XXVI CONGRESSO NACIONAL DO
CONPEDI SÃO LUÍS – MA
TRANSFORMAÇÕES NA ORDEM SOCIAL E
ECONÔMICA E REGULAÇÃO
EVERTON DAS NEVES GONÇALVES
FERNANDO GUSTAVO KNOERR
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T772
Transformações na ordem social e econômica e regulação[Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI
Coordenadores: Everton Das Neves Gonçalves, Fernando Gustavo Knoerr, Giovani Clark–Florianópolis: CONPEDI, 2017.
Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-557-7
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: Direito, Democracia e Instituições do Sistema de Justiça
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Comunicação – Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro – UNOESC
XXVI CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI SÃO LUÍS – MA
TRANSFORMAÇÕES NA ORDEM SOCIAL E ECONÔMICA E REGULAÇÃO
Apresentação
Apraz-nos coordenar o Grupo de Trabalho Transformações na ordem social e econômica e
regulação na maravilhosa e histórica cidade de São Luis do Maranhão. O vigésimo sexto
encontro nacional do CONPEDI não poderia ter deixado de ocorrer nas paragens
maranhenses onde se respira cultura e se inebria o olhar com paisagens tão belas. Tantos
escritores, contistas e poetas descreveram as belezas dessa terra (Ferreira Gullar, Aluísio de
Azevedo, Artur de Azevedo e tantos outros desse majestoso quilate). Gonçalves Dias já
afirmava: Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá; as aves, que aqui gorjeiam; não
gorjeiam como lá. E nesse espírito, Maranhão nos recebeu para avançarmos nos estudos do
Direito.
A cada edição o CONPEDI se fortifica na tempera do aprimoramento constante em meio a
apresentação de trabalhos científicos, da publicação de revistas e livros e da aproximação dos
diversos pensadores e docentes jurídicos deste amado Brasil. Não se pode deixar de referir à
apoteótica abertura do Evento propiciada pelo Professor Doutor Paulo Roberto Ramos e
equipe (grande amigo desde os tempos de mestrado na UFSC juntamente com o Professor
Doutor Everton das Neves Gonçalves). Muito gratificante, também, foi reencontrar a
Professora Doutora Edith Maria Barbosa Ramos que partilhou estudos na UFMG enquanto o
Professor Everton Gonçalves fazia seu doutorado.
Como passa o tempo... Implacável tempo. Porém, a recompensa, é perceber que tudo vale a
pena se a alma não é pequena já se ouviu dizer por Fernando Pessoa. Ter ido ao CONPEDI
Maranhão valeu a pena e, particularmente, poder ter homenageado (in memoriam) o
Professor Doutor Luiz Carlos Cancellier de Olivo valeu a pena. Ter lido, avaliado e escutado
os temas discutidos em nosso GT, valeu extremamente a pena. Destarte, devem ser
destacados e sugere-se a leitura de trabalhos como: Do terceiro setor no Brasil: ajustamento
jurídico; Defesa da concorrência e regulação econômica: o acordo de leniência no cartel para
a construção da usina hidrelétrica de belo monte; O poder econômico privado e sua
interferência nas políticas públicas: enfoque na indústria farmacêutica; Uma breve
investigação sociológica do Estado burocrático brasileiro: uma realidade patrimonialista;
Registro público de empresas como regulação estatal; O acordo de leniência no Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência e as investigações administrativa e penal: análise
Agências reguladoras: regulação setorial e os princípios da livre iniciativa e da livre
concorrência; O embate entre mercado e estado em tempos de crise orçamentária e as
consequências para a democracia; Assimetria tarifária na regulação do setor de energia
elétrica no Brasil; Universidade federal, políticas de inovação e núcleos de inovação
tecnológica: sua interação em face do marco legal de inovação e O compliance como forma
de moralização da empresa: aspectos ligados à responsabilização da pessoa jurídica.
Uma última palavra deve ser dita parabenizando a nova diretoria do CONPEDI, capitaneada
pelo Professor Doutor Orides Mezzaroba, que haverá de empreender novos desafios e
respectivas conquistas no cenário acadêmico-jurídico brasileiro e também internacional.
Desejamos a todos excelente leitura.
São Luis do Maranhão, 17 de novembro de 2017.
Prof. Dr. Everton Das Neves Gonçalves - UFSC
Prof. Dr. Giovani Clark - PUC Minas/UFMG
Prof. Dr. Fernando Gustavo Knoerr - UNICURITIBA
Nota Técnica: Os artigos que não constam nestes Anais foram selecionados para publicação
na Plataforma Index Law Journals, conforme previsto no artigo 7.3 do edital do evento.
1 Doutorando em direito pela Faculdade Autônoma de São Paulo - FADISP. Especialista em direito
administrativo. Professor da graduação e pós graduação da UNIOPET e UNICURITIBA
2 Mestrando pelo UNICURITIBA. Especialista em Gestão de Assuntos pela PUC/PR professor nas Faculdades
OPET.
