• Nenhum resultado encontrado

ENSINO DE FÍSICA EM UMA ESCOLA PÚBLICA: UM ESTUDO DE CASO ETNOGRÁFICO COM UM VIÉS EPISTEMOLÓGICO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "ENSINO DE FÍSICA EM UMA ESCOLA PÚBLICA: UM ESTUDO DE CASO ETNOGRÁFICO COM UM VIÉS EPISTEMOLÓGICO"

Copied!
35
0
0

Texto

(1)

ENSINO DE FÍSICA EM UMA ESCOLA PÚBLICA:

UM ESTUDO DE CASO ETNOGRÁFICO COM UM VIÉS EPISTEMOLÓGICO (Physics teaching in a public school: an ethnographic case study with an

epistemological bias)

Neusa T. Massoni [neusa.massoni@if.ufrgs.br] Marco Antonio Moreira [moreira@if.ufrgs.br]

Instituto de Física da UFRGS Caixa Postal 15051 - campus 91501-97- Porto Alegre, RS, Brasil

Resumo

Este trabalho é uma etnografia de sala de aula. A etnografia procura descrever compreensivamente uma cultura, neste caso, a cultura da sala de aula da disciplina de Física lecionada no terceiro ano do Ensino Médio de uma escola pública de Porto Alegre, Brasil. O estudo faz parte de uma pesquisa mais abrangente que teve por objetivo investigar as contribuições de posturas contemporâneas sobre a natureza da ciência para a melhoria do ensino da Física. É nesse sentido que o presente artigo assume uma perspectiva epistemológica. O professor de Física observado tinha concepções parcialmente alinhadas a essas posturas epistemológicas e muito embora nossa expectativa inicial fosse investigar as relações entre as concepções e as práticas didáticas, o que obtivemos foi uma descrição interpretativa detalhada da realidade da sala de aula e do contexto escolar, que acabou por revelar vários aspectos relevantes para a compreensão dessa cultura e do processo do ensino e aprendizagem da Física. Essa descrição interpretativa é o que apresentamos.

Palavras-chave: ensino de Física; etnografia de sala de aula; visões epistemológicas

contemporâneas.

Abstract

This paper is a classroom ethnography. Ethnography in a research strategy that attempts to comprehensively describe a culture, in this case the culture of a physics classroom in the 12th grade of a public high school in Porto Alegre, Brazil. This study is part of a larger scope study designed to investigate the contributions of contemporary views of the nature of science to the improvement of physics teaching. It is in sense that this paper assumes an epistemological perspective. The physics teacher that was observed had conceptions partially aligned to those epistemological views, however, although our initial intention was to search for relationships between her conceptions an her teaching practices we ended up with a detailed interpretative description of the classroom reality that revealed relevant aspects to the comprehension of such a culture and to the teaching and learning process in physics. This interpretative description is what we present here.

Keywords: teaching of physics; classroom ethnography; contemporary epistemological views. Introdução

Este artigo busca fazer uma descrição interpretativa detalhada das práticas, dos comportamentos, das falas e das ações dos alunos e do professor da disciplina de Física, de uma turma de Ensino Médio, em uma escola pública. Procurou-se compreender essa cultura e, ao mesmo tempo, vislumbrar possíveis contribuições de visões epistemológicas contemporâneas no ensino e aprendizagem da Física e identificar relações entre as concepções epistemológicas do professor e suas práticas didáticas.

(2)

Trata-se de um estudo de caso. A metodologia de pesquisa qualitativa em educação, neste caso com base na perspectiva antropológica, pode ser muito útil para tentar descrever uma cultura ou determinados aspectos dela, segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 57), e designa-se etnografia. A razão de ser da etnografia é compreender a vida em grupo como ela é vivida. Não se pretende testar hipóteses previamente construídas. O pesquisador é ao mesmo tempo observador e participante, por longo tempo, influencia e é influenciado, produz material de campo que passa a ser matéria-prima para a análise, em um paradigma em que a realidade é socialmente construída. A tentativa de captar os significados da perspectiva dos alunos e do professor dos eventos daquele cenário particular, como ele se organiza, e como tudo o que ali ocorre se relaciona com os sistemas externos, segundo Erickson (1986, p.119) confere à pesquisa um caráter interpretativo. Yin (2001, p. 32) afirma que estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos. Esta definição é aplicável a um estudo de caso etnográfico, como o que aqui se apresenta.

Acredita-se que este tipo de estudo é mais apropriado para conhecer e compreender a realidade da sala de aula, pois confere substância e significação à pesquisa. Pode também auxiliar os professores de Física a refletirem suas próprias práticas didáticas, em especial no que respeita ao uso de aspectos da natureza da ciência, bem como incentivar outros pesquisadores a investigarem distintos contextos em diferentes locais e, assim, se obter valiosas informações visando contribuir para a melhoria do ensino de Física.

Aporte Teórico-Epistemológico

O professor investigado cursara uma disciplina de Epistemologia e Ensino de Física no Mestrado Profissional da UFRGS, onde teve contato, pelo menos introdutório, com as posturas de alguns dos principais Filósofos da Ciência que ganharam destaque ao longo do século XX e que nos servem de aporte teórico-epistemológico neste trabalho. Trata-se das posturas de Karl Popper (1982), Thomas S. Kuhn (1978), Imre Lakatos (1993), Gaston Bachelard (1988), Larry Laudan (1977), Humberto Maturana (2001), Paul Feyerabend (1989), Stephen Toulmin (1977) e Mario Bunge (1960).

A principal característica das chamadas “visões epistemológicas contemporâneas” é a sua diversidade e a não uniformidade de ideias sobre o processo da ciência, razão pela qual não serão aqui discutidas em profundidade, para não alongar demasiadamente o texto.

Pode-se afirmar, contudo, que essas posturas, surgidas inicialmente para combater a visão empirista-indutivista, constituem uma nova maneira de conceber a natureza da ciência, seu “método” e sua evolução histórica. Através delas passou-se a defender, em grandes linhas, que a ciência é uma construção humana; que o conhecimento científico não nasce da observação pura e ingênua; que toda a observação está carregada de pressupostos teóricos; que as leis e teorias da Física têm natureza hipotética, conjetural e não são verdades fixas e imutáveis, mas são aceitas provisoriamente até que apareçam modificações ou novas explicações; que conceitos, leis, teorias e modelos científicos evoluem com o desenvolvimento da ciência; que o conhecimento científico não é linear e cumulativo, mas é marcado por controvérsias, erros e retificações; que elementos não racionais como imaginação, criatividade e intuição fazem parte do processo da ciência; que não existe um “método científico” universal, ahistórico e algorítmico para se fazer ciência, mas distintos procedimentos metodológicos podem estar implícitos em diferentes ramos da ciência; que há competição entre teorias e programas de pesquisa nos diversos campos da ciência; que aspirações pessoais dos cientistas e o contexto sócio-político-cultural interferem na ciência; que teorias não são descobertas, mas são propostas tentativamente e verificadas experimentalmente em alguma medida; que as comunidades cientificas, os periódicos, os congressos e encontros estimulam e ao mesmo

(3)

tempo filtram novas ideias científicas e que a instrumentação e a técnica são fundamentais para a criação de novos fatos científicos e para o avanço da ciência.

A literatura na área de Pesquisa em Ensino de Ciências que tem foco na Epistemologia e também na História da Ciência apresenta uma riqueza de trabalhos sobre distintos aspectos associados com a natureza da ciência. A importância de se ensinar os conteúdos da Física falando também sobre a Física e assim estimular a formação de cidadãos mais críticos e reflexivos (Meichtry, 1993; Matthews, 1995; Hashweh, 1996; Lederman, 1999; Lederman et al., 2002; Davson-Galle, 2004; Matthews, 2009); estudos que visam identificar as concepções epistemológicas, em geral ingênuas, de estudantes e de professores de ciências e propõem estratégias para transformá-las (Lederman e Druger, 1985; Bell, Lederman e Abd-El-Khalick, 1998; Amorim, 1999; Teixeira, El-Hani e Freire, 2001; Khishfe e Abd-El-Khalick, 2002; El-Hani, Tavares e Rocha, 2004; Guerra et al., 2004; Moreno, 2006); propostas e argumentações que objetivam promover discussões sobre a natureza da ciência tanto nos cursos de formação de professores quanto nas aulas do Ensino Médio como forma de melhorar e contextualizar historicamente o ensino (Solomon et al., 1992; Solbes e Traver, 2001; Lin e Chen, 2002; Silveira e Peduzzi, 2006; Marshall, 2007; Silva e Moura, 2008; Silveira e Medeiros, 2009) e tornar os conceitos de Física mais acessíveis (McClelland, 1983; Nussbaum, Sinatra e Poliquin, 2008), são apenas alguns exemplos da pluralidade de linhas de pesquisa e de trabalhos nessa área.

