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R E F L E T I N D O S O B R E A P R Á T I C A P R O F I S S I O N A L E O P A P E L

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Academic year: 2021

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E F L E T I N D O S O B R E A P R Á T I C A P R O F I S S I O N A L E O P A P E L D O S

C

O N S E L H O S

Cecilia Coimbra1

É um prazer estar aqui com vocês. É sempre bom estar entre colegas psicólogos discutindo esse tema, tão silenciado na nossa sociedade e entre nós psicólogos. Lembro que, durante muitos anos, quando eu falava de questões relativas à violação dos direitos humanos dentro da psicologia, era rotulada como não sendo psicóloga, como querendo fazer política.

Queria começar lendo um trecho do depoimento de um ex-preso político torturado, um grande companheiro nosso do Rio de Janeiro, Alcir Henrique da Costa, prestado ao Governo do Estado:

“Infelizmente, setores importantes da sociedade não fazem a menor idéia do que significa tortura... Tortura é uma das práticas mais perversas. É a submissão do sujeito, da vontade, ao impor-se a ele a certeza da morte. Mas não uma morte qualquer, é a morte com sofrimento, a morte com muita agonia. É a morte que vai acontecendo bem devagar, porque o desespero deve ser potencializado.O choque elétrico rasga em solavancos as entranhas do indivíduo e o coração parece que vai explodir. O afogamento mistura ar e água, é a consciência da parada cardíaca. A dor dos pulmões que vão se encharcando. O pau de arara, o cigarro aceso queimando a pele e a carne várias horas seguidas e em várias horas do dia, da noite, da madrugada...”.

Essa travessia ao inferno, esses suplícios físicos e psicológicos, esses sentimentos de desamparo, quando é narrado por algum ex-preso político, muito próximo de nós, classe média como a maioria dos presentes, nos choca.

É interessante falarmos isso, porque a tortura foi usada no Brasil reiteradamente. E nós nos acostumamos a que certos segmentos podem e até merecem, ser torturados e exterminados. Por isso, eu fiz questão de começar a minha fala com o depoimento de um companheiro nosso.

Num livro lançado pelo Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, produto de um Seminário realizado em outubro de 1985, há 20 anos, Marilena Chauí, filósofa e intelectual, afirmava o seguinte sobre a situação da tortura:...“a loucura da situação da

tortura é essa: deseja-se que, através da dor e da degradação, um ser humano vire coisa. A

1 psicóloga, professora adjunta da Universidade Federal Fluminense, pós-doutora em Ciência Política pela USP, fundadora e atual

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resistência é encarada como um esforço gigantesco para não perder a lucidez; isto é, para não permitir que o torturador penetre na alma, no espírito do torturado”.

Estou colocando isso, porque a tortura nos indigna. Mas, talvez, ela nos indigne mais quando é utilizada contra certos segmentos sociais.

É importante entendermos que nós brasileiros, que passamos por mais de 300 anos de escravidão, temos isso marcado na nossa subjetividade, nas nossas formas de perceber determinados segmentos subalternizados.

A tortura sempre existiu no Brasil, desde a sua descoberta: contra os índios, contra os negros, contra os ditos diferentes, contra os ditos marginais. E na sociedade capitalista, ela é utilizada, e muito, nos chamados porões diferentemente do que acontecia na Idade Média, durante a Inquisição, quando a tortura era pública. Com o advento do capitalismo – Michel Foucault nos mostra isso muito bem - a tortura para alguns segmentos passa a ser escondida. Segundo esse filósofo, na chamada sociedade disciplinar, que emerge com o capitalismo industrial, surge um dispositivo que até hoje está presente entre nós, no nosso cotidiano, e pouco o percebemos: é o que ele chamou de dispositivo da periculosidade. Ou seja, tão importante quando aquilo que o sujeito fez é aquilo que ele poderá vir a fazer, dependendo da “essência”, da “alma” que lhe foi dada historicamente: se negro, morador de periferia, semi-alfabetizado, poderá se tornar perigoso. Esse dispositivo da periculosidade está presente no nosso cotidiano e é uma coisa perversa, porque funciona – e funciona muito bem – e, por meio dele, controla-se não mais aquilo que o sujeito fez, mas aquilo que ele poderá vir a fazer, as suas virtualidades. E lidamos com isso com muita naturalidade, como se as pessoas tivessem uma essência, uma natureza.

Estou trabalhando aqui com uma concepção, que alguns filósofos trazem, do homem produzido histórica e socialmente. O homem, os objetos que estão no mundo, os saberes que estão no mundo, não têm uma essência, uma natureza, mas são construções históricas das práticas sociais. Dependendo das nossas práticas, nós estamos produzindo determinados sujeitos, determinados objetos, determinados saberes.