1
2
UMA BREVE INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICA DO ESTADO BUROCRÁTICO BRASILEIRO: UMA REALIDADE PATRIMONIALISTA
A BRIEF SOCIOLOGICAL INVESTIGATION OF THE BRAZILIAN BUREAUCRATIC STATE: A PATRIMONIAL REALITY
Horácio Monteschio 1 Paulo Henrique Vieira da Costa 2
Resumo
Procurou-se investigar em certos elementos do processo civilizatório brasileiro as raízes do
patrimonialismo e a consequente confusão entre o público e o privado. Também
investigou-se o descompasso entre um sistema racional-legal bainvestigou-seado na impessoalidade da lei e o
sistema patrimonialista de relações baseado em relações de amizade. A consequência desse
patrimonialismo surtiu na presença de excessivas normas e regulamentos estatais dificultam a
contratação com a atividade privada no Brasil.
Palavras-chave: Patrimonialismo, Razão-legal, Atividade estatal, Desconfiança, Gestão privada
Abstract/Resumen/Résumé
It was sought to investigate in certain elements of the Brazilian civilizing process the roots of
patrimonialism and the consequent confusion between the public and the private. Also
investigated the mismatch between a rational-legal system based on the impersonality of the
law and the patrimonialist system of relations based on friendly relations. The consequence
of this patrimonialism was in the presence of excessive norms and state regulations hinder
the contracting with the private activity in Brazil
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Patrimonialism, Reason-law, State activity, Mistrust, Private management
1
1. INTRODUÇÃO
Numa breve investigação acerca da formação civilizatória do Brasil, nota-se que a
sociedade ainda padece de uma confusão entre o público e o privado, sendo essas
relações muito mais fundadas na amizade, no compadrio do que em um sistema
racional-legal e impessoal. São essas raízes patrimonialistas, que ainda subsistem no
seio da administração pública brasileira, que se constituem em um dos grandes
entraves nas relações obrigacionais e em um ambiente de notória desconfiança.
Trata-se o preTrata-sente de um estudo preliminar, geral e introdutório.
2. AS RAÍZES PATRIMONIALISTAS DO BRASIL
A obra Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda talvez ainda seja a de maior
subsídio teórico para se entender a formação ética da sociedade brasileira. Em caráter
instrumental, optou-se por adotá-la como referencial por ser um clássico da historiografia e a
sua construção teórica ser dotada de suficiente coesão para dar segurança ao desenvolvimento
do tema.
A obra do historiador paulista tinha como escopo delinear uma psicologia do povo
brasileiro. Uma de suas principais nuances seria aquilo que Holanda chamou de “homem
cordial”. Ele afirma que o cerne da noção de homem cordial não estaria necessariamente na
referência direta ao significado literal da expressão. Na realidade, ao referir-se à cordialidade,
o autor busca enfatizar uma característica marcante do modo de ser do brasileiro, ou seja, uma
dificuldade de cumprir os ritos sociais que sejam rigidamente formais, não pessoais e afetivos;
também de separar, a partir de uma racionalização destes espaços, o público do privado. Mais
do que uma espécie de indivíduo, a cordialidade perpassa, em maior ou menor escala, a todos
os atores sociais no Brasil. Afirma o autor:
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal.
Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade.
transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças.1
Consiste, então, a cordialidade dos gestos largos, deste espírito aparentemente
folgazão que tem como marca sobretudo o uso exagerado dos diminutivos, visando,
justamente, a quebra da formalidade da relação impessoal que se estabelece, para que esta
passe a tornar uma relação de “amigos”. Para que passe a imperar a máxima do dito popular
que se torna regra de conduta e verdade sociológica: “Aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo!”
Quer dizer, é preciso dominar as regras do trânsito facilitado pelas esferas do poder, por laços
pessoais fundados em micro relações que vão se desdobrando. Uma vez quebrada a
formalidade, a relação assume sua proximidade e dá vazão aos necessários desdobramentos de
uma relação de “amigos”. Por isso, assinala Buarque de Holanda, explica-se o fato de haver
ante “à mesma ordem de manifestações certamente a tendência para a omissão do nome de
família no tratamento social.”2
Pode-se dizer, logo, que toda essa miríade de sentidos, de aparências e de minúcias
presentes diariamente nas relações pessoais e públicas, constitui-se apenas de aparente
gentileza e afetuosidade, sendo, efetivamente, uma cápsula protetora, uma estratégia tanto de
ascensão quanto de sobrevivência em sociedade. Todas essas questões acerca da cordialidade
exprimem a sua essência: uma norma de conduta estruturante, sendo que não há um homem
cordial, pois, em maior ou menor escala, todos os brasileiros são, mais ou menos, cordiais.
Tal forma de identidade faz com que Holanda veja este indivíduo como uma figura
diluída na massa. Pode-se buscar em Friedrich Nietzsche – seguindo a pista deixada pelo
próprio autor – a caracterização desse indivíduo ao afirmar que: “mais antigo é o prazer pelo
rebanho do que o prazer pelo eu; e, enquanto a boa consciência se chama rebanho, somente a
má consciência diz: „Eu.‟”3
Assim, este homem cujos movimentos na sociedade estão condicionados a relações
sobre as quais ele deixa de ter pleno controle – pois são partilhadas e meticulosamente
tramadas como os laços de uma rede – faz com que ele se “desindividualize”, passando a não
ser socialmente um, mas vários. Pois todas as suas relações seriam definidas a partir de trocas
e de susceptibilidades que não podem ser feridas. Isso passa a ser mais importante que a razão
sistemática e impessoal das relações de ordem jurídico-legais.
