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A laceração do corpo na arte da Idade Média tardia e na arte do pós-modernismo

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Academic year: 2021

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III

Esta dissertação consiste num estudo comparativo entre a arte Tardo-Medieval e a arte Pós-Moderna, centrando-se especificamente nas múltiplas representações artísticas do corpo lacerado. Estabelecem-se paralelismos entre obras de arte pertencentes aos dois momentos históricos referidos e a diversos campos artísticos, passando pela pintura, pelo teatro litúrgico e pela escultura até à performance e à fotografia. Tais paralelismos são traçados de forma não-cronológica na narrativa da tese, optando-se por uma organização temática e entrecruzada temporalmente.

O motivo pelo qual foram escolhidos estes dois momentos temporais passa pela analogia visual entre obras realizadas em épocas tão díspares, em que os artistas recorrem a um certo hiper-realismo da dor e da laceração para interagir emocionalmente com o observador. É uma investigação de inegável teor estético, impulsionada num primeiro momento pela similitude visual das imagens e marcada pelos estudos desenvolvidos no âmbito da antropologia cultural, que visa analisar, sobretudo, as motivações artísticas dos autores e as reacções dos públicos face à obra de arte.

A dissertação é inovadora no sentido em que não foi ainda elaborada uma problematização da representação do corpo lacerado ou ferido, embora esta constitua uma persistente temática da arte.

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V

This dissertation consists of a comparative study between Late Medieval art and Post-Modern art, focusing specifically on the multiple artistic representations of the lacerated body. Parallels are established between works of art that belong to the mentioned historic periods and to diverse artistic areas, concerning to painting, liturgical theatre and sculpture, as also to performance and photography. These parallels are traced in a non-chronological way throughout the narrative of the thesis by choosing a themed and temporally crisscrossed organization.

The reason for why these two moments in time were chosen consists of a visual analogy between works of art of such different ages in which artists recurred to a certain hyper-realism of pain and laceration to interact emotionally with the observer. This dissertation is, therefore, an investigation of undeniable aesthetic value driven firstly by the visual similitude of the images and marked by the studies developed by cultural anthropology, which seeks mainly to analyze the artistic motivations of the authors and the reactions of the public faced with the work of art.

The dissertation is innovative for the problematic of the representation of the lacerated or wounded body has not yet been studied, although it constitutes a persistent theme in art.

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VII

Não poderia deixar de agradecer, em primeiro lugar, à pessoa que promulgou desde o primeiro minuto a existência desta dissertação, com todo o seu entusiasmo por um tema sem dúvida pouco ortodoxo. Assim sendo, ao Prof. Doutor Luís Urbano Afonso, um obrigado extremamente sentido, por todo o apoio e confiança que depositou no meu trabalho desde o início deste mestrado. Ainda mais, por toda a esperança que convoca ao meu futuro, esperança essa tão importante em tempos incertos como os que sentimos hoje.

Gostaria também de demonstrar a minha gratidão a todos os espíritos que trabalham em conjunto para a universalização do ensino da arte, e que de alguma forma contribuíram para esta dissertação: à Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa pelo seu ensino tão completo, aos colaboradores da página UbuWeb pelo excelente serviço público prestado, à British Library, à Fundação Calouste Gulbenkian, ao British Museum, à Tate Modern e tantos outros, por toda a informação que disponibilizam ao serviço da investigação da arte.

Aos meus colegas de mestrado, agradeço toda a camaradagem, todos os debates e companheirismo que partilhámos. À Susana, sobretudo, por toda a ajuda de que sempre dispôs. Aos amigos do coração, da velha António Arroio, semper fidelis. A toda a equipa do Museu Colecção Berardo, pelo constante apoio, preocupação e amizade que me dedicaram, demonstro o meu profundo agradecimento. À Cristina Sequeira, pela compreensão e apoio que me deu nestes meses de batalha, um muito obrigado.

Acima de tudo, quero oferecer o meu mais profundo reconhecimento aos meus pais, por me terem ensinado o valor da cultura, e por em nenhum momento ma terem negado. Obrigado por todos os livros, por todas as telas, por todas as tintas e pincéis, enfim, por todas as oportunidades que me deram sempre com total confiança, ainda que sacrificassem todas as vossas penas em prol da construção das minhas asas. Nunca lhes poderei agradecer suficientemente. Ao meu irmão e à Teresa por toda a paciência e carinho, um muito obrigado.

Por último, ao Alexandre, por partilhar cada momento deste percurso comigo, cada preocupação, cada incerteza, cada sucesso, cada sorriso. Por me ter incentivado todos os dias com as suas palavras e gestos, ou apenas com a promessa de um futuro que será, como acreditamos, encantador, estar-lhe-ei eternamente grata.

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“É um fenómeno geral na nossa natureza que o que é triste, terrível e, até horrendo nos atraia com um fascínio irresistível; que não nos sintamos repelidos por cenas de dor e de terror, mas com igual força atraídos… Como é numeroso o séquito que acompanha um delinquente ao lugar do seu suplício! Nem o prazer de um satisfeito amor de justiça nem o gosto ignóbil do aquietado clamor de vingança podem explicar estes fenómenos. Embora aquele infeliz também possa ser acusado no coração dos espectadores, a mais sincera compaixão pode interessar-se pela sua salvação; todavia, agita-se no espectador, um desejo curioso, mais ou menos forte, de estender o olhar e o ouvido para a expressão do seu sofrimento. Se o homem educado e de sentimentos elevados constitui uma excepção, não é porque não exista nele o instinto, mas porque nele se sobrepõe a força da piedade ou é refreado pelas leis do decoro.

O rude filho da natureza, sem freio de qualquer sentimento de humanidade delicada, abandona-se sem pudor a este poderoso impulso que, por isso, deve ter o seu fundamento na disposição natural do ânimo humano.”

Friedrich Schiller Da Arte Trágica, 17921

Piedade, decoro e educação são alguns dos pressupostos que, segundo as reflexões herdadas de Schiller, toldam a liberdade de sentimentos do homem, constrangendo-o de expressar uma apetência natural para a experiência do horrível, que é sua e universal. É essa apetência que, segundo o autor, precipita os espectadores à boca de cena da execução, da tortura, comandando-os por meios de uma curiosidade instintiva. É também essa apetência que precipita os transeuntes ao olhar curioso dos acidentes de viação nas estradas. E, embora este autor não se refira nem pertença aos períodos de enfoque desta dissertação, ele revela já as razões pelas quais este estudo permanece um pouco à margem do gosto mais corrente dos leitores. Trataremos de um tema “que é triste, terrível e, até horrendo”.2

A questão da laceração, do corpo cortado, é malograda mas de inegável presença ao longo de toda a história da arte, não sendo apenas fruto de obras de arte contemporâneas e controversas, como pode ser

1 SCHILLER apud ECO, Umberto, História do Feio, Difel, Algés, 2007, p.220. 2

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precipitadamente julgado. Desde a sua centralidade na arte anatómica e cirúrgica, à sua representação na pintura ou ao seu testemunho na performance, o corte do corpo tem tido a sua presença marcada ao longo de toda a História da Arte. A mais forte evidência da pertinência desta temática observou-se na sua difusão no campo da arte Sacra europeia, sobretudo a partir do século XIII. A razão pela qual esta dissertação se focará, em parte, no período convencionado como Idade Média Tardia, assenta precisamente no despontar de inúmeros novos cultos a temas iconográficos violentos ligados à dor e à laceração. Embora toda a história de culto da religião católica esteja assente em narrativas aparentemente violentas, é entre os séculos XIII e XV que surgem motivos iconográficos tão crus como as mais reconhecidas feridas de toda a Europa – as Chagas de Cristo –, o doloroso Vir Dolorum ou o Homem das Dores, o Ecce Homo e a sangrenta Missa de S. Gregório. É também ao redor desta época que o homem medieval, assimilando a constância dessa violência na história crística, começa a compreender a utilidade da dor a nível espiritual, e consequentemente a acreditar no seu valor positivo, auto-infligindo-a no seu corpo.3

