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OUTONO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO E A TEORIA DA AÇÃO POLÍTICA EM NICOLAU MAQUIAVEL E HANNAH ARENDT

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OUTONO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO E A TEORIA DA AÇÃO

POLÍTICA EM NICOLAU MAQUIAVEL E HANNAH ARENDT

Danilo Arnaldo Briskievicz

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Introdução

O Brasil passou nos meses de junho e julho de 2013 por um interessante fato social chamado por alguns autores de “Primavera brasileira” ou de “Outono democrático2”. O slogan “não é pelos vinte centavos” serviu de referência às perdas e insatisfações dos brasileiros nos mais diversos setores. E quando o homem de massa, fenômeno típico da modernidade política, se torna insatisfeito desenvolve a fobia social e se torna descontente. Nesse momento de crise ele ressurge com força total para reivindicar direitos que antes eram considerados respeitados, como a mobilidade urbana. Mas o que levou o homem de massa para as ruas? O que fez o gigante adormecido acordar e deixar seu espaço de conforto, sua casa, as redes sociais, as periferias, o seu quase certo anonimato? Por que o brasileiro levou às ruas a sua indignação?

A ação dos movimentos de junho e julho no espaço público brasileiro nos faz perguntar a respeito da crise do republicanismo nacional. A decadência do modelo republicano brasileiro pode ser pensada pela Filosofia Política usando, assim, dois autores que parecem propor conceitualmente modelos da teoria da ação no espaço público e na vida política na modernidade. De um lado, Nicolau Maquiavel (1469-1527) nos apresenta uma ideia de Estado e de República e, claro, de cidadania, abrindo a modernidade política ocidental. Do outro lado, Hannah Arendt (1906-1975) propõe uma revisão dos princípios políticos da modernidade a partir da experiência dos totalitarismos na primeira metade do século XX e propõe uma reflexão acerca do que é a cidadania no mundo contemporâneo.

Dialogando com Maquiavel e Arendt pretendemos diagnosticar teoricamente a origem da insatisfação dos brasileiros em relação à representatividade da sociedade civil no governo. Afinal de contas, se soubermos onde está a origem do problema podemos entender melhor o Outono democrático.

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Mestre em Filosofia Política pela UFMG com dissertação intitulada Violência e poder em Hannah Arendt. Acesso: http://www.recantodasletras.com.br/trabalhosacademicos/1646163. Palestra proferida por ocasião do evento do Colégio Santo Agostinho de Contagem “Cabeças que pensam, atitudes que movem”, ocorrido em 09 de novembro de 2013.

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Preferimos o “Outono democrático” uma vez que demonstra melhor a temporalidade brasileira e não se iguala conceitualmente a outras primaveras já conhecidas como a Primavera de Praga foi um período de liberalização política na Tchecoslováquia durante a época de sua dominação pela União Soviética após a Segunda Guerra Mundial ou ainda a Primavera Árabe oriental. Ver SANTOS, Fabiano. Primavera brasileira ou outono

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I.Nicolau Maquiavel: “não é apenas pelo poder”

Quando escreveu o clássico livro de filosofia política moderna intitulado O príncipe, no ano de 1513, o florentino Nicolau Maquiavel não apenas sugeriu um conceito de poder político afastado da teologia e livre de valores transcendentes. Ele revelou que a política nada mais é que aparência de poder. Diante de uma Itália fragmentada em tipos de poderes dos mais variados e em diferentes modelos de organização quis Maquiavel fomentar em quem tivesse a coragem para tal o desejo de unificação territorial e política. Para unificar a Itália Maquiavel sugeriu a república por acreditar ser ela o modelo que melhor supera os conflitos internos.

Para tanto, estimulou a imaginação de quem quisesse se arriscar na difícil tarefa de fundar um Estado. Prometendo um manual de como bem governar e manter o aparelho estatal, Maquiavel deixou nas entrelinhas de sua obra a teoria da ação popular. Sabedor de que não existe governante sem governado, poderoso sem submisso, Estado sem lei, propôs um modelo republicano, baseado na experiência da Roma clássica.

Mas o que vem a ser a teoria da ação para Maquiavel?