1 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 2008, p. 146.
2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit. p. 148.
3
Outro aspecto da obra Raízes do Brasil que se faz necessário abordar é o apelo
político com que o antropólogo conclui o livro em tom quase didático. Ele procura alinhar os
passos em direção de um saneamento desse personalismo presente na psicologia do homem
cordial; também dessa falta de ordenação e racionalização quanto à gestão da res publica.
Pois o “cidadão cordial” que não consegue desligar-se destes vícios senhoriais, frutos dos
resquícios daquilo que ele irá chamar de “moral das senzalas”. O antropólogo também faz
uma avaliação do quanto a formação, ao longo da maior parte da História do Brasil, de uma
sociedade patriarcal e escravocrata foi contaminada por um sem número de vícios.
Sinuosa até na violência, negadora das virtudes sociais, contemporizadora e
narcotizante de qualquer energia realmente produtiva, a “moral das senzalas” veio a
imperar na administração, na economia e nas crenças religiosas dos homens do tempo. A própria criação do mundo teria sido entendida por eles como uma espécie de abandono, um languescimento de Deus.4
São essas marcas profundas de segregação e do fortalecimento do desprezo ao
trabalho manual no imaginário nacional que se convertem no dilema apontado por Buarque de
Holanda. Arrastando-se desde o começo da formação do Brasil, esta instituição tratou de
contaminar sobremaneira a forma mentis nacional, viciando-a de um modo tal em
preconceitos e à uma ética pessoal peculiar. Nesta relação entre os proprietários de escravos e
seus cativos, não há necessariamente uma vitória por parte dos senhores, uma vez que saem
desta relação impuros, pois o mundo que criaram pela dominação também, de certa forma, os
dominou tornando-os um estamento inadaptado ao novo formato de ordem econômica e
social, como o da urbanização rápida e progressiva, que acabou rendendo-lhes a imagem que
a arte eternizou, a do “sinhozinho boçal” que sobrevive por meio da força de seus jagunços e
de sórdidas manipulações políticas.5
Ante a constatação da sociedade brasileira posta nestes termos, vítima de uma
estrutura arcaica, que seria a causa maior de sua insuficiente modernidade; de que a maior
parte dos problemas nacionais se assenta nos resquícios senhoriais e nas antigas tradições
4 HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit. p. 62.
5 Basta observar a postura de alguns políticos e gestores públicos que não entendem e não se submetem à ordem
luso-brasileiras que em grande parte imperam na imbricação do público e do privado, assim
considerando o citado o autor:
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente (o ambiente relacionado ao tipo primitivo da família patriarcal), compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público.6
Seria este o ideal de construção da República, a partir da ideia de que se deveria
respeitar os limites entre o público e o privado, racionalizando assim as atividades
administrativas da máquina burocrática. No entanto, o fato com o qual Holanda se depara é
com um languescimento das formas institucionais, que não chega a separar de forma
estanque, na prática, o público do privado. Seria justamente a esta frouxidão dos laços
institucionais que se dirige sua crítica à lógica que organiza as relações entre as esferas.
Uma vez que a mistura entre elas seja total (ou ao menos crescente) as relações
pessoais passam a ser as do compadrio, do jeitinho e da troca de favores, tornando impossível
a realização do processo de racionalização que deveria originar o Estado do Direito racional-legal. O que se deu no Brasil, ao invés, foi uma espécie de “Estado de Privilégios”.
No entanto, aponta-se para o caráter híbrido deste Estado que se acha há muito tempo
institucionalizado. Apesar de ele ser nominalmente impessoal e racionalizado pelo Direito,
todavia, formou-se um sistema híbrido e imperfeito no qual pelas suas ranhuras escorrem
privilégios, vantagens e apadrinhamentos para grupos que se colocam estrategicamente em
relação a este.
Um outro aspecto que Buarque assinala é a mística da modernidade inacabada,
aprisionada por uma tradição que pode ser reportada à burocracia estatista lusitana que
condicionou a intelligentsia colonizadora a partir da segunda metade do Século XVI. Ou seja,
o antropólogo entende que a nossa “insuficiente modernidade”, fruto da colonização lusa7
,
teria criado um ambiente favorável à confusão entre público e privado.
O fundamento teórico de seu arrazoado, em grande parte foi movido por sua estada
na Alemanha e sua ligação às teorizações dos mestres alemães Max Weber e Georg Simmel,
Sérgio Buarque se frustra ao perceber o quanto o Brasil era tributário de uma estrutura de fundo “sumamente arcaico”, em grande parte ainda regida pelos mesmos senhores de engenho
6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit. p. 145.
