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DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: UM RESGATE DA DIMENSÃO COLETIVA DO DIREITO ROMANO PARA ENTENDER E SUPERAR A SUA JUDICIALIZAÇÃO

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DIMENSÃO COLETIVA DO DIREITO ROMANO PARA

ENTENDER E SUPERAR A SUA JUDICIALIZAÇÃO

FUNDAMENTAL RIGHT TO HEALTH: A RESCUE OF

THE COLLECTIVE DIMENSION OF ROMAN LAW TO

UNDERSTAND AND OVERCOME ITS JUDICIALIZATION

Marco Aurélio Souza da Silva1

Resumo: O presente artigo trata da questão da saúde como bem coletivo, preconizado pela

constitui-ção e presente desde os tempos do direito romano. Para chegar na questão da judicializaconstitui-ção do direito à saúde, passa pelo resgate da dimensão do coletivo, aborda questões orçamentárias e leva a refletir sobre a pós-modernidade atualmente vivenciada.

Palavras-chave: Pós-Modernidade - direito à saúde - direito romano - Coletivo - judicialização. Abstract: This article deals with the issue of health as a collective good, advocated by the constitution and

pre-sent since the times of Roman law. To get to the question of the judicialization of the right to health, it involves rescuing the dimension of the collective, addressing budget issues and leading to reflect on the post-modernity currently experienced.

Key words: post modernity- right to health- Roman law- collective - judicialization

1- Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Auditor Fiscal de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina.

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INTRODUÇÃO

Muito se tem discutido acerca da superação do momento histórico caracterizado pela Modernidade, especialmente em razão do estado de crise paradigmática instalado pelo fracasso de suas promessas ideológicas não cumpridas de liberdade, igualdade e fraternidade, o que frequentemente é associado ao legado de desigualdade e injustiça social.

Como uma nova conjuntura que supera a Modernidade, a Pós-Modernidade implica o momento his-tórico de completa transformação social, política e jurídica, mas também de insegurança e fluidez das relações e das soluções de conflitos. O grau de complexidade que atingiu a sociedade atual parece não mais caber no paradigma moderno, no que respeita à solução dos conflitos perante o Poder Judiciário. Um exemplo claro disso é judicialização do direito social à saúde, que não tem produzido a resposta que a sociedade espera em termos de políticas públicas.

De modo geral, o Poder Judiciário tem atuado na defesa do direito fundamental à saúde condenando o Poder Público a fornecer medicamento ou tratamento a demandantes individuais, desconsiderando não apenas a escassez dos recursos orçamentários do Estado, que se destinam a todos os jurisdiciona-dos indistintamente, como também a participação da coletividade no ato decisório.

Nesse contexto, o problema diz respeito ao fato de que o Poder Judiciário, ao decidir demandas de con-cessão de medicamentos ou tratamentos com ônus ao Poder Público, passou a se autolegitimar repre-sentante das demandas sociais para a concretização dos ideais emancipatórios e de justiça albergados na Constituição Federal. Essa atuação tem evidenciado certa distorção da democracia representativa, se levado em conta o espaço privilegiado que deve ter a política, como expressão da vontade majoritária. Partindo-se do método dedutivo, o objetivo do estudo é promover um retorno ao republicanismo romano participativo, a fim de compreender a dimensão que os romanos davam ao Coletivo, como par-ticipação direta nas decisões, verificando a possibilidade de sua aplicação ou consideração nas ques-tões afetas à judicialização da saúde. Salienta-se, desde já, que aqui se emprega o termo “Coletivo” com inicial maiúscula, no sentido de coletivo próprio, por se referir à soberania popular direta, a fim de dis-tingui-lo do termo “coletivo”, com inicial minúscula, no sentido de coletivo impróprio, identificado como uma das modalidades de direitos transindividuais (ao lado dos difusos e individuais homogêneos), pois com este não se confunde.

A principal característica do período romano é que não havia separação entre Estado e cidadãos, o que permitia uma estreita articulação entre os elementos político, jurídico e social. O desenho político da República Romana se manifestava pela democracia participativa, onde os romanos é quem decidiam diretamente os conflitos a partir do caso concreto.

Considerando que o paradigma da Modernidade impôs a lógica liberal-individualista, apropriando-se do Coletivo em favor do particular, separando Estado e indivíduo, pretende-se resgatar a Antiguidade Romana a partir das fontes do direito sob o modelo participativo para fazer renascer a importância da dimensão do Coletivo no presente momento, sobretudo no trato da questão relacionada à judicialização da saúde. Em que pese a Constituição Federal de 1988 tenha encampado as linhas mestras da Modernidade, de certa forma também assentou a dimensão do Coletivo, como república participativa, ao fixar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (art. 1º, CF). No entanto, essa dimensão participativa constitucionalmente consagrada é pouco exercida na prática, especialmente quando se trata de decisão judicial.