Em primeiro lugar, é preciso entender como se processa a ação do fundador do Estado.

O príncipe deve aparentar autoridade e poder. Deve ser ardiloso a ponto de reconhecer seus inimigos e favorecer os seus amigos. O príncipe não pode apenas se reportar a si mesmo para garantir a sua eficiência: deve aparentar respeito às leis. O príncipe deve ligar-se à sociedade civil pela lei justa, pela lei ordenadora do espaço público. O príncipe é assim, um exemplo a ser seguido no espaço público onde a força é posterior ao diálogo e ao jogo teatral do poder. Ao povo cabe reconhecer no príncipe um modelo acabado de ação que visa ao bem coletivo. Mas o povo nunca é o príncipe: a ligação entre eles é a lei. Por isso, para que haja entre o povo e o príncipe alguma relação possível, realmente possível, é preciso que haja a legislação. O diálogo entre o representante do estado e o vulgo, o povo não é direto, mas indiretamente constituído: é a lei. Para o príncipe existem algumas leis para que ele seja reconhecido como valoroso para o vulgo: a piedade, a bondade, a generosidade, a justiça. Mas ao príncipe cabe, também, reconhecer que o espaço público da ação do vulgo é repleto de riscos. Por isso, precisa aparentar a capacidade de se tornar violento quando o Estado e o seu poder forem colocados em risco por rebeliões e revoltas do populacho. Ao príncipe cabe zelar pela aparência de retidão. Ao povo cabe obedecer às leis para se fazer ouvir de maneira justa.

No jogo político entre o príncipe e a sociedade civil se constitui a república. A república para Maquiavel é o melhor modelo de organização política na qual cada homem pode usufruir ao máximo da

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sua liberdade individual. Para Maquiavel, o rei não interfere na vida pessoal, antes, apenas, na vida pública. O cidadão não está submetido a ninguém, a nenhum grupo. Está submetido pela razão de ser da república: a lei. A lei estabelece o que podem e o que não podem fazer os jogadores no espaço público. Essa funcionalidade da república maquiaveliana traz como resultado para a ação na modernidade que o exercício do poder é do povo, não do príncipe. Ao povo cabe o poder. Ao governante cabe gerenciar as necessidades populares já que o bem do povo é o próprio bem do governante e sua manutenção no poder. A liberdade pública de ação no espaço público é a grande conquista do cidadão na modernidade: podemos ter vários desejos privados, mas no espaço público aprendemos a abrir mão do que nos é prazeroso enquanto indivíduos para o que valioso enquanto uma coletividade. Aprendemos que a república maquiaveliana é um acordo coletivo entre dois autores – o governante e a sociedade civil para se alcançar o bem comum.

Podemos supor, então, que Maquiavel percebe a república como o paraíso na terra? Absolutamente, não. Para conseguir unificar os diversos desejos populares cabe ao príncipe entender que o Estado tem a prerrogativa do uso da força na guerra contra os inimigos externos e nas disputas internas pelo poder. Cabe ao príncipe gerenciar a força simbólica de seu papel político. Nem sempre é necessário chegar às vias de fato. Ameaçar simbolicamente e conseguir seus objetivos de maneira rápida é uma forma de ação considerada poderosa.

Portanto, ao príncipe cabe o exercício do poder como relação necessária com a sociedade civil. O ponto de contato entre o Estado e o cidadão é a lei. O império da lei, então, se revela como a possibilidade da manutenção da ação do governante e do cidadão no espaço público. A lei medeia ação de cada um dos atores políticos. Em noutras palavras: existe estado na medida em que os conflitos que estruturam e convulsionam a vida política requerem a existência de uma estrutura institucional que os acomodem sem suprimi-los.

Em segundo lugar, é preciso entender como se configura a ação do cidadão na modernidade a partir de Maquiavel.

O homem para Maquiavel tem natureza egoísta e corrupta. O homem deseja sempre a realização de seus desejos. Quer realizar os seus impulsos de natureza privada. Por isso, cabe à lei republicana organizar os diversos desejos, disciplinando-os em um bem comum, que seja evidentemente o caminho mais justo para a maioria. Com esse procedimento, mantem-se a funcionalidade do Estado e, de fato, o Estado passa a governar para o público e não para o privado.