7 Para ele, Portugal, quando do descobrimento não havia ingressado na modernidade e isso teria gerado um
de quatrocentos anos de história, ainda que se apresentassem em outro trajes e termos. Continuava a imperar a mesma moleza, a mesma “suavidade dengosa e açucarada”, que, segundo o autor “invade, desde cedo, todas as esferas da vida colonial8”. Essa frustração
aparece em passagens como esta, onde assinala que:
Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal entendido.9
Na realidade, se a constatação do problema feita por Holanda é primorosa, a
permanência de ranços relativos ao patrimonialismo e a mistura entre o público e o privado
demonstra que a sua utopia racionalista segue em aberto, uma vez que parece posto com
clareza que, adentrando o Século XXI, a mentalidade brasileira permanece, em espírito,
marcada pela cordialidade e pelo jeitinho como, por exemplo, buscaram sistematicamente
demonstrar os estudos do antropólogo Roberto Da Matta.10
Essa cordialidade, estruturante das relações de sociabilidade dos brasileiros, esta
forma de identidade nacional vista como arrevesada por Sérgio Buarque e esta falta de uma
separação do público e do privado que tanto prejudicam a política e a vida nacional sejam
algo impossível de extirpar, justamente por pertencerem a uma lógica civilizatória diferente.
Dadas as devidas proporções e ponderações, o Brasil não “racionalizou-se totalmente”.
No próximo tópico buscar-se-á, com base no pensamento de Max Weber, investigar
as consequências desse atraso nessas relações, demonstrando que o Brasil ainda não chegou à
Idade da Razão e que ainda acha-se numa fase “patrimonialista”.
3. O ESTADO BUROCRATICO ONIPRESENTE: UM REFLEXO DA FORMAÇÃO PATRIMONIALISTA BRASILEIRA
O Brasil é o país do “Grande Salto” para a frente. Realmente ninguém segura esse
país! Saltou da idade da carroça para a do avião, sem passar pelo trem. Ingressou num
pretenso “Estado de Direito” sem antes ter deixado para trás o patriarcalismo patrimonialista e
8 HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit. p. 61.
9
idem. p. 160.
10 DAMATTA, Roberto. A casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e a morte no Brasil. 5 Ed. Rio de
personalista. Penetrou na informática, na automação industrial, nos satélites de comunicação,
na venda de tanques e aviões sofisticados ao exterior enquanto parte considerável de sua
população permanece na idade da pedra, no estágio do paganismo umbandista e na fase do
culto do dionisíaco carnaval. O culto ao milagreiro Padre Cícero coexiste com a EMBRAER e
com a ITAIPU.
Esses paradoxos e contradições são fruto de dois processos paralelos de
desenvolvimento: o interno, natural ou endógeno; e o externo, exercendo-se através do “efeito demonstração”, resultado da participação do Brasil na esfera da cultura ocidental cujo ritmo acelerado de sofisticação segue de modo irrefreável.
A sociedade brasileira sofre permanentemente da necessidade de imitar e busca acompanhar o desenvolvimento da chamada “sociedade exemplar”, a sociedade moderna da Europa Ocidental e da América do Norte que se apresenta como o modelo ideal de cultura. A
influência do ritmo externo, próprio da sociedade exemplar, perturba assim o ritmo interno,
naturalmente mais lento.
O Brasil é, por um lado um país semicolonial do Terceiro Mundo que, sob certos
aspectos, vive ainda nos séculos XVII e XVIII – e, por outro, acha-se ainda entre as grandes
potências econômicas mundiais neste início do século XXI.
Essas contradições evidentes na sociedade brasileira, que faz dela uma sociedade
heterogênea e que não pode ser classificada nem entre as ricas democracias ocidentais, nem
entre as nações mais atrasadas do Terceiro Mundo e sim num estágio inclassificável de
permanente projeto e esperança de um futuro promissor, pode ser compreendida à luz das
ideias de Max Weber.
É cabível essa investigação teórica no presente trabalho para que no próximo
capítulo seja possível compreender as raízes da desconfiança e das dificuldades que está em
meio à contratação com o Poder Público.
Foi o Mercantilismo uma forma econômica que dominou a Europa na fase
preparatória da Revolução Industrial desencadeada pelo Capitalismo. Ele precede, portanto, o
sistema de autoridade que Max Weber, em sua obra Economia e Sociedade, qualifica de
racional-legal, correspondendo antes à fase final do modelo de autoridade dito tradicional
patrimonialista.11
11 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva, Vol. 1, Brasília,
Trata-se, essa forma de autoridade, segundo o conceito desenvolvido por Weber na
Análise da Autoridade Legítima na obra supra citada, de: “um sistema de coordenação
imperativa12”. Esse poder se dá quando a “legitimidade é reclamada em seu favor e aceita na
base da santidade da ordem e dos poderes de controle a ela relacionados, conforme tenham
sido herdados do passado. A pessoa ou pessoas que exercem a autoridade são designadas de
acordo com regras transmitidas tradicionalmente13”. O objeto da obediência é a autoridade
pessoal do indivíduo que dele goza, seu status tradicional e não uma lei escrita ou uma norma
de ordem geral e impessoal.14
Weber distingue o regime feudal, tal como se desenvolveu na Europa Ocidental e o
sistema que ele denominou de patrimonialista. A aplicação de seu instrumental teórico ao
Brasil e ao restante da América Latina se faz mais correta e apropriadamente se for
considerado sobretudo o modelo primitivo do patriarcalismo semifeudal vigente na época
colonial e, até certo ponto, sobrevivente nas regiões mais atrasadas do agreste nordestino (a
“Casa Grande” da fazenda açucareira a que se referia Gilberto Freyre, v.g.)
