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Publicado em Anais do I SEMI ÁRIO I TER ACIO AL: Enfoques Feministas e o Século XXI: Feminismo e Universidade na América Latina, UFBA, Salvador, dez. 2005. CD Rom, 2006.

O LUGAR DO CORPO AS PRÁTICAS IDE TITÁRIAS LI GÜÍSTICAS

Joana Plaza Pinto (Universidade Federal de Goiás)

RESUMO: Baseado em Austin e algumas de suas interpretações contemporâneas, este texto propõe algumas reflexões sobre a relação corpo-linguagem no campo das práticas identitárias. Procuro expor alguns elementos e propriedades dos atos de fala numa primeira aproximação com práticas corporais, para, então, localizar as regulações do corpo nessas práticas lingüísticas – e portanto o lugar do corpo nessas práticas.

PALAVRAS-CHAVE: corpo; atos de fala; práticas identitárias

uma abordagem pragmática [...] o que se busca são as condições em que os mais diversos objetos são identificados. (Rajagopalan, 2003a: 24)

0. Apresentação

Muitos antropólogos do século XX mostraram que o corpo aprende o que lhe é ensinado, com riqueza de adestramento e significação. Mauss (2003), por exemplo, cita várias técnicas do corpo, da natação à nutrição, que são aprendidas e, portanto, podem ser mudadas, como as demais dinâmicas culturais. Nesse começo de século, o corpo significa é quase um truísmo! O que diferencia, afasta e aproxima

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teorias diversas são as bases usadas para interpretar essa significação e os rumos da análise sobre o tema.

O corpo do falante foi sempre um tema fragmentado no âmbito das mais diversas teorias da linguagem. Saussure (1991:19-23) – exemplo ilustrativo e fundador – descreveu seu circuito da fala incluindo processos fisiológicos, físicos e psíquicos; no entanto, sua descrição objetivava excluir do domínio da Lingüística tudo que, na dicotomia mente/corpo, pertencesse ao segundo elemento do par – o que poderíamos encontrar nos processos fisiológicos e físicos. Eventuais preocupações com problemas específicos do aparato psicofísico-motor deveriam ter como fim explicar a língua, seguindo uma certa tradição mentalista dedicada a explicar como sons se relacionam com pensamentos.

Alguns textos isolados percebem e expressam há algum tempo a importância do corpo na linguagem – ou, pelo menos, das conseqüências de certos acontecimentos da neurofisiologia e da física na linguagem. O exemplo mais conhecido talvez seja o de Jakobson (1974), que relacionou claramente, num artigo brilhante, “perturbações afásicas” com a natureza da própria linguagem. Ele afirma que “a desintegração afásica das estruturas verbais pode abrir, para o lingüista, perspectivas novas no tocante às leis gerais da linguagem” (Jakobson, 1974:35-36), e censura a Lingüística por não se dedicar a fenômenos dessa natureza1. No entanto, desde os anos oitenta, questões neurofisiológicas, como as patologias neurolingüísticas (cf. Morato, 2001), e questões físicas, como a mecânica articulatória (cf. Albano, 2001), têm conquistado espaço nas explicações lingüísticas, não como questões complementares à chamada natureza psíquica da língua, mas como elementos fundamentais na compreensão das “leis gerais da linguagem”, contestando a noção saussuriana de que a língua possa ser explicada sem consideração aos processos fisiológicos e físicos. Mas essa diluição dos limites da língua para além do psíquico de Saussure não nos leva a um corpo, mas a uma anatomia. ‘Questões neurofisiológicas’ ou ‘a mecânica articulatória da fala’ são expressões do campo anatômico, que se mantêm ainda tangenciais diante dos problemas que o corpo – como objeto-sujeito aprendido – nos oferece.

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Contrariando os preceitos dessa tradição, o senso comum, por sua vez, nunca foi negligente diante da relação corpo-linguagem. Exemplos se confirmam nas percepções ordinárias de que o tom de voz, as expressões do rosto, movimentos dos braços complementam, e muitas vezes alteram, sentidos de enunciados inteiros. Essa percepção leiga chama a atenção para a relação entre a interpretabilidade e a legibilidade lingüística e a interpretabilidade e a legibilidade corporal (Pinto, 2002). Enquanto a incongruência entre as abordagens lingüísticas e as percepções ordinárias pode nos levar a refletir sobre as dinâmicas de poder entre leigos e cientistas (Rajagopalan, 2003b), o tratamento disperso do corpo na Lingüística nos mostra como os processos de significação do corpo ficaram afastados da discussão sobre os processos de significação lingüística.