A lei republicana é um acordo para que o cidadão tenha participação política. Nesse sentido, a liberdade no espaço púbico é valorizada por Maquiavel. A liberdade é sintetizada na racionalidade das leis, que forma um corpo funcional, estável, alicerçado em instituições representativas para a sociedade

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civil. O republicanismo maquiaveliano garante, assim, que diante da lei o cidadão resolve, momentaneamente, seus conflitos. A lei é o resultado do espaço público conflituoso, mas que supera as vontades individuais pelo senso aprofundado de bem comum. Por isso, para Maquiavel uma sociedade pouco acostumada a agir terá enormes dificuldades em enfrentar as situações nas quais sua integridade, enquanto corpo político está em risco.

Portanto, Maquiavel permite compreender que os questionamentos e a instabilidade são inerentes à vida política moderna. Se o exercício do poder é sempre relacional, nada mais natural do que seu constante enfrentamento e a necessidade de seu rearranjo. Nesse sentido, a atual crise de representatividade das instituições republicanas na modernidade brasileira é mais um capítulo na história da política nacional baseada nos princípios maquiavelianos. Por isso, o povo, no sentido mais amplo, demanda sempre mudanças quando a representatividade das leis não exerce o papel de conformação do projeto das liberdades individuais. Por isso, a democracia representada na república brasileira sempre exigirá uma mudança na representativade. A vida pública é turbulenta e o conflito produz mais representatividade dos desejos individuais e dos movimentos sociais que mudam com o tempo já que a história é dinâmica e nunca estática.

II.Hannah Arendt: “não é apenas pela banalidade do mal”

O pensamento político de Maquiavel exerceu influência sobre a pensadora alemã Hannah Arendt. Como profunda conhecedora da modernidade política Arendt se preocupa com os temas maquiavelianos, em especial o da fundação do corpo político e as relações entre o Estado e a sociedade civil, bem como a constituição do espaço público.

Mas como podemos entender a teoria da ação na obra de Hannah Arendt? Entendendo a vida orgânica como base da vida pública. Nós desenvolvemos nossa história política sobre uma base de organismo vivos sujeitos ao nascimento, manutenção da nossa existência (ação individual ou coletiva, orgânica ou no mercado de trabalho) e à morte.

Em relação ao início da nossa vida pública ela começa com a natalidade. A nossa história começa quando a novidade dos novos sujeitos aparece em forma de uma nova vida. Para quem está vivo e aparece no espaço público a ação e o discurso são, de acordo com Hannah Arendt, os modos pelos quais os seres humanos se revelam uns aos outros na teia das relações intersubjetivas. Explica ela, no capítulo V de A condição humana, como as histórias, resultando da ação e do discurso, desvendam um sujeito. Ninguém é autor de sua própria vida, mas sim seu sujeito – na dupla acepção da palavra. Toda vida

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humana, compreendida entre o nascimento e a morte, constitui uma história, que se insere na História – livro de muitos atores e narradores, mas sem autores tangíveis.

A natalidade é uma capacidade de iniciar algo novo, é a novidade dinâmica da ação e do discurso, trazido pela renovação da humanidade através do nascimento. A natalidade é o distintivo da sua teoria da ação. A natalidade está ligada fundamentalmente ao poder na conceituação arendtiana, desqualificando, assim, a mortalidade, ligada que se encontra à violência política.

Para Arendt, agir e começar algo novo se equivalem, ou seja, a ação é uma realidade “mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir.” Assim, enquanto iniciativas “todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade,” o que desqualifica imediatamente a violência política. Para Arendt, “como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico3”. Para Arendt, a ação é uma característica da própria vida, uma vez que “ninguém governa os mortos4”.

A vida, o mundo e a pluralidade humana são tópicos muito frequentados por Arendt. Investigando a singularidade humana e os homens em sua pluralidade, colocando a humanidade no centro de suas discussões, Arendt se propõe a “reconsiderar a condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes.” Para ela, pensar sobre a humanidade e a condição do homem diante da vida e do mundo “trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo5”.