Na seção 7ª do mesmo capítulo de Economia e Sociedade, capítulo este dedicado à “autoridade tradicional”, o sociólogo apresenta esse modelo. Conquanto temos que admitir não seja a ideia ali desenvolvida, como seria de desejar, o conceito de Weber é de extrema
fertilidade. Ele afirma que com a criação de um staff administrativo puramente pessoal sob o
controle do Chefe (Herr), a autoridade tradicional tende a se desenvolver sob a forma do “patrimonialismo”. Nesse sistema, poderes particulares e as vantagens econômicas correspondentes são apropriadas, ou seja, tornam-se propriedade particular do chefe. Weber
discute de forma pormenorizada a maneira como se processa essa apropriação. Vê-se, no
caso do Brasil, que a descrição se enquadra com bastante exatidão, no que ocorre no vicejante
regime clientelista – tal como é abordado no trabalho de Vitor Nunes Leal, Coronelismo,
Enxada e Voto.15
O coronelismo, o clientelismo, o compadrio, o empreguismo, esse emaranhado
extremamente confuso de relacionamentos e obrigações personalistas, ao nível municipal, que
se associam à estrutura patrimonial do país, consistem essencialmente no aproveitamento
12 WEBER. op. cit., p.183.
13 idem.
14
Um príncipe tem autoridade, por exemplo, porque é filho do rei. O genro tem autoridade porque é genro do diretor, do presidente, do senador. O grupo organizado que exerce autoridade, no caso mais simples, se sustenta primariamente em relações de lealdade pessoal, cultivadas segundo um processo de relacionado alicerçado não em base intelectual, racional, mas em base profundamente afetiva. N. do A.
15
privado da coisa pública. O coronelismo representa a forma local do domínio personalista.16
O patrimônio privado é ao mesmo tempo o patrimônio público. A privatização concreta se
traduz pela incapacidade de conceber o governo como oriundo de um pato social abstrato em
que segundo Hobbes, Locke e Montesquieu, o Estado utiliza as leis como instrumento de sua
autoridade.
O fenômeno patrimonialista é, em suma, um reflexo de uma mentalidade
generalizada no povo de inteira dependência em relação ao paternalismo do governo. A
importância da iniciativa privada ainda não está entranhada na cultura popular. Qualquer coisa
que não funcione na vida coletiva diária ou local, não desperta o ímpeto espontâneo de o
corrigir, de reparar o dano ou providenciar o remédio por um esforço coletivo concentrado e
cívico. Não. A reação popular invariável é o apelo ao Estado e a seus senhores ou agentes.17
Weber acentua fortemente a irracionalidade do sistema de administração
patrimonialista. Poder-se-ia, contudo, argumentar que o patrimonialismo consiste numa
racionalidade sui generis determinada pelo critério do afeto, ao invés de o serem por
considerações abstratas de eficiência. Os critérios patrimonialistas são, portanto, critérios de
racionalidade afetiva, determinada pela lógica dos interesses pessoais, em contraste com os
valores racionais de eficiência e performance que surgem como o sistema de autoridade
denominada por Weber de “racional-legal”.
Entendendo o argumento, salienta o pensador alemão que “nos sistemas patrimoniais
geralmente, e particularmente nos de tipo descentra lizado, toda autoridade governamental
tende a ser tratada como vantagens econômicas que são apropriadas privadamente.”18 . A
mordomia, a aquisição indébita, a advocacia administrativa, os favorecimentos ilícitos a
apaniguados, nepotismos, gorjetas e comissões que são tão comuns em nosso funcionalismo,
do mais alto escalão ao mais baixo, são assim explicados e não são vistos pelos seus
praticantes como algo ilícito. É tido no sistema patrimonialista como natural e até mesmo
honesto.
16 Interessante observar que nos dias atuais parece haver uma modulação dessa forma clássica de coronelismo
geográfico e vinculado a uma região. Hoje tem se observado um coronelismo “político-partidário”, ou seja, uma forma de mando senhorial no seio dos partidos políticos. O partido parece ter um senhor, um dono que manda e desmanda. Esse fenômeno é merecedor de um estudo à parte e mais detalhado. N. do A.
17 Tão fortemente entrincheirado na tradição e nos hábitos empresariais é o fato de que o próprio setor privado
não se julga, muitas vezes, inclinado a enfrentar os árduos riscos do empreendimento, recorrendo amiúde ao Estado quando os negócios passam por crises. Recorre também como rotina e quando pode, para aumentar seus lucros à custa de empréstimos baratos dos bancos oficiais, obtidos por meio de apadrinhamentos, sem fazer esforço. N. do A.
