participaram. Logo na entrada do cemitério, algumas pessoas os receberam. Alguns deles fizeram, conosco, o trânsito entre o campo santo e a tenda onde Eurides brincava, para onde fomos para o Tambor de Choro (de corpo ausente)12.

11

Enquanto no terecô os encantados se faziam presentes no Tambor de Choro, na Casa das Minas em São Luís os voduns não participavam dos ritos relacionados ao enterro, retornavam apenas depois que a casa estava “limpa” das impurezas atribuídas ao morto (Ferretti, S. 1996, p. 31).

12

Barretto (1977) faz uma breve descrição do Tambor de Choro (ou Zelin) na Casa das Minas em São Luís, que “tem o objetivo de despachar a pessoa recém-falecida do convívio com os vivos” (ibid., p. 86). Sérgio Ferretti (1996) também descreve os rituais envolvidos no Tambor de Choro na Casa das Minas (realizado “para despachar o espírito do morto, para que ele tome consciência de que já morreu” (ibid., p. 193)). Para uma discussão da etimologia do Tambor de Choro e outras denominações como Zelin (nome dado nas casas jeje) e Axexe (nas casas ketu), ver Sogbossi, (2011).

(17)

17 Quando chegamos, lavamos as mãos, braços e pés com um banho de ervas – para retirar as impurezas do cemitério - e fomos para a tenda, onde os tambores estavam deitados no chão e cobertos por toalhas de renda branca. Próximo a eles, também sobre o chão, havia três sacos de ráfia que comportavam as roupas de santo que pertenciam à Eurides. Durante o ritual, conduzido por um dos encantados de Mestre Bita, diversos pontos foram cantados sem o acompanhamento da percussão. O ápice da cerimônia aconteceu quando ele retirou as cinzas de dentro do defumador e as depositou em um alguidar maior, logo depois as transferindo para dentro de uma sacola de plástico. Em seguida, o pote de cerâmica foi solto no ar e quebrou-se em diversos pedaços ao chocar-se com o chão13. Algumas filhas de santo imediatamente receberam encantados e permaneceram com eles deitadas no chão da tenda, movimentando braços e pernas, chorando e se lamentando. Outras continuavam cantando pontos sobre a despedida.

O meu coração dói, o meu coração, dói, dói. Na guma14 está faltando um, o meu coração dói.

Enquanto se cantava pontos sobre tristeza, ausência e dor, o encantado de Mestre Bita saiu de costas da tenda, com um punhado de velas em suas mãos e acompanhado de alguns homens que carregavam as três sacolas com as roupas e pertences religiosos de Eurides, que deveriam ser despachados em água corrente ou dentro da mata – em local não conhecido pela maioria dos presentes. Os encantados das filhas de santo e também os de Eurides, que passaram em outras mulheres para se despedir, somente “subiram” quando o pai de santo, já sem seu encantado, retornou do local onde foi fazer o despacho. Neste retorno, disse algumas palavras, lembrando que faria isso por qualquer filha de santo, desde que ela estivesse frequentando sua casa (e assim, contribuindo e compartilhando sua força).

2.4 Sentimento e heranças

13

Tendo observado a quebra de potes e cuias em rituais funerários em duas casas de candomblé em Salvador (BA), Sogbossi (2011) conclui que ela está relacionada com a separação entre os vivos e os mortos, simbolizando que o morto não faz mais parte da casa. Prandi afirma que no candomblé baiano, o axexê é “celebrado para desligar o morto da vida presente, para que ele possa partir e depois voltar como outra pessoa, rito que representa a quebra de todos os vínculos do morto” (Prandi, 2001, p. 51).

(18)

18 As três situações que relato brevemente e que envolvem ocasiões de morte de brincantes do tambor, trazem algumas questões que eu gostaria de destacar. Inicialmente falam sobre as tendas como espaço de celebração e despedida – elas ficam de sentimento com a morte de um de seus membros e sentem sua ausência, pois falta alguém em torno de sua guma. A morte, portanto, é experienciada coletivamente por mestres, filhos de santo, entidades e santos. A transição entre vivente e morto, nesse sentido, não é desprovida de sofrimento, ainda que não signifique a ausência de comunicação e companhia entre vivos e mortos.

Embora momento de despedida – e de rompimento ou transformação na condição do sujeito, explicitados nos procedimentos de limpeza e separação de objetos pessoais, roupas e corpos (Cunha, 2011; Sogbossi, 2011), a morte também é um momento de presença, ou seja, uma situação que lembra a necessidade de cuidar, acompanhar e lembrar-se dos sujeitos - onde operam as mais variadas agências, de pessoas (vivas e mortas), de encantados, dos santos. É também um ato, uma ação, um evento, que combate à solidão.