Em sua teoria da ação, Arendt descreve a vita activa como “a vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo, tem raízes permanentes num mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens, um mundo que ela jamais abandona ou chega a transcender completamente”. A condição humana é dada “em termos das possibilidades abertas pelas três atividades fundamentais, isto é, ora como zoon politikon, como ser político e, portanto, participante da vida política organizada na comunidade em que existe; ora como homo faber, isto é, como artesão ou artista, quando quer que se ocupe de criar objetos artificiais dotados de durabilidade, os quais se acrescentam e formam o mundo; e ora enquanto animal laborans, sempre que ele se empenha na manutenção do ‘ciclo vital’ que garante a sua sobrevivência e a da espécie.”

Para Arendt, o homem transforma sua condição na medida em que pode alterar a si mesmo com o decorrer do tempo. Nesse sentido, “reflete sobre as atividades humanas do trabalho, da fabricação e da ação política concebendo-as como componentes estruturais da condição humana” e com isso acaba

3

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000 (10ª ed.), p 16-17.

4

Id., Ibid., p. 213.

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“discutindo-as tanto em seus traços fenomenológicos fundamentais quanto em relação ao significado que elas adquiriram em cada período ou época históricos.”6

A natalidade, ou seja, a condição biológica para a existência humana é o ponto de partida para as três atividades estabelecidas por Arendt.

A primeira atividade é o trabalho que “assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie.”

A segunda atividade é a fabricação “e seu produto, o artefato humano, [que] emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano.”

A terceira atividade é a “ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história.” Assim, trabalho, fabricação e ação7 têm seu fundamento na “natalidade, na medida em que sua tarefa é produzir e preservar o mundo.” Por isso, a própria “capacidade de começar tem raiz na natalidade, e de forma alguma na criatividade, não em um dom, mas no fato de que os seres humanos, novos homens, continuamente aparecem no mundo em virtude do nascimento8.”

Para Arendt, “a ação está mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir.” É por isso que, “neste sentido de iniciativas todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade9.”

Para Arendt, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.

Ao manter-se vivo o ser humano constrói uma teia de relações e de histórias humanas10. O mundo enquanto esfera pública não é uma construção natural, é um “artifício humano – separa a

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DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000, 91

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Para uma abordagem ampla sobre a tradução dos termos labor, work e action ver nota de roda pé nº 93, p.62-63 em: WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt e Karl Marx. O mundo do trabalho. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. Optamos por usar a tradução de labor por trabalho, work por fabricação e action por ação.

8

ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, p. 348.

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ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. Cit. p. 16-17.

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Para Arendt, “a rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia de relações humanas que existe onde quer que os homens vivam juntos. A revelação da identidade através da ação incide sempre sobre uma teia já existente, e nela imprimem suas consequências imediatas.” E ainda: “as histórias, resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas esse agente não é autor nem produtor. Alguém a iniciou e dela é o sujeito, na dupla acepção da palavra, mas ninguém é seu autor. O motivo pelo qual toda a vida humana constitui uma história e pelo qual a História vem a ser, posteriormente, o livro de histórias da humanidade, com muitos autores e narradores, mas sem autores tangíveis, é que ambas resultam da ação. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. Cit. p.196-197.

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existência do homem de todo ambiente meramente animal11”. O mundo é uma fabricação humana. A fabricação “é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último.” É através da fabricação que o homem “produz um mundo ‘artificial’ de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais.” A fabricação é o trabalho voltado para o mundo, ou seja, “a condição humana do trabalho é a mundanidade12”.

O mundo se torna estável através da política. Nesse sentido, o mundo é comum, integra todos os seres humanos, uma vez que é “aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos”. A estabilidade diz respeito ao que permanece, para além do trabalho e para além da fabricação, “transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência”. Por isso, o mundo é um artifício humano entre o passado e o futuro, ou seja, “o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós13”.

O mundo, para Arendt, é um artefato humano construído coletivamente. É essa esfera pública14, enquanto mundo comum, que podemos chamar comunidade política. Nesse sentido, “só a existência de uma esfera pública e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles depende inteiramente da permanência. Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida de homens mortais15”.