Descrição da escola e do público alvo

Este estudo de caso etnográfico foi realizado em uma escola pública de Ensino Médio de Porto Alegre. A escola atende mais de três mil alunos nos três turnos, fica localizada em uma região central de Porto Alegre e ocupa um prédio amplo, ainda que, mal conservado.

A turma observada era de terceiro ano do Ensino Médio, com 37 alunos inicialmente inscritos, no turno da manhã. O período de imersão compreendeu 49 horas-aula de Física, com duração de 50 minutos cada hora-aula, e se estendeu durante o 2º semestre do ano letivo de 2008.

Professor de Física, que neste estudo chamamos de Prof. C, tem Licenciatura em Física pela UFRGS. Durante sua graduação, concluída havia 10 anos, não cursara disciplinas de Epistemologia, mas cursou a disciplina de Epistemologia e Ensino de Física no Mestrado Profissional em Ensino de Física da UFRGS. O docente tinha preocupação com sua formação continuada e retornava constantemente à universidade para participar de atividades na área: encontros, minicursos, palestras, etc., onde demonstrava ter conhecimento e interesse nas visões epistemológicas contemporâneas e parecia perceber nelas oportunidades de melhoria de sua prática docente. Foi nessa perspectiva que recaiu a escolha para a realização do presente estudo de caso etnográfico.

O cotidiano da sala de aula de uma escola pública de Ensino Médio

A observação participante teve início em 26/08/08. No começo das duas primeiras aulas vieram também algumas surpresas. Uma sequência inusitada de eventos: 1º) chegamos em frente à sala de aula no segundo andar do prédio principal e encontramos a porta fechada, Prof. C ficou sem saber se entrava e interrompia uma prova que os alunos realizavam, participando das Olimpíadas de Matemática. Na dúvida, como o horário era de Física, bateu à porta e entrou; 2º) uma orientadora pedagógica chegou avisando que haveria reunião geral dos professores naquela manhã, às 11h00 (em pleno horário de aula); 3º) os alunos, que seriam dispensados 10 min antes do horário marcado para a reunião, vibraram com a notícia; 4º) o Prof. C manifestou surpresa, pois não tinha conhecimento da reunião.

(4)

Em um dia em que a aula deveria ter começado às 10h05min, mas que teve início às 10h20min, e em que deveriam ter dois períodos de Física, um deles seria suspenso e os alunos sentiam-se, ao que parecia, premiados com isso. Some-se ainda a confusão inicial, dado que vários alunos seguiram resolvendo a prova de Matemática em outra sala, e apenas alguns permaneceram na aula de Física. Prof. C precisou consultar a orientação pedagógica para uma decisão final sobre dar, ou não, aula naquele dia. Houve aula.

Prof. C, finalmente, começou a aula colocando no quadro algumas informações:

“Bom dia! Revisar para a prova (de 9 de setembro) os seguintes itens: campo elétrico; potencial elétrico; introdução à eletrodinâmica; corrente elétrica. Prova (valendo): 4 pontos, com 10 questões, sem consulta”.

Solicitou que os alunos copiassem. Era surpreendente que o Prof. C começasse sua aula escrevendo no quadro um cumprimento (Bom dia!). Veremos ao longo desta análise que isso se repetia todos os inícios de aula. Era mais do que um cumprimento. Tinha o sentido de alcançar uma comunicação com seus interlocutores. Voltaremos a essas questões. O conteúdo em estudo era Eletricidade (Eletrostática e Eletrodinâmica). A faixa etária dos estudantes era heterogênea, oscilava entre 17 e 20 anos. Um sinal que indicava repetências.

A sala de aula era ampla, podia acomodar com tranquilidade em torno de 35 alunos, mas se encontrava suja, desorganizada, com classes e cadeiras envelhecidas, riscadas, sem pintura, e lixo espalhado pelo chão empoeirado. O Prof. C procurou modificar esse panorama, abriu as janelas para arejar, enfileirou as classes e deu à sala um aspecto mais ordenado. Fez a chamada pelo nome. Apenas sete alunos estavam presentes e ele decidiu fazer uma aula de exercícios para não prejudicar os colegas ausentes.

Os alunos foram incentivados a resolver alguns exercícios de uma lista previamente entregue. Naquela fria manhã de agosto, não se mostravam animados. Perguntamos a uma aluna ao nosso lado e ela informou que a turma tinha originalmente 37 alunos, mas que muitos costumam faltar e outros pediram transferências para outras escolas ou outros turnos. Sobraram menos de 30, disse ela.

Isso se encaixava bem com o resultado de uma conversa que tínhamos tido naquela manhã com outro professor de Física de 1º ano do Ensino Médio daquela escola. Ele se dizia preocupado com um sério esvaziamento da escola. Perguntamos por quê? Os alunos, em geral, vêm da periferia, têm problemas de várias ordens, às vezes não conseguem pagar o transporte e acabam abandonando a escola, afirmou.

Os alunos tentaram resolver um ou outro exercício. Pareciam alheios ou tinham dificuldades de compreensão, não sabíamos definir com precisão. O Prof. C sugeriu que resolvessem em grupo, mas os grupos não se formaram. Apenas duas alunas trabalharam em dupla. O docente circulava pela sala tentando ajudá-los de forma individual.

Aluno 2: Professor, não tenho a folha com as fórmulas. Prof. C.: Você tem as fórmulas no caderno...

Aluno 3: Professor, não sei fazer! Prof. C: O que você não sabe? Aluno 3: Nada. Não sei fazer nada!

Esse tipo de argumentos levou o Prof. C a escrever as fórmulas no quadro: E=F/q; E=k.Q/d2; F=m.a=m.g.

(5)

Prof. C: Se tenho uma carga elétrica num campo elétrico e ela está em equilíbrio então Fr=0, ou

seja, m.a=0, logo, a=0; mas não podemos afirmar se ela está parada ou em MRU... Foi uma aula de apenas 30 minutos, e terminou sem que o docente resolvesse os exercícios no quadro. Não foi possível saber quantos exercícios tinham sido resolvidos, nem se as resoluções estavam adequadas. Uma aula infrutífera.

A aula em29/08/08 começou com cinco minutos de atraso. A turma estava barulhenta e a sala de aula novamente desorganizada e suja. Os alunos demoraram alguns minutos para ocuparem seus lugares enquanto Prof. C organizava e arejava a sala. O docente teve dificuldades para minimizar a conversa intensa. Começou fazendo a chamada pelo nome. Vinte e quatro alunos estavam em aula. Dois colegas chegaram atrasados, fazendo barulho e tumultuando o ambiente. Por fim, o Prof. C pareceu ter desistido de um embate direto e, em silêncio, passou a escrever no quadro:

“Bom dia! Objetivo de hoje: resolução de alguns problemas/exercícios da lista como preparação para a prova”.

Prof. C: Quais foram as questões em que vocês tiveram mais dificuldades? Aluno 1: Todas!

Prof. C: Todas não! Vamos resolver as mais difíceis, por exemplo, a 5 e a 6.

Uma aluna pediu para sair. Alegou que não tinha dificuldades com o conteúdo. O docente concordou e concedeu a mesma liberdade para todos os que assim o desejassem. Ao todo, seis retiraram-se. Um dos alunos que permaneceram em aula fez um comentário, que pela entonação expressava um misto de alívio e desaprovação.

Aluno 2: Eles têm mesmo que sair, não se interessam por nada!

Os alunos tinham diferentes discursos dependendo da situação. Quando cobrados usavam uma linguagem defensiva, fechavam-se em torno de um “não sabemos fazer”. Quando lhes era dada liberdade de escolha abriam a retaguarda, eram menos defensivos: enquanto alguns usufruíam da liberdade outros faziam críticas (e autocríticas) oportunas. Faziam também algumas manobras concessivas. Nesse momento um aluno se prontificou para ler e resolver no quadro o exercício 5 da lista: uma carga de -3.10-6 C era submetida a uma força de 9 N. Perguntava-se qual o campo elétrico a que estava sujeita? O aluno resolveu de forma concisa.

Aluno 3: E=F/q = 9 N/( 3.10-6 C) = 3.106 N/C.

Tão simples quanto isso. O problema, como se pode ver, era uma aplicação direta da definição. O Aluno 3 limitou-se a escrever os cálculos, sem explicar. Houve discordâncias.

Aluno 4: É de menos ou de mais o sinal do expoente?

Prof. C não respondeu. Houve discussões e, por fim, um pedido. Aluno 5: Professor, por que você não resolve?

Prof. C: É positivo. Isso vem da Matemática. Não é Física. Se no denominador o expoente é negativo ele passa para o numerador com sinal trocado (...).

Prof. C circulava pela sala, auxiliando e procurando atender a chamados individuais. Essa parecia ser sua sistemática. Porém, dessa forma, nem todos eram atendidos. A demanda era grande. Alguns alunos queriam confirmar as respostas, outros queriam as respostas. O Aluno 3 voltou ao

(6)

quadro para resolver o exercício 6. Houve nova discussão sobre o sinal do expoente. Os alunos pareciam ter habilidades matemáticas mínimas. O docente interveio.