Mas importantes aproximações recentes têm sido feitas pelos estudos de identidades – especialmente com a efervescência e consolidação da Lingüística Aplicada no Brasil – que percebem “a subjetividade, a sócio-história e as culturas inscritas nos corpos [...] como fundamentais na compreensão do mundo em que vivemos”, e se mostram multidisciplinares, atravessando fronteiras disciplinares “sem ter que apresentar passaporte” (Lopes & Bastos, 2002:14-15). Nesse campo, o corpo precisa ser problematizado, “não o corpo instintivo e desejante concebido por Platão, Santo Agostinho ou Freud, mas o corpo dócil e regulado, colocado a serviço das normas da vida cultural e habituado às mesmas” (Jaggar & Bordo, 1997:20), corpos regulados pelas práticas identitárias, mas também reguladores delas (Butler, 1999a); corpos disciplinados e corpos nas bordas da cultura (Zita, 1998); corpos sujeitados e sobre-determinados e corpos rejeitados (Boyne, 1999).

Por um lado, em virtude da crescente divulgação da obra de Butler (1993; 1997; 1999a) nos estudos sobre corpo, a noção de performatividade, cunhada e desenvolvida por Austin (1976) para discutir os atos de fala, tornou-se conhecida e debatida. Por outro lado, a chamada Teoria dos Atos de Fala tem sido reconhecida no meio acadêmico como uma das soluções teóricas para o problema da construção de significado, especialmente entre os estudiosos que procuram incluir o uso da linguagem na sua descrição dos sentidos lingüísticos. Tendo em vista a relação desse 1

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autor tanto com um debate contemporâneo sobre o corpo quanto com uma longa história do debate semântico em teorias lingüísticas, nos próximos parágrafos, seguem algumas reflexões sobre a relação corpo-linguagem a partir de Austin (1976) e algumas(ns) de suas(eus) leitoras(es) contemporâneas(os). Procuro expor alguns elementos e propriedades dos atos de fala no rumo de uma primeira aproximação com práticas corporais, para chegar, então, a localizar as regulações do corpo nas práticas lingüísticas – e portanto o lugar do corpo nessas práticas.

1. Elementos e propriedades dos atos de fala

Como uma entre várias controversas interpretações e apropriações de sua obra, teorias contemporâneas sobre o corpo apropriaram-se do texto compilado em How to do things with words (Austin, 1976) para debater o problema corpo-linguagem. Discutindo o lugar do corpo no ato de fala (Butler, 1993; Butler, 1997; Butler, 1999a; Cameron, 1992; Derrida, 1994; Derrida, 2002; Felman, 1990; Ziarek, 1997; Zita, 1998) ou os processos corporais de subjetivação (Boyne, 1999; Butler, 1999b; Colebrook, 2000), autoras e autores diversos exploram, direta ou indiretamente, o pensamento austiniano em suas incursões sobre o tema corpo.

Mostrei em outra ocasião que a obra de Austin (1976; 1994; 1998) oferece uma ambigüidade teórica produtiva sobre relação entre corpo e linguagem, apostando “na atualidade e radicalidade teóricas austinianas para a compreensão do lugar das práticas corporais nas práticas lingüísticas” (Pinto, 2004:583). Nessa ocasião, apontei o que Austin chama de puzzling cases como o espaço de imprecisão dos limites entre significados produzidos por sons e regras gramaticais, e significados produzidos pelo corpo nos atos de fala.

Esses casos poderiam ser apontados numa seqüência de argumentação sobre a performatividade, propriedade do ato de fala que torna o dizer um fazer. Sigamos: o enunciado

tivessem nada a ver com a linguagem” (Jakobson, 1974:35).

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(1) Eu vos declaro marido e mulher.

pode se tornar um ato de fala, se for realizado no que Austin (1976:8) chama de “circunstâncias apropriadas” – ou, mais adequadamente, “rito” Austin (1976:19). Como a força desse ato depende – entre outras coisas – do enunciado em si, autores procuraram identificar marcas no próprio enunciado que garantissem sua performatividade. Indícios verbais, como expressões de intenção declarada ou presumida (Strawson, 1977) ou o verbo declarativo-jussivo (Benveniste, 1991), foram levantados como possíveis marcas que garantiriam a força do ato de fala.