18
Ao passo que em sociedades racionais e acostumadas verdadeiramente a respeitar
uma ordem legal impessoal, segundo padrões de comportamento vigentes na Europa e
América do Norte, isso se apresentaria como uma evidente e condenável manifestação de
corrupção.
Nessa perspectiva a corrupção reinante no Brasil e em países subdesenvolvidos da
África e América Latina seria sintoma, não de um vício fundamental de sua estrutura moral,
mas de um atraso ao nível patrimonialista no progresso para formas mais legais, mais
impessoais e sobretudo mais racionais de comportamento coletivo. Como conclusão, cita-se
um excerto de Raízes do Brasil, que resume claramente a intenção do presente tópico:
Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário patrimonial do puro burocrata, conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário patrimonial, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que delas aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e do esforço para se assegurarem garantias jurídicas dos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos e muito menos de acordo com suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático.19
Com o intuito de aprofundar o tema, novamente a calhar citar Ainda Sérgio Buarque
de Holanda, aponta que:
(...)é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera por excelência dos chamados contatos primários dos laços de sangue e de coração – esta em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípio morais e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.20
Isso explica o motivo de ser comum entre os administradores públicos a prática da nomeação de parentes e afilhados políticos para os chamados “cargos de confiança”. Isso caracteriza o vício patrimonialista de a confiança se materializar nas relações com o poder
público, na forma de parentesco, de amizade e não de um postulado impessoal.
19 Idem.
20
Sobreleva enfatizar o fato de que tal prática explica, também a ação comum dos
administradores – sobretudo os de pequenos municípios – darem preferência, manipulando as
cláusulas dos editais de licitação, a contratos de prestação de serviços e de fornecimento de
bens a empresários que são seus parentes, amigos, etc. No capítulo seguinte, denominado “Relações com o Poder Público”, será analisado de forma mais pormenorizada esse
fenômeno, isto é, o caráter funesto do “patrimonialismo” – que é a modalidade de confiança
que ora viceja nas relações com o Poder Público no Brasil e que traz a inibição da livre
iniciativa; a intervenção e a corrupção.
4. AS RELAÇÕES COM O PODER PÚBLICO: VINCULOS CONTRATUAIS E HEGEMÔNICOS
Dentro desta temática é importante trazer ao presente texto a doutrina formulada
por Ludwig Von Mises, economista austríaco ferrenho, defensor da ordem liberal democrática
e de uma economia baseada na livre iniciativa nos termos do liberalismo clássico, cita no
capítulo X, intitulado “O intercâmbio na sociedade” de sua Obra Magna, Ação Humana, o que
ele denomina de “vínculos contratuais” e “vínculos hegemônicos”.
O referido autor, notoriamente influenciado pelos pensadores de tradição clássica
como Locke, Montesquieu e Adam Smith, apresenta as vantagens de uma sociedade
amparada numa ordem contratual e espontânea ao invés de uma ordem fechada e impositiva.
Segundo o economista21, existem dois tipos de cooperação social: cooperação em virtude de
contrato e coordenação, e a cooperação em virtude de comando e subordinação, ou seja,
hegemônica.
Há que se salienta o fato de que quando a cooperação é baseada em contrato, a
relação lógica entre os indivíduos cooperantes é simétrica. Todos são partes nos contratos de
troca interpessoal. Já quando a cooperação é baseada no comando de subordinação, há o
homem que comanda e aqueles que obedecem às suas ordens. A relação lógica ente essas
duas classes de homens é assimétrica. Há um chefe e pessoas sob suas ordens. Somente o
chefe escolhe e decide; os demais são meros comandados e têm as suas ações comandadas.
Na visão de Von Mises as pessoas geralmente já nascem no interior de sistemas
hegemônicos, como a família e o Estado, o mesmo ocorrendo nos vínculos hegemônicos mais
21 MISES, Ludwig Von. Ação Humana, um tratado de economia. Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1990, p.
antigos como a escravidão e a servidão, vínculos esses que, no âmbito da civilização moderna
praticamente já deixaram de existir, como conseqüência é possível afirmar que:
Nem a violência física, nem a compulsão podem, por si só, forçar um homem a permanecer, contra a sua vontade, na condição de vassalo de uma ordem hegemônica. O que a violência ou a ameaça de violência fazem existir é um estado de coisas no qual a submissão é geralmente considerada como preferível à rebelião.22
Pode-se inferir que o homem, colocado diante da escolha entre as consequências da
obediência e as da desobediência, prefere a primeira e assim se submete ao vínculo
hegemônico – o que faz com que cada indivíduo dê a sua contribuição para a perpetuação da
existência do vínculo social hegemônico.