Retomo a história de Eurides para falar da presença dos mortos na vida dos vivos, a partir de seu aparecimento no sonho de uma amiga e das heranças que deixou para suas “irmãs de santo” – já que, entre elas, distribuiu os santos do seu altar e também alguns colares do terecô. Explico melhor: sete meses depois da morte de Eurides, eu estava na loja de produtos de Umbanda de Mestre Bita, com Sebastiana e Maria Bastos, duas de suas filhas de santo. Nós três conversávamos quando Sebastiana nos contou que Eurides vinha aparecendo em seus sonhos e mantendo conversas com ela. Neles, lembrava que tinha deixado um dos santos de seu altar para ela e cobrava que ainda não o havia buscado.

Maria Bastos comentou então que o principal encantado de Eurides, o Caboclo da Mata Verde, ainda não tinha “passado” em ninguém que elas conheciam, mas afirmou ter certeza de que viria em Sebastiana – que imediatamente retrucou dizendo “Deus me livre”. Eu, observando a brincadeira séria entre as duas e compreendendo muito pouco, perguntei se o encantado de alguém que faleceu poderia passar em uma pessoa próxima. Elas responderam haver grande possibilidade de que o encantado continuasse entre os conhecidos (e, por isso, Maria tinha certeza de que o desejo de Seu Mata Verde era se tornar encantado de Sebastiana).

A negativa de Sebastiana tem relação com uma opinião recorrente entre os terecozeiros: ter encantado “dá muito trabalho”, exige muita dedicação e privações.

(19)

19 Certamente, havia também um lado de lisonja aí colocado: receber um encantado era também uma forma de ressaltar a relação que ela mantinha com a falecida. Em alguma medida, se Mata Verde fez parte de Eurides, Eurides, a partir dele, também se mantem presente na vida de Sebastiana – pois os encantados, tal como as pessoas, não são seres terminados. Compreende-se que um encantado, ainda que possua ancestralidade e viva uma experiência heterodoxa do tempo, continua acumulando histórias de vida (Ferretti, M., 2000), atualizando opiniões e formas de participação no cotidiano dos sujeitos. Dessa forma, apesar de sua ancestralidade, eles continuam se transformando – tal como as pessoas - com a passagem do tempo.

Considerações finais

Durante este texto, escrevi sobre dois aspectos das experiências dos mestres e dos encantados do terecô de Codó: em primeiro lugar, destaquei determinada noção de pessoa, possível pela construção de relações com as entidades durante o passar dos anos. Essas relações carecem de constante dedicação por meio de um conjunto de obrigações que constituem o que são e o que sabem os pais e mães de santo. Igualmente, essas relações marcam seus corpos, os envelhecem e pesam – como foi possível ver na narrativa de Luiza sobre o fim de sua trajetória na chefia da tenda, quando diminuía suas atividades, seus filhos de santo e sua força. Neste momento, marcado pelo receio da solidão e pela ingratidão das pessoas atendidas e cuidadas, os mestres diminuem a presença dos encantados, se relacionando com menos frequência e se despedindo de alguns deles. Na medida em que as entidades também constituem quem são os mestres, este momento é também alteração na forma com que os sujeitos se percebem no mundo.

Em um segundo momento, apresentei três situações envolvendo a morte de brincantes do tambor para falar dos sentimentos compartilhados pelos sujeitos e pelas entidades, do sofrimento e da participação dos encantados nos rituais. A morte, nestes eventos, funciona também como uma forma de evitar a solidão. Nesses episódios de rupturas e continuidades, os encantados figuram como possíveis extensões de um morto entre os vivos, permitindo cultivar suas heranças e lembranças (como no caso de Seu Mata Verde e de Sebastiana). Tanto as transformações advindas do distanciamento das atividades de chefia da tenda, como o sofrimento por ocasião da morte, falam sobre o movimento e a transformação de pessoas e encantados. Em determinados momentos, as

(20)

20 pessoas se transformam porque se desligam das entidades (porque antes, durante anos, se fundiram com elas) e em outro, se transformam porque os adicionam a si (já que anteriormente eles se despediram de outras pessoas).

Cabe aqui, portanto, responder a uma pergunta que esbocei acima – que seja, pensar porque se despedir se isto implica na temida solidão. Como possível resposta, sugiro que as falas sobre ingratidão, solidão, sofrimento, enquanto experiências vividas pelos brincantes, ao mesmo tempo em que lembram a importância da companhia e do cuidado, também induzem o movimento entre fazer e desfazer, que torna possível a existência dos sujeitos e das giras.

Referências bibliográficas:

AHLERT, Martina. Cidade relicário: uma etnografia sobre terecô, “precisão” e Encantaria em Codó (MA). Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade de Brasília. Brasília, 2013.

ARAÚJO, Paulo Jeferson Pilar. Umbandização, candombleização: para onde vai o Terecô? In: X Simpósio da ABHR /UNESP, Assis, 2008.

BARRETTO, Maria Amália Pereira. Os voduns do Maranhão. São Luís: FUNC, 1977. BARROS, Sulivan Charles. Encantaria de Bárbara Soeira: a construção do imaginário do medo em Codó – MA. 2000. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de Brasília, Brasília. 2000.