Estrutura-se o artigo inicialmente com a abordagem sobre a transição histórica da Modernidade para a Pós-Modernidade, enfatizando a necessidade de resgatar a dimensão do Coletivo. Na sequência, abor-da-se a dimensão do Coletivo na Constituição Federal de 1988, seguido do próximo tópico relacionado à breve análise sobre o orçamento, o Estado e a obrigação judicial de conceder tratamento ou

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medica-mento, traçando uma comparação entre o atendimento individual e o Coletivo. Por fim, traça-se um panorama da judicialização do direito à saúde sob a perspectiva da dimensão Coletiva, para concluir no sentido de que a solução dos conflitos nesta seara exige respostas que vão além do tratamento indivi-dualista, típico da Modernidade, sendo imprescindível a construção de novas estruturas de tomada de decisão, a partir da coletividade participativa, aos moldes da jurisdição romana.

1. MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE E O RESGATE DA

DIMENSÃO DO COLETIVO

A expressão “Pós-Modernidade” remete imediatamente à ideia de determinado momento históri-co ou históri-conjuntura que se opera depois da Modernidade. A necessidade de discutir esses momentos é decorrente do indisfarçável estado de crise influenciada pela Modernidade, a partir de suas promessas ideológicas não cumpridas de liberdade, igualdade e fraternidade, bem como da solução racional dos conflitos, deixando como legado um enorme saldo de injustiça social para ser administrado por uma sociedade complexa e heterogênea.

Os sinais de falência do pensamento ocidental em torno do projeto da Modernidade, na percepção de Bittar e Almeida, são evidenciados desde o final do século XIX, com Nietzsche, até o século XX, sendo o fim da década de 1960 o período marcadamente de emergência da Pós-Modernidade, em função do surgimento dos movimentos sociais, das forças feministas e de contestação dos paradigmas reinantes. Se, sob a hegemonia dos valores modernos, era comum o uso de determinados termos na literatu-ra jurídica e política, como “permanente”, “estável”, “ordenado”, “disciplinado”, “individual”, “literatu-racional”, “comprovado”, “certo”, “definido”, “científico”, “deduzido”, “vertical”, “único”, “central’ e “duro”, na Pós-Modernidade surgem novas concepções mundo, passando-se a utilizar outros termos, como “tran-sitório”, “mutável”, “relativo”, “provável”, “sensível”, “múltiplo”, “horizontal”, “indução”, “senso comum”, “estimável” e “líquido”, também marcados por enorme simbolismo.2 Como se percebe, a transição é de

ruptura de pensamento, do certo para o incerto, do determinado para o indeterminado.

A análise histórica entre Modernidade e Pós-Modernidade implica um processo de retorno, revisão, resgate e superação. A complexidade e a velocidade da vida pós-moderna, insegura ou líquida3, em

todos os sentidos - político, jurídico ou social -, em meio à compressão do tempo-espaço4, exige uma

volta ao passado, inclusive para antes da Modernidade e sua lógica iluminista, mais precisamente um retorno ao republicanismo romano participativo, a fim de entender a complexidade das relações sociais e dar melhor solução aos conflitos, especificamente no que tange à judicialização da saúde. A experiência romana republicana, como sustenta Pilati, fornece lições fundamentais à construção de uma república participativa pós-moderna, considerando a organização e a estruturação equilibrada do poder político, como democracia direta sem a figura de um Estado pessoa-jurídica, assim como a auto-nomia do espaço local e a organização judiciária civil coletiva (e não público-estatal) mediante proces-so civil participativo, casuístico (não legalista).5

Roma não concebia o Estado separado dos cidadãos, permitindo visualizar a estreita articulação entre os elementos político, jurídico e social. Em Roma vigia uma democracia participativa. O desenho políti-co da República Romana se manifestava pela res populi (políti-coisa políti-coletiva), diferentemente do sistema atu-al, que se dá pelo governo, essencialmente. Na república “dos romanos”, estes é quem decidiam direta-mente. Daí a necessidade de resgatar a Antiguidade Romana a partir das fontes do direito sob o modelo participativo ou Coletivo.

2- BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 761-762. 3- BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 8-9. 4- HARVEY, David. Condição Pós-Modena: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, p. 257.

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O exercício da democracia direta representava a soberania do povo, que era exercida por meio das assembleias ou dos comícios. Pilati lembra que os comícios, cada qual em sua esfera de competência, devidamente convocados por um magistrado, exerciam poderes eleitorais, legislativos, religiosos e judiciais criminais. O Judiciário não consistia em juízes togados, mas em um grande sistema arbitral privado do povo romano (ordo iudiciorum privatorum), sob o comando e a ordenação processual de um magistrado (o pretor), eleito diretamente pela assembleia, por um ano, para exercer a iuris dictio (o poder), que alcançava todo o espectro do litígio.6

Investido na magistratura, o pretor não julgava, apenas ordenava os trabalhos da jurisdição. Primeiramente vertia para o edictum as ações, as exceções e os interditos com que pretendia enfrentar os problemas. Com a demanda, o pretor ouvia as partes, balizava a lide (fatos, pedido, resposta, exceções) e elaborava a fórmula (roteiro procedimental). Depois, nomeava um (iudex) ou mais (arbitri) particulares, conforme fosse a questão, simples ou complexa, respectivamente, para colher as provas e decidir. Desse modo, o processo se dava em duas fases: perante o pretor (in jure), que elaborava a fórmula, e perante o juiz ou os árbitros (apud iudicem), que colhiam as provas e sentenciavam, devolvendo o caso à execução, ante o pretor. Tratava-se, assim, na concepção de Pilati, de uma jurisdição próxima dos anseios da coletivi-dade, possibilitando solucionar os problemas sociais de forma mais eficaz e mais ampla possível.