Cita-se o próprio Ludwig Von Mises a fim de diferenciar os dois sistemas de
vínculos:
O que diferencia o vínculo hegemônico do vínculo contratual é o alcance das escolhas individuais na determinação do curso dos acontecimentos. Quando um homem decide submeter-se a um sistema hegemônico, torna-se, no âmbito das atividades deste sistema e pelo tempo de sua submissão, um peão manipulado pelas ações daquele que dirige. Num corpo social hegemônico, e na medida em que dirige a conduta dos seus subordinados, só o diretor age. Os tutelados só agem ao escolher a subordinação. Uma vez escolhida a subordinação, já não agem por si mesmos: são comandados.23
Fica demonstrado que aquilo que Ludwig Von Mises chama de vínculo hegemônico
é eivado de desconfiança. Pois é característico das relações desconfiadas que uma das partes
exerça o controle absoluto da relação – isso é evidente, pois quando não há confiança, não há
autonomia de ação, pois não se acredita na responsabilidade do outro, só na do dirigente. Por
oportuno cabe ressaltar que o citado autor aponta o que seja o vínculo contratual:
No quadro de uma sociedade contratual, os indivíduos que a compõem, trocam quantidades definidas de bens e serviços de uma qualidade definida. Ao escolher a submissão num corpo hegemônico, um homem não dá nem recebe nada que seja definido. Integra-se num sistema em que tem de prestar serviços indeterminados e receberá aquilo que o diretor considerar como sendo o seu quinhão.24
A distinção entre as duas formas de cooperação social é comum a todas as teorias
sobre a sociedade. Com nomenclatura e terminologia diferentes, pode-se dividir as relações
22 Idem.
23 Idem.
24
nesses dois grandes grupos. O de primeiro tipo, o tipo hegemônico, é baseado na desconfiança – é, por exemplo, o dirigismo estatal na economia, nos contratos, o welfare state, na vida privada, etc. – e traz um efeito nefasto na busca da prosperidade de um grupo social. O
segundo, o tipo contratual, baseado na confiança, ou seja, na responsabilidade individual, da
impessoalidade das relações com o público, na autonomia da vontade, na independência do
governo, na livre iniciativa e consiste no caminho mais curto para se atingir a prosperidade.
Ainda citando o economista austríaco, ele aponta uma tendência natural ao
estabelecimento de vínculos contratuais entres os povos mais adiantados do ocidente e do
oriente, sendo que a prosperidade é mais presente naqueles que cooperam entre si:
A civilização ocidental, bem como a civilização dos povos orientais mais adiantados, são conquistas de homens que cooperaram segundo o padrão de coordenação contratual. Essas civilizações, é verdade, adotaram, em alguns aspectos, vínculos de natureza hegemônica. O Estado, como um aparato de compulsão e coerção, é necessariamente uma organização hegemônica. O mesmo ocorre com a família e com uma comunidade de famílias. Entretanto, o traço característico dessas civilizações reside numa estrutura contratual, adequada à cooperação das famílias individuais. Houve um tempo em que prevalecia uma quase completa autarquia e isolamento econômico de cada unidade familiar. A autossuficiência econômica da cada família foi substituída pela troca interfamiliar de bens e serviços, em todas as nações comumente consideradas como civilizadas, mediante uma cooperação baseada em contrato. A civilização humana, tal como até agora é conhecida pela experiência histórica, é preponderantemente um produto de relações contratuais.25
Como corolário as ideias assumidas por Ludwig Von Mises, cabe citar a título de
conclusão que:
A organização contratual da sociedade pressupõe uma ordem baseada na lei e no direito. É o governo sob o império da lei (Rechtsstaat), diferentemente do welfare state (Wohlfahrsstaat), ou estado paternalista. O direito e a lei são o conjunto de regras que determinam a órbita na qual os indivíduos têm liberdade de ação. Uma tal órbita não existe para os tutelados de uma sociedade hegemônica. No Estado hegemônico, não há direito sem lei; só existem ordens e regulamentos que o diretor pode mudar diariamente e aplicar tão discriminadamente quanto queira, e às quais os tutelados têm de obedecer. Os tutelados só têm uma liberdade: obedecer sem fazer perguntas.26
Por derradeiro, a ordem e a paz social são conquistadas através de consensos, os
quais norteiam as relações subjetivas, tanto em âmbito horizontal quanto vertical. Há que se
destacar, ainda, o fato de que na atualidade há uma crise na formulação dos consensos, na
25
MISES, Ludwig Von. op. cit. p. 195. 26
medida em que o poder político encarregado em formulá-los, perante os representados não o
faz de forma adequada.
De outro vértice, como não há “vácuo” na senda política representativa, outros
“atores” passam a buscar estabelecer esses consensos sem que para tanto tenham competência
constitucional para fazê-lo.
Mas, cabe a reflexão sobre o tema, principalmente com a atuação formulada tanto
pelo Ministério Publico quanto pelos Tribunais de contas, os quais estão a desempenhar papel
reservado ao Poder Legislativo, o qual, de forma omissa e desdenhosa queda-se inerte na sua
função típica de Legislar e Fiscalizar, mas o tema extrapola os contornos deste trabalho, mas
fica o pedido para que seja feita a devida e impostergável reflexão sobre essa temática
conclusiva.