Prof. C: Vamos analisar... Temos potência de 10 com expoente negativo no numerador e com expoente positivo no denominador; a resposta que o colega obteve foi uma carga de 0,4.10-6 C...pausa... tem potência de 10 com expoente negativo porque E=5.103 N/C e a força é 2.10-3N ...então fazendo q=F/E=0,4.10-6 C. É isso...

Prof. C refez os cálculos. Parou. Refletiu em voz alta. Em dado momento pareceu hesitar. Foi o suficiente para que alguns alunos expressassem sua própria interpretação. Ouviu-se comentários do tipo “professor às vezes se enrola todo...”. Era como se ele tivesse dado sinais de insegurança, que não passaram despercebidos aos alunos.

A aula, de um só período, encerrou às 12h20min com apenas dois exercícios resolvidos, em meio a muito ruído. Prof. C dava tempo demais para que os alunos resolvessem exercícios e como era de se prever os alunos perdiam o foco, o interesse, e a aula ia passando, simplesmente passando. Novamente não foi possível avaliar quantos exercícios mais os alunos conseguiram resolver. Pareceu não ter havido avanços significativos. A estratégia do docente de atender individualmente, se por um lado estreitava os laços de amizade e camaradagem, aspecto que os alunos apreciavam, por outro tornava as aulas improdutivas e impossibilitava que as dúvidas fossem discutidas no grande grupo.

No início das aulas 4 e 5, em 02/09/08, como de costume, Prof. C começou organizando a sala e escrevendo no quadro os avisos do dia. Havia muita conversa e como todos queriam se fazer ouvir era preciso falar quase aos gritos. Alguns cantavam, outros circulavam pela sala.

Prof. C passou a escrever, em silêncio, um resumo do conteúdo que seria abordado na prova (marcada para 9 de setembro). Ele fazia uso constante dessa tática para implicitamente solicitar silêncio. Via de regra não funcionava.

Aluno 1: Professor é para copiar? Prof. C: Sim, devem copiar.

Aluno 2: Não é só para a gente relembrar?

Prof. C: Sim, mas é importante terem um esquema no caderno para servir de resumo... Passaram-se mais de 20 minutos até que, finalmente, os alunos começaram a copiar. “Campo elétrico criado por uma carga elétrica:

q+ Ε (linhas de campo apontam para fora) q- Ε (Linhas de campo apontam para dentro)

Definição: E=kQ/d2; k=constante eletrostática, 9.109 Nm2/C2;

Força elétrica: se a carga for positiva F e E têm o mesmo sentido (...).”

Havia dois motivos, ao que parecia, pelos quais Prof. C tinha a preocupação de escrever “tudo” no quadro: primeiro porque os alunos eram desorganizados e ele procurava se resguardar escrevendo em detalhe; segundo porque a escola não adotava livro de texto, nem apostila, e assim o caderno era a única fonte de consulta para os alunos poderem estudar.

O docente concedeu alguns minutos mais para que copiassem. Sempre achamos que ele dava tempo demais. Dois minutos acabavam se convertendo, em geral, em oito ou dez. Pediu silêncio e fez a chamada pelo nome. Havia 25 alunos na sala de aula. Observamos que, em geral, mais de 30% do número de alunos inscritos não compareciam às aulas.

(7)

Prof. C: Só para lembrarmos, se temos uma carga elétrica temos em torno dela um campo elétrico. Se a carga é positiva as linhas e campo são divergentes, apontam para fora; se a carga é negativa as linhas são para dentro. Podemos representar as linhas de força (fez um desenho) entre duas cargas (...). Podemos calcular o valor do campo num ponto qualquer do campo usando a expressão E=kq/d2 bastando saber a distância do ponto à carga. Se a carga for positiva, a força e o campo têm o mesmo sentido. Se a carga for negativa, a força tem sentido oposto ao campo.

Aluno 3: Não entendi professor!

Prof. C repetiu a explicação simulando os sentidos com as mãos.

Prof. C: Se o campo de uma carga positiva aponta no sentido da janela, para que lado aponta a força elétrica?

Aluno 3: Para a janela também.

Era possível perceber que, de certo modo, aquele “não entendi” era mais que uma não compreensão literal, mas quase um pedido por uma explicação mais interativa, mais abrangente, mais participativa. As explicações do Prof. C eram segmentadas e não duravam mais do que alguns minutos, depois ele interrompia e voltava a escrever no quadro.

“Trabalho de uma carga sob um campo de duas placas paralelas carregadas (...)

Exemplo: Um campo se deve à diferença de potencial entre duas placas VA e VB, que vale

2000 V, sendo que os pontos A e B estão a 12 cm entre si e a 3 cm e 5 cm, respectivamente, das placas. Calcule o campo entre as placas.”

B

Prof. C: Para isso tomamos a diferença de potencial entre as placas VA - VB=2000 V e usamos a

fórmula V

B

A - VBB=E.d; Daí 2000 V/d = E. Como d=(3+12+5) cm=20 cm ... podemos usar

cm? Não. Temos que transformar para metros e então, 20 cm=0,2 m, e ficamos com E=2000 V/(0,2 m)=10.000 V/m. Não esqueçam de colocar as unidades...

Note-se que as expressões “trabalho de uma carga...” e “um campo se deve à diferença de potencial...” não estão fisicamente corretas: o trabalho é feito por um agente externo para deslocar a carga de um ponto a outro em um campo elétrico e este não é devido à diferença de potencial, é esta que se deve ao campo; o fenômeno básico é a existência do campo, o potencial em um certo ponto é o trabalho por unidade de carga para trazê-la desde o infinito até esse ponto.

Prof. C escreveu dois outros exercícios, resolveu, explicou e concedeu um tempo para copiarem. Sempre que isso acontecia o nível de conversas aumentava muito. Ele retomou.

Prof. C: Vamos começar a ver corrente elétrica. O que vocês entendem por corrente elétrica? Aluno 5: Que os elétrons correm todos na mesma direção.

Aluno 6: É o fluxo contínuo de elétrons.

Prof. C: Aqui na sala de aula há algum exemplo de corrente elétrica? Aluno 7: Sim, porque a lâmpada está acesa.

Prof. C: Por que a lâmpada está acesa? (...). Vamos reduzir o problema a uma lâmpada de lanterna. De que precisamos para acender a lâmpada?

Alunos: Lâmpada; uma pilha; fios... O docente escreveu no quadro: “Bateria é a fonte de energia;

(8)

lâmpada, transforma energia elétrica em energia luminosa e térmica; interrupto, serve para interromper a condução a energia elétrica”

Prof. C: Se eu deixar o interruptor aberto há circulação de energia? (...), O colega falou em fluxo de elétrons que circulam dentro dos fios. Que elétrons são estes?

Aluno 8: São diferentes... Prof. C: Por quê?

Não houve respostas.

Prof. C: Chamamos de corrente elétrica ao movimento ordenado de portadores de carga elétrica devido ao campo elétrico estabelecido... temos um fio, que é de metal. Neste fio temos átomos. Os átomos têm prótons, elétrons e nêutrons. Quais destes se movimentam?

Alunos: O elétrons!

Prof. C: (...) Os elétrons livres é que são os portadores de carga. (...). Por hoje é só.

Observe-se a imprecisão da linguagem do docente: embora não constituam a corrente, prótons e nêutrons também se movimentam nos átomos; prótons também são portadores de carga, ainda que os elétrons livres constituam a corrente.

Fizemos uma longa transcrição das conversas que marcaram a introdução do conceito de corrente elétrica porque foi um momento de bom nível de participação e motivação dos alunos. Era possível ver isso no tom de voz, no brilho dos olhos, na alegria com que falavam. Mesmo sob um ruído de fundo que se manteve até o final, a abordagem pareceu proveitosa.

Freire e Shor (2006) ensinam que a motivação intrínseca está na relação dos alunos com a matéria e nas relações sociais em classe. Esse era um aspecto positivo do Prof. C, ele sempre estava disposta a ouvir. Mas não era suficiente ouvir, era preciso criar um terreno linguístico que incitasse e ao mesmo tempo conduzisse a discussão sobre o objeto de estudo. A dificuldade residia nesse ponto. As raras discussões, em geral, perdiam o foco porque, como já foi dito, ele desperdiçava momentos promissores priorizando atendimentos individuais. Essa estratégia não permitia que todos os alunos fossem atendidos, que todas as dúvidas fossem sanadas, que todas as curiosidades fossem exploradas. Por mais boa vontade que o docente tivesse ele não podia estar em vários lugares ao mesmo tempo. O que se observava é que o Prof. C raramente promovia discussões de grande grupo.

A aula 6, em 04/09/08, foi uma antecipação do período de Física, porque faltou, nesse dia, o professor do 3º período. Prof. C, que atendia outra turma, enviou um resumo e alguns exercícios que foram passados no quadro por uma colega de turma. O objetivo era que fizessem os exercícios, mas os alunos foram saindo aos poucos, sem resolvê-los.