A psicologia, o serviço social, a psiquiatria, a medicina, a pedagogia, emergem impregnadas por esse dispositivo da periculosidade. Essas ciências humanas e sociais surgem no século XIX como forma de estudar o homem, conhecê-lo e controlá-lo. É quando homem passa a ser objeto de estudo dessas ciências.

Foucault nos diz que nos diferentes estabelecimentos, chamados por ele de

instituições de seqüestro (hospital, escola, fábrica) seqüestra-se o saber dessas pessoas e

produz-se um outro saber sobre elas. Isso é terrível! E é o que fazemos o tempo todo. Pretendo discorrer um pouco sobre esse dispositivo da periculosidade, durante o período da Ditadura Militar em nosso país. Penso que a banalização da tortura, a naturalidade com que aceitamos a tortura para determinados segmentos sociais, tem muito a ver com o período da Ditadura Militar, quando a tortura se tornou instrumento oficial do Estado Brasileiro.

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Trago aqui um documento do Centro de Informações do Exército, de 1971, do Gabinete do Ministro do Exército, em que se fala de um manual sobre procedimentos durante os interrogatórios feitos a presos políticos. Alguns trechos desse documento dizem:

“... O fator que decide o resultado de um interrogatório é a habilidade com que o interrogador domina o indivíduo, estabelecendo tal advertência para que ele se torne um cooperador submisso...Disso de conclui que o objetivo de interrogatórios de subversivos não é fornecer dados para a justiça criminal processá-los. Seu objetivo real é obter o máximo de informações. Para conseguir isso, será necessário freqüentemente recorrer a métodos interrogatórios que, legalmente, constituem violência. É assaz importante que isso seja bem entendido por todos aqueles que lidam com o problema, para que o interrogador não venha a ser inquietado para observar as regras estritas do direito”2 .

Isso é um documento oficial. É importante entender que o fato da tortura ter sido instrumento oficial do Estado Brasileiro, evidencia que a Doutrina de Segurança Nacional predominava sobre todas as leis, inclusive sobre a Constituição. Ou seja, era dominante a crença de que contra o “inimigo interno” – aquele que punha em risco a “segurança do regime” – toda e qualquer arma era válida, inclusive a utilização da tortura.

Introduzo aqui a questão da nossa formação para tentar fechar minha exposição. Em pesquisa que realizamos na Universidade Federal Fluminense dentro do PIVETES (Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social)3 encontramos no Arquivo Nacional laudos realizados por profissionais do antigo Juizado de Menores, atual Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, em três momentos históricos distintos: anos 30, quando da 1ª lei de menores em 1927; anos 70, época da revisão desta lei em 1979 e anos 90, quando da emergência do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não por acaso, é interessante ver que, nos anos 70, durante o período de Terrorismo de Estado, o assistente social tinha um discurso bastante psicologizante e tal influência da Psicologia encontra-se clara em seus laudos. No Juizado de Menores, à época, o assistente social era a principal figura e esse discurso, com o boom da psicologia e da psicanálise, estava na fala e na escrita de diferentes profissionais.

Não por acaso, a nossa formação tem seu boom no período da Ditadura Militar. Não por acaso nós tivemos a nossa formação dentro de determinados modelos – modelos colocados como verdadeiros, universais, únicos, ahistóricos e eternos,-, que são os modelos de família, de pai, de mãe, de filho... Hoje, ainda, somos minoria dentro das universidades. O estágio que eu oferecia4 no Juizado da Infância e Juventude de Niterói, por exemplo, era considerado não como um estágio em psicologia, mas um estágio em política. Isso era dito por alguns colegas da Universidade Federal Fluminense: “Você vai fazer o estágio da

2 Coimbra, C.M.B. Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro: Oficina do Autor/Intertexto, 2002. 3 Nascimento, M.L. (org.). PIVETES: a produção de infâncias desiguais. Rio de Janeiro: Oficina do Autor/Intertexto, 2003. 4 Tal estágio funcionou no período de 1992 a 2005.

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Cecília? Aquilo não é um estágio de psicologia, aquilo é um estágio de política.” Como se a política estivesse desvinculada da psicologia. Como se uma determinada clínica que vigora aí não fosse uma clínica política. Como se, no momento em que eu emito um laudo e que eu estou produzindo um determinado sujeito através daquele laudo, eu não estivesse fortalecendo uma certa política.

A nossa formação crê na neutralidade, na objetividade do nosso trabalho, acredita na cientificidade de nossa atuação e ela pensa que chegaremos à essência do que é o sujeito. Ou seja, a psicologia deverá chegar a uma determinada verdade sobre o sujeito.

Em cima dessas crenças e desses mitos, em nosso cotidiano, forjamos o que a Maria Helena Patto chama de “pequenos assassinatos”. Nós somos – e acho que temos que assumir isso – responsáveis na nossa prática cotidiana por produzir determinados modelos de família como sendo os melhores, determinados sujeitos como sendo sujeitos faltosos, carentes.