2. A DIMENSÃO DO COLETIVO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O paradigma da Modernidade impôs a lógica liberal-individualista, por meio de avanços científicos, eco-nômicos e tecnológicos. Esse modelo se apropriou do Coletivo (como valor e bem jurídico autônomo) em favor do particular, separando Estado e indivíduo, de forma a neutralizar a concepção do “social”. A Constituição Federal de 1988 encampou as linhas mestras da Modernidade, ao estabelecer que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (e não do povo) (art. 1º, caput); que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, inciso II); que a propriedade constitui um direito fundamental indi-vidual (art. 5º, inciso XXII); que é assegurada a livre iniciativa e o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo exceções expressas em lei (art. 170), apenas para citar algumas.

A Carta Política também assentou a importância da dimensão do Coletivo, como república participati-va, ao fixar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou

direta-mente” (art. 1º). O mesmo se diga quanto à possibilidade do exercício da soberania popular por meio de

plebiscito, referendo ou iniciativa popular (art. 14, incisos I, II e III) e em outras situações, a exemplo do Sistema Único de Saúde - SUS (art. 198, inciso III, e ainda a Lei n. 8.080/907). Isso evidencia que o espaço

de participação, em dimensão de assembleia (Ágora), eleva a coletividade à condição de soberana para decidir em última instância. Contudo, em que pese o sistema constitucional participativo ser oficial-mente reconhecido no papel, é pouco exercido na prática.

Vale registrar que a ordem constitucional também elencou outros dispositivos que consagram o Coletivo - e a função social a ele diretamente ligada-, como aquele que garante a propriedade como direito fundamental dotado de função social (art. 5º, incisos XXII e XXIII); que privilegia os valores do trabalho e da livre iniciativa com o fim de assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170); que enquadra o meio ambiente como bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225); que protege o patrimônio cultural (art. 216) e a saúde, como direito de todos e dever do Estado, vinculando políticas sociais e econômicas (art. 196).

6- PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na Pós-Modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 90-93.

7- BRASIL. Lei n. 8.080/90, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização

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Nesse contexto, o principal desafio da Pós-Modernidade é resgatar o Coletivo no plano institucio-nal, sem necessariamente abdicar das conquistas da Modernidade, equilibrando o privado (indiví-duo), o público (Estado) e o Coletivo (sociedade). Se, na Modernidade, o sujeito é o indivíduo, na Pós-Modernidade o sujeito é o Coletivo. O reconhecimento do Coletivo remete à necessidade de se dar prioridade à função social e, portanto, redefinir o sujeito e o objeto das relações jurídicas. Enquanto na Modernidade o paradigma do Estado Social é representativo, na Pós-Modernidade é participativo e inclusivo, de maneira que o Estado passa a atuar como colaborador das decisões coletivas (e não como vontade autocrática) e o indivíduo como condômino do bem coletivo (categoria diferenciada de bens que pertencem a todos) e da construção participativa. O juiz, por sua vez, possui o papel de atuar como instrumento de solução de conflitos, e não apenas “boca da lei”.

Essa nova mentalidade de afirmação da função social sob a república participativa implica não ape-nas reconhecer como protagonistas, no plano da pessoa, o indivíduo, o Estado e a sociedade, mas tam-bém, no plano dos bens, redefinir sua classificação no direito constitucionalizado como categorias de privado, público e Coletivo. Isso porque, na Modernidade, os bens foram reduzidos apenas à dicoto-mia de públicos (no sentido de estatais) e privados, subtraindo-se o Coletivo. Conforme salienta Pilati, enquanto os bens públicos são os das pessoas jurídicas de direito público, ao lado dos bens privados, como aqueles das pessoas jurídicas de direito privado, os bens coletivos se identificam como os natu-rais e sociais. Entre os coletivos podem ser concebidos, por exemplo, o patrimônio cultural, o meio ambiente e a saúde pública.8