Aulas 7 e 8, em 09/09/08. O professor informou que não haveria a prova, porque temos assuntos para concluir. Houve um princípio de discussão. Duas alunas insistiram, queriam prova. A maioria não. Não houve, e elas pediram para sair. Prof. C concordou, e os colegas vibraram. Era compreensível. Uma delas era uma espécie de líder natural da turma e sua permanência em aula representaria uma constante ameaça de o docente acabar cedendo e se decidindo pela prova.

Depois de escrever os costumeiros avisos, Prof. C reescreveu o resumo passado, pela aluna e colega, na aula anterior.

“Corrente elétrica: é o movimento de cargas elétricas sob a ação de um campo elétrico, (...). Obs. 1: A corrente convencional não é equivalente à corrente real.

(9)

Corrente Real Corrente Convencional E, i E, i

Obs. 2: Em nossas aulas iremos nos referir à corrente convencional...”

Pensamos que ao introduzir o conceito de corrente elétrica, especialmente o de corrente convencional, o docente perdeu uma excelente oportunidade gerar uma discussão mais crítica e falar da natureza construtiva, inventiva da ciência.

Taber et. al. (2006) afirmam que o tópico de Eletricidade oferece um considerável desafio ao professor porque os conceitos usados para fazer sentido em circuitos elétricos são abstratos e os estudantes são exigidos a dar significado a modelos conceituais de relações entre quantidades não-observáveis (corrente, tensão, resistência) em termos de outros não-não-observáveis tais como energia e elétrons. Segundo esses autores, os professores que introduzem a Eletricidade a estudantes secundários necessitam seduzir os aprendizes para uma compreensão em nível teórico tanto quanto em nível fenomenológico.

Através de um microestudo etnográfico em um laboratório de neuroendocrinologia, Latour e Woolgar (1997) afirmam que a vida quotidiana do pesquisador no laboratório sofre abundante interferência de fatores sociais; muitas vezes, as discussões informais são matéria-prima para as ideias e processos de pensamento individuais (op. cit., p. 185). Nós obtivemos alguns resultados semelhantes em uma observação etnográfica em um moderno laboratório de Física, o Laboratório de Supercondutividade e Magnetismo (Massoni, 2009). Se, contudo, as operações de discussão de resultados e negociação de significados são importantes para o cientista experimental, no laboratório, elas não são menos importantes para o cientista teórico. No seu gabinete, o teórico constrói, modifica, amplia, faz, enfim, inúmeras operações racionais em busca de consistência teórica e matemática das conjeturas científicas, que, invariavelmente, passam pela crítica dos pares. Não é em vão que a ciência se caracteriza por ser uma construção (uma malha linguística) rigorosa e pública.

Alertar para essa complexa rede de negociações de enunciados, de hipóteses alternativas, de escolhas e decisões que interligam teoria e experimentação, cujo resultado é, muitas vezes, a construção de novas teorias, aceitas provisoriamente é de extrema importância para poder passar aos alunos uma ideia mais realista das ciências e ao mesmo tempo criar oportunidades para a reflexão. Nesse sentido, conduzir adequadamente um debate epistemológico significa criar o conflito, quebrar mitos, tentar mostrar o lado “humano” da ciência, procurar incitar a discussão porque ela abre caminho para a reflexão crítica, tanto sobre o processo quanto com respeito à importância que a ciência assume no progresso e na vida das pessoas.

O Prof. C não explorou esses aspectos epistemológicos. Todavia, compensou fazendo uma pequena demonstração que os alunos apreciaram muito.

Prof. C: Esta é a última parte da matéria antes da prova e para ilustrar eu trouxe uma surpresa: um pequeno circuito elétrico: duas pilhas, lâmpadas, fios, interruptor e contatos metálicos. Vamos montar...

O Prof. C montou o circuito: conectou os fios, colocou as pilhas, a lâmpada e o interruptor. Prof. C: Por que a lâmpada não acende? O que vocês acham?

Aluno 1: O interruptor está desligado. Aluno 2: A lâmpada está queimada.

(10)

Aluno 4: As pilhas estão fracas.

Aluna 5: Por vontade divina, a gente tem que levar em conta também questões religiosas...

Prof. C relacionou no quadro as hipóteses levantadas pelos alunos. Possivelmente para eles próprios avaliarem a consistência das mesmas ou talvez em uma tentativa implícita de abordar a natureza construtiva da ciência. Quem sabe?

Prof. C: (...) a coisa mais simples é ligar o interruptor. (...) a luminosidade está fraca. Lembrem que discutimos que é necessário um circuito e uma fonte. Tem algo aqui dentro. São cargas que agora estão em movimento ordenado... é a corrente elétrica. No nosso corpo também há cargas, no cérebro ocorrem descargas elétricas (...)

Aluno 6 As cargas ficam paradas em algum lugar no fio? Elas param quando o interruptor é desligado?

Prof. C: No momento em que o interruptor é desligado vai desordenar tudo.

Foi uma resposta pouco esclarecedora. Faltou, ao que pareceu, explorar melhor os aspectos conceituais do modelo de condução nos metais: os arranjos de caroços iônicos – ou redes cristalinas - imersos num “gás” de elétrons de valência; a livre movimentação dos elétrons através da rede no volume do metal e o movimento preferencial desses elétrons livres quando um campo elétrico é gerado no interior do condutor. Prof. C não fez referência a esse modelo.

Contudo, foi possível ver nas expressões dos alunos que a demonstração do circuito simples gerou motivação, incitou perguntas, curiosidades, dúvidas. Os alunos mostraram-se mais interessados, levantaram questões, tentaram explicar fazendo crer que havia esperanças de se chegar a uma aprendizagem significativa. Vale destacar que o Prof. C gostava do ensino experimental, tinha sido encarregado do laboratório de Física da escola por alguns anos, e fazia as demonstrações com segurança maior do que as aulas expositivas que ele dava.

Como já informado, aquela escola não adotava livro ou apostila, o que forçava o docente a escrever no quadro definições e resumos para que os alunos tivessem material para consulta.

“Intensidade de corrente é a razão entre a quantidade de carga que atravessa a secção reta do condutor em um dado intervalo de tempo.

i =Δq/Δt secção reta

No Sistema Internacional a unidade de corrente é o Coulomb por segundo. Chamamos esta unidade de “Ampère”, [1 C/1 s] = [1 A]. (...)”

Aluno 7: Ah! Professor escreve direitinho, o que significa o C e s?

Prof. C: “C”é a carga elétrica em Coulomb e “s” é o tempo, em segundos. Podemos imaginar que se cortarmos o fio, pela secção reta está passando elétrons (...).

Este fragmento de diálogo faz supor que alguns alunos sequer reconheciam as unidades de algumas grandezas físicas fundamentais estudadas até então. Além disso, outra vez percebe-se um problema de linguagem: ao invés de referir-se a uma seção reta imaginária, falou em “cortar o fio”; ora, cortando o fio interrompe-se a corrente e não passa nenhum elétron pela seção reta do corte.

Na sequência, o docente passou alguns exercícios e deu um tempo para resolverem. Restabeleceram-se as conversas: carros, esportes, trabalhos e tarefas de outras disciplinas, combinações, programas de TV, etc.. Os assuntos eram variados, mas o que menos se ouvia era o

(11)

conteúdo de aula. Era assim toda vez que Prof. C concedia um tempo, geralmente longo demais, para que tentassem resolver exercícios. O professor circulava pela sala. Incentivava a resolução. Às vezes, seduzido, acabava participando de algumas conversas. Por fim, pediu que um aluno resolvesse no quadro. Houve as costumeiras discordâncias. Muitos pareciam ter dificuldades básicas com a Matemática: não sabiam, por exemplo, usar regra de três, fazer operações e usar ou reconhecer as propriedades da potenciação.

Fim de aula.

Nesse dia dialogamos com duas estagiárias de Psicologia que faziam uma investigação na escola visando identificar as causas da elevada evasão. Elas trabalhavam com algumas hipóteses: a evasão estava, aparentemente, associada à falta de perspectivas dos alunos, a maioria oriunda da periferia; jovens que carregavam a marca da exclusão social, que tinham problemas econômicos, familiares, sociais, e não tinham como objetivo o vestibular, mas tão somente concluir o Ensino Médio para ingressar no mercado de trabalho. Isso parecia estar em sintonia com outras vozes que se ouvia na escola, em especial de professores, que conjeturavam que ainda que a escola estivesse localizada numa região central de Porto Alegre, a maioria dos alunos vinha das periferias porque a classe média da redondeza coloca seus filhos em escolas particulares; sobra para a escola pública o povo pobre da periferia. Sempre achamos que cabia uma pergunta: alunos pobres não podem aprender?

A aula 9, em 11/09/08, foi uma aula de exercícios. Começou tumultuada em um dia chuvoso de inverno.

Prof. C: Por favor façam silêncio e sentem em seus lugares.

Aluna 1: Um dia vou embora desta sala e vocês vão sentir saudades... Prof. C: Vejo apenas um aluno copiando.

