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A contribuição de Michel de Certeau à História das ideias religiosas

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A contribuição de Michel de Certeau à

História das ideias religiosas

Virgínia Buarque1

Resumo: Este artigo visa apresentar a alternativa historiográfica formulada por Michel de Certeau à história das idéias religiosas promovida na França pós II Guerra Mundial. Em resposta à sugestão da Companhia de Jesus para que colaborasse com a reconstituição da história inaciana, Certeau desenvolveu importantes estudos críticos sobre os jesuítas Pierre Favre e Surin. Sugere-se que, nesse processo, se Certeau manteve certa afinidade com a história das ideias, por refutar a fragmentação da interpretação do discurso religioso em diferentes metodologias e saberes, privilegiando a compreensão de seus princípios organizadores, ele também inovou ao indicar que a necessidade do reconhecimento de uma perda existencial e epistêmica, inerente à tradução da experiência religiosa pela linguagem. Observe-se, porém, que tal falta conteria uma positividade intrínseca, porque ela suscitaria inúmeras releituras, vindo então a ser denominada por Certeau como “autoridade”. Em paralelo, essa mesma ausência desencadearia práticas enunciativas voltadas à interlocução com a Alteridade, indissociáveis de um ato de crer e da constituição de uma intersubjetividade na comunicação social.

Palavras-chave: História das ideias religiosas, historiografia religiosa, Michel de Certeau.

A contribution of Michel de Certeau to the History of religious ideas

Abstract: This article presents a historiographical alternative formulated by Michel de Certeau to the history of religious ideas promoted in France after World War II. In response to the suggestion of the Society of Jesus to collaborate with the reconstitution of the Ignatian history, Certeau developed important critical studies about the Jesuits Pierre Favre and Surin. It is suggested that Certeau not only maintained certain affinity with the history of ideas in this process, by refuting the fragmentation of interpretation of religious discourse in different methodologies and knowledge and focusing on the understanding of their organizing principles, but also innovated to indicate that the need the recognition of a loss epistemic and existential, inherent in the translation of religious experience through language. Note, however, that such failure would contain an intrinsic positive, because it would raise countless reinterpretations, then come to be called by Certeau as "authority." In parallel, the same absence trigger enunciative practices aimed at dialogue with otherness, an indivisible act of believing and the establishment of an intersubjectivity in the media.

Keywords: History of religious ideas, religious historiography, Michel de Certeau.

Recebido em 16/01/13 - Aprovado em 20/02/13

1 Professora do Curso de História e do PPGHIS – UFOP. Doutora em História pela Universidade Federal do

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Este artigo surgiu como desdobramento ao convite para participar da

mesa-redonda “A história da religião como história das idéias religiosas”, integrante do Ciclo de

Debates promovido pelo Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM) da Universidade Federal de Ouro Preto, ocorrida em 22 de janeiro de 2013.2 Dialogando com a temática proposta à mesa-redonda, pretendo aqui reconstituir as alternativas historiográficas formuladas por Michel de Certeau diante de uma historia das ideias religiosas vigente na França na segunda metade do século XX.

Afinal, segundo Dominique Julia, Certeau “jamais cessou de desorbitar sua própria escrita

de uma estrita (e tradicional) historia das idéias para lançar seu olhar à articulação entre teorias e práticas, entre enunciados e modos de enunciação, entre ideologias religiosas e

formações sociais [...]” (1988, p. 105). 3

Durante a primeira metade do século XX, parcela importante dos intelectuais franceses que se dedicavam à produção de uma história das idéias religiosas encontrava-se vinculada a instituições eclesiásticas, o que os situava em uma posição específica neste campo do saber. Assim, a Revue d’Ascétique et Mystique, fundada em 1920, e o Dictionnaire de Spiritualité, iniciado em 1932 (mas cujo projeto é de 1928), foram capitaneados pela Companhia de Jesus, enquanto os Études Carmelitaines, criados em 1911, eram ligados à Ordem do Carmelo Descalço, e La Vie Spirituelle aos dominicanos; desde 1923 passou também a ser editado, pelos sulpicianos, o periódico La Spiritualité Chrétienne. Já ao final da II Guerra Mundial, a maior parte das ordens e congregações religiosas dedicou-se às pesquisas históricas acerca da criação de seus institutos, bem como sobre o carisma espiritual que lhes seria próprio. Toda uma gama de estudiosos (arquivistas, bibliotecários, historiadores) empenhou-se nessa tarefa, elaborando obras geralmente rigorosas, permeadas por documentação inédita (LE BRUN, 2003).