Percebe-se, assim, que os bens coletivos são objeto de propriedade coletiva extrapatrimonial, desfrutan-do de um regime jurídico próprio e constitucional, porquanto são fundamentais, afetadesfrutan-dos pela sua função social. Em tempos pós-modernos, impõe-se despertar para o resgate do Coletivo como ator social e sujei-to de direisujei-to, o que também desafia estabelecer novos parâmetros de direisujei-to material e instrumensujei-tos de tutela. Deve ficar claro, no entanto, que esse resgate do Coletivo não significa uma atitude contrária ao indivíduo ou ao Estado, mas uma atitude que agrega indivíduo e Estado em torno da coletividade. É bem verdade que a Constituição Federal dispôs expressamente acerca de um amplo catálogo de tutela de direitos Coletivos em seu art. 5º, como o de receber informações dos órgãos públicos (inci-so XXXIII); o de petição aos poderes públicos (inci(inci-so XXXIV); o mandado de segurança coletivo (inci(inci-so LXX) e a ação popular (inciso LXXIII). Contudo, verifica-se na atualidade que a tutela coletiva imprópria, consagrada pela categoria dos interesses ou direitos transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos)9, nos termos da Lei n. 7.347/85 e da Lei n. 8.078/90, e exercitada especialmente via ação

civil pública, tem se mostrado inadequada e insuficiente como instrumento para alcançar o Coletivo na dimensão que possuíam os romanos. Daí a necessidade de acentuar que com esta não se confunde a tutela coletiva própria, típica da jurisdição romana.

Como, então, na Pós-Modernidade, deveria o juiz atuar? Deveria efetuar uma triagem dos interesses em jogo, verificando se é particular (individual), coletivo impróprio (transindividuais) ou coletivo pró-prio (“Coletivo” como soberania popular direta), a fim de solucionar o conflito no caso concreto com amparo na Constituição.

Considerando o bem coletivo de natureza constitucional, fundamental - por ser essencial à preser-vação da dignidade humana - e não pertencente a ninguém individualmente, já que somente se pode dispor dele coletivamente, o seu reconhecimento e de seu titular (a sociedade) repercute em diversas relações jurídicas, entre elas aquela afeta à tutela constitucional do direito à saúde. A saúde, como bem

8- PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na Pós-Modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 114-115 e 130-131. 9- O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), em seu art. 81, parágrafo único, dispõe que a tutela coletiva será exercida quando se tratar de interesses ou direitos difusos, entendidos como os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; interesses ou direitos coletivos, entendidos como os transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; e interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

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coletivo, desfruta da condição de direito subjetivo fundamental de uma universalidade de condôminos. A solução dos conflitos nesta seara, dada a sua complexidade e magnitude, exige respostas que vão além do tratamento individualista, típico da Modernidade, sendo imprescindível a construção de novas estruturas de tomada de decisão, a partir da coletividade, no âmbito dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. E o referencial da participação deve ser o referencial romano, da res populi (coisa coletiva). Para que se possa melhor compreender a necessidade de aplicação desse novo paradigma, convém a seguir delinear alguns aspectos relacionados ao orçamento e ao Estado frente ao processo de judicia-lização da saúde no modelo tradicional.

3. ORÇAMENTO, ESTADO E OBRIGAÇÃO JUDICIAL DE CONCEDER

TRATAMENTO OU MEDICAMENTO: ENTRE O INDIVIDUAL E O COLETIVO

A criação de receita e a realização de despesa pública correspondem à atividade financeira do Estado, sendo o orçamento público a maneira de administrar esses recursos e, portanto, o principal instrumen-to para a viabilização de políticas públicas. Trata-se de um documeninstrumen-to proposinstrumen-to pelo Poder Executivo, que projeta, para o período de um ano, a quantidade de moeda que ingressará e sairá dos cofres públi-cos, especificando as fontes de receitas e despesas. O ciclo orçamentário está previsto no art. 165 da Constituição Federal e compreende o plano plurianual (art. 165, § 1º, CF), as diretrizes orçamentárias (art. 165, § 2º, CF) e os orçamentos anuais (art. 165, § 5º, CF). Desse modo, os recursos orçamentários permitem ao Estado concretizar seus propósitos sociais a partir das prioridades preestabelecidas. A saúde, como um dos componentes da seguridade social, constitui um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas (art. 196, CF), integradas por ações e ser-viços de saúde (art. 197, CF) organizadas num sistema único e financiadas, entre outras fontes, pelas contribuições à seguridade social (art. 198, § 1º, c/c o art. 195, CF) e ainda por recursos federativos constitucionalmente assegurados (art. 198, § 2º, c/c os arts. 155 a 159, CF). O financiamento do SUS se opera com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sendo incontestável a necessidade de se distribuírem recursos escassos por meio de critérios distributivos. Da própria leitura do art. 196 da Constituição Federal já se extrai a necessidade de compatibilização dos elementos “social” e “econômico”.

Em razão da insuficiente concretização de políticas públicas voltadas à área da saúde pelos entes federados, o Poder Judiciário tem sido frequentemente chamado a intervir em favor de sua garantia mediante o controle de constitucionalidade (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade10 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental11). Embora o art.

196 da Constituição determine a realização do direito à saúde por meio de “políticas sociais e econô-micas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, os tribunais têm interpretado que o direito à saúde constitui um direito individual, que pode ser usufruído diretamente por cada indiví-duo12, e não apenas - e essencialmente - pela implementação de uma política pública. Nesse sentido,

excertos de decisão do Tribunal de Justiça Catarinense:

10- BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da

ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 mai. 2020.