Aluna 2: Professor, não seja injusto, eu levantei cedo só para assistir tua aula. Por mais que eu não entenda Física eu te considero!

Aluno 3: É professor, este é o último período e a sala está cheia só por tua causa!

Aluno 4: É que você pede para a gente fazer silêncio com sorriso no rosto, os outros gritam... Várias vezes refletimos sobre essas questões. Talvez o jeito de ser do docente, de circular pela sala, atender individualmente, de dar atenção se traduzisse numa forma de carinho que preenchia certa carência dos alunos. A fala do aluno 4 é autoexplicativa nesse sentido. Outras vezes, parecia mais uma estratégia experta dos alunos para ganhar tempo (ou, deixar o tempo fluir livremente). De qualquer forma, podia-se perceber nas falas e expressões dos alunos um sentimento afetuoso para com o docente e isso parecia sincero.

Foram passados dois exercícios. A aula teve a duração efetiva de 25 minutos, por dois motivos: primeiro porque começou com atraso, segundo porque deveria se estender até às 12h20min, mas encerrou às 12h00, por pura pressão dos alunos que pouco a pouco foram levantando, passando na mesa do professor para garantir presença e foram saindo, sob o pretexto de que tinham que ir para o trabalho. Cumpre esclarecer que vários estudantes daquela turma realizavam estágios remunerados em empresas.

Prof. C pediu que fizessem os exercícios em casa e avisou que a aula seguinte estava suspensa por motivo de paralisação dos professores que estavam em luta salarial. Pelo mesmo motivo, adiou a prova para a aula subsequente.

Aulas 10 e 11, em 16/09/08, foram suspensas por motivo da paralisação dos professores. Com tempo reduzido, o programa de aulas do Prof. C ficava seriamente comprometido.

(12)

A aula 12, em 18/09/08, foi nova antecipação de período por falta de professor. O Prof. C passou uma folha contendo seis exercícios que deveriam resolver parcialmente naquela aula e depois entregar. Na aula seguinte a lista seria devolvida para sua conclusão e entrega definitiva. A tarefa substituiria a prova (inicialmente marcada para o dia 09 de setembro) e seria realizada em duplas.

Começaram. Mas havia dificuldades que pareciam intransponíveis. De nada adiantava consultar o caderno. Os alunos não liam, caminhavam sobre as palavras e quando encontravam fórmulas não sabiam onde utilizá-las porque não faziam conexão entre o texto que liam e o enunciado dos exercícios. Mas em uma turma de mais de vinte alunos sempre há alguns que andam por si. Eram estes que trabalhavam. Na prática o que ocorreu foi um trabalho (um aglomerado) de grande grupo. Quem sabia ensinava ou passava a solução aos demais e foi difícil avaliar quem realmente contribuiu e quem simplesmente copiou. O docente, que atendia simultaneamente duas turmas por falta de professor, fez o que pode para estar em aula, procurou auxiliar dando dicas, mas não forneceu as respostas.

Ficou-nos a impressão de que a tarefa serviu tão somente para cumprir as formalidades de avaliação escrita.

As aulas 13 e 14, em 23/09/08, tiveram um início menos agitado. O Prof. C avisou que continuariam a tarefa que substituiria a prova. Distribuiu a mesma folha de questões.

O nível de conversas foi aumentando à medida que os alunos foram se reunindo para a resolução dos exercícios. O Prof. C insistia para que trabalhassem. Quatro alunos chegaram atrasados, fazendo algazarra. As conversas não diminuíam. O docente não teve domínio da turma e o ambiente se tornou inadequado para que houvesse um mínimo de concentração.

Já comentamos que a estratégia do Prof. C de atender os alunos nas suas classes, de não esclarecer as dúvidas mais comuns ao grande grupo parecia não funcionar convenientemente. Prof. C não dava conta dos chamados.

Aluna 1: Professor tu não me ouves...

Prof. C: Vocês não conseguem pensar com este barulho. Vocês discutem tudo o que é assunto, tudo ao mesmo tempo. Nessas condições o cérebro não funciona (...).

Novamente, a tarefa que começou em duplas acabou ocorrendo em grande grupo. Quem sabia dava pequenas explicações e tentava auxiliar aos colegas. Era possível ver o esforço de alguns, procurando trabalhar, sistematizar, avaliar as respostas, assim como, o descaso e o desinteresse de outros. O que parecia estar por trás daquele cenário caótico era a falta de rigor. O rigor da comunicação capaz de explicar, dialogar, discutir, ouvir, cobrar e assim provocar os alunos a participarem, a assumirem sua parcela de responsabilidade no aprendizado. O rigor da competência técnica de que o professor não pode abrir mão no seu trabalho docente. Freire (2009) adverte que rigor não se confunde com autoritarismo, mas garante a força moral para coordenar as atividades em sala de aula num clima de respeito.

Um grupo ao nosso lado discutia.

Aluno 2: Se temos um milhão de elétrons e a carga de cada elétron é 1,6.10 -19 C, então tem que multiplicar por um milhão para saber a carga total.

Aluno 3: Você tem certeza?

Aluno 4: O que é um milhão? É 10 na (potência) 6 ou 9 ?

(13)

Aluno 5: Professor o que é “n”?

Prof. C: É o nº de elétrons. Vocês têm isso no caderno bem explicado. Aluno 5: É que para mim Física é “grego”, não entendo (...).

A cena se repetia. Folheavam o caderno buscando inspiração nas fórmulas e nos exemplos resolvidos em aula. Mas era tarde demais. Era dia de prova (ou, tarefa substitutiva da prova). Afora alguns poucos, a falta de familiaridade com o conteúdo dava sinais de que sequer tinham folheado o caderno antes da prova. Como já dissemos, mesmo quando encontravam as fórmulas não conseguiam interpretar os enunciados, não sabiam o significado das variáveis e não conseguiam resolver. A situação era desconcertante.

Um dos exercícios pedia para calcular a carga total que atravessava a seção reta de um fio condutor durante uma hora (C/h), dada a corrente no SI. As perguntas que se ouviam eram quase elementares.

Aluno 6: O que é o “h”?

Aluno 7: Tem que transformar (...), então tem que multiplicar por 60 (segundos)? Prof. C: Não sei, qual é a unidade que vocês querem? Minuto ou segundo?

Atrapalhados e inseguros, os alunos pareciam ter uma dependência umbilical em relação ao docente, que era solicitado a cada instante, e ao mesmo tempo. O resultado final foi o que se observava comumente: aqueles que tinham melhores habilidades matemáticas e algum domínio dos conceitos acabaram resolvendo e os demais copiando.

Ao final daquela aula procuramos dialogar com alguns alunos que nos acompanhavam. Pesquisadora: Na realidade, vocês estudaram para esta prova?

Aluno 8: Eu não estudei. Qual prova? Esta? Não estudei...

Aluno 9: Eu estou fazendo um curso de eletrônica. Mas lá tudo é diferente... Aluno 10: Eu tenho que trabalhar, se eu ficar estudando vou ser demitido (...).

Aluno 11: Eu não entendo isso. Nada disso. É muito difícil. O professor não explica direito.

Saímos, nesse dia, refletindo sobre tudo o que tínhamos visto e ouvido. Parecia haver sinais de que aquela escola pública assumia, em alguns momentos, um caráter desconcertante.

A aula 15, em 25/09/08, foi dedicada à correção da lista de exercícios que tinha sido entregue pelos alunos e que se constituíra na prova de recuperação do segundo trimestre. Prof. C, ao que parecia, estava preocupado com o mau desempenho dos alunos na aula anterior e propôs-se a fazer uma aula intensiva de resolução dos exercícios e de esclarecimento de dúvidas. Transcorreu com normalidade e com a apatia que era usual para grande parte daquele grupo, como se dissessem agora já era!

Na décima sexta e décima sétima aulas, em 30/09/08, houve conselho de classe e os alunos foram dispensados por decisão da escola.

Aula 18, em 02/10/08, nova antecipação de período, por falta de professor. Na verdade não houve aula. Prof. C fez a entrega das provas e trabalhos já corrigidos e avaliados. Houve discussões acerca das correções da última prova. O docente prontificou-se a rever os casos de enganos na atribuição das notas. Mesmo assim houve um acontecimento inesperado. Um aluno inconformado com a correção da sua prova, dizia-se injustiçado e teve uma reação hostil: aos gritos atirou o papel sobre a mesa do professor que, por sua vez, alterou o tom de voz e foi resoluto ao afirmar que não aceitava aquele tipo de comportamento. O aluno saiu descontrolado e retornou momentos antes do final da aula, quando a maioria já tinha saído e o professor se preparava para fechar a sala,

(14)

agressivo, fez ameaças. O docente tomado de susto tentou dialogar, mas o aluno se mostrava inconciliável, repetia as ameaças e levou o docente a um colapso nervoso. Criou-se uma situação complicada que mostrou a difícil posição do professor que, premido por baixos salários e condições logísticas precárias, precisa encontrar permanentemente coerência e equilíbrio para lidar com alunos algumas vezes revoltados, indisciplinados e outras, sem perspectivas e desanimados. Os alunos daquela turma, em geral, vivendo em ambientes hostis, à margem da sociedade, em dados momentos se mostravam agressivos. Os meandros das relações sociais daquela cultura escolar, às vezes, pareciam revelar faces imprevisíveis.