Em paralelo, alguns desses especialistas também atuavam nos circuitos acadêmicos, podendo-se mencionar, como exemplo expressivo, a trajetória de Henri Brémond até os anos 1930,4 seguida, nas décadas de 1940-1960, pela produção do abade

2 Esta mesa-redonda foi organizada pelo Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira e contou com a inestimável participação do Prof. Dr. Sérgio da Mata, ambos integrantes do Departamento de História da UFOP.

3 No original: “n’a jamais cesse de désorbiter sa propre écriture d’une histoire stricte (et traditionnelle) des idées pour porter son regard à l’articulation entre théories et pratiques, entre énoncés et modes d’énonciation, entre idéologies religieuses et formations sociales [...]”.

4 Henri Brémond nasceu em 1865, em Aix-em-Provence, falecendo em 1933. Jesuíta, atuou como professor de

humanidades em Mongré (1893-1896) e de filosofia em Saint-Étienne (1896-1897) e foi um dos editores da

revista Études. No contexto da crise modernista, solicitou afastamento da Companhia de Jesus, em 1904. Em

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Louis Cognet.5 A história das idéias religiosas, na formulação desses dois autores, conferia

grande atenção ao documento que, entretanto, era lido sob um viés “metafísico”, ou seja, voltado à explicitação de um “núcleo fundante” ou “essência” da experiência religiosa.

Daí, afirma Certeau, que o religioso tenha assumido, sob esse viés, “a imagem do marginal

e do atemporal; nele, uma natureza profunda, estranha à história, se combina com aquilo que uma sociedade rejeita para suas fronteiras” (CERTEAU, 1982b, p. 35. Grifos do

autor). Tal leitura, por sua vez, “explica-se, sem dúvida, pela posição que tinha o cristianismo na sociedade francesa antes de 1939 (partilhado por um movimento de interiorização com o Primauté du Spirituel de Maritain (1927) ou o Esprit de Mounier (1932)

–e um positivismo religioso dos tradicionalistas)” (Ibidem, p. 35-36).

Mas, em contrapartida, observe-se que, nesse mesmo contexto, os historiadores que privilegiavam uma análise das relações sociais apresentavam certa resistência à abordagem da especificidade do religioso, destacando-se “a discrição de Goubert a respeito das teologias ou mesmo a respeito da religião; a ausência de referência à literatura religiosa na interpretação que M. Foucault faz da episteme clássica [...] ou ainda, [...] em numerosos trabalhos consagrados às atividades temporais nas Abadias, a pressão social

que fez tantos historiadores clérigos desatentos à vida religiosa destas mesmas Abadias”

(Ibidem, p. 43). Justamente em função dessa rarefação, Certeau mantinha grande interesse pelas produções não eclesiásticas que não deixavam de tematizar o religioso no âmbito do conhecimento histórico; assim, embora manifestasse certa reservas às interpretações de Febvre, ele amava o Marc Bloch medievalista, que se fazia ator engajado em seu tempo (GIARD, 1991, p. 21). Dessa maneira, no livro A Escrita da História, Certeau declara:

Sem se ir muito longe, pode-se dizer que durante a primeira metade do século XX, a religião não aproveitou nada das novas correntes que mobilizaram os historiadores medievalistas ou ‘modernistas’, por exemplo, a análise socioeconômica de Ernest Labrousse (1933-1941). Ela era muito mais o objeto que disputavam exegetas e historiadores das origens cristãs. Quando intervinha na História das mentalidades de Lucien Febvre (1932-1942), era como um índice de coerência próprio de uma sociedade passada (e, sobretudo, superado graças ao progresso), numa perspectiva muito

homem, a uma ‘essência’ que se difracta, exprime e compromete com os sistemas religiosos institucionais ou doutrinários. Os fatos doutrinários são, pois, dessolidarizados do seu sentido, que permance oculto em ‘profundezas’, no fim das contas, estranhas aos cortes intelectuais e sociais” (1982b, p. 35).