11- BRASIL. Lei n. 9.882, de 03 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito

fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 mai. 2020.

12- SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2014.065745-5. Balneário Camboriú. Rel.: Des. Paulo Ricardo Bruschi. Julg.:. 30 jan. 2015.

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APELAÇÃO CÍVEL, AGRAVO RETIDO E REEXAME NECESSÁRIO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE FÁRMACO. NECESSIDADE COMPROVADA. PRETENSÃO JULGADA PROCEDENTE. MANUTENÇÃO. AGRAVO RETIDO. PRAZO DE CUMPRIMENTO DA MEDIDA E VALOR DA ASTREINTE. SUBSTITUIÇÃO POR BLOQUEIO DE VALORES. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. “Por força de princípio constitucional (CR, art. 196), positivado na Lei n. 8.080, de 1990, é dever do Estado custear tratamento de saúde (exames, medicamentos, internações hospitalares etc.) a quem dele necessitar, pois ‘o direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional” [AgRgRE n. 271.286, Min. Celso de Mello]. (...) 4. “O prazo para cumprimento de decisão judicial, que determina providências do Poder Público para tratamento de saúde, deve ser razoavelmente adequado à necessária burocracia estatal, ainda que de emergência, sem risco de dano à vida do enfermo. (...) Portanto, em caso de comprovada urgência, é possível a aquisição, mediante sequestro de verba pública, de medicamento necessário à manutenção da saúde de pessoa carente de recursos para adquiri-lo, sendo inaplicável o regime especial dos precatórios (CF, art. 100), utilizado nas hipóteses de execução de condenações judiciais contra a Fazenda Pública, pois, na espécie, deve ser privilegiada a proteção do direito à vida e à saúde do paciente” [Agravo de Instrumento n. 2012.067606-4, de Rio do Sul, Relator: Des. Jaime Ramos, 4ª Câm. Dir. Púb., j. 14/03/2013].

No intuito de criar balizas mais seguras para o julgador, o Supremo Tribunal Federal julgou, em 2019, dois recursos extraordinários em sede de repercussão geral - o RE 657.718/MG e o RE 855.178 ED/SE.13 O primeiro versava sobre medicamentos experimentais e medicamentos sem registro na

ANVISA, enquanto o segundo tratava da responsabilidade solidária dos Entes Federados, momento em que foram firmadas teses para a tomada de decisão.14 Não obstante a importância das decisões,

os parâmetros ainda deixam margem para beneficiar o individualismo, em detrimento do Coletivo, razão das políticas públicas estatais nessa área.

Aliás, denota-se certo ativismo judicial em torno do direito fundamental à saúde, contexto em que o Poder Judiciário passou a ser partícipe ativo na formulação e execução de políticas públicas no espa-ço democrático, sob o pretexto de garantir ao cidadão o seu direito constitucional frente à lentidão ou inércia do Estado em cumprir a obrigação de lhe oferecer o mínimo de assistência. De modo geral, há o confronto entre a necessidade de cumprimento do direito fundamental à saúde, de um lado, e a sez dos recursos orçamentários do Estado, de outro. Considerando que os recursos públicos são escas-sos, sua aplicação sempre se dará de forma seletiva (às vezes, trágica), o que não raro resulta no conflito não só entre direito e recursos escassos, mas principalmente entre direitos individuais e sociais. Esse ponto remete, indiscutivelmente, à necessidade de eficiência e eficácia da Administração Pública. Tal nos leva a pensar, como preleciona Tremel, que:

13- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo n. 941, de 20 a 24 de maio de 2019. Disponível em: http://www.stf.jus.br//arquivo/ informativo/documento/informativo941.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.

14- No RE 657.718/MG: 1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais; 2) A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial; 3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil; e 4) As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Já no RE 855.178 ED/SE restou firmada a tese de que os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

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Os resultados dos esforços da administração pública, para que possam ser adjetivados como favoráveis, positivos, devem ser não apenas eficientes, mas também eficazes e efetivos. Em outros termos, vale dizer que não basta, como preconiza o conceito básico de eficiência, usar com economia, zelo e dedicação os bens e os recursos públicos. Há que haver eficácia, o que significa comprometimento político e institucional com um planejamento competente e com seu cumprimento responsável para que tal gere afetividade, entendida como a obtenção de resultados sociais aspirados pela sociedade, inclusive oferecendo-lhe serviços de interesse social compatíveis com suas necessidades em extensão, qualidade e custos. Neste contexto, o conceito alarga suas fronteiras, pois deixa a concreticidade das obras para incluir serviços. É o momento em que o Poder Judiciário se encaixa à perfeição.15

A discussão, nesse cenário, revela que o Poder Judiciário passou a se autolegitimar representan-te das demandas sociais para a concretização dos ideais emancipatórios e de justiça albergados na Constituição Federal. Essa postura, a rigor, representa certa distorção da democracia representativa, se levado em conta o espaço privilegiado que deve ter a política, como expressão da vontade majoritá-ria. É por isso que na doutrina esse fenômeno de expansão da jurisdição constitucional tem sido identi-ficado como “judicialização da política”.16