Não é nossa intenção tomar partido em qualquer dos lados daquele episódio, mas tentar mostrar que existem movimentos, interesses e preocupações que permeiam a sala de aula e que fogem ao contexto da própria sala de aula. Trazem à tona fatores sociais, familiares, psicológicos, econômicos, escolares e outros mais que se queira acrescentar e que afetam relações, comportamentos, atitudes, formas de raciocínio, de pensamento e a aprendizagem em si. A sala de aula parece reproduzir em escala a sociedade do seu tempo e espaço.

As duas aulas seguintes, 19 e 20, em 07/10/08 tiveram os desdobramentos do episódio da aula anterior. Prof. C mostrava-se abalado e fez um relato do ocorrido para a turma. Afirmou que se sentia só, sem apoio das autoridades escolares, que entendiam que um pedido de desculpas por parte do aluno deveria encerrar o caso. O professor queria mais, não punições propriamente, mas mudanças de atitudes, do aluno e da escola. Essa era uma característica marcante naquele docente, ele estava sempre imbuído do espírito de mudança.

A turma ouviu em silêncio, pela primeira vez desde que estávamos ali. Os alunos informaram que o colega tinha problemas e que seu comportamento era recorrente.

Aluno 1: Ele tem problemas em casa...

Aluno 2: Ele até chorou para a professora de Química para aumentar sua nota... Aluno 3: Ele não está bem.

Aluno 4: Seu problema são as companhias lá na vila...

Aluno 5: Nós não apoiamos essas atitudes e estamos com você professor! Aluna 6: Eu quero mais é que ele saia desta turma!

Aluno 7: Também não é assim. Desse jeito ele vai ficar cada vez mais revoltado...

Procuraram apoiar o docente. Não havia dúvidas de que eles reprovavam a atitude do colega, mas se percebia entre os alunos um sentimento de solidariedade para com ele. As falas dos alunos 3, 4 e 7 mostram bem isso. Não era simplesmente uma cumplicidade inconsequente, era sim a manifestação da linguagem dos semelhantes, daqueles que compreendem os problemas do seu próprio meio. Havia com relação ao episódio dois discursos distintos: o do docente e o dos alunos. Eles reprovavam aquela atitude, porém numa dimensão defensiva porque tinham preocupação com o colega da realidade comum e que se mostrava emocionalmente não equilibrado. Eles pareciam entender bem a dimensão das ameaças pelas quais ele passava.

Cumpre comentar que o caso se encerrou com um pedido formal de desculpas e com a transferência do aluno e de sua namorada para o turno da noite.

O Prof. C passou para a resolução de exercícios, em continuidade à aula anterior. Observamos que a turma ficava bem mais silenciosa quando o professor resolvia de forma objetiva, desenhando e desenvolvendo os cálculos, sem dar o habitual tempo para que os alunos tentassem resolver sozinhos. Na sequência, o docente desenhou um circuito elétrico.

(15)

lâmpada pilha

Prof. C: Atenção, vamos começar um assunto novo: resistência elétrica. (...). Lembrem que para acender a lâmpada é preciso termos uma pilha, fios, lâmpada. (...). Isso tudo é um

modelo, não é que as coisas aconteçam assim, mas é apenas para vocês entenderem. Vamos imaginar que colocamos uma lente de aumento no fio. O que está acontecendo? A pilha serve para quê? (grifamos).

Aluno 8: Para mover os elétrons.

Prof. C: Isso mesmo, a pilha faz fluir de forma ordenada os elétrons. Quando eles passam pela lâmpada o que acontece? Eles param?

Aluno 8: Não, continuam andando...

Prof. C: Isso. Continuam fluindo entre VA e VB. (..). E o que é a tal resistência? (...). B

Nesse dia o Prof. C utilizou de forma explícita a noção de modelo científico e seu papel na simplificação da realidade, como se vê na sua fala. Mas o grupo não parecia motivado para esses questionamentos e reflexões e a iniciativa do docente foi ineficaz.

Prof. C desenhou fios de diferentes comprimentos e diferentes espessuras (fios A e B finos e de diferentes comprimentos, sendo o B mais longo; C e D, mesmo comprimento e diferentes espessuras, sendo o C mais grosso).

Prof. C: Em qual destes fios vocês acham que há mais resistência? Aluno 1: No B ...(o mais longo).

Aluno 2: No C ... (o de maior espessura).

O Prof. C claramente desejava que intuíssem que a resistência elétrica é diretamente proporcional ao comprimento e inversamente proporcional à espessura do fio. Não conseguiu.

Aluno 3: Como assim professor? Não entendi esse negócio de diretamente proporcional...

Prof. C: Então vamos escrever. A resistência aumenta com o comprimento do fio (...) o fio mais comprido oferece mais dificuldade para os elétrons, mais colisões (...), o fio C tem maior secção transversal, e o D menor. Onde a resistência é maior?

Aluno 4: É no C ...no D é maior...

As explicações se repetiram. O jeito de explicar também. A compreensão parecia cada vez mais comprometida. Prof. C parecia não encontrar as palavras certas para se fazer entender. Pedimos para intervir. O docente concordou. Fizemos um pequeno seminário. Retomamos a questão a partir da estrutura cristalina, do arranjo atômico, falamos das imperfeições da rede procurando associar a resistência elétrica às colisões dos elétrons com essas imperfeições e impurezas; falamos do modelo de livre movimentação dos elétrons de valência nos metais (modelo do “gás de elétrons”) e da importância das idealizações para a compreensão na Física. Foram 20 minutos de intervenção para uma platéia absolutamente silenciosa e atenta. Foi o elemento surpresa? Talvez. Porque desde que estávamos ali tinha sido nossa primeira intervenção. De qualquer forma, um breve intervalo de pura atenção. Esse comportamento fazia supor que algumas mudanças de tática poderiam, quem sabe, reverter o quadro. Fim de aula.

(16)

A aula 21, em 09/10/08, foi mais um dia de período antecipado. Prof. C não pôde estar presente e enviou exercícios, como de costume. O mesmo tipo de exercícios que eles alegavam não conseguir resolver. E como de costume, a turma se dispersou.

As aulas 22 e 23, em 14/10/08, aconteceram num dia chuvoso de primavera e a turma estava muito agitada. Prof. C começou escrevendo os avisos do dia, em silêncio, tentando atrair a atenção dos alunos. Não funcionou. Partiu então para outra tática.

Prof. C: Hoje vamos corrigir os exercícios, aqueles que mandei a vocês na última aula. Os que tiverem concluído podem entregar, valendo um ponto.

Aluno 1: Eu não sabia que era para entregar...

Prof. C: Então vocês têm até o final da aula para concluir e entregar (...).

Era uma estratégia para mobilizar os alunos e fazê-los trabalhar. Os alunos, que não tinham resolvido os exercícios, perceberam uma oportunidade de garantir um ponto e começaram a clamar por socorro. Em meio à confusão, havia os que procuravam trabalhar, em geral sempre os mesmos. Era uma luta solitária para ativar o raciocínio, mas eles não reclamavam. Aparentemente estavam acostumados àquele ambiente. Os chamados pelo docente pipocavam.

Aluno 2: Professor, por favor, vem até aqui, não foge da gente... Aluno 3: Professor, eu chamei primeiro...

O docente procurava atender, e isso era reconhecido pelos alunos, mas via de regra, ele perdia o controle da situação, suas aulas tornavam-se pouco eficazes, e com isso o avanço no conteúdo era lento. Muitos assuntos como: geradores, Leis de Kirchhoff e principalmente o Eletromagnetismo iam ficando de lado. As coisas iam tomando um rumo complicado, os alunos apresentavam dificuldades. A resolução de exercícios carecia, ao que parecia, de discussão, de perguntas claras e explicações objetivas, de troca de ideias, de debate.

Segundo Freire e Shor (2006, p.16) estudantes desmotivados dentro da escola podem ter muita motivação fora dela. (...) encontram amplo espaço fora da escola e do lar para construir sua cultura subjetiva do sexo, da amizade, dos esportes, das drogas, da música e assim por diante. Era tipicamente o que se observava, ou seja, todo tipo de assunto animava-os menos a matéria de aula. Prof. C tinha disposição, boa vontade e conseguia fazer uso do idioma dos estudantes, ele os entendia, mas faltava-lhe descobrir o perfil de motivação daquela turma. Quem sabe se a Eletricidade fosse explicada a partir dos instrumentos eletrônicos que eles mais apreciavam (celulares, aparelhos de som, etc.). Quem sabe discutir a imensa contribuição da Física no desenvolvimento daquela tecnologia e como seria a vida sem os tão apreciados instrumentos. Quem sabe debater aspectos epistemológicos envolvidos na construção das teorias e suas controvérsias históricas, refletir coletivamente, avançar no conteúdo, recuar toda vez que fosse necessário. Isso, no entanto, não era o que se observava.