Uma dificuldade em se manter essa busca do ato de fala na cadeia verbal é que, mesmo que completos todos os elementos da suposta estrutura básica do enunciado performativo – no caso de (1), a primeira pessoa do singular do presente do indicativo – o enunciado pode não realizar a força de, no exemplo, casar duas pessoas, pelo (não tão) simples fato de a pessoa que enuncia não estar autorizada para executar esse ato. Para a força ilocucionária, a autoridade para a ação se conjuga com as marcas verbais do enunciado. Austin (1976:15) prevê fortemente o elemento de autoridade na condição A.2, ainda que se possam encontrar indícios da autoridade nas demais cinco condições (Austin, 1976:14-15). Até aqui, em geral, encontramos muitos autores acordados sobre a autoridade como um dos elementos chamados “contextuais” para o ato de fala. Conforme nos mostra Colebrook & McHoul (1996), Searle o localiza nas “regras constitutivas” do contexto de um ato de fala, enquanto Coulter adota uma “determinação ‘exaustiva’ nos termos de particulares localmente relevantes”2 – no caso (1), a relevância particular poderia ser, no caso de um casamento católico, a da autoridade de um membro do clero.

Outro elemento importante é quem testemunha o ato de fala e seu efeito – ser casado – e é autorizado por ele. Usarei a expressão identificação perlocucionária, não sem reservas3, para nomear esse ponto da cadeia do ato de

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Esta e as demais passagens citadas de textos em inglês foram traduzidas por mim. 3

Minha reserva se fundamenta na reconhecida utilização desse termo pela psicanálise, definido em termos da assimilação de um aspecto, de uma propriedade, de um atributo de outrem e transformação, total ou parcial, segundo esse modelo. No entanto, o termo é aqui utilizado no sentido de Rajagopalan (2003a:24-25): “as condições em que os mais diversos objetos são identificados [...] atos identificatórios”.

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fala. Ela diz respeito ao fato de que o ato de fala tem sua força comprometida se, nas circunstâncias rituais na qual ele for proferido, os objetos pretendidos de seu efeito não forem adequados para a perlocução pretendida. No caso de (1), destaco aqui um aspecto bastante óbvio: a naturalização binária dos corpos e suas posições. Não basta desejar casar-se, é preciso desejar casar-se com o sexo oposto para realizar o efeito endereçado do ato de fala do enunciado (1).

Vale dar ênfase que, na distinção entre autoridade e identificação perlocucionária, não se trata de forma alguma de um didatismo para explicar a relação diádica que fundamenta uma certa subjetivação pela reversibilidade (Butler, 1997:30). Entre esses elementos não é a subjetividade reversível que está em jogo, muito pelo contrário, é a autoridade que define a identificação perlocucionária, nos termos da discussão de Butler (1997) à noção althusseriana de interpelação:

Interpelação é um ato de fala cujo ‘conteúdo’ não é verdadeiro nem falso: a descrição não é sua tarefa primária. Seu propósito é indicar e estabelecer o sujeito na sujeição, produzir seu contorno social no espaço e no tempo. (Butler, 1997:33-34).

Portanto, ‘autoridade’ não pode se deixar substituir por ‘locutor’ e muito menos ‘identificação perlocucionária’ pode se deixar substituir por ‘interlocutor’. Esse é um cuidado importante em função da passagem que pretendo fazer agora.

A partir desse ponto, gostaria de introduzir um aspecto da leitura austiniana de Derrida (1990) – a iterabilidade, que vai se juntar aos elementos reconhecidos mais como uma propriedade que pretende explicar suas relações; esse aspecto será brevemente explicado dados os limites deste artigo4. Esse autor procura debater a performatividade incluindo o conceito de iterabilidade para evidenciar a possibilidade estrutural de todo signo de ser repetido na ausência não somente de seu referente, mas também na ausência de seu significado ou intenção determinada. Essa ausência é o vácuo obrigatório para a repetição, a différance. Parafraseando Derrida (1998), a palavra différance interessa no contexto em que ela se deixa substituir ou determinar por ‘iterabilidade’, porque este é o conceito que se

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encadeia a um certo pensamento austiniano sobre ‘efeito’ e ‘força’. Esse contexto da palavra ‘iterabilidade’ interessa porque se encadeia com ‘rito’, esse elemento tão fundamental nos contextos da expressão ‘ato de fala’. O que é a iterabilidade? É a propriedade do repetível, mas não o repetível daquilo que aparece francamente como o ‘mesmo’, a mesmidade de significado. A iterabilidade é a força da historicidade do ato, mas em termos de sua différance, daquilo que difere e adia indefinidamente seu significado final. Ou, nos termos de uma relação entre alguns elementos levantados até aqui:

Se um performativo provisoriamente tem sucesso (e eu sugeriria que sucesso é sempre e somente provisório), então não é porque uma intenção adequadamente governa a ação de fala, mas somente porque esta ação repercute ações anteriores, e acumula a força da autoridade através da repetição ou citação de um conjunto de práticas anteriores e autorizadas [...] Nesse sentido, nenhum termo ou enunciado pode funcionar performativamente sem acumular e dissimular a historicidade da força. (BUTLER, 1997:51)

Na longamente debatida idéia de sucesso do ato de fala, está uma certa concepção de comunicação, que seria a base principal dos critérios para considerar como realizada a força do ato de fala. Derrida (1990) chama a atenção para a polissemia da palavra ‘comunicação’ e sugere que nos movimentemos para além do semântico para a entendermos. O que são esses movimentos não semânticos? Não semântico de não significado? Ou não significável? Não semântico porque não significado em palavras? Em linguagem articulada? É o corpo que aparece nesse “não semântico” como aquilo que é não tradicionalmente semântico? Posso afirmar que o corpo é não semântico?

Até aqui temos uma lista inicial de elementos e propriedades para o sucesso provisório do ato de fala: o enunciado, a autoridade, o rito, a identificação perlocucionária e a iterabilidade. Pelo menos, a autoridade, o rito e a identificação perlocucionária parecem se ligar a um sistema regulatório das práticas identitárias. Como a iterabilidade é a propriedade reguladora, supõe-se que apenas o enunciado 4

Tive a oportunidade de escrever mais detalhadamente sobre o aspecto da iterabilidade e sua relação com os atos de fala em Pinto (2002).

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escape às práticas corporais, aparentemente encontrando na independência da sua estrutura a garantia do afastamento do corpo.

2. Uma objeção e um lugar para o corpo nos enunciados

Gostaria aqui de aprofundar um pouco mais na idéia do enunciado ser independente do corpo no ato de fala. Para isso, assumo inicialmente essa independência e a sua primeira e mais ingênua objeção nos estudos lingüísticos5: alguns enunciados precisam claramente de uma certa prática corporal para que seja um ato de fala bem sucedido. Não se tratam de casos em que uma certa prática corporal intensifica o ato de fala, como num enunciado que expressa surpresa e vem acompanhado de expressões faciais de surpresa. Tratam-se sim de casos em que a força do ato – uma pergunta, uma ordem, uma ofensa – depende do corpo. Austin (1976) chamou atenção para isso na sua descrição do ato fático, quando ele inclui na sua reprodutibilidade gestos, piscadelas e encolher de ombros (cf. Pinto, 2004:584). Qualquer um concordaria que essa objeção é quase um truísmo diante do enunciado

(2) O que é isso?

A força da pergunta, nesse caso, depende de certo modo de uma prática de apontar o objeto referido pelo pronome ‘isso’. Para a relação corpo-linguagem no ato de fala, esse primeiro caso expresso em (2) pode ser considerado um caso de relação complementar: o enunciado precisa do corpo para complementar a força do ato de fala proposto. O apontar com o dedo ou um movimento com o queixo em direção ao objeto , por exemplo, são exigidos pelo rito e pela identificação perlocucionária – é impossível imaginar, em língua portuguesa, a realização do

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Um estudo exemplar é o de Aebischer (1985), que se baseia nessa objeção para desenvolver em seu texto vários anexos sobre “posturas” do corpo na conversação homem-mulher.

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enunciado (2) sem esses movimentos; a autoridade6 que executa o ato deve cumprir essa parte do rito para garantir o efeito necessário para a pergunta.

Outro caso de enunciado que depende do corpo pode ser descrito desta forma: o movimento do corpo indica uma interpretação oposta ao que estaria no enunciado, estabelecendo uma relação inversa, que está ou parece estar em posição oposta à normal. Um exemplo claro para isso é o conhecido movimento de aspas, feito com os dedos indicadores e médios executando um deslocamento que parece pintar aspas no ar. Um enunciado:

(3) Você está tão legal hoje.