Este crescente hiper-realismo das sensações físicas, da visualidade do corpo e da sua consciência material, aliado a uma necessidade de atingir a representação realista que floresce no campo das artes, contribuiu para a noção errónea e comum de que a Idade Média seria uma época dessensibilizada em relação ao horror: uma época de violência desnecessária, extrema e cruel. Felizmente existem já hoje inúmeros estudos que contrariam esta premissa – que nos faz frequentemente utilizar a palavra medieval como adjectivo pejorativo -, demonstrando-nos que nem todo o horror do quotidiano era tão natural e leviano como pensamos, nem todo o dia-a-dia cercado pela sua experiencia. Na verdade, a dessensibilização face à imagem da violência extrema parece ser um conceito mais comum à idade pós-modernista do que à época medieval, como podemos observar com a fomentação crescente de diversos estudos antropológicos e da cultura visual dos últimos anos. Estas incidências literárias do pós-modernismo tratam, sobretudo, de temáticas ligadas ao voyeurismo da dor, nascidas no seio do rescaldo das grandes guerras do século XX, e fomentadas pelos chamados meios de comunicação em massa. Segundo reflectido no famoso estudo sobre a nossa sociedade do espectáculo,

3 CARLSON, Marla, Performing Bodies in Pain: Medieval and Post-Modern Martyrs, Mystics, and Artists,

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assim apelidada por Guy Debord 4, o mundo real, desagregado numa falta de unidade típica dos processos de globalização, converte-se numa mera representação em que o sujeito vive alienado, sem distinguir a realidade da ficção, e consequentemente vive necessitado de imagens cada vez mais hiper-realistas, mais impressionantes e chocantes, que procura com avidez. Como consequência ou até como impulsionadora deste tipo de sociedade que é a nossa, na arte iniciou-se uma busca incansável e original - uma busca do real (traumático) -, que imperou sobretudo a partir dos anos sessenta, como nos diz Hal Foster:

“Se alguns modernistas tardios queriam transcender a figura referencial e alguns primeiros modernistas queriam deleitar-se na pura imagem, alguns pós-modernistas tardios querem possuir a coisa real.”5.

Também pela sua desagregação de qualquer directriz, tanto constitucional, como moral e material, a arte ganhou cada vez mais espaço de liberdade, sobretudo desde há cerca de sessenta anos atrás com o culminar da II Guerra Mundial. Embora a noção de pós-modernismo não seja convencionalmente inaugurada com o término desse período, sendo que no campo da estética é já geralmente considerado pós-moderno o período a partir do qual as obras de arte perdem a sua aura (sobretudo a partir do Dadaísmo) e aderem às novas tecnologias e à produção repetitiva, considerámos para esta dissertação somente a etapa a partir dos anos sessenta, em consideração à obra de Hal Foster. Fizemo-lo sobretudo pela coincidência com um período em que os artistas começaram a ter uma maior liberdade de meios plásticos e tecnológicos para criar, e em que a psicanálise começou a ser fonte de estudo artística. Nesta Europa pós-traumática de guerra, os artistas começaram a sentir a necessidade de transmitir através da arte a expressão daquilo que presenciavam de forma mais ou menos directa ou abstracta – estando ou não de alguma forma relacionados com a Guerra, sendo ou não sendo meros espectadores das suas difusões visuais violentas. Existe, a partir desta época pós-guerra, uma violência visual extrema transferida da realidade para a arte, que anseia não só transmitir-se para o público mas também encontrar a sua projecção simbólica, segundo

4 DEBORD, Guy, The Society of the Spectacle, Treason Press, Camberra, 2002, in libcom.org, acesso em

06/08/1012, http://libcom.org/files/Society%20of%20the%20Spectacle2.pdf.

5

FOSTER, Hal, «The Return of The Real», in Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acesso em 06/08/2012, http://www6.ufrgs.br/artereflexoes/site/wp-content/uploads/2011/02/o-retorno-do-real.pdf, p.185.

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nos diz Kata Kulavkova em «The Poetics and Hermeneutics of Violence»6. Mas o problema situa-se, diz-nos também, na diluição dos limites entre o verdadeiramente real e o simbólico: na falha de distância representativa com que nos deparamos, que quebra o processo de simbolização e nos torna alienados.7 Com o passar dos anos sessenta e até aos dias de hoje, surgiu nos artistas o marasmo resultante da entropia da arte, do tudo

possível que resulta numa crise de subjectivismo estético. Como tal, muitos artistas

começaram a considerar as réstias de tabus e leis da sociedade que subsistiram a esta crise da estética como barreiras a transgredir, sendo essa transgressão ainda o único meio de inovar no campo da arte. Um dos novos meios destes artistas tem sido o seu próprio corpo que, como material ou obra total, têm explorado artisticamente com frequência através da laceração, contribuindo para o caos dessa disseminação de fronteiras entre a vida e representação, entre real e simbólico.

Ilustrar e analisar casos em que o excesso de violência, o entrelace da vida e da imagem alienam ou, pelo contrário, fornecem uma maior identificação e proximidade do observador à mensagem a ser transmitida, será um dos objectivos desta dissertação. Mas, na verdade, existirão realmente constrangimentos ou tabus associados à experiência da arte? Ou será a busca da transgressão das cada vez mais ténues fronteiras da moralidade ocidental uma busca vã, pois estes limites vão-se anulando sucessivamente com o desenvolver da arte e a difusão cultural? “Thou shalt not kill; Thou shalt not perform the carnal act except in wedlock. Such are the two fundamental commandments found in the Bible and we still observe them”8, dizia-nos Bataille em 1962, acerca dos dois tabus que considerava serem primários na constituição do homem: morte e sexualidade. Desde o ano em que o autor escreveu esta importante reflexão que temos observado a progressiva e agravada diluição do tabu da sexualidade, sobretudo graças aos meios de comunicação, e aventuramo-nos a afirmar que o único tabu que realmente subsistirá hoje ainda – e muito ténuamente - é o da morte. A morte será a nossa última fronteira, a nossa última aversão, sendo a danificação da integridade do corpo a mais dolorosa experiência visual. Uma vez que a laceração é causa desse dano, e que a dor constitui um dos mais universais sentimentos de um mundo

6

KULAVKOVA, Kata, « The Poetics and Hermeneutics of Violence», Violence & Art, Interpretations:

European Research Project for Poetics & Hermeneutics, Vol.1, Macedonian Academy of Sciences and

Arts, Skopje, 2007, p.13.

7

KULAVKOVA, op.cit., pp. 14-15.

8

BATAILLE, Georges, Death and Sensuality: a study of Eroticism and the Taboo, Walker and Company, New York, 1962, in UC Santa Cruz Web, acesso em 06/08/2012,

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fragmentado, no decurso desta dissertação analisaremos, desta forma, os dois momentos artísticos tão díspares com recurso a princípios que são inegavelmente objectivos. Estabeleceremos paralelismos resultantes não só das aparentes similitudes visuais entre as obras de arte que serão seleccionadas para análise, mas também resultantes deste pano de fundo intrínseco ao homem constituído pela sedução e pelo horror da laceração. Se o horror, a repulsa, são intrínsecos, teremos em consideração uma análise pictórica que não será estanque temporalmente, analisando as obras de arte não só apenas na vertente estética em que se inserem, mas abrindo a sua análise a um método transtemporal, mais antropológico.