Prof. C: (...) resistência tem a ver com a passagem da corrente elétrica através da rede cristalina. A rede não é tão perfeita, como vimos (...) O que a gente está fazendo aqui é um modelo, é um jeito de a gente desenhar. (...) a gente pode definir uma fórmula matemática para a resistência: R=V/i. Podemos escrever V=Ri, que é a expressão conhecida como Lei de Ohm (...).

Aluno 3: O que é o V?

Aluno 4: É a diferença de potencial.

Aluno 5: O que significa R? É a resistência?

Prof. C: Isso mesmo (...). Estes conceitos são difíceis, as conversas atrapalham e dessa forma as notas vão baixar.

(17)

Pensamos que nesse momento faltou certa contextualização. O Aluno 4 estava correto ao afirmar que “V” representava a diferença de potencial entre as extremidades do condutor. Mas o docente não esclareceu que o que deveria ser ΔV, por simplificação e seguindo a notação mais frequente utilizada pela comunidade científica, é representado apenas por V. Além disso, afirmou que a expressão V=Ri é conhecida como Lei de Ohm, o que não é correto, pois para isso é preciso manter a temperatura constante.

Prof. C: (...) se tenho um fio condutor, sua estrutura deve ser tal que eu possa ter o maior número de elétrons livres. (...). A resistência depende do material de que é feito o resistor, do comprimento do condutor (...). Quanto maior a área da secção reta de condutores de mesmo comprimento menor é a resistência (...) podemos escrever que R l e R 1/A. Aluno 7: A gente ainda não entendeu o que é direta e inversamente proporcional.

Prof. C: O símbolo significa proporcionalidade, significa que se o comprimento diminui então diminui também a resistência. Isto é diretamente proporcional. Ao contrário, 1/A significa que se a área da secção reta aumenta a resistência diminui. Se tomarmos o 2 e fizermos 2x20=40 vemos que aumenta, mas ½x20=10, diminui. Esta é a diferença entre ser direta ou inversamente proporcional (...).

Aluno 8: Entendi!

Prof. C: (...) Ohm verificou experimentalmente que a resistência depende do material (...) R=ρo.l/A

(...) A unidade no SI é dada por V/A=Ω (Ohm). Aluno 9: O que é essa ferradura?

Prof. C: Ω é uma letra grega que representa unidade de resistência ...

Na sequência, Prof. C escreveu um exercício e concedeu o habitual tempo.

Exercícios: 1) Quando a corrente elétrica atravessa o corpo humano ela provoca contrações musculares, é o choque elétrico. (...). O valor que pode ocasionar a morte é 10mA. Se uma pessoa leva um choque de uma rede com 200V, qual a resistência mínima para que ela não corra risco de vida?

Foi em vão. Não tinham ideia de como resolver. Prof. C resolveu, então, no quadro. Tentou chamar a atenção para a importância desses aspectos no quotidiano: os perigos que a eletricidade representa. Mas os alunos estavam mais preocupados com o final de aula.

A aula 24, em 16/10/08, foi suspensa por motivo de paralisação dos professores.

A aula 25, em 21/10/08, começou mais silenciosa, com apenas 18 alunos. Foi uma revisão de conteúdo para a primeira prova daquele trimestre (a prova anterior havia sido de recuperação do 2º trimestre) incluiu: campo elétrico, linhas de campo, blindagem eletrostática e corrente.

Prof. C: (...). O modelo que melhor explica a blindagem eletrostática é uma esfera carregada (...) se tomamos os pontos A no interior, B próximo da superfície externa e C afastado, onde o campo é maior?

Aluno 1: em C.

Prof. C: Onde o campo é maior? Aluno 2: Em B.

Eram conteúdos já vistos, mas os alunos pareciam nunca ter ouvido falar em nada daquilo. Foi assim durante toda a aula. O Prof. C, como se vê, voltou a falar em modelos.

(18)

As aulas 26 e 27, em 21/10/08, foram dedicadas integralmente para a resolução da prova. Prova escrita com 12 questões: oito questões teóricas e 4 exercícios. Prof. C forneceu todas as fórmulas. A turma manteve-se em silêncio. Não houve incidentes.

Na aula 28, em 28/10/08, apenas 14 alunos permaneceram em sala de aula para a correção da prova como forma de revisão, segundo Prof. C. As questões eram lidas em voz alta, discutidas e respondidas. A aula fluiu nesse ritmo e foi uma das mais equilibradas a que tínhamos assistido até então. Tudo fazia crer que tinham permanecido em aula os mais interessados.

As aulas 29 e 30, em 30/10/08, tiveram início pontualmente às 7h30min, primeiros períodos, devido a mudanças dos horários do turno da manhã. A sala de aula suja e desorganizada dava mostras de que não havia limpeza entre um turno e outro, um sintoma de como as coisas andavam mal na escola. Observamos que o número de alunos diminuía a cada dia.

Apesar de um aluno ao nosso lado informar que era normal no primeiro período haver um grande número de ausências porque muitos moravam longe e se atrasavam, havia outros aspectos relevantes associados a esse fato: a falta de organização, a flexibilidade excessiva das regras, a fragilidade (ou permissividade) do sistema de avaliação, a falta de rigor técnico na prática escolar. Tudo isso desmotivava.

Depois de arrumar a sala e de escrever os habituais avisos, o professor informou que a aula seria uma continuação da correção da prova.

Prof. C: (...) Na questão 8 pede-se para calcular o nº. de elétrons que atravessa a secção reta do condutor. Como sabemos que 1e=1,6.10-19C e que a carga total é 64 C, podemos resolver por regra de três e obtemos que

1e - 1,6.10-19C

ne - 64 C, assim, ne=64C /1,6.10-19C= 4,0.1020 elétrons. Alternativa correta é a c).

A questão 9 mostrava um corpo condutor com uma ponta. No corpo estavam marcados três pontos, A, B e C, respectivamente, no interior, na superfície e sobre a ponta.

Prof. C: (...) lembrem que na Física a gente tenta simplificar ao máximo o fenômeno físico em estudo. (...). Onde as cargas se concentram para tentar escapar do material? Nas pontas. Por isso o pára-raios, usado para facilitar as descargas elétricas da atmosfera. Vocês vão ao cinema, quando o filme termina onde há maior concentração de pessoas? Na saída da sala. As cargas têm o mesmo comportamento.

Aluno 3: Mas no interior do material o campo é nulo, não é? Prof.: C: Sim. (...). O campo elétrico é nulo no interior, é nulo em A.

Essa questão foi particularmente interessante: primeiro porque o docente destacou, mais uma vez, o importante papel das simplificações de que faz uso a Ciência; segundo porque foi bem explorada pelo professor, que usou um raciocínio analógico para melhor fazer compreender a situação e acabou proporcionando trocas de ideias e algumas reflexões. Os alunos tinham potencial, mas ele era mal aproveitado, ao que parecia.

As demais questões não apresentaram problemas significativos e o Prof. C passou para uma revisão sobre resistores.

“Lembrar:

Resistência elétrica: vimos que a resistência elétrica depende da diferença de potencial e da corrente elétrica. Podemos relacionar essas grandezas através da expressão R=V/i (...).

(19)

Vimos também que a resistência depende do material e se for um condutor metálico na forma de fios teremos a seguinte relação: R=ρ.l/A, depende do comprimento do fio e da área da secção reta e da resistividade ρ (...).”.

Como se vê, Prof. C referiu-se a ρ como sendo a resistividade, mas não esclareceu que essa constante de proporcionalidade é diferente para diferentes materiais e que a resistividade de um dado material pode não se manter constante, dependendo sobretudo da temperatura. E novamente equivocou-se, ou expressou-se inadequadamente, ao dizer que a resistência elétrica depende da diferença de potencial e da corrente. A resistência elétrica depende apenas de fatores geométricos e do material. R=V/i é definição de resistência.

As conversas aumentaram enquanto Prof. C escrevia no quadro. Ele insistiu para que copiassem. Passou mais exercícios. Percebia-se que o lento avanço no conteúdo, a sistemática repetição de exercícios seguidos de tempo muito longo para resolverem parecia tornar as aulas enfadonhas O resultado era quase sempre o mesmo: a maioria alegava que não sabia resolver e não se percebiam esforços procurando mudar aquele cenário.

A aula terminou nesse ritmo.

Aula 31, em 04/11/08, foi suspensa porque a turma estava em passeio fora da escola, com a professora de Biologia.

As aulas 32 e 33, em 06/11/08, ocorreram num dia chuvoso e com apenas 10 alunos em aula. Nesse dia, enquanto Prof. C, como de hábito, arrumava a sala um aluno surpreendeu.