O debate acerca da judicialização da política é sobre os limites decisórios do Poder Judiciário sob o aspecto da legitimidade democrática. Não há dúvidas de que deve ser incentivada a jurisdição que valorize a irradiação das normas constitucionais pelo ordenamento jurídico e a atuação construtiva do Poder Judiciário para a proteção e promoção dos direitos fundamentais sociais e dos pressupostos da democracia. No entanto, vale ressaltar a advertência de Sarmento e Souza Neto, para quem devem ser evitadas as concepções radicais do neoconstitucionalismo (constitucionalismo principialista) que endossem um “governo de juízes” ou aplaudam o decisionismo judicial, fundamentadas numa invoca-ção emotiva de princípios e valores constitucionais, assim como evitada a hiperconstitucionalizainvoca-ção do direito que suprime o espaço necessário da política majoritária.17

No campo da judicialização da saúde, ainda que levando em conta que o Estado comumente é mal geri-do, desperdiça recursos e não investe em prevenção18, assim como se encontra em situação de

descon-trole financeiro, em razão de escolhas políticas equivocadas ao longo dos últimos anos (motivo da rene-gociação de dívidas), parece certo que a decisão judicial que ignore aspectos econômicos e coletivos desorganiza a atividade administrativa e coloca em risco (ou efetivamente prejudica) a alocação racio-nal dos escassos recursos públicos, sobretudo em tempos de crise, exacerbada pela Covid-19. Um exemplo pode ser o Estado de Santa Catarina, em que ano de 2015 foram gastos mais de R$ 150 milhões para atender pouco mais de 30 mil pacientes em razão de medidas judiciais, a um custo médio de R$ 5 mil por pessoa. No ano de 2014 houve gastos públicos de aproximadamente R$ 156 milhões para o cumprimento das ordens judiciais em favor de pouco mais do que 26 mil pacientes, sendo que

15- TREMEL, Rosangela. Princípio constitucional da eficiência: evolução do conceito e sua concretização na justiça trabalhista brasileira. Revista

Unisul de fato e de direito. v. 9, n. 16, p.15, 2018.

16- A judicialização da política tem sido reforçada pela intensa exposição midiática das frequentes decisões do Supremo Tribunal Federal em casos paradigmáticos, de grande repercussão na opinião pública, no campo das questões morais e éticas que giram em torno dos direitos fundamentais e dos processos político-eleitorais. Cite-se, por exemplo, as decisões de reconhecimento da união estável homoafetiva; de regulamentação do direito de greve dos servidores públicos; sobre fidelidade partidária; aplicabilidade imediata da Lei da Ficha Limpa; validade da norma que dispôs sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias; interrupção da gestação de fetos anencefálicos; e, ainda, decisões também polêmicas em face dos desdobramentos da Operação Lava-Jato, que investiga atos de corrupção envolvendo contratos com o Poder Público e financiamentos de campanhas eleitorais, nas quais fica evidente a atuação do Poder Judiciário em matérias que deveriam, em grande medida, ser deliberadas pelo Legislativo, como legítimo representante da vontade popular.

17- SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Controle de constitucionalidade e democracia: algumas teorias e parâmetros de ativismo. In: SARMENTO, Daniel (Coord.). Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 100.

18- Cumpre destacar que o orçamento do Estado de Santa Catarina relacionado à saúde é de, aproximadamente, R$ 2 bilhões por ano, mas o Estado investe menos de 1% desse montante na manutenção da saúde (SANTA CATARINA. Tribunal de Contas. Parecer prévio sobre

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esse montante seria suficiente para manter dois dos hospitais sob a administração da Secretaria Estadual de Saúde (Hospital Celso Ramos e Hospital Nereu Ramos) por quase um ano, viabilizando o atendimento de cerca de 195 mil pessoas. Além disso, a quantia destinada aos 26 mil pacientes judiciais em 2014 asseguraria, por dois meses, a manutenção de todos os 13 (treze) hospitais administrados diretamente pela Secretaria da Saúde, beneficiando mais de 170 mil pessoas.19

Diante desse quadro, impõe-se direcionar o olhar da judicialização da saúde para uma perspectiva de dimensão coletiva das decisões, à semelhança do que era utilizado no sistema romano, conforme se verá a seguir.