Há que antever que, acima de qualquer pressuposto, a dor é fisiológica, e é nesta suposição que perdemos parte da sua subjectividade visual. Ao longo desta dissertação, daremos principal destaque à laceração de um ponto de vista também ele mais objectivo, intrínseco e inconsciente, dando especial enfoque à psicanálise, num panorama que vai do particular – da obra - para o geral – do homem. Como tal, não só Freud será uma importante base para nós, como pai da psicanálise que foi, como também Julia Kristeva com Powers of Horror: An Essay on Abjection9. Esta última autora será particularmente importante, contribuindo com uma visão sobre a reacção humana face a certas sensações dotadas de um cariz abjecto, das quais a laceração faz parte. Com este seu contributo a autora ofereceu-nos a possibilidade de interpretar as reacções que são comuns a todos os Homens quando remetidos ao campo da abjecção, do qual fazem também parte matérias como o sangue, as fezes, as feridas, o pus, e até o cadáver, sendo este último, realmente, o exemplo de maior abjecção. O estudo de Julia Kristeva oferecer-nos-á ainda um útil panorama sobre a experiência dos rituais neo-religiosos, que nos ajudará sobretudo a compreender a performance contemporânea, e oferece-nos ainda uma brilhante visão sobre a significância do sangue na constituição do homem (inconsciente e pré-inconsciente). Será igualmente num estudo de Caroline Walker Bynum10 que nos basearemos para analisar aquele que será um elemento constante da nossa dissertação, não fosse ele o vestígio por excelência da laceração: o sangue. Para esta autora, na Idade Média o sangue seria um símbolo de verdade

9

KRISTEVA, Julia, Powers of Horror: an Essay on Abjection, Colombia University Press, New York, 1982 in California State University Web, Sacramento, acesso em 07/08/2012,

http://www.csus.edu/indiv/o/obriene/art206/readings/kristeva%20-%20powers%20of%20horror%5B1%5D.pdf.

10 BYNUM, Caroline Walker, Wonderful Blood: Theology and Practice in Late Medieval Northen Germany and Beyond, University of Pennsylvania Press, Philadelphia, Pennsylvania, 2007.

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absoluta, um sinal de eucaristia divina e de sacrifício, mais do que de violência.11 No entanto, hoje o sangue significa algo muito diferente, sendo imediatamente associado à violência e destruição da liberdade e da identidade.

Aliado ao estudo da cultura mediatizada da realidade - que através da sua violência e atrocidades atrai massas tão cedo desde que o homem, seu espectador, existe - têm surgido inúmeros estudos acerca do voyeurismo na sociedade contemporânea. Desde Bataille, que já referimos aqui anteriormente, a Guy Debord com a importante obra A Sociedade do Espectáculo, e até Susan Sontag, que traz uma nova visão acerca da teoria visual aliada ao traumático pós-guerra em Regarding the Pain of Others12, estas novas leituras estranham mas consciencializam-se acerca deste fascínio peculiar com tudo o que é horrível. Na verdade, as reflexões literárias acerca da apetência natural para os temas do horror poderiam remontar tanto quanto a Platão, como nos diz Susan Sontag:

“On his way up from the Piraeus outside the north wall, he noticed the bodies of some criminals lying on the ground, with the executioner standing by them. He wanted to go and look at them, but at the same time he was disgusted and tried to turn away. He struggled for some time and covered his eyes, but at last the desire was too much for him. Opening his eyes wide, he ran up to the bodies and cried, ‘There you are, curse you, feast yourselves on this lovely sight’”.13

Como têm considerado alguns destes estudos, a paixão pela realidade horrível situa-se coincidentemente numa paixão de abolição que tem o seu fundamento no medo e na vontade de afastar o horror da morte, e está simultaneamente situada no princípio do prazer. Não é este um prazer de cariz sexual a não ser que seja elevado a um outro patamar mais patológico, que não será nosso objectivo de análise nesta dissertação, uma vez que trataremos o homem em caso geral e não particular. É este um gozo, segundo Julia Kristeva14, que não reconhecemos em nenhuma estrutura simbólica, e que é uma

11

Ibid.

12

SONTAG, Susan, Regarding the Pain of Others, Penguin, s.l., 2004.

13PLATÃO apud SONTAG, Susan, Regarding the Pain of Others, Penguin, s.l., 2004. 14

KRISTEVA, Julia, Powers of Horror: an Essay on Abjection, Colombia University Press, New York, 1982 in California State University Web, Sacramento, acesso em 07/08/2012,

http://www.csus.edu/indiv/o/obriene/art206/readings/kristeva%20-%20powers%20of%20horror%5B1%5D.pdf.

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pulsão que nos aproxima do objecto de abjecção.15 É um proto-gozo, que coincide paradoxalmente com um proto-medo, situando-se ambos num patamar ainda pré-inconsciente – primitivo e intrínseco ao homem. Mas, embora fascine a nossa tentação, o abjecto tem como principal reacção a repulsa, que se traduz em reações incontroláveis como o espasmo ou o vómito, uma repulsa que frequentemente sentimos na visão da laceração. O processo face à matéria de abjecção dá-se, como tal, da seguinte forma: o objecto abjecto fascina o nosso desejo, que no entanto não se deixa seduzir, repulsando-o enrepulsando-ojadrepulsando-o e simultaneamente repulsando-orgulhrepulsando-osrepulsando-o da certeza dessa rejeiçãrepulsando-o. Nrepulsando-o entantrepulsando-o, arepulsando-o mesmo tempo, produz-se no homem a tentação, tornando de novo o contacto face ao abjecto: “like an inescapable boomerang, a vortex of summons and repulsion”.16

Pelo meio desse gozo pela matéria primordial, que está para lá do inconsciente humano, conseguimos ainda, neste nosso estudo, estabelecer alguns paralelismos com a controversa teoria da pulsão de morte de Freud. Esta teoria não consensual no campo da psicanálise relaciona o homem com uma apetência inconsciente para a destruição do seu próprio ser17, consequente de uma necessidade de se tornar uno com a matéria primordial, ou seja, de um desejo de se tornar ele próprio informe, abjecto.

A especificidade do tema desta dissertação dificultou o encontro de literatura mais coincidente com o mesmo, fazendo com que uma série de outras obras de literatura generalista, ou acerca de outros temas paralelos, se tornassem de extrema importância. Na descoberta dessas obras literárias e nas coincidências entre os seus diversos conteúdos deu-se a decisão das principais temáticas que constituirão esta dissertação. Não encontrámos uma discussão massiva acerca do tema da laceração ou do corte do corpo na arte, mas encontrámos um rol de outras pequenas reflexões ou assuntos paralelos de extrema importância para a análise deste tema. A violência e a religião situam-se como temas centrais destas obras pesquisadas, que nos oferecem acima de tudo um excelente panorama socio-cultural das manifestações da dor na arte. Contudo, a nossa maior surpresa foi encontrar duas obras recentes em que, nesse contexto da religião e da violência, é precisamente estabelecido o paralelismo tardo-medieval/pós-modernista na cultura visual. Tratam-se dos estudos Defaced: The Visual Culture of

15

Embora o abjecto não seja objecto, mas um algo não reconhecido ou um local onde o significado colapsa, certos objectos podem ser caracterizados como abjectos. Será deste tipo de objectos, como o sangue, a urina, as fezes, o sémen, o leite estragado, o lixo, o cadáver, que falaremos nesta dissertação.

Cf. KRISTEVA, op.cit., pp.1-2. 16

Id., p.1.

17 FREUD, Sigmund, Beyond the Pleasure Principle, 1992, in Bartleby: Great Books Online Web, acesso

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Violence in the Late Middle Ages18 de Valentin Groebner, e de Performing Bodies in Pain: Medieval and Post-Modern Martyrs, Mystics, and Artists,19 de Marla Carlson.

Na primeira obra, Goebner transporta-nos aos séculos XV e XVI para nos falar da ungestalt – ou da não-forma, da desfiguração – que a imagem da violência extrema nos oferece. “I intend to show that medieval and modern concepts of Ungestalt and the representation of the terrible are connected”, explica-nos,20 estabelecendo comparações com os modos como hoje encaramos a violência e a sua visualidade, e consequentemente reflectindo de forma pontual sobre a imagem do corte, do sangue e do seu dramatismo. Uma primeira parte da sua obra traduz precisamente o que temos discutido até agora: que o mundo fascinado com o horror não é exclusivamente medieval mas sim um fenómeno contínuo e universal. Salienta também que é preciso pensar na violência como sendo qualquer outra componente da vida social, como algo que é subjectivo. O que pode ser considerado hoje barbárie pode ser amanhã considerado algo vulgar: basta pensar no conceito de piercing corporal e no curto prazo que separa o nosso tempo – em que é um objecto tão comum – do momento da sua introdução no ocidente.