Se realizado acompanhado desse movimento de aspas, produz a força oposta: ao invés de ter a força de um elogio, tem a força de uma ofensa7. É o corpo ele mesmo uma contigüidade do enunciado realizado, adicionando aqui seu elemento negativo. Seguramente, a contigüidade entre enunciado e corpo na relação inversa é também manifesta na relação complementar, mas nessa última a contigüidade ocorre numa tríade entre o enunciado, o corpo e o objeto apontado – sem dúvida, pelo menos, nos casos de dêiticos, em que o objeto apontado parece querer saltar para o enunciado como na iconicidade muitas vezes presentes nos jogos de escrita infantis:

(4) Você tem



?

Finalmente, gostaria de chamar a atenção para um outro caso: quando o corpo anula o ato de fala. Alguns enunciados podem ser realizados de tal forma que sua realização com uma certa prática corporal torna sua força inviável, e no entanto não oferece nada em troca: há uma relação de nulidade. Na maior parte das vezes, a nulidade é expressa por uma dúvida, uma incerteza de interpretação, obrigando o ato a desdobrar seu enunciado em outros enunciados para estabilizar, ainda que provisoriamente, sua força. Esse parece ser um tipo de relação que pode ocorrer

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O termo ‘autoridade’ no contexto de uma pergunta pode parecer estranho, mas é bastante adequado se pensarmos exatamente nos casos em que a pergunta é contestada pela falta de autoridade. Por exemplo, se diante do enunciado (2) uma pessoa se espanta e diz “Você não sabe?!”, o que está em jogo é a contestação de uma certa autoridade para a ignorância que o(a) enunciador(a) do ato de fala supôs ter.

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com qualquer enunciado, supondo ser possível preservar a diferença entre a incerteza produzida pelo corpo e a incerteza produzida pelo próprio enunciado.

3. Um outro corpo para um lugar nas práticas identitárias

O lugar que a primeira objeção, que reconheci como ingênua, propõe para o corpo nos enunciados – em relações complementar, inversa ou de nulidade – seria útil também para solucionar uma outra objeção sobre a independência do enunciado em relação ao corpo? Essa objeção é que a noção de corpo que baseia essa separação enunciado X corpo é fraca do ponto de vista de uma teoria geral dos atos de fala. Essa teoria geral, prevista e defendida pelo próprio Austin (1998), vem da sua ruptura com a oposição constativo-performativo – ruptura que é ela mesma uma boa objeção à independência do enunciado em relação ao corpo. Variados trabalhos exploraram a produtividade e as conseqüências dessa ruptura na obra de Austin (Benveniste, 1991; Butler, 1993; Cavell, 1995; Derrida, 1990 e 1994; Felman, 1980; Ottoni, 1998; Rajagopalan, 1990 e 1996; Ziarek, 1997; para citar uns poucos mais conhecidos). Mas nesta seção final vou me restringir à noção de corpo.

Em primeiro lugar, a forma como os elementos – enunciados, autoridade, rito, identificação perlocucionária – são tratados pela objeção ingênua é parte de um modelo de especificação de contexto em termos de relação com “casos empíricos, instâncias locais, exemplos micro-históricos e pragmáticos” (Colebrook & McHoul, 1996:432). Esse modelo opõe-se à idéia de que o contexto é indeterminado porque iterável, ou seja, é um modelo contraditório com a propriedade da iterabilidade. O corpo é, nessa seqüência, um caso empírico e pragmático (apontar o dedo ou fazer aspas com os dedos no ar) ou um exemplo micro-história (uma expressão facial de uma pessoa conhecida que leva à dúvida ou à incerteza de interpretação). Essa saída é conhecida da filosofia ocidental – é um caminho da associação do corpo com aquilo que é deve ser afastado do cogito:

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Se a corporalidade tem sido tradicionalmente associada com o que é substancialmente eliminado da mente, a fim de estabelecer mente como substância separada, o que precisa ser alcançado não é a corporificação da mente mas a des-corporalidade da existência, incluindo o corpo. (Colebrook, 2000:39)

Esse acréscimo simples de movimentos e expressões corporais não são soluções para incluir o corpo nos atos de fala, mas uma forma de manter o corpo ainda separado dos enunciados, pois o enunciado, nesse acréscimo, continua apresentando seu ‘sentido próprio’, que é, de alguma forma, alterado pelo corpo. O que parece incluir e mostrar uma certa dependência mantém a ênfase na separação – o enunciado estende-se como o representante do logos nesse esquema, o fantasma na máquina lingüística. Os conceitos de sentido próprio, sentido primitivo, sentido puro, sentido natural, baseiam na idéia de que existiria um contexto que abrigaria esse sentido próprio por excelência – um sentido que pudesse recortar o enunciado pronunciado em sua realização prima, originária, principal, presente (Derrida, 1990). Essa noção de sentido não acompanha a propriedade iterável do ato de fala; a contradiz.