4. A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE SOB A PERSPECTIVA

DA DIMENSÃO COLETIVA

A questão que envolve a decisão judicial de concessão de medicamentos e tratamentos de saúde tam-bém tem origem no paradigma adotado. A Constituição Federal organizou o atendimento à saúde em um único sistema, de competências e atribuições compartilhadas, descentralizadas, sendo o aten-dimento integral e com prioridade às atividades preventivas, reunindo todas as esferas federativas, incluindo a sociedade, pela participação popular (art. 196). O Sistema Único de Saúde (SUS) é defini-do como o “conjunto de ações e serviços de saúde, prestadefini-dos por órgãos e instituições públicas fede-rais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público” (art. 4º da Lei n. 8.080/90)

Nesse sentido, como bem destaca Pilati, o SUS não é uma pessoa jurídica e não se confunde com seus entes e órgãos públicos isoladamente, já que se constitui de um sistema que “inclui público-estatal, ser-viços privados e coletivo social em função do atendimento integral à saúde de todos”. O atendimento implica a realização de procedimentos de exercício de direito Coletivo, pois “SUS atua como SUS, que é mais do que Estado”. Por isso, para o professor, o juiz que ignora esse aspecto tem dificuldades ao enfrentar o SUS pela via da judicialização tradicional, tentando garantir direitos fundamentais sociais a um indivíduo contra quaisquer dos entes federados.20

Nas situações envolvendo o SUS, a postura do Judiciário deve ser semelhante à da jurisdição romana. Por ser um sistema participativo, o próprio Judiciário não se encontra separado dele, cabendo-lhe deci-dir os conflitos Coletivos. O juiz não deve tratar questões coletivas da mesma forma que as individuais. Mais do que isso, o Judiciário deve se articular com órgãos ou entidades, como conselhos, Ministério Público, autoridades de saúde e outros, incluindo a participação comunitária, a fim de compartilhar a estrutura de solução. Perante o SUS, o magistrado não é autoridade representativa, mas participativa, como na visão de Pilati, correspondendo ao pretor, que se originava da assembleia popular (comitia), e não do senado (como órgão executivo e de representação). Não sendo apenas “boca da lei”, o pretor baixava o edictum, contendo as regras procedimentais e construía a jurisprudência baseada na casuís-tica (no caso concreto).21

19- Os dados são da Secretaria de Estado da Saúde, na ocasião em que o Estado de Santa Catarina se manifestou no polo passivo de uma demanda perante o Tribunal de Justiça catarinense. A contenda envolvia a concessão de medicamentos pleiteada por um cidadão contra o Estado, que resultou na primeira decisão do país em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), pelo Grupo de Câmaras de Direito Público, em 09.11.2016, e que passou a servir de parâmetro para os demais casos envolvendo a matéria no Estado (SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n. 0302355-11.2014.8.24.0054/50000. Rio do Sul. Rel.: Des. Ronei Danielli. Julg.: 09 nov. 2016).

20- PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na Pós-Modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 167. 21- PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na Pós-Modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 171-172.

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Os casos concretos afetos à judicialização da saúde, em que o Estado é obrigado judicialmente a conceder medicamentos ou tratamentos, também devem ser solucionados por meio de processo participativo. Isso significa que, no processo de judicialização da saúde, o juiz deve promover a realização do procedimento Coletivo, permitindo que as autoridades de saúde de todas as esferas estatais, a comunidade e o interessa-do deliberem conjuntamente acerca da solução interessa-do caso concreto, democratizaninteressa-do o processo. Para tanto, na dimensão constitucional participativa pós-moderna, o Poder Judiciário deverá deixar de lado o ativismo judicial autoritário e ser um auxiliar na composição dos conflitos que envolvem as demandas individuais por medicamentos e tratamentos. Em situações tão complexas como essas, somente uma construção participa-tiva (e prevenparticipa-tiva) entre os atores envolvidos poderá dar sentido e concretude aos princípios, às diretrizes e às finalidades do SUS. A decisão de um juiz integrado ao sistema Coletivo, na arena da Ágora da república participativa, certamente se dará em benefício da coletividade, e não de um indivíduo isoladamente. A complexidade das demandas enfrentadas na judicialização do direito à saúde exige do juiz uma postura diferente daquela que adota na jurisdição tradicional, devendo ser ao mesmo tempo magistrado (pretor) e juiz (iudex), conduzindo um procedimento de assembleia de condôminos, no qual a decisão final é cons-truída pelas partes, auxiliadas por autoridades, órgãos e técnicos, à semelhança da jurisdição romana par-ticipativa. O resgate da autonomia e o reconhecimento do bem coletivo – como é o direito à saúde – não desconsidera a ação civil pública para a tutela coletiva imprópria ou, ainda, a tutela individual, apenas amplia a jurisdição transformando e democratizando o processo em favor da coletividade.