Embora não seja propriamente a pertinência da subjectividade que nos interesse desenvolver nesta dissertação, Valentin acrescenta um ponto importante neste sentido: é necessário considerar esta heterogenia21 da cultura como um conjunto de diferentes visualidades com objectivos de atingir um fim: o observador. É necessário que, diz-nos o autor, esse derradeiro objectivo de uma obra de arte seja visto como a principal razão da sua existência, e que se entenda a arte da Idade Média Tardia como violenta porque assim o deseja ser: violenta, mas poderosa perante o espectador.22 O poder instaurado com a imagem da tirania e a submissão do homem à mesma será, por fim, o assunto de destaque da obra de Groebner, que associará várias formas da cultura visual a modelos religiosos e políticos. No teatro de encenação de martírios religiosos, ou até da Paixão de Cristo (chamados ciclos do Corpus Christi), o espectador veria, diz-nos Groebner, a alusão à própria tortura ou execução, como meios de pena legal instaurados na sua localidade. Na visibilidade de certos signos - insígnias e signa oficiais – instaurava-se a

18

GROEBNER, Valentin, Defaced: The Visual Culture of Violence in the Late Middle Ages, Zone Books, New York, 2002.

19 CARLSON, Marla, Performing Bodies in Pain: Medieval and Post-Modern Martyrs, Mystics, and Artists,

Col. ‘Palgrave Studies in Theatre and Performance History’, Palgrave Macmillan, New York, 2005.

20

GROEBNER, op.cit., p. 13.

21Id., p.33. 22

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ordem pública fundada no medo, de um modo que funcionava um pouco como certas

tags e palavras de ordem pública contemporâneas, ou até mesmo como a propaganda de

Guerra de há algumas décadas atrás. O símbolo mais poderoso e multifacetado seria, contudo, o sangue, constituindo o mais prolífero dos sinais da laceração, a mais prolífera matéria de culto, mas também a mais ambígua matéria, como veremos no capítulo que lhe dedicaremos nesta dissertação.

Existia nesta Idade Média Tardia uma nova abordagem religiosa resultante de novos preceitos de devoção, que exploraremos mais adiante, e que ressaltava a imitação como o modelo a adoptar para imergir no divino – a imitatio Christi. Mas a criação de novos símbolos que visam a imitação dos sofrimentos de Cristo criam o seu novo problema, diz-nos Groebner: o medo nos fiéis de serem levados a crer em imagens enganadoras, derivadas de um exagero que se torna macabro. A imagem da violência que vai crescendo e que não é já sagrada mas gratuita e banal, um arquétipo do Anti-Cristo: é este o perigo fulcral destas imagens poderosas e perigosas.23 No mesmo capítulo da sua obra, The Crucified and His Doubles, Valentin Groebner trata ainda da questão do hiper-realismo na iconografia, que associado a essa imitatio Christi fornecia os pressupostos da nova imagética de culto da Igreja. Sobre estes novos tipos iconográficos encontramos informação em diversas obras, mas sobretudo na de Mitchell Merback, The Thief, The Cross and The Wheel: Pain and the Spectacle of Punishment

in Medieval and Renaissance Europe.24 Embora esta obra se foque objectivamente nas representações violentas dos ladrões que ladeiam Cristo no Calvário, Merback oferece-nos o background e algumas considerações acerca deste novo tipo de culto do corpo partido e abatido25, devido ao teor da temática que analisa, sendo assim um autor de grande relevância para a nossa dissertação. Para além do mais, ele compactua com Julia Kristeva e com um dos pressupostos principais desta nossa dissertação, ao defender que existe algo pré-social e comum ao homem no medo da dissolução do corpo, e assim consequentemente da sua laceração.26 Como salientam tanto Merback como Groebner, as imagens de devoção tornaram-se neste período medieval tardio o mais detalhadas possível, apelando a um realismo extremo que é tão importante para os fiéis de outrora

23

Ibid., p. 114.

24 MERBACK, Mitchell B., The Thief, the Cross and the Wheel: Pain and the Spectacle of Punishment in Medieval and Renaissance Europe, The University of Chicago Press, Chicago, 1999.

25

O corpo partido refere-se a The Broken Body as Spectacle, título da terceira parte da sua obra, in MERBACK, op.cit., p.101.

26

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22

como para o observador contemporâneo. As feridas representadas hiper-realisticamente e o sangue deveriam ser um veículo para a imaginação piedosa, apelando à compassio (compaixão). Assim sendo, as chagas de Cristo tinham um papel fulcral para esta contemplação, sendo que eram o local representativo da violência contra Cristo, mas também da sua penitência e da sua transcendência, funcionando quase sempre como

punctum27 da imagem, tornando a laceração no ícone por excelência da Idade Média

Tardia.

O segundo estudo que nos suportará relaciona a performance da dor, do corromper do corpo, e o modo como o seu ritual é recebido pelo público pré e pós-moderno. Performing Bodies in Pain: Medieval and Post-Modern Martyrs, Mystics, and

Artists,28 oferece-nos considerações mais específicas ao campo da arte, examinando o teatro e a performance contemporâneas enquanto nos remete às peças medievais de martírios e aos flagelos religiosos. Oferece-nos, desta forma, a base para uma reflexão correspondente, que se reflectirá quando mais adiante estabelecermos paralelismos entre performers contemporâneos como o grupo de Accionistas Vienenses ou Gina Pane, e as flagelações teatrais medievais. As principais questões de Carlson nesta obra serão: porquê dantes, e porquê agora. A nossa dissertação tentará de certa forma responder a estas questões, tentando decifrar uma cadeia de motivações semelhantes entre estas duas épocas díspares. A autora de Performing Bodies in Pain oferece-nos também uma sucinta resposta a estas questões, no decorrer do seu discurso: “because it creates an urgent need to communicate things to which no one is eager to listen”. 29 Como tal, além de criar realidades poderosas, como havíamos visto, a imagem da dor e da violência transmite-nos realidades pré-existentes urgentes em se manifestarem. É por este carácter comunicador que a performance contemporânea tanto se tem fundamentado em actos violentos, e como consequência tantas vezes é considerada controversa e chocante.

Segundo Carlson, o observador da violência medieval não sentia a compaixão no sentido (ético) que hoje conhecemos – o sentido de acabar com a dor do outro - pois o

direito adquirido de viver sem dor, alcançado com os progressos médicos, não existia

ainda. O observador sentia a compassio como uma ânsia privada de obrigação de sofrer com o modelo que observava. Como tal, a apreensão da performance medieval não

27 Conceito de Roland Barthes, que nos diz «O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere

(mas também me mortifica, me apunhala)» in BARTHES, Roland, A Câmara Clara, ed. 70, lisboa, 1981, p.35.

28 CARLSON, op.cit. 29

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23

fomentaria uma reacção de compassio semelhante à que a performance de hoje fomenta, pois não criava um sentimento comunitário e de igualdade pessoal, mas sim um sentimento de compaixão individual e meditativa. Mark Seltzer tem explorado essa ideia de comunidade de sentimento pública no âmbito da sociedade actual marcada pela cultura do trauma e do horror, uma que denomina de wound culture.30 Para este autor, o

espectáculo colectivo do horror é o espaço onde o desejo privado e o espaço público se cruzam, e onde o virtual e o figurativo (a percepção e a realidade) se parecem confundir. Na ferida, na laceração, vê o ponto de troca entre estes campos: entre o interior e o exterior, o privado e o público. A esfera pública patológica, como lhe chama, e em que hoje nos deparamos, é marcada pelo afluir dos espectadores ao local do desastre: “sociality and the wound have become inseparable.” 31

.