BLOCH, Maurice. Placing the dead: tombs, ancestral villages and kinship organization in Madagascar. London: Seminar Press, 1971.

BORGES, Antonádia. Sem sombra para descansar: etnografia de funerais na África do Sul contemporânea. In: Anuário Antropológico, 2010-I, 2011: 215-252.

BRANDIM, Vivian de Aquino Silva. O sincretismo religioso na obrigação de Dona Constância: o reino de Caboclos e Encantados. In: XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, 2011.

CARDOSO, Vânia. Narrar o mundo: estórias do “povo da rua” e a narração do imprevisível. Mana, Rio de Janeiro, v.13, n. 2, p. 317-345, 2007.

CUNHA, Ana Stela de Almeida. Cantando para os mortos: cerimônias fúnebres e diversidade religiosa em Cuba. Revista Pós Ciências Sociais, São Luís, v.8, n.16, p. 37-54, jul./dez. 2011.

________. João da Mata family: Pajé dreams, chants and social life. In: ESPIRITO SANTO, Diana. BLANES, Ruy. The Social Life of the Spirits. Chicago University Press. 2013.

COSTA EDUARDO, Octávio. The negro in Northern Brazil: a study of acculturation. New York: J.J. Austin Publisher, 1948.

ESPÍRITO SANTO, Diana. Parcialidade e materialidade: a distribuição do ser e do saber no espiritismo cubano. In: CUNHA, Maria Olívia Gomes da. Outras ilhas: temporalidades e transformações em Cuba. Rio de Janeiro: Aeroplano e FAPERJ, 2010. p. 493-548.

(21)

21 FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Desceu na guma: o caboclo do Tambor de Mina em um terreiro de São Luís – a Casa Fanti-Ashanti. 2.ed. São Luís: EDUFMA, 2000.

__________. Encantaria de Barba Soeira: Codó, capital da magia negra? São Paulo: Siciliano, 2001.

FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Querebentã de Zomadonu: etnografia da Casa das Minas do Maranhão. 2.ed. São Luís: EDUFMA, 1996.

GOLDMAN, Márcio. A possessão e a construção ritual da pessoa no Candomblé. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1984.

GORDON, César. O valor da beleza: reflexões sobre uma economia estética dos objetos entre os Xikrin. Série Antropologia, n. 424, Brasília, 2009.

MAPRIL, José. “Aqui ninguém reza por ele!” Trânsitos fúnebres entre o Bangladesh e Portugal. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 15, n. 31, p. 219-239, jan./jun. 2009.

PINA-CABRAL, João de. SILVA, Vanda Aparecida da. Gente Livre: Consideração e pessoa no Baixo Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. 159p.

PRANDI, José Reginaldo. O Candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, p. 43-58, out. 2001.

RIFIOTIS, Theophilos. O ciclo vital completado: a dinâmica dos sistemas etários em sociedades negro-africanas. In: BARROS, Myriam Moraes Lins de. (Org.). Velhice ou terceira idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006. p. 85-110.

SOGBOSSI, Hippolyte Brice. Morte e parentesco em perspectiva comparada na Bahia: o Bogum e o Axé Opô Afonjá. In: 35º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 2011. STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.

VIANNA, Adriana. Violência, Estado e gênero: considerações sobre corpos e corpus entrecruzados. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza; GARCÍA-ACOSTA, Virginia (orgs.). Margens da violência - Subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília: ABA, 2014. p. 209-237.

Referências

Documentos relacionados

Se você vai para o mundo da fantasia e não está consciente de que está lá, você está se alienando da realidade (fugindo da realidade), você não está no aqui e

Corograpliiu, Col de Estados de Geografia Humana e Regional; Instituto de A lta C ultura; Centro da Estudos Geográficos da Faculdade de Letras de Lisboa.. RODRIGUES,

Conforme mencionado anteriormente, os basidiomicetos de podridão branca são mais utilizados em processos de micorremediação mediado pela biodegradação enzimática, mas a

Nessa situação temos claramente a relação de tecnovívio apresentado por Dubatti (2012) operando, visto que nessa experiência ambos os atores tra- çam um diálogo que não se dá

Note on the occurrence of the crebeater seal, Lobodon carcinophagus (Hombron & Jacquinot, 1842) (Mammalia: Pinnipedia), in Rio de Janeiro State, Brazil.. On May 12, 2003,

Promovido pelo Sindifisco Nacio- nal em parceria com o Mosap (Mo- vimento Nacional de Aposentados e Pensionistas), o Encontro ocorreu no dia 20 de março, data em que também

Em que pese o fato da CSD fa- zer campanha de que não quere- mos negociar com os empregados, é importante registrar que tivemos várias iniciativas preliminares ao processo de

Dessa forma, esta pesquisa visa determinar o comportamento dos metais em uma célula experimental, lisímetro, de resíduos sólidos urbanos (RSU) da cidade de Campina