O mundo é o conjunto de instituições e regras de convivência, as leis, que separam assim o homem da natureza, é um artefato. Para Arendt, “a fragilidade das leis e instituições humanas e, de modo geral, de todo assunto relativo à coexistência dos homens, decorre da condição humana da natalidade, e independe inteiramente da fragilidade da natureza humana16”. O mundo é uma esfera pública institucionalizada que deve sobreviver aos processos naturais de nascimento e morte para que consiga a sua permanência e estabilidade.

11

ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. Cit. p.10

12

ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. Cit. p. 15.

13

Id., Ibid., p. 65.

14

Espaço público é compreendido aqui como “o local onde os indivíduos se veem e são vistos, falam e ouvem. É

onde ocorre o encontro com os outros, em princípio iguais, mas que se diferenciam por sua atuação, por seu

discurso. Esse é o espaço do político, da reunião pública, na qual cada um percebe-se em simetria e identifica-se como membro de uma mesma comunidade.” SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt: história e liberdade (da ação á

reflexão). Caxias do Sul: EDUCS, 2006, p. 44.

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ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. Cit. p. p. 64.

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Conclusão

Maquiavel e Arendt em épocas diversas alertam para a configuração política que garanta a constante renovação das aspirações populares face à estabilidade do poder do Estado. Ora, a sociedade civil é instável enquanto que o Estado como instituição tende à conformação. Nessa dialética entre Estado e sociedade civil fica claro que a república é a melhor garantidora do diálogo e da contínua necessidade de liberdade da população.

Pensando a relação entre Maquiavel, Arendt e o Outono democrático brasileiro temos um ponto de partida: a república e o necessário império das leis. Mas temos um ponto de chegada – o momento atual-, que estabeleceu uma crise dos fundamentos do ponto de partida. Então, rever o que queremos com a nossa ação é fundamental.

Por isso, parece-nos propício indicar três conceitos basilares para uma boa relação entre governo e sociedade civil no Brasil atual.

O primeiro é o tratamento da coisa pública com seriedade. Nós brasileiros, exigimos seriedade do governo na aplicação dos recursos recolhidos em forma de impostos, taxas e do pagamento para o funcionamento do sistema público de transporte nas principais cidades do país.

O segundo é a transparência. Nós brasileiros, exigimos que os mecanismos de gestão do Estado sejam transparentes de modo a evidenciar o respeito à sociedade civil. Gastos transparentes, prestações de contas do dinheiro público, obras de mobilidade urbana devem ser geridos com transparência. Os escândalos relacionados ao mal uso do dinheiro público no Brasil fragilizam a relação entre governo e sociedade civil.

E um terceiro ponto é a eficiência. A racionalidade estatal não pode prescindir da eficiência. Não a eficiência para debelar as manifestações cidadãs democráticas. Não a eficiência em desmoralizar a legitimidade dos movimentos sociais nas ruas da nação. Eficiência é o diferencial dos governos contemporâneos. Onde houver necessidade de atuação do Estado não pode haver um serviço mais ou menos. Ele precisa de absoluta eficiência para que o cidadão sinta que a relação entre governo e sociedade civil merece ser preservada.

Assim, Maquiavel e Arendt nos estimulam a pensar na vida pública como o espaço para a liberdade para a ação e, principalmente para o discurso. Que venham outros outonos democráticos. Que venham outros slogans criativos e bem humorados.

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Bibliografia

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000 (10ª ed.).

_______________. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. _______________. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: UnB, 2007 (2 vol.).

BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. Violência e poder em Hannah Arendt. Disponível em http://www.recantodasletras.com.br/trabalhosacademicos/1646163. Aceso: 03/11/2013. CARDOSO, Sérgio (Org.). Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.

DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Nova cultural, 1999.

MORAES, Eduardo Jardim de Moraes e BIGNOTTO, Newton (Orgs). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,

memórias. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

SANTOS, Fabiano. Primavera brasileira ou outono democrático? In: Inteligência Julho, Agosto, Setembro 2013

SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt: história e liberdade (da ação á reflexão). Caxias do Sul: EDUCS, 2006.

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