Marla Carlson também nos oferece o seu ponto de vista acerca da crescente mediatização da imagem da dor, que se reflectiu analogamente na disseminação do conceito de imitatio Christi medieval, e que se pode facilmente tornar demasiado difundida, demasiado fútil, “turning atrocity into a source of pleasure while forgetting the material suffering of those who are thus represented.”32 É com a sua reflexão sobre a imagem mediatizada que compreendemos, contudo, uma certa dissemelhança entre os meio de comunicação visual norte-americanos – zona sobre a qual incide a sua análise – e os europeus. Nos americanos reparamos que existe uma certa tendência em evitar a

espectacularização da imagem da morte efectiva na sociedade, mas fomenta-se,

contudo o fascínio das representações do sofrimento. Nos europeus, não observamos aparente pudor em demonstrar a morte ou o sofrimento, sendo que os tabus são muito menos visíveis.

O terceiro capítulo da obra Performing Bodies in Pain33 foca-se sobretudo numa vertente feminista da performance, analisando a forma como a dor tem sido usada como recurso de comunicação em regimes culturais que não permitem à mulher exprimir-se. É necessário notar que, na verdade, estes tipos de estudos recentes sobre a dor ao longo da história têm-se focado sobretudo nos campos mais recentes de investigação cultural, nomeadamente nos campos do feminismo, da homossexualidade e do masoquismo. Será

30

SELTZER, Mark, «Wound Culture: Trauma in the Pathological Public Sphere», October, The MIT Press, Vol. 80. s.l., (Primavera, 1997), pp.3-26.

31

Id., p. 24

32

Id., p. 34.

33 CARLSON, Marla, Performing Bodies in Pain: Medieval and Post-Modern Martyrs, Mystics, and Artists,

(26)

24

nosso objectivo mantermo-nos relativamente à margem deste tipo de estudos, salvo rara excepção, pois entraríamos em domínios mais particulares do que aqueles que pretendemos estudar. Além do mais, quanto ao feminismo dessa transcendência carnal que, segundo Carlson, é constituída pelo êxtase pela via da dor tanto na arte contemporânea como na religião medieval, não era só buscada pelo sexo feminino mas também pelo masculino, como a autora explora no capítulo seguinte. Aqui, nesse novo capítulo, estabelecerá paralelismos entre a performance artística dita masculina que nos últimos anos se tem remetido sobretudo à libertação da homossexualidade, comparando--a com a tentativa de transcendência masculina presente nos grupos de auto-flagelantes medievais.

Outro importante contributo da obra de Carlson para a nossa dissertação será a sua visão sobre o campo sufocante da abjecção na performance que, segundo a autora, causa a confusão e exagero necessários para que a cena observada se torne memorável. Desta forma, quanto mais dor observemos, mais violência e abjecção se nos apresentem, melhor nos recordaremos do que vimos.34 Igualmente contributivas são as considerações de uma outra obra, Suspended Animation: Pain, Pleasure and

Punishment in Medieval Culture35, de Robert Mills, cujo objectivo fulcral é o de defender que a época medieval não é uma marcada apenas pela abjecção mas também pelo desejo que lhe é intrínseco. Mills enfatiza, a par de Groebner, a relação entre a observação do tormento e a propaganda e legitimação do poder jurídico, assim como a sua relação com a promulgação da distinção social. Mas, salienta paralelamente que estes excessos visuais da violência poderiam causar um prazer de cariz voyeurista, assim como no campo religioso poderiam causar uma remitência ao campo estético do sublime: do sublime da morte, do sofrimento e do sacrifício. Nas representações visuais destas tormentas Robert Mills identifica uma espécie de prisão do olhar, um estado de contemplação profundo dado pela apresentação das personagens em momentos entre a morte e a vida – “betwixt Heaven and Earth.”36 Seria nessa localização do mártir, em pleno estado limiar, que o abjecto, o corpóreo e material seriam transformados em algo sublime e imortal aos olhos do observador37 – e em que a dor se tornaria prazenteira para ele.

34 Ibid., p. 141.

35

MILLS, Robert, Suspended Animation: Pain, Pleasure and Punishment in Medieval Culture, Reaktion Books, London, 2005.

36 Id., pp. 17-23. 37

(27)

25

Na contemplação do mártir, que promove a compaixão, o autor entende ainda a formação de uma nova linguagem, ou uma nova via de comunicação dada pelo sentimento da comunidade38: a mesma linguagem da wound culture de Mark Seltzer.39 A linguagem da dor como ferramenta pedagógica e associada ao reconhecimento da sua utilidade espiritual – como philopassianism, segundo termo de Esther Cohen40 -, e assim aplicada na auto-flagelação, é também assunto de estudo da obra de Mills. O autor não deixa, a par de Marla Carlson, de referir as conotações sexuais (que serão o grande assunto da sua obra) que os movimentos de fiéis auto-flagelantes têm tido, defendendo, no entanto, que o termo ‘masoquismo’ não é pejorativo quando aplicado a esta análise. Mills segue a via de Deleuze, uma via mais esteticizada que define o masoquismo como uma ‘forma de arte’ apoiada no conteúdo estético da dor e do sofrimento, e não tanto na patologia. Segundo o autor de Suspended Animation, por sua vez, a diferença na interpretação dos tipos de prazer retirados da dor entre santos e masoquistas, é a de que: “saints adopt transcendence, rather than eroticism, as a way of handling suffering”41.

Também a pele, como podemos ler mais adiante na sua obra, é considerada um veículo de comunicação e linguagem, sendo que na Idade Média Tardia a alusão ao seu ferimento poderia ter uma multiplicidade de entendimentos. Consoante o seu contexto, a laceração poderia ser registo da memória do sofrimento religioso de Cristo ou dos mártires (uma ferramenta mnemónica para os fiéis), poderia ser o próprio objecto de devoção ou, pelo contrário, objecto de nojo e repulsa (no caso de doença). Frequentemente esta linguagem coincidiu com a própria linguagem escrita, sendo que o período tardo-medieval foi rico na produção de manuscritos iluminados com representações de chagas, que funcionavam como se as próprias páginas ensanguentadas fossem a pele cortada de Cristo, e que mediavam a comunicação do âmbito sagrado com os fiéis. Numa tentativa de compreender a dialética da laceração que este novo tipo de linguagens oferecia, Georges Didi-Huberman criou a obra

L’Image Ouverte: motifs de l’incarnation dans les arts visuels42

, um estudo também 38 Ibid., p.31. 39 SELTZER, op.cit. 40

COHEN apud CARLSON, Marla, «Painful Processions in Late Medieval Paris», Papers presented in the Xth Triennial Colloquium of SITM, Société Internationele pour l’étude du theater médiéval, Groeningen, acesso em 23/08/2012, http://www.sitm.info/history/Groningen/carlson.htm.

41

MILLS, op.cit., pp. 169-175.

42 DIDI-HUBERMAN, Georges, L´Image Ouverte: Motifs de l’Incarnation dans les Arts Visuels, Col. Les

(28)

26

descendente de Freud e Bataille mas de cariz predominantemente filosófico, que nos oferece, no entanto, algumas reflexões fundamentais para o desenvolvimento desta dissertação. Nesta obra o autor explora a relação visual entre homem e imagem de abertura da carne, e é acerca deste intervalo de relacionamento que lhe interessa sobretudo reflectir. Segundo Didi-Huberman “Les images nous embrassent : elles s’ouvrent à nous et se referment sur nous dans la mesure où elles suscitent en nous quelque chose que l’on pourrait nommer une expérience intérieure.”43 Contudo, e embora a forma como discursa nos possa dar esse entendimento, o autor não vê este processo apenas como uma metáfora, mas como uma possibilidade real de abrir a alma - o nosso interior espiritual – através da imersão na abertura da imagem. Fala-nos dessa abertura como uma poética omnipresente que influencia todo o comprimento da vida humana: ao nascer abre-se o corpo, ao morrer abre-se o túmulo.44

Ao longo do texto Didi-Huberman foca-se principalmente na problemática do corpo de Cristo e da sua Encarnação (conceito que lhe será fundamental), assim como nas problemáticas da sua veracidade e verdadeira carnalidade. A partir destas reflexões matéricas, o autor oferece-nos algumas reflexões sobre as quais nos debruçaremos também adiante com mais atenção, relacionadas com a pele, a carne e o sangue. O teor da nossa dissertação, contudo, não será tão filosófico quanto o de L’Image Ouverte, sendo que a poética da abertura e a sua interacção com o observador serão para nós conceitos mais sensórios corpórea e psicologicamente, e menos abstractos do que na sua obra. Para além das suas perspicazes interrogações e das suas interessantes reflecções filosóficas, contudo, a obra de Georges Didi-Huberman fornece ainda um outro importante contributo à nossa dissertação: um contributo de cariz visual. Embora este possa parecer, à primeira impressão, um contributo fútil ou superficial, na verdade a sua obra L’Image Ouverte oferece-nos um excelente e peculiar exemplo de qualidade visual, da qual inevitavelmente a nossa dissertação retirou inspiração para prosperar.