Aluno 1: Professor fala um pouco de capacitores! Prof. C: Ah, muito bem! O que você quer saber? Aluno 1: Tudo! O que são? Como funcionam?

Prof. C: Vou falar neles, mas antes vamos terminar resistores...

O Aluno 1, ao que parecia, tinha estado lendo algo sobre capacitores e desejava compreender melhor. Mas a resposta do professor foi evasiva. De fato, o assunto nunca foi retomado, nem para esclarecer as dúvidas do aluno, nem como continuação do conteúdo de aula.

Foi mais uma aula de exercícios. Apresentamos, na sequência, um exemplo de exercício. “Medidas de intensidade de corrente, e tensão, foram realizadas por alunos em um laboratório. Os alunos mediram a corrente em dois condutores de metal diferentes, mantidos à mesma temperatura, encontrando os resultados da tabela. Nestas condições podiam afirmar que:

Condutor 1 Condutor 2 I (A) V(V) I(A) V(V) 0,5 2,18 0,5 3,18 1,0 4,36 1,0 4,36 2,0 8,72 2,0 6,32 4,0 17,44 4,0 1,72

a) ambos os condutores obedecem à Lei de Ohm; b) somente o condutor 1 obedece à Lei de Ohm; c) nenhum dos condutores obedece à Lei de Ohm; d) somente o condutor 2 obedece à Lei de Ohm”

(20)

Prof. C: (...). São chamados ôhmicos todos os resistores que obedecem a Lei de Ohm. Mantidos V e i, a resistência não varia (...). Olhando para as tabelas vemos que para ser um resistor ôhmico a divisão V/i tem que dar uma constante. Temos que fazer as divisões: R1=2,18/0,5=4,36; 8,72/2=4,36; 4,36/1,0=4,36 e 17,44/4,0=4,36. Obtemos um valor

constante. Então, o condutor 1 é ôhmico? Aluno 2: É sim!

Prof. C: Porque a resistência é constante e igual a 4,36Ω, podemos dizer que é ôhmico. Agora vamos olhar o condutor 2: V=3,18/0,5=6,36; 4,36/1=4,36. É necessário fazer o restante das contas?

Pareceu-nos importante que o professor esclarecesse que os resistores ôhmicos obedecem “aproximadamente” à Lei de Ohm. Que os valores experimentais (reais) não são, em geral, tão exatos quanto aqueles do exemplo. Mas o docente não enfatizou esses aspectos, como também, novamente, não enfatizou que para que resistência (R) de um resistor seja constante, e a Lei de Ohm seja válida, a temperatura deve ser mantida constante.

Prof. C avançou um pouco mais no conteúdo, para “associação de resistores”.

“Introdução: na prática, é comum precisarmos de um valor específico de resistência que não é encontrado em nenhum resistor comercializado. Assim, para obtermos esse valor associamos alguns resistores (...).

Basicamente as ligações de resistores são: em série, em paralelo, ou mista. (...)

Prof. C: (...). Se tomamos um circuito bem simples como uma pilha ligada a uma lâmpada, temos um circuito real. (...) substituímos este circuito real, por um modelo. No modelo, a lâmpada é substituída pelo símbolo de um resistor e a pilha por uma ddp ou V. O que é uma associação em série?

Não houve respostas. Mas ficava claro que a questão dos modelos científicos tinha presença marcante nas falas do docente. Ele fazia uso frequente dessas ideias.

“Associação em Série: quando associamos dois ou mais resistores um após o outro, de tal forma que a corrente tenha um único caminho a seguir, nessa situação os resistores estão associados em série.

R1 R2 R3

A B

V

A característica principal desta ligação é que a corrente elétrica é igual em qualquer parte do circuito e a tensão da associação está distribuída nos diferentes resistores.”

Aluno 5: Professor o Sr. não acha que a aula de hoje foi pesada demais?

Era paradoxal. Quando o avanço era lento havia uma visível sensação de desânimo e uma notável desmotivação, mas se o docente avançasse com o conteúdo havia reclamações, queixavam-se de que estava “pesado demais”. Ao sabor dessas oscilações e de uma frequente suspensão de aulas, por motivos variados como foi possível ver, é que as coisas iam mal.

A aula 34, em 11/11/08, começou tumultuada. Prof. C gastou vários minutos organizando classes e cadeiras e arejando a sala enquanto discutia com os alunos questões sobre uma nova chance de fazerem prova de recuperação do 2º trimestre.

(21)

Prof. C: Esta é mais uma oportunidade que a escola está oferecendo para os alunos que não fizeram a prova no prazo...

Aluno 1: É só para quem não fez a recuperação?

Prof. C: Repito, é apenas para quem não fez a recuperação do 2º trimestre.

Houve algumas discussões. Era perceptível a falta de habilidade para receberem e acatarem determinações. Quase tudo era motivo de contestação. Ao que parecia, a escola tinha regras flexíveis demais ou os alunos não tinham o hábito de cumprir certas regras.

Prof. C retomou a associação de resistores em série e passou alguns exemplos.

Prof. C: (...) se tivermos resistores em série e uma ddp, então surge uma corrente que faz com que os resistores funcionem. Temos que Req=R1+R2+...; i=i1=i2 =...; V=V1+V2+...; em nosso

exemplo podemos calcular a resistência equivalente: Req=R1+R2=2+6=8Ω. A Física usa

os modelos para simplificar as coisas e enxergar melhor. Neste caso já temos a Req e

podemos encontrar a corrente “i” usando a Lei de Ohm i=2V/8Ω=0,25A. Quanto vale a corrente que passa sobre o resistor equivalente? (grifamos).

Aluno 2: Vale 0,25A.

Prof. C: E quanto vale i1 e i2?

Aluno 3: Também 0,25A. Prof. C: Por quê?

Aluno 3: Porque i1 e i2 são iguais a i.

As respostas pareciam satisfatórias. Mas se percebia que Prof. C fazia, com frequência, certas confusões nas suas falas. Neste caso, referiu-se à expressão i=V/R como sendo a Lei de Ohm, enquanto nas aulas 22 e 23, escreveu: podemos escrever V=Ri, que é a expressão conhecida como Lei de Ohm. Era a falta de rigor técnico, como já referido.

O professor resolveu um exercício, interrompeu, e fez a chamada. Estavam presentes 18 alunos, ou seja, 50% do número original da turma. Mostrou-se surpreso e procurou saber o motivo das ausências. Teve, então, início um pequeno debate entre alunos e professor: eles moram longe; eles trabalham e ficam cansados; se atrasam no trânsito; têm dificuldades para vir... . Iam-se perpetuando, assim, entre os diferentes atores sociais (alunos, professores, administradores da escola) algumas hipóteses como as que passamos a destacar: o tipo de público que a escola atendia era, basicamente, oriundo da periferia, de classes sociais menos favorecidas economicamente, enfrentavam dificuldades de várias ordens e não era incomum conviverem próximos da criminalidade, etc.. Isso, até certo ponto, parecia funcionar como justificação para as flexibilidades, as permissividades e o baixo nível de ensino da escola.

O Prof. C, por sua vez, novamente falava nos modelos utilizados na Física e surpreendeu, nesse dia, com um diálogo sobre questões epistemológicas, nos minutos finais da aula.

Prof. C: Como vocês acham que se chegou a todas essas leis? Aluno 4: Foram anos de estudo. Foi o Ohm quem pensou nisso... Aluno 5: Sei lá...

Prof. C: Para que tudo isso serve?

Aluno 6: Serve para a gente passar de ano... Prof. C: Vocês nunca pararam para pensar nisso? Aluno 7: Não!

Prof. C: Então comecem a pensar sobre isso. Tragam algumas respostas na próxima aula. Pensem como tema de casa...

Imagem

Tabela 1: Notas parciais do último trimestre letivo dos alunos da turma de 3º ano do Ensino Médio, escola pública,  observada em 2008/2

Referências

Documentos relacionados

da equipe gestora com os PDT e os professores dos cursos técnicos. Planejamento da área Linguagens e Códigos. Planejamento da área Ciências Humanas. Planejamento da área

Na busca por esse objetivo, iremos contextualizar o cenário legal e institucional que insere a política de formação continuada na agenda das políticas

ambiente e na repressão de atitudes conturbadas e turbulentas (normalmente classificadas pela escola de indisciplina). No entanto, as atitudes impositivas da escola

A presente dissertação é um estudo de caso da Escola Municipal Guimarães Rosa, da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, que possui baixo índice socioeconômico

Belo Horizonte (SMED/BH) um espaço para dialogar sobre a educação de seus filhos. Em cada encontro é indicado um tema para ser debatido com as escolas. A frequência

O Fórum de Integração Estadual: Repensando o Ensino Médio se efetiva como ação inovadora para o debate entre os atores internos e externos da escola quanto às

Para Oliveira (2013), a experiência das universidades a partir da criação do Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras – PAIUB e mais

Na apropriação do PROEB em três anos consecutivos na Escola Estadual JF, foi possível notar que o trabalho ora realizado naquele local foi mais voltado à