Eu trouxe um livro cujo título provocativo é Clínica e Política5. É um trabalho que vem sendo realizado pela equipe Clínico Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro constituída por psicólogos, psicanalistas, psiquiatras que atende pessoas atingidas pela violência do Estado no período da Ditadura e na atualidade.

Esse trabalho que vem sendo desenvolvido desde 1992, tem o financiamento do Fundo Voluntário das Nações Unidas para as Vítimas da Tortura. Nós não utilizamos a palavra vítima, porque achamos que tal conceito despotencializa o sujeito, fragiliza-o. De um modo geral, trabalhamos com pessoas que necessitam que alguém lhes diga o que ele tem que fazer, como se comportar; em suma: como viver. É isso o que, de um modo geral, fazemos o tempo todo. Preferimos nos referir às pessoas atingidas, como sobreviventes da tortura – como usa um grupo dinamarquês, com o qual temos muito contato e que faz um trabalho muito bonito também.

No livro citado há vários artigos de pessoas que trabalham com estas questões. E, no final tem a tradução integral do Protocolo de Istambul que é um documento elaborado, em 1999, por vários profissionais de saúde, reunidos num Simpósio Internacional sobre Tortura. Esse Protocolo vai apontar como um profissional de saúde pode, através de observações, através de conversas, de entrevistas, perceber que uma pessoa foi torturada, e como encaminhar as denúncias dessas violações.

Eu acredito que isso seja muito importante, principalmente pelo momento em que vivemos, onde determinados segmentos são vistos como perigosos e, portanto, não humanos ou menos humanos que nós. Em que a tortura é vista com muita naturalidade e, até considerada necessária para esses segmentos; e com o que nós, profissionais da saúde, muitas vezes somos coniventes, pelas nossas práticas, e pelo medo que impera contra qualquer tipo de denúncia. Sabe-se muito bem que para denunciar alguma coisa nesse país é preciso muita coragem, porque não se tem respaldo, e as entidades são poucas.

5 Rauter,C; Passos,E.& Barros,R.B. Clínica e Política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: IFB/Te Corá

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E, aqui, quero fazer um apelo. Considero que os Conselhos Regionais e os Conselhos Federais, têm papel importantíssimo ao lado de entidades da sociedade civil, no sentido de não só respaldar, mas acompanhar o trabalho – não no sentido de fiscalizar ou monitorar - dos seus profissionais para que eles possam, efetivamente, pensar numa prática não violadora dos direitos humanos.

Coloquei aqui dois tipos de violações. Um, que aprendemos em nossa formação e achamos natural: quando fazemos um laudo, e consideramos que a criança está na falta, é carente, vem de família desestruturada. Muitas vezes não percebemos que estamos violando, que estamos produzindo violações.

Um outro tipo de violação é esse que ocorre em determinados tipos de estabelecimentos onde trabalhamos, e sabemos que são estabelecimentos que utilizam a tortura cotidianamente: presídios ou estabelecimentos de medidas sócio-educativas. e vários outros, onde estamos sabendo, por parte de outros profissionais, a violação dos direitos humanos.

Nessas duas situações temos que ter o respaldo dos nossos Conselhos. Temos que procurar parcerias com entidades da sociedade. Acho fundamental que não trabalhemos sozinhos. A atuação desses profissionais das áreas humanas e sociais é um trabalho extremamente solitário, e isso não é por acaso. Não é por acaso que nos locais em que trabalhamos os horários de reunião são esvaziados ou são encontros meramente burocráticas. Em momento algum discutimos o nosso cotidiano, o que as nossas práticas estão produzindo.

Para encerrar há uma coisa importante para pensarmos. Todos ficam preocupados – eu vejo isso pelos alunos lá da UFF - com o que fazer e como fazer. Agora, para o que é

que eu faço, pouco nos preocupamos. Que efeitos as minhas práticas cotidianas estão

produzindo no mundo? Para quê eu estou fazendo determinada tarefa? Não paramos para pensar porque em momento nenhum nos ensinaram isso no curso de formação. Nos nossos cursos só nos ensinam o que é que vamos fazer e como vamos fazer, como se fossem modelos a seguir, religiosamente.

É importante que comecemos a pensar um pouquinho no nosso cotidiano, em cima das nossas práticas. Penso que produzir espaços coletivos de discussão, produzir parcerias, hoje, é fundamental, para que possamos efetivamente nos perguntar: para quê eu estou fazendo isso?

Termino com uma fala de Bertold Brecht, teatrólogo alemão, que diz o seguinte:

“(...)

Desconfiai do mais trivial, Na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente:

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Como coisa natural,

Pois em tempo de desordem sangrenta, De confusão organizada,

De arbitrariedade consciente, De humanidade desumanizada, Nada deve parecer natural

Nada deve parecer impossível de mudar. (...)”

(“Elogio à Dialética”)

Referências

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