43 Ibid., p. 27.

44

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27

Um tópico tão específico como o da laceração na arte surgiu pela necessidade de diminuir um campo de estudo tão alargado como o da dor, ou da violência, esses campos da arte denominada feia que nos interessavam inicialmente estudar. Quando falamos de laceração não falamos apenas de imagens de horror e repugnância: falamos de um termo mais específico que a própria ferida, mais localizado e espacialmente controlado. É comum associar imediatamente a esta palavra o golpe infligido, em detrimento do acidental. Na verdade, a distinção semântica ou médica entre golpes, lacerações, incisões, não é um ponto de importância para esta dissertação. A escolha desta palavra deve-se sobretudo à necessidade de escolher um termo que denunciasse um certo tipo de controlo do gesto lacerante: um gesto mais controlado que o da ferida (termo demasiado genérico) e menos controlado que a incisão (termo demasiado cirúrgico). Nas obras de arte que iremos analisar a laceração é sempre um elemento que denuncia esse controle e que constitui o punctum da observação, e que denuncia um caso de não-acidente e a presença de um infligidor. Como já referimos, a pertinência desta temática prende-se também com a sua objectividade, uma vez que trata de um assunto incontestavelmente universal. Embora a forma de a sentir seja efectivamente subjectiva, todo o ser humano já experienciou, de alguma forma, a dor. Elaine Scarry, no seu estudo The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World, fala-nos da impossibilidade que a dor tem de comunicar, uma vez que só podemos imaginar e não sentir a dor do outro. Diz-nos que, por esta privacidade inerente à dor, ela é um elemento de destruição da linguagem.1 No entanto, segundo repara eficazmente Marla Carlson, “pain in art is qualitatively different from the pain in life”.2

Uma vez que toda a

1

SCARY apud CARLSON, Marla, Performing Bodies in Pain: Medieval and Post-Modern Martyrs, Mystics,

and Artists, Palgrave Studies in Theatre and Performance History, Palgrave Macmillan, New York, 2005,

p.16.

2

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28

arte possui um carácter comunicador, através dela a dor pode ser comunicação e possuir todo um sistema de linguagem.

Com o súbito crescimento da representação da dor na arte, sobretudo desde os finais da Idade Média, a laceração tomou parte de três tipos de meio de representação comunicativa. A primeira seria uma comunicação narrativa, na sua maioria pictórica ou escultórica, com atenção a um realismo crescente. Mas paralelamente, devido a novas práticas devocionais e a uma crescente necessidade de uma devoção individual e portátil, a laceração também figurou num outro tipo de comunicação pictoricamente mais simples e alegórica, como é o caso da iluminura e da gravura. No entanto, um outro tipo de representação já se havia desenvolvido, embora à época não fosse comum considerá-la uma forma de arte: a representação teatral. Esta tese transparece uma dificuldade em separar o que seria o teatro medieval, de representação de martírios e cenas bíblicas, e o que seria a flagelação ritual – assim sendo, uma dificuldade em separar o artificial da realidade. No entanto esta é uma dificuldade natural, que transparece tanto no que se refere ao período tardo-medieval como ao pós-modernista, pois a performance encenada aproxima-se cada vez mais da performance real, e vice-versa. Chamemos a este entrelace entre arte e vida, por ora, uma representação real.

Em Defaced3, de Valentin Groebner, achamos uma frase chave que nos denuncia a inevitabilidade de estabelecer um paralelismo entre Idade Média Tardia e Pós-Modernismo: “In the twentieth century, the supposedly violent Middle Ages were used as a reservoir of material for the picturesque and the bizarre, an archive of alterity”.4 Se o pós-modernismo vê na Idade Média uma espécie de arquivo de alteridade, então isto denuncia a sua igual apetência para o sadismo que erradamente lhe acusa. Claro está que a diferença se situa entre o ver e o sentir, ou seja, entre a representação do horror e a realidade do mesmo. Em comparação à cultura visual dos anos sessenta até aos dias de hoje, é necessário admitir que o homem medieval estava mais sujeito à visão do horror face-a-face (da dor e da morte) do que o ocidental pós-moderno. Todo um conjunto de factores sociais fazia com que a dor e a morte fossem motivos ocasionalmente

3

GROEBNER, Valentin, Defaced: The Visual Culture of Violence in the Late Middle Ages, Zone Books, New York, 2002.

4

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vislumbrados, por vezes até recorrentemente. Além das tão estudadas penas jurídicas, com as suas esporádicas romagens ao cadafalso e consequente demonstração dos corpos dos acusados durante semanas, também as guerras se faziam com diferentes armas que produziam mais grafismo. Para além do mais, existiam poucos métodos medicinais de aliviar a dor e de curar os traumatismos, o que trazia uma agravada visualidade (e experiencia pessoal) da dor no quotidiano medieval. As visões da abjecção, cara a cara, seriam uma constante e, para tal deduzir, basta imaginar um mundo sem saneamento básico. Certamente estas visões de horror real seriam, assim, mais regulares do que nos dias de hoje, mas não podemos cair no erro de as considerar uma constante diária5 apenas pelos registos documentais que até hoje nos chegaram. Muito menos podemos considerar que pela sua inevitável habituação a estes aspectos o homem medieval fosse menos sensível fisiologicamente à dor, ou que isto se reflectisse na sua sociabilidade e ele se tornasse um ser inerentemente mais violento e dessensibilizado à dor do outro. Também não podemos, segundo nos diz Groebner, confundir dessensibilização e apatia à dor ou à violência, com tolerância ou coragem estoicas, valores essenciais à época.6 Se, para além do mais, a imagem da violência era criada, tanto na arte como em registo urbano e judicial, para demonstrar algo poderoso ao seu público, então é porque ela tinha efectivamente capacidade de provocar esse poder – em forma de horror - sobre o observador.

Apesar da sua maior habituação aos aspectos de que já falámos, a Idade Média denunciava uma apetência pela visualidade desses registos bizarros comum aos dias de hoje, tanto pelas descrições que temos, por exemplo, da afluência de público aos locais de execução, das encenações de martírios religiosos e, acima de tudo, pela sua visualização na arte. Enfim, os chamados dados macabros que marcam a obra de Johan Huizinga nos finais dos anos dez do século XX.7 Não podemos esquecer, contudo, que toda a arte tardo-medieval que analisaremos tem o seu fundamento na religião católica, enquanto a arte dos nossos dias, não possuindo um pano de fundo unificado, será um pouco mais ambiguamente analisada. Ou, talvez a arte pós-modernista tenha como pano de fundo precisamente essa falta de fé, e um negativismo associado à sua própria ambiguidade. No fundo, o que parece ser comum às duas épocas artísticas em análise é uma busca pela realidade, mas uma realidade que demonstra o horror e violência nela

5

Será utópico pensar, por exemplo, que as penas capitais e torturas na praça pública eram uma constante diária, ou que todos os habitantes de um reino assistiam a elas.