Fica claro agora que é a noção de corpo que precisa ser fortalecida para podermos enfraquecer a suposta independência do enunciado em relação ao corpo. Mas o corpo deve ser tomado não como aquilo que se separa da “linguagem”: gestos, piscadelas ou dar de ombros, em oposição a enunciados formalmente recortados. O corpo deve ser pensado, primeiramente, em termos de regras regulatórias do corpo. Sabemos que, no exemplo (1), não basta a posição de autoridade ser ocupada devidamente. As regras regulatórias para um corpo do clero viabilizam também a força ilocucionária, mas não como um elemento à parte na pequena lista de elementos que estou propondo, e sim como propriedade reguladora que opera a legibilidade do próprio ato de fala. Não basta se comportar como padre para casar alguém, é preciso ser reconhecido e chamado de ‘homem’.

O corpo deve ser pensado aqui nos termos de “efeito de uma dinâmica de poder, de forma que a matéria dos corpos sejam indissociáveis das normas

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regulatórias que governam sua materialização”8 (Butler, 1993:2). No entanto, efeito é uma das categorias mais frouxas de Austin (1976:94ss): é, ao mesmo tempo, conseqüências convencionais do ato de fala no falante e na audiência, conseqüências reais, alcance do ato, aquisição do ato, resultado trazido etc. Como seguir com esse conceito, se sua palavra –chave vem desde já com seus contextos multiplicados?

Butler (1997) chamou atenção para a dificuldade de delimitar se o ato de fala diz sempre o mesmo que o ato do corpo ou sempre outra coisa. Muitas vezes o corpo falha em cumplicidade com o ato. Mas seu pressuposto é de que o ato de fala está sempre de alguma forma fora do controle – em sua intencionalidade e em seus limites. Dessa forma, creio que, mesmo diante de uma visão de corpo como efeito do poder, é preciso afirmar que a relação corpo-linguagem ainda é passível de análise. Sugiro voltar às classes propostas na seção anterior para examinar rapidamente o que Austin (1976:14) chamou “a infelicidade e seus efeitos”, mas desta vez provida de uma noção forte de corpo.

O que rege a relação de nulidade não é uma simples expressão facial ou um gesto desprevenido. A nulidade de um ato diante do corpo é somente entendida nos termos não físicos das tensões de poder e dos mecanismos de controle dos corpos. Assim, um olhar sobre a economia dos corpos no pedido de esmola num sinaleiro de uma capital é um bom caso para compreender a nulidade: regula-se a aproximação e opera-se sobre os corpos que devem estender uma mão à janela, grunhir sons que devem permanecer incompreensíveis e continuar sua caminhada entre os carros – nunca, em nenhuma hipótese, os corpos devem romper as dinâmicas de afastamento e aproximação. Se isso se romper, o ato proferido do lado de fora da janela se tornará incompreensível, no caso, nulo, gerando uma resposta de dentro do carro: “o que você quer?”.

Pensemos um caso de relação inversa. A dinâmica que considero mais exemplar é a do consentimento sexual. A heterossexualidade repetida através de atos de fala iteráveis mobilizam os efeitos do gênero: ser ‘mulher’ é sempre dizer ‘não’ para as práticas sexuais querendo ambiguamente sempre dizer ‘sim’, e ser ‘homem’

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é compreender essa dinâmica interpretando tanto o ‘sim’ quanto o ‘não’ como ‘sim’. O efeito de gênero, repetição paródica do “original” do corpo, é uma força inversa para o ato de fala ‘não’ que o corpo da mulher oferecer ao corpo do homem.

No caso da relação complementar, as regulações são ainda mais óbvias e os exemplos proliferam. Gostaria de destacar apenas um bem evidente: a força de um ato de fala de pedido pode ser completada para uma ordem ou comando, de acordo com as dinâmicas de poder entre os corpos envolvidos – a tensão entre corpos docilizados de alunas e corpos autoritários de professores sempre complementa um pedido com a força de uma ordem.

Considero que essa tentativa de categorização, à luz do que chamei noção forte de ‘corpo’, oferece um lugar produtivo para essa noção nas práticas identitárias lingüísticas, pois as práticas regulatórias que governam o corpo implicam diretamente a legibilidade dos atos de fala, ou seja, a inteligibilidade lingüística.

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Referências

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