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marcada pela etnologia das sociedades ‘primitivas’ (CERTEAU, 1982b, p. 35).

Porém, a despeito de tais ressalvas, o trabalho de Michel de Certeau pode ser situado, até o final dos anos 1960, nessa tradição de história confessional do religioso. Isto porque, em 1956, a Companhia de Jesus sugeriu a Certeau que colaborasse com a reconstituição dos primórdios da história inaciana, o que implicou, inclusive, num redirecionamento de seus interesses de estudo, até então voltados para o helenismo e a patrística, bem como para a filosofia hegeliana (LE BRUN, 2003). Ora, integrando-se a esse esforço intelectual e institucional, Certeau veio a manter algumas afinidades com uma história das ideias que refutava a fragmentação da interpretação do religioso por distintas metodologias e disciplinas, privilegiando a compreensão sistêmica de seus elementos constitutivos. Dessa maneira, considerava Certeau,

[...] recusamos explicar uma obra em termos de influências, de esgotar assim um corpus, remetendo-o ao indefinido de suas origens, e de provocar, por esse recuo sem fim através de uma poeira de fragmentos, o desaparecimento das totalidades, das delimitações, das rupturas que constituem a história. [...] Esta unidade procurada, quer dizer, o objeto científico, se presta à discussão. [Também] Deseja-se ultrapassar a concepção individualista que recorta e reúne os escritos segundo sua ‘pertença’ a um mesmo ‘autor’, que então, fornece à biografia o poder de definir uma unidade ideológica, e supõe que a um homem corresponda um pensamento (CERTEAU, 1982b, p. 38-39).

Sob que premissas, então, configurar-se-ia a concepção de “história das idéias

religiosas” de Certeau, se ela não se localizava nem nas mentalidades propugnadas por

Lucien Febvre, nem na noção de autoria, privilegiada, por exemplo, por Lucien Goldmann? 6 E em que ela se distinguiria de uma tradicional história das idéias, como mencionado por Dominique Julia na introdução deste artigo?

História religiosa e crítica textual

A proposta de releitura histórica dos primeiros escritos jesuíticos, lançada pela Companhia nos anos 1950, encontrava no padre Joseph de Guibert, falecido em 1942,

6 Cf. BUARQUE, Virgínia e ALVES, Herinaldo de Oliveira. A especificidade do religioso na história das igrejas

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sua maior referência. Este inaciano, vinculado à Revue d’Ascétique et Mystique, ministrava desde 1922 na Universidade Gregoriana um curso de teologia espiritual que, embora não se dispusesse a uma maior interlocução teórica com as ciências humanas, primava por

dissociar a espiritualidade das “vias extraordinárias”.7 Mas Michel de Certeau recorreu sobretudo a outros dois nomes, um pouco distante dos focos de notoriedade, para proceder ao estudo histórico que lhe fora solicitado. Um deles foi o filósofo Jean Baruzzi, que em 1924 publicou sua tese Saint Jean de la Croix e le Problème de l’Expérience Mystique. Adotando um viés filológico, o trabalho de Baruzzi empreende uma análise rigorosa e histórica do vocabulário sanjuanista, para daí desdobrar as implicações filosóficas da linguagem mística. Certeau freqüentou o curso de Baruzzi nos anos 1946-1947 no Collège de France, afirmando que este especialista teria conseguido interpretar a radicalidade existencial da experiência mística (LE BRUN, 1988)

A segunda e importante matriz intelectual de Certeau foi Jean Orcibal, cujo seminário na École Pratique de Hautes Études ele frequentou assiduamente de 1954 até meados dos anos 1960 (JULIA, 1988, p. 105). Orcibal afirmava que um pesquisador, ao interpretar um texto, deveria entendê-lo não como uma “obra” (ou seja, como um conjunto coerente e acabado de significações), mas como o resultado de combinações, remanejamentos, compromissos. Tratava-se, portanto, de um enfoque diferenciado no campo da história das ideias religiosas, que adotava um duplo procedimento metodológico: por um lado, o levantamento dos elementos semânticos recorrentes ao texto analisado (como metáforas, conceitos etc.), visando à identificação da singularidade do pensamento nele expresso; de forma concomitante, a contextualização histórica das condições intelectuais, religiosas e culturais nas quais o texto foi produzido. A novidade desta proposta, que mantinha, dessa maneira, a referencialidade do autor, encontrava-se, em primeiro lugar, no seu distanciamento quer de esquemas evolutivos (portanto, não se