6 Groebner, op. cit., p.30. 7

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30

vividas. Para Valentin Groebner, as imagens de hoje apelam a uma cultura da comunicação social do medo, sendo que confrontados com estas imagens de horror os espectadores podem identificar o seu próprio estado de vítima constantemente ameaçada e destrutível.8 No entanto, é o espectador que tem criado esse mercado de imagem, o que leva a confirmar que é dele que vêm a apetência de experienciar o horror, e o desejo de ter medo. Nessa ‘satisfaction of being able to look at the image without flinching’ e no paralelo ‘pleasure of flinching’9 encontramos a constituição do desejo visual do homem, tanto medieval como pós-moderno. Existem nele uma certa curiosidade e voyeurismo mórbidos, que aceita pois não existem neles nenhuma obrigação de moralidade face áquilo que é pura representação, como nos diz Susan Sontag.

Hoje tentamos ser confrontados com aquilo que supostamente nos amedronta, com a representação do que nos aterroriza, o que se reflecte muitíssimo com o tipo de objectos da nossa comunicação social, com o mercado de cinema que fomentamos ou com o conteúdo que partilhamos ou procuramos na internet. Reflecte-se até com o próprio tema desta dissertação. Segundo Freud, tentamos repetir os nossos traumas para que os possamos encaixar num sistema simbólico, para que em nós não fiquem ameaçadoramente sem sentido e fora de economia psíquica10. Desejamos a repetição de certas sensações que nos ameaçam, e para isso muitas vezes recorremos à imagem, à representação, repetindo a sua visualização até que nos sintamos alienados e sem reacção. Segundo nos diz Susan Sontag, essa alienação ou habituação à imagem não é automática, e depende da subjectividade de muitíssimos factores externos. No entanto, mais do que desejar a repetição do trauma, a imagem da violência e a híper-realidade do choque para que os possamos ultrapassar e mostrar a nossa prevalência sobre eles, desejamo-los tão simplesmente porque o desejamos. Sontag, no seu estudo Regarding

the Pain of Others, não admite que as pessoas queiram realmente ser horrificadas e, no

entanto, parece contradizer-se ao demonstrar a inerência desse desejo: “It seems that the appetite for pictures showing bodies in pain is as keen, almost, as the desire for ones that show bodies naked.”11 Até mesmo Santo Agostinho, tão cedo como no século IV,

8

Groebner, op.cit., p.154.

9 SONTAG apud CARLSON, op.cit., p.69. 10

FOSTER, Hal, «The Return of The Real», in Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acesso em 06/08/2012, http://www6.ufrgs.br/artereflexoes/site/wp-content/uploads/2011/02/o-retorno-do-real.pdf, p. 166.

11

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nas suas Confissões, admite não entender os prazeres retirados da visão do horror.12 Não será perigoso afirmar que existe um terrível círculo vicioso, de oferta e procura da imagem da violência e do horror. O espectador procura porque deseja ser chocado, e o comunicador oferece a imagem cada vez mais terrível porque o espectador cada vez menos se impressiona. Também não será perigoso dizer que o mesmo que se passa no pós-modernismo já se passaria na Idade Média, se considerarmos como pontos de partida as tendências das artes plásticas e do dramatismo, como representantes que eram da comunicação social da época.

O pós-modernismo observa os seus objectos como se não fossem efectivamente reais, o que deriva de uma cultura baseada no afastamento, de uma cultura de simulações e de efeitos especiais, que é agravada com essa capacidade do ser humano se abstrair e habituar – de se alienar – de que falámos acima. No entanto, há um prisma de aproximação em que as representações saem do seu campo de mera imagem longínqua e começam a entrar na nossa privacidade. É com a aproximação desse prisma que começamos a sentir-nos ameaçados: quanto mais nos sentimos identificados, mais vemos a nossa própria desgraça por perto. A arte tem sido uma arma de grande eficácia na transmissão dessa ameaça, uma vez que tenta ir sempre mais além na tentativa da invasão privada do seu observador. O realismo pictórico tem sido sempre associado a uma maior identificação do observador com a obra que observa, mas esta dissertação demonstrará que o hiper-realismo não tem que ser necessariamente característica de

realismo mimético. O hiper-realismo, no contexto desta nossa dissertação, pode ser

aquele elemento fulcral da representação que transporta o observador para o choque da identificação pessoal, ou pode ser o aspecto sensorial que a obra transmite e que remonta o observador às suas mais íntimas sensações, ao seu interior. No fundo, o realismo extremo é aquilo que prende o observador ao apercebimento da sua materialidade corporal e da sua decadência, através da imagem corrupta - da laceração, no caso que analisamos.

12

“What pleasure is to be found in looking at a mangled corpse, an experience that evokes revulsion? Yet, wherever one is lying, people crowd around to be made sad and to turn pale… As if some report of beauty of the sight had persuaded them to see it.” Santo Agostinho apud AAVV, Body and Soul - Andres

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32

Exprimindo-se através das suas características pictóricas e plásticas cada vez mais desenvolvidas e com vontade de levar ao fiel a identificação nas sensações carnais dos ícones religiosos, a arte da Idade Média Tardia situava-se num cruzamento entre a total indiferença da mimesis e os novos pressupostos de um realismo que tenderia a ser exagerado e idealizado. Por ser fruto de uma Europa Cristã anteriormente céptica nas imagens, resultante de um período iconoclasta até ao século XI13, esta arte reflecte-se num espécie de boom pictórico repentino, em que as encomendas de imagens religiosas a ateliers de pintores e escultores se multiplicaram. A Devotio Moderna, que começou a surgir no século XIV, trouxe com ela novas formas de devoção que salientavam o individualismo da oração e a necessidade da contemplação, nas quais a intercessão pictórica tinha um papel fulcral. Numa Europa assolada por tragédias tão graves como a da epidemia da peste negra, muito acentuada no século XIV, e pela crise social – e sobretudo religiosa - que lhe sucede, após a morte de talvez quase um terço da população mundial, a necessidade da devoção seria de grande urgência. O fiel sentia necessidade não só de orar na igreja, perante uma imagem em alusão à figura real de Cristo ou da Virgem, por exemplo, mas também sentia uma necessidade mais forte de identificação íntima com a própria imagem, humana no seu cerne. Surge assim um grande culto aos santos e mártires, que os fiéis viam como seus intercessores,14 e surge também uma necessidade de adoptar vias temáticas cada vez mais sentimentalistas relacionadas com a vida de Cristo ou da Virgem. Estas novas vias criam um estilo pictórico em que a figura da pintura ou escultura medievais deixa gradualmente de ser mera figura, mero totem, para passar a ser cada vez mais pessoa - real.

Embora a imagem de Cristo crucificado já fosse um elemento comum de devoção à época, é na Idade Média Tardia que aparece em grande escala15, o que denuncia a pertinência dessa crescente necessidade de aproximação da figura de contemplação ao fiel. Outros temas associados à emoção sentimental e a um maior dramatismo apareceram, como a Pietá, a Lamentação de Cristo ou a Deposição (da cruz ou no túmulo), ganhando cada vez mais visibilidade na arte. O Homem das Dores é o expoente máximo dessa necessidade de temas que fornecem a contemplação máxima e

13

Resultante de uma crise iconoclástica que perdurou até ao século XI. Cf. GROEBNER, op.cit., p.15.

14 LIGHTBOWN, Ronald, Carlo Crivelli, New Heaven, Yale University Press, London, 2004, p.70. 15

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íntima, por via da observação das dores e sacrifícios de Cristo. Estas temáticas floresciam na sua sentimentalidade e piedade por uma razão mais forte, pois neles era possível encontrar o eu próprio, ameaçado e encarnado: “contemplative compassio as self-knowledge”.16 O verum corpus da imagem observada seria o real corpo de Cristo, presente diante de nós na imagem da sua carne simbolizante da Eucaristia: de sangue e de carne. “These portrayals of Christ’s corporeality and suffering pointed to the corporeality and emotions of the medieval beholders of these pictures themselves”17, diz-nos Caroline Walker Bynum. Por tal razão, as imagens dos sofrimentos destas figuras sagradas eram (e são ainda) tão procuradas pelos fiéis em momentos de dor e aflição, para que no suportar da dor dos outros vissem a sua própria salvação. Mas a intercessão e a identificação, e consequentemente a compassio, só eram atingidas se a imagem transmitisse a familiaridade com a própria matéria do nosso corpo o que, na maioria das vezes, não era conseguido sem que um misto de repulsa e fascínio surgisse na contemplação da obra. Pensamos que, por esta razão, a imagem ressurgidora da fé dos finais da Idade Média tenha sido frequentemente imagem do cadáver, do corpo morto e inanimado, pois não existiria registo visual mais forte da nossa objectificação. Um Cristo morto, feito de carne, seria a única forma de O aceitar como um de nós, e a única forma de aceitar a existência de uma ressurreição real.