Se, por um lado, não parece fácil desfazer o pensamento tradicional em que o juiz está acima e equi-distante das partes para decidir o conflito existente entre estas, por outro, o reconhecimento de que a jurisdição tradicional já não mais dá conta de solucionar os conflitos de uma sociedade pós-moderna, tecnológica e bastante complexa remete a uma nova lógica de tratamento desses conflitos, de forma democratizada. Entre as formas de participação coletiva na tomada de decisão judicial podem ser cita-das as audiências públicas, na quais pessoas da sociedade civil contribuem com conhecimentos especí-ficos sobre dada matéria, a fim de propiciar ao julgador fundamentos jurídicos mais consistentes. Trata-se, no dizer de Danielli, de proporcionar uma visão mais global e, ao mesmo tempo, especializada dos problemas relacionados à saúde, contribuindo de maneira compartilhada.22

Diante desse quadro, o regate da jurisdição romana parece ser a melhor saída, onde o juiz orienta a marcha processual, conforme o interesse das partes, ordena (e não condena) um processo democrati-zado, atua de acordo com o direito material em jogo (e não somente em cumprimento de formalidades legais) e concretiza de fato o direito fundamental coletivo próprio. Desconstruir o paradigma hegemô-nico tradicional individualista é medida urgente que se impõe, já que em um mundo globalizado as deci-sões individuais tendem, cada vez mais, a afetar a coletividade, e nada é mais democrático do que sua efetiva participação nas tomadas de decisões. Essa é a verdadeira dimensão do Coletivo!

5. CONCLUSÃO

A partir do que foi exposto, é possível concluir que, enquanto a Modernidade está assentada na pro-teção do indivíduo, a Pós-Modernidade está a proteger o Coletivo e a própria civilização humana. O Coletivo não é excludente, mas includente, pois está autonomamente ao lado do Estado e do indivíduo. Nesse contexto, o resgate da lição romana oferece o melhor perfil político, jurídico e jurisdicional da soberania participativa como modelo na Pós-Modernidade. No plano da pessoa, a sociedade passa a ocupar o papel de sujeito de direito Coletivo, assim como os bens públicos e privados passam a estar acompanhados dos bens coletivos. Trata-se de um novo cenário, em que a autonomia do Coletivo - já garantida constitucionalmente - em relação ao público-estatal, transforma e amplia a soberania repre-sentativa para a soberania participativa, reforçando as instituições políticas, jurídicas e a democracia.

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Conforme se verificou no presente estudo, o grande desafio da Pós-Modernidade é resgatar o Coletivo no plano institucional, sem necessariamente abdicar das conquistas da Modernidade, equilibrando o privado (indivíduo), o público (Estado) e o Coletivo (sociedade). Enquanto na Modernidade o sujeito era o indivíduo e o paradigma do Estado Social a representatividade, na Pós-Modernidade o sujeito é o Coletivo e o paradigma é a participação, a inclusão, o que implica redefinir o sujeito e o objeto das rela-ções jurídicas, levando-se em conta a função social. Na Modernidade, os bens foram reduzidos apenas à dicotomia de públicos (no sentido de estatais) e privados, subtraindo-se o bem coletivo.

Assim, a afirmação da função social sob a república participativa demanda não apenas reconhecer como protagonistas, no plano da pessoa, o indivíduo, o Estado e a sociedade, mas também, no plano dos bens, as categorias de privado, público e coletivo. Entre os bens coletivos se encontra a saúde pública. Portanto, nesse modelo, o Estado passa a atuar como colaborador das decisões coletivas (e não como vontade autocrática) e o indivíduo como condômino do bem coletivo (categoria diferenciada de bens que pertencem a todos) e da construção participativa.

Observou-se que, na atualidade, a tutela coletiva imprópria, consagrada pela categoria dos interesses ou direitos transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), exercitada especialmente via ação civil pública, tem sido um instrumento insuficiente para alcançar o Coletivo na dimensão que possuíam os romanos.

No campo das decisões judiciais, o juiz deixa de ser apenas mero “boca da lei” e passa a ter o papel de ins-trumento de solução de conflitos, efetuando uma triagem do interesse em jogo, verificando se é parti-cular (individual), coletivo impróprio (transindividuais) ou coletivo próprio (soberania popular direta), a fim de solucionar o conflito no caso concreto com amparo na Constituição.

No caso da saúde, considerado um bem coletivo de natureza constitucional, essencial à preservação da dignidade humana e não pertencente a ninguém individualmente, mas a toda sociedade, impõe--se reconhecer que a sua judicialização individual repercute na universalidade do Coletivo. Daí que a solução dos conflitos nesta seara exige respostas que vão além do tratamento individualista, típico da Modernidade, sendo imprescindível a construção de novas estruturas de tomada de decisão, a partir da coletividade, no âmbito dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

A atuação do Poder Judiciário deve ser semelhante à da jurisdição romana, não separada da socieda-de, articulando-se com órgãos, entidades e autoridades de saúsocieda-de, a fim de compartilhar a estrutura de solução. Os casos em que o Estado é obrigado judicialmente a conceder medicamentos ou tratamen-tos, também devem ser solucionados por meio de um processo participativo, de modo que o juiz deve promover a realização do procedimento Coletivo, permitindo que as autoridades de saúde de todas as esferas estatais, a comunidade e o interessado deliberem conjuntamente acerca da solução do caso concreto, democratizando o processo. Isso significa deixar de lado o ativismo judicial autoritário e bus-car uma atitude de auxiliar na composição dos conflitos que envolvem as demandas individuais por medicamentos e tratamentos. O resgate da dimensão Coletiva do direito romano, certamente, deve ser o primeiro passo para a minimização ou superação da judicialização do direito fundamental à saúde.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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