recorria à noção de “influência”), quer arquetípicos (não haveria um “núcleo essencial”

polarizador de sentido do texto). Mas a própria concepção de autoria, embora perdurasse, também passava por mudanças significativas: deixando de ser considerado aprioristicamente, o autor era entendido a partir de sua relação com o texto, indissociável de seu processo de produção.

Com base na formação obtida com esses dois professores, Certeau publicou algumas edições críticas dos escritos de Surin e Favre, jesuítas que marcaram os primórdios da Companhia. Verifica-se, nestes estudos, um importante indicativo do trabalho de Certeau, que, assim, distancia-se de uma tradicional história das idéias, promovida nos moldes de Brémond e Cognet: ele considerava que a a história religiosa consistia, antes de tudo, em uma história de textos, não apenas porque o texto fornece uma base documental sólida, mas sobretudo porque é o único traço que resta da

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experiência espiritual (LE BRUN, 1988). Dessa maneira, em 1960, Certeau publicou Mémorial de Pierre Favre, sua tese de doutorado em ciência das religiões, defendido na Sorbonne.8 Neste estudo, Certeau procede à reconstituição do texto a partir da pluralidade das versões manuscritas disponíveis, com todo aporte da erudição e da crítica histórica.

Em 1963, Certeau lançou a edição crítica da obra Guide Spirituel, de Surin, também na coleção Christus. Encontra-se aí outro brilhante trabalho, com cotejamento dos manuscritos em suas rasuras, acréscimos, múltiplas leituras. Mais uma vez, Certeau

confere protagonismo ao texto, que, ao cabo de fatigante “escavação”, deve possibilitar o

vislumbre de suas tensões e paradoxos. O Guide Spirituel de Surin é então por ele apresentado não apenas como um compêndio de doutrina espiritual, mas sobretudo como uma escrita embativa, apologética, que traduz o conflito travado entre os místicos e seus adversários.

Um outro trabalho ainda mais amplo e austero foi desenvolvido por Certeau para a publicação da Correspondance de Surin, em 1966, editado pela Bibliothèque Europeénne, coleção da Companhia de Jesus voltada a um vasto público. Deste período até pouco antes de seu falecimento, em 1986, Certeau retomaria diversas vezes os textos de Surin, e foi em grande parte através dessas variadas leituras que ele veio a esboçar as balizas do

que denominou “operação historiográfica”. Assim, em 1972, Certeau publicou um artigo

na Revue d’Ascétique et Mystique,9 que justamente neste número passava a chamar-se Revue

d’Histoire de la Spiritualité,10 no qual indicava que o estudo crítico dos textos permitia aceder à singularidade e complexidade histórica de uma experiência religiosa, mas sem o

que “sentido” dessa vivência pudesse ser estabelecido. Assim, mais especificamente, a abordagem da mística não implica na reconstituição de uma doutrina, e sim de uma relação, aquela mantida por um sujeito perante uma tradição, uma história, um mundo. Trata-se de uma experiência inscrita numa linguagem.

A precariedade do estado dos textos, a massa possível de documentos inéditos a examinar, o estranhamento do ‘caso’, a profundidade e originalidade da doutrina: todos esses elementos ofereciam a possibilidade de uma exumação; eles permitiam entrar na complexidade psicológica, sociocultural, intelectual de uma história, única via de acesso à significação de uma experiência ‘mística’: mais fundamentalmente, eles apresentavam-se como o meio de precisar como a experiência se inscreve em uma

8 Este livro foi publicado como volume da coleção Christus, editada pelos jesuítas. 9 Este artigo seria reeditado no oitavo capítulo do livro L’Absent de l’histoire.

10 Certeau era um dos responsáveis pela revista, e também um dos maiores responsáveis pelo deslocamento de

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linguagem, obedece a seus limites, constituindo, porém, um discurso próprio [...] (CERTEAU, 1973, p. 154). 11

A história religiosa, portanto, recorria decididamente à crítica textual. Mas

“criticar” um texto não era visto, por Certeau, como uma operação preliminar,

preparatória, cujo objetivo era o estabelecimento de um “campo seguro” para a reconstituição histórica. Ele não buscava atingir a escrita “originária”, pois cada versão de

um texto passa a ser tida como “original” em si mesma, resultado de escolhas singulares,

baseadas em uma gama de leituras e seleções, bem como fundador de outras tantas interpretações. Dessa maneira, para Michel de Certeau, a pesquisa em história religiosa necessariamente implica na reconstituição de redes textuais e sociais; ademais, não só o espaço e a sociedade perpassam um texto, multiplicando seus sentidos, mas também o tempo nele irrompe, pois cada época nele deixa sua própria marca:

A primeira carta datada de Jean-Joseph Surin (1630), seu primeiro texto publicado também [...] Para tentar seguir os caminhos secretos, as ressurgências e as mudanças dessa carta, que, no dizer de um de seus primeiros editores, ‘passou por tantas mãos e foram tiradas tantas cópias que não há mais jeito de voltar-se ao original; para despistar também os meios diferentes e sucessivos que asseguraram a difusão desse texto, mas procederam uma ‘traição’ ao corrigi-lo, é preciso um pouco de minúcia. Mas o subsolo de um aparato crítico [...] revela, como uma foto, a estratificação de leituras superpostas, suas combinações e jogos, que provavelmente obedecem às mesmas regras eu as combinatórias entre estratos históricos e sociais no seio de uma mesma época (CERTEAU, 1982a, p. 281).12

História religiosa e enunciação

11 No original: “Le délabrement des textes, la masse possible des documents inédits à examiner, l’étrangeté du

‘cas’, la profondeur et l’originalité de la doctrine: tous ces éléments offraient la possibilité d’une exhumation; ils permettaient d’entrer dans la complexité psycologique, socioculturelle, intelectuelle d’une histoire, seule voie d’accès à la signification d’une existence ‘mystique’: plus fondamentalement, ils présentaient le moyen de préciser comment l’expérience s’inscrit dans un langage, obéit à ses contraintes, constitue pourtant um discours propre [...]”.

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Logo, Certeau considerava ser um equívoco dissociar a experiência religiosa das

“estruturas sócio-econômicas, supondo, além disso, que as ‘ideias’ funcionem da mesma

maneira que essas estruturas, paralelamente e num outro nível” (1982b, p. 40). Daí que,

afirmava ele, mostrava-se imprescindível formular modelos interpretativos que viabilizassem a análise da significação dos textos – abordagem que, paulatinamente, foi

sendo identificada como uma “formalização das práticas”, entrecruzando os discursos com um sistema de referências sócio-culturais e de relações de poder, que lhes fornecem coerência e particularidade mas muito atenta às tensões e singularidades (ou, como

Certeau costumava denominar, os “desvios”):

Quaisquer que sejam as posições próprias do autor, sua obra descreve e precipita o movimento que leva a história a se tornar um trabalho sobre o limite: a se situar com relação a outros discursos, a colocar a discursividade na sua relação com um eliminado, a medir os resultados em função dos objetos que lhe escapam; mas também a instaurar continuidades isolando séries, a particularizar métodos, diferenciando os objetos distintos que ela discerne num mesmo fato, a revisar e a comparar as periodizações diferentes, que fazem aparecer diversos tipos de análise etc. De agora em diante, o problema não é mais da tradição e do vestígio, mas do recorte e do limite. [...] Mais um passo e a história será encarada como um texto que organiza unidades de sentido e nelas opera transformações [...] (Ibidem, p. 50-51. Grifos do autor).

Assim, ao debruçar-se sobre os textos de “espirituais” do século XVI e XVII, Certeau buscava reconhecer uma organização particular da linguagem, através da qual o sentido seria formulado. A história religiosa por ele tecida, combinando a multiplicação dos traços (papel da erudição) e a invenção de hipóteses e pertinências (função da teoria), atentava, dessa maneira, a um sistema de relações linguísticas, por vezes também

denominado, segundo o intérprete, de “mentalidade”, de “figura”, de “episteme”. Nesse

sentido, para Dominique Julia, a prática historiográfica de Michel de Certeau, no campo religioso, mais do que reconstituir a forma de conjunto de um imaginário, identificando os significados que perpassavam os fenômenos de um mesmo período, implicava em problematizar as séries, os deslocamentos, os limites, os tipos possíveis de relação, do jogo de correlações e dominâncias (1998, p. 106). Esse modelo operatório permite o delineamento de uma diferença histórica, de uma singularidade cultural-temporal:

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escrita. Não é possível isolar um desses elementos [...] (CERTEAU, 1973, p. 165. Grifos do autor).13

Logo, se neste processo Certeau aproximava-se da abordagem sistêmica vigente entre os estruturalistas, ele inseria, de forma simultânea, um importante diferencial neste enfoque, ao indicar que a experiência religiosa (e a interpretação histórica sobre ela) implicava no reconhecimento de uma perda ou ausência nessa trama de relações na linguagem. Ouvinte atento de Jean Orcibal, Certeau reitera a impossibilidade do

historiador atingir qualquer origem textual e, com isso, atenta para a dimensão de “falta”

constitutiva do real. Esta lacuna porta a função limítrofe de um não-lugar fundador; este

“outro”, indizível, é o ponto de partida da escrita e da interpretação. Logo, não há “nada”

por detrás do texto, mas sim, mediado pelo texto.14

Observe-se, porém, que a falta mencionada por Certeau contém uma positividade intrínseca, porque é ela quem suscita as releituras, as interpretações. Este

“princípio ausente” é então entendido, por Certeau, como uma “autoridade”: trata-se de

uma “permissão” ou “potencialização” do outro, pela qual a existência é viabilizada em

novas dimensões. É nessa perspectiva que, segundo Michel de Certeau, a autoridade

“permite” da mesma maneira que um poema ou um filme inaugura uma percepção que

não era possível antes dele: depois de lê-lo ou assisti-lo, não se pensa mais da mesma forma. Em ótica similar, o que a autoridade suscita de novo, não é redutível a ela mesma, não é mera repetição de si (1987, p. 100-111).15 O essencial visível do cristianismo não pode, portanto, ser estabelecido: ele é demarcado pela perda de um corpo, o corpo de Jesus, reproduzido pela perda do corpo de Israel. Desaparecimento fundador: tal morte possibilitou o surgimento de um corpo eclesial (a Igreja) e de um corpus de textos canônicos (a Escritura Sagrada) (CERTEAU, 1987, p. 267-306; GEFFRÉ, 1991, p. 171). Em paralelo, Certeau associa tal dimensão performativa da autoridade a uma impossibilidade de controle dos sentidos possíveis por parte de quem redige o texto ou o lê/interpreta:

13 No original: “Sous ce biais, la tache présente de l’historien consiste à préciser, dans leurs combinaisons, deux éléments également nécessaires à la compréhension d’une autre ‘économie’: 1) une structure d’action; 2) un écart, celui que represente toute oeuvre particulière dans um ensemble social. D’une part, donc, le commund’un système de production; d’autre part, le propre d’une écriture. Il n’est pas possible d’isoler l’um de ces éléments [...]”.

14Cf. CERTEAU, 1982a, p. 27: “L’Autre qui organise le texte n’est pas um hors-texte. Ce n’est pas l’objet (imaginaire) qu’on distinguerait [...] Le localiser à part, l’isoler des textes que s’épuisent de le dire [...] c’est transformer en une représentation religieuse particulière (tour à tour exclue des champs scientifiques ou fétichisée comme substitut d’un manque) la question qui apparaît sous la figure de la limite”.

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Cada figura de autoridade, na sociedade cristã, é marcada pela ausência do que a funda. Quer ser trate da Escritura, das tradições do concílio, do papa ou de qualquer outra coisa, o que a permite [é o que] lhe falta. Cada autoridade manifesta aquilo que ela não é. Donde a impossibilidade para cada uma dentre de ser o todo, o ‘centro’ ou o único. Uma irredutível pluralidade

de autoridades pode apenas indicar a relação mantida por cada uma delas com o que ela postula como ‘cristã’. [...] Sua relação necessária com as demais faz e diz a natureza de sua relação com o Outro que a autoriza. [...] A linguagem cristã tem (e só pode ter) uma estrutura comunitária

(CERTEAU, 1987: 215. Grifos do autor).16

Segundo Certeau, o registro da falta como condição para a emergência de diferentes leituras e, concomitantemente, das relações mútuas (ainda que tensionais) mantidas entre elas adquire uma formalização específica na linguagem mística. Desde o

capítulo “Mystique au XVII siècle”, de 1964, publicado na obra L’homme devant Dieu, Mélanges à Henri de Lubac, Certeau considerava que o discurso místico, em sua remissão à falta, constituía um estilo próprio, uma “maneira de falar” caracterizada pela coincidatio

oppositorum, isto é, pela articulação de proposições contrárias (como, por exemplo, “cruel e

furiosa quietude”, ou “noite luminosa”, expressões encontradas nos textos de são João da

Cruz). Nesta combinação paradoxal, ocorria a substituição da tradicional ligação da

palavra a um “coisa” (um referencial da realidade) por relações internas à linguagem (entre termos contrários), na emergência de um “inter-dito”, ausência na presença.

Essa formalização da linguagem mística imbrica-se, por sua vez, à ambiência do início dos tempos modernos (séculos XV-XVI), que comportava uma crise epistêmica: o real, gradualmente, deixava de ser significativo, epifania do divino no mundo. A mística, todavia, não esboçou um substitutivo à crise, uma nova tradição, mas tratou de forma

diferente a tradição antiga. Ao instaurar um “estilo” de dizer (um modus loquendi), que se

articulava em práticas (um modus agendi), a mística, ao invés de instaurar um corpo de doutrinas, fundou uma maneira diferenciada do sujeito religioso relacionar-se com Deus, consigo mesmo e com o mundo. Como a Palavra tornou-se praticamente inaudível, a

linguagem mística substituiu o inacessível “Eu divino” pelo “eu locutor”, representação

da falta. Trata-se de uma “ficção”, ou seja, de uma figuração discursiva: do “eu” que fala

ao Outro, passa-se ao “eu” em quem o Outro fala (CERTEAU, 1982a, p. 258): “Uma

problemática do ser e da consciência é, antes de tudo, deslocada para o ato de fala, quer

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dizer, para uma estrutura dialogal de alteração –Tu és o outro de tu mesmo” (Ibidem, p. 267). 17

Tal operação aponta para a segunda e importante faceta da linguagem mística,

destacada por Certeau: a prioridade conferida ao “conversar”, ao ato de dizer perante àquilo que é dito – isto é, à enunciação. A linguagem religiosa opera a partir de escutas e respostas, que remetem à existência de uma Alteridade, jamais apropriável em um sentido, mas sempre referencial em sua presença-ausência. O discurso místico, numa relação linguística a esta Alteridade evanescente, inscreve, assim, o sujeito em uma comunicação social, que abre um espaço de interpretação. Por isso, como indica Louis

Panier, a antropologia do crer de Certeau “[...] converge para a questão do sujeito e para

as condições de intersubjetividade na comunicação social” (1991, p. 41-42).18

A enunciação, por fim, é entendida por Certeau como um ato de crer. Para Certeau, a experiência religiosa, longe de poder ser definida apenas como um repertório de crenças, articuladas a sistemas sócio-históricos, constitui-se como um ato de crer, ou seja, “[...] investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la considerando-a verdadeira – noutros termos, uma ‘modalidade’ da afirmação e não seu

conteúdo” (Certeau, 1994, p. 278). E tal alargamento do sentido da realidade, com inclusão da potencialização/transformação das experiências vividas a partir do crer, torna-se ainda mais crucial na prática de escrita religiosa, como afirma o lingüista e teólogo Louis Panier, amigo pessoal de Certeau: em tal modalidade textual, o ato da palavra encontra-se decididamente vinculado à profissão de fé; apenas por acreditar (ou, ao menos, desejar fazê-lo) é que o sujeito torna-se leitor e enunciador de um discurso (Panier, 1985, p. 292).

REFERÊNCIAS

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CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971.

17 No original: “Une problématique de l’être et de la conscience est d’emblée déportée vers l’énonciation, c’est-à-dire vers une structure dialogale de l’altération – Tu es l’autre de toi-même”.

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Referências

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