Exemplo da mais forte abjecção, o cadáver é a lembrança dessa nossa última fraqueza, e talvez única: ser carne, ser matéria decadente. Apesar disto, além de estar mais familiarizado com a dor, o habitante da Idade Média Tardia também o estava com a morte, com o cadáver e a decomposição. A taxa de mortalidade havia passado – ou passava ainda - recentemente por um devastador número com a disseminação da peste, e muito provavelmente não haveria ninguém que não tivesse tido contacto com esse tipo de morte. No destino chamado ‘cemitério’, que se aproximava agora cada vez mais da igreja, foram até bem tarde instaladas casas de habitação e comércio, sendo também um local de reunião até onde rumavam malabaristas, actores e músicos. A última morada do corpo foi, portanto, um local de lazer, onde simultaneamente se procediam a inumações,

16 Id., p. 119.

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se abriam túmulos e se transladavam corpos até quase ao século XVIII.18 Isto demonstra a familiaridade do homem com o seu fim, com a morte, que esperava e aceitava com veemência e inevitabilidade – sabendo ser um morto adiado19 - mas que, contudo,

associava ao culminar das suas ambições de vida. Estava preparado para aceitar a morte pois era apenas uma transição abrupta para outra vida, e aceitava-o certamente mais facilmente graças a toda uma coreografia ritual e social que asseguraria uma boa e segura morte, para a qual era preparado ao longo da (por vezes muito curta) vida. Estes pressupostos em relação à morte do indivíduo, que demonstravam como se deveria processar a arte de morrer - ars moriendi20 - eram bons métodos para que o fiel acatasse a sua morte de forma mais fácil, sendo que o medo da morte espontânea era aquele que mais o fazia sentir-se ameaçado. A visão e o conceito de morte foram evoluindo gradualmente como tabus, mas foi somente no século XX que se tornaram efectivamente tal.21 Quanto à nossa forma de acatar a morte, hoje em dia, ela reflecte esse tabu pois receamos não só igualmente uma morte inesperada como recuamos perante a morte, por mais preparados que possamos estar para ela, pois não aceitamos que a nossa longevidade tenha realmente um derradeiro fim.

Independentemente da sua intimidade com a morte, na Idade Média havia já uma crescente noção do cariz não salubre da decomposição dos corpos, mas esta seria uma noção existente talvez já desde que o primeiro homem primitivo resolveu enterrar e ocultar o cadáver. Embora ainda assim o homem medieval não se chocasse tanto com a visão do cadáver quanto o homem pós-modernista, existem provas que nos fazem acreditar que lhe era cada vez mais uma visão terrível, cada vez mais associada à sua decadência material e pessoal, como podemos constatar por exemplo nos registos literários da poesia22 e no recuar perante a exposição do cadáver na igreja nos velórios.23 Não obstante, embora o cadáver no seu estado natural de composição não constituísse ainda a visão mais aterradora possível, consideramos que a visão de um corpo profanado, ou de um invólucro corporal ferido ou destruído, seria possivelmente o

18 ARIÈS, Philippe, Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média, Teorema, s.l., 2011, p.31. 19

Id., p.41.

20

A Ars Moriendi refere-se a dois textos em latim, de 1415 e 1450, que explicavam procedimentos quanto à morte, de modo a que esta se fizesse e tratasse da forma mais correcta, de acordo com os pressupostos da religião católica.

21

ARIÈS, op.cit.

22 Id., p. 39. 23

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35

registo visual de mais forte abjecção. A visão da laceração seria aquela que remeteria ao nosso alcance a dissolução da nossa pessoa, dos “limites pulsantes do nosso corpo”24

:

“We seem to sense (…) the inappropriate of destroying the integrity-of the-body’s seal. Instinctively we fear the dissolution of that literally vital distinction between interior and exterior. Extend the wound far enough beyond its already unstable boundaries and the body, as an organic whole, threatens to disappear.”25

E, assim como observamos no pós-modernismo, esta seria a imagem de violência mais poderosa sobre o homem, e sobretudo a causadora de maior piedade, pois acima de tudo significava término da liberdade individual. Poderá ser refutado que a fragmentação do corpo era, na verdade, um elemento instaurado no quotidiano das pessoas de alguma forma, devido ao culto já antigo de partes fragmentadas do corpo através das relíquias. No entanto, as pessoas veriam essa fragmentação de forma muito abstracta, uma vez que no pequeno pedaço de osso ou no crânio que visualizavam não assumiam a forma humana, pois estes fragmentos além de serem muito residuais, estariam enclausurados em complexos relicários, que estabeleciam uma grande distância de identificação. A ameaça real seria, opostamente, aquela que mais se aproximasse fisicamente da sua pessoa, e quanto mais próxima, mais horrível. A pintura e a escultura seriam armas essenciais para atingir essa aproximação, devido à força que usufruíam de impressionar uma comunidade em que a maioria das pessoas não tinha acesso regular a esse tipo de imagens.

Para conseguirmos imaginar o poder da observação de uma dessas imagens, necessitamos de tentar transportar-nos à mente de um habitante da Idade Média Tardia. Observar uma pintura religiosa feita pela mão de uma oficina de pintura seria talvez um pouco como observar um filme no cinema no início do século XX: algo pouco comum e impressionante. Como tal, a arte, com as suas capacidades visuais e sobretudo a sua possibilidade narrativa, oferecia-se como poderosa ferramenta às mãos da religião católica. Antes de avançarmos em qualquer desenvolvimento acerca deste tipo de arte é necessário acrescentar uma observação que poderá mudar a nossa forma de ler esta dissertação. Falaremos muitas vezes desta temática cristã como elemento integrante da

24

Tradução livre de “pulsing boudaries of the body”, in MERBACK, Mitchell B., The Thief, the Cross and

the Wheel: Pain and the Spectacle of Punishment in Medieval and Renaissance Europe, The University of

Chicago Press, Chicago, 1999, p.7.

25

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cultura visual de uma forma mais ou menos constante ocidental. Contudo, embora a religião católica tenha constituído o pano de fundo de tantas centenas de anos de arte ocidental, ela perdeu essa centralidade na arte e, como consequência, hoje em dia quase ninguém sabe identificar as suas temáticas, como nos diz Susan Sontag:

“The German historian Barbara Duden has said that when she was teaching a course in the history of representations of the body at a large American state university some years ago, not one student in a class of twenty undergraduates could identify the subject of any of the canonical paintings of the Flagellation she showed as slides. (…) The only canonical image of Jesus she could count on most students being able to identify was the Crucifixion.”26

Uma vez que a imagem da arte sacra hoje não é observada da mesma forma que era observada há mais de quinhentos anos atrás - não obstante todas as coincidências formais que as duas épocas artísticas possam apresentar - nesta dissertação tentaremos ao máximo ter em conta a cultura visual de cada época proposta. Tentaremos observar a arte, assim, de um ponto de vista visual semelhante ao do homem medieval, quando à arte medieval nos referirmos, e de um ponto de vista mais aproximado ao nosso. quando à arte pós-modernista nos referirmos. E embora o homem contemporâneo não reconheça na maioria destas pinturas o seu objecto religioso e narrativo, ele compreende certas conjecturas semelhantes à sua vivência e à sua constituição intrínseca, que serão motivos mais importantes para o desenvolvimento desta reflexão.

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Fig. 1. Carlo Crivelli, Deposição no Túmulo, 1473, Retábulo do altar-mor do Duomo de   Ascoli,  Itália, © Wikipaintings, acesso em 12/09/2012, http://www.wikipaintings.org/en/

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