5. CONSEQUÊNCIAS DO VINCULO HEGEMÔNICO: A DESCONFIANÇA E A BUROCRACIA
O onipresença do Estado culmina na intervenção na economia e sobretudo na
atividade privada. No Brasil, mesmo não havendo um regime de estatização total, sobra um
rol de atividades que fica a cargo do setor privado. O Estado contrata muitos serviços
particulares, todavia essa contratação é desconfiada e, na prática, passa a existir um
verdadeiro regime de intervenção.27 Como conseqüência Ludwig Von Mises assevera que:
a intervenção é sempre um decreto emitido, direta ou indiretamente, pela autoridade responsável pelo aparato administrativo de coerção e compulsão que força os empresários e os capitalistas a empregarem alguns dos fatores de produção de maneira diferente daquela que o fariam se estivessem obedecendo apenas aos ditames do mercado.28
27
Exemplo claro desse fenômeno são os contratos elaborados sob o regime de Concessão, regulados pela Lei 8.987/95. Apesar de haver um contrato racional-legal, com cláusulas claras de seu funcionamento, o temperamento político dos gestores públicos não admitem que a relação transcorra num regime jurídico
impessoal. Intervenções políticas e descabidas são perpetradas a todo tempo pelos “Donos do Poder”:
intervenção no regime tarifário sem levar em conta os critérios econômicos; intervenções no próprio objeto do contrato; no modo de execução do serviço e sobretudo um sentimento de hostilidade ao lucro, ao ganho, do empresário. Este não pode lucrar, tem de prestar um serviço quase filantrópico com o beneplácito do político e do Estado. N. do A.
28
O Decreto não precisa emanar diretamente do poder legitimamente constituído e
estabelecido. Pode ocorrer que algumas outras agências e instituições administrativas29 se
arroguem o direito de emitir tais ordens ou proibições e as imponham por meio do seu próprio
aparato de coerção. Se o governo tolera esse procedimento ou até mesmo o apóia por meio de
seu poder de polícia, as coisas se passam como se a ordem fosse do próprio governo. Isso só
pode ser explicado pela ausência de confiança.
Com consequência se ousa a afirmar que o imperativo está no fato de que os
burocratas do governo, desconfiando da iniciativa dos particulares, intervirão sempre que o
resultado do funcionamento do mercado for diferente do que eles mesmos consideram como “socialmente desejável”.
Destarte, o mercado é livre na medida em que fizer precisamente o que a burocracia
governamental deseja. É livre para fazer o que a autoridade considera certo e a decisão quanto
ao que é errado cabe exclusivamente à interpretação dada pelos órgãos do governo. Dessa
maneira a prática do intervencionismo e excesso de regulação gradativamente atinge níveis de
planificação insuportáveis.
Uma análise do intervencionismo e da planificação ficaria incompleta sem uma
referência ao fenômeno da corrupção.
Praticamente não existe uma intervenção sequer do governo no mercado e nas suas
relações contratuais que, do ponto de vista dos cidadãos por ela afetados, não possa ser
qualificada como um confisco ou como um donativo.
Como regra geral, favorece um indivíduo ou um grupo em detrimento de outro.
Todavia, em muitos casos, o mal causado a algumas pessoas não corresponde a qualquer
vantagem que tenha beneficiado outras pessoas.
Os defensores dessa regulamentação e intervencionismo pretendem substituir os
efeitos da propriedade privada e dos interesses estabelecidos – que consideram “socialmente
nocivos”, ou contrários ao “interesse público” – pelo ilimitado arbítrio do legislador e dos
seus auxiliares burocratas. Na ótica dos burocratas brasileiros, o homem comum é uma
espécie de criança desamparada, necessitando urgentemente da tutela paternal para protegê-lo
das artimanhas de um bando de impostores. Trata-se da manifestação enraizada no Brasil –
29 Como por exemplo o aparato de agências reguladoras, tribunais de contas e promotorias públicas. Entes que
revestida de uma legalidade sufocante e desconfiada –do antigo “sinhozinho boçal” que agora
está representado por políticos e burocratas.
No Brasil, exercer uma atividade empresarial depende direta e indiretamente da
aprovação ou desaprovação dos órgãos públicos nos mais diversos assuntos (especialmente os
ambientais). É necessário cortejar o político - que se constitui no protetor do gestor público –
para merecer a sua preferência. A corrupção é uma consequência natural da intervenção e da
regulamentação e tem sua raiz nessa desconfiança. Mas as raízes da corrupção é matéria para
outro estudo.
CONCLUSÕES
A sociedade brasileira, infelizmente, ainda não entrou completamente na Idade da
Razão. Distante de um sistema racional-legal acha-se no rol daquelas em que as relações são
estabelecidas na base das relações pessoais de amizade e compadrio. Ainda não há, no Brasil,
de modo completo, tendo em vista sua matriz civilizatória, uma disposição e um respeito ao
particular nas relações contratuais e em especial ao cumprimento do pactuado. As relações
contratuais estabelecidas com o Estado são desconfiadas, descontínuas, movidas pela emoção
e carecedoras de uma razão prática. Há uma burocracia gigantesca e o excesso de
regulamentação representa verdadeiro entrave à prosperidade.
REFERÊNCIAS
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de Janeiro : Rocco, 1997.
______. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro : Rocco, 1986.
______. Carnavais, Malandros e Heróis, para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio
de Janeiro : Rooco, 1997.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. Riod e Janeiro : Nova Fronteira, 1997.
MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Inst. Liberal : Rio de Janeiro, 1990.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva.