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ENTRE O MOSTEIRO DE SÃO BENTO E A CIDADE: O CANTO GREGORIANO E O ACÚSTICO CONTEMPORÂNEO DA CIDADE DE SÃO PAULO MESTRADO EM HISTÓRIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Vinicius Morais de Oliveira

ENTRE O MOSTEIRO DE SÃO BENTO E A CIDADE: O CANTO GREGORIANO E O ACÚSTICO CONTEMPORÂNEO DA CIDADE DE SÃO PAULO

MESTRADO EM HISTÓRIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Vinicius Morais de Oliveira

ENTRE O MOSTEIRO DE SÃO BENTO E A CIDADE: O CANTO GREGORIANO E O ACÚSTICO CONTEMPORÂNEO DA CIDADE DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História, sob a orientação da Profa. Dra. Denise Bernuzzi de Sant‟Anna.

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

No período de composição desta dissertação, deparei-me com uma realidade pessoal de transformação interior jamais imaginada. Fui levado muitas vezes ao reencontro com minha própria “sonoridade”: meu som fundamental, o som da voz do meu coração e também de seu silêncio.

Ora estando em consonância e ora estando em dissonância com minha sinfonia interior, aprendi a recolocar minha memória em equilíbrio com meu coração e com meu espírito. Boa parte de meu amor pela música está presente no resultado da transcrição dos sons em palavras textuais nesta dissertação. Por esse motivo e sem aviso prévio, a pesquisa uniu-se ao seu criador. Tornaram-se, ambos, consistentes.

Por essa concretude e amadurecimento, agradeço infinitamente ao amor incondicional de meus corajosos e sábios pais, Valdemiro Isolino de Oliveira e Maria Imaculada Morais de Oliveira. Eles sabiamente me ensinaram a pôr em prática um trecho da poesia musical de Walter Franco: “... tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo...”

À minha amada irmã Marilia Morais de Oliveira, por me ensinar o caminho da Luz de Deus. Sua sensibilidade me deu forças para caminhar em momentos de solidão. Agradeço, ainda, ao meu cunhado Lucas Perdigão, pela generosidade e amizade. Vocês dois são meus verdadeiros baluartes!

Agradeço à minha orientadora Denise Bernuzzi de Sant‟Anna, por toda a generosidade em acolher minhas dificuldades, meus silêncios e minhas incertezas. Seus conselhos, ensinamentos, foram luzeiro para a pesquisa e me deram força interior.

Agradeço em meio a tanta gentileza e condução acadêmica, a minhas professoras doutoras Olga Brites, Maria Izilda, Maria Odila e, em especial, à Estefânia Canguçu.

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A CAPES, por ter-me concedido bolsa parcial e integral.

À minha orientadora de iniciação científica da graduação em História, Monica Savieto, por ter depositado em mim esperanças para que um dia eu alcançasse esta meta, e aos meus ex-professores Maria Candelária, Fernando Furquim, Alexandre Godoy, Alberto Luiz Schneider e Antônio Aparecido Primo. Vocês apostaram certo!

À minha amiga e mestra pessoal, Sandra Colucci, por seus ensinamentos, quando estive na graduação, e pela amizade sincera mantida desde sempre.

Agradeço aos meus melhores amigos, Adriano de Sousa Pereira, Luciane Vechio, Carol Galvão, Anderson Ferreira, Márcio Alves, Ezequiel Santos, Flavia Araújo e Adroaldo Fernandes.

Agradeço ao meu amigo André Pereira (in memoriam). Lembrei-me de nossos momentos alegres em que estivemos juntos, pesquisando sobre diferentes bandas, estilos musicais, assistindo a bons filmes, partilhando o café da tarde com seu irmão Adriano Pereira e seus pais Joaquim e Francilene. Essa família me acolheu como parte integrante!

À minha “segunda mãe”, Janete Moreira e seus filhos, Juli Caetano, Thábata Caetano, Lídia Caetano, Bárbara Caetano e Alex Caetano.

À minha avó, Ana (in memoriam), pelo exemplo de vida, carinho e por ter me considerado seu neto de criação!

À minha prima Elisabete, seu esposo André e ao meu tio José Marciano.

Agradeço pela colaboração de Dom Alexandre, professor oficial do coro dos monges do mosteiro de São Bento, por seu depoimento, suas aulas de canto, e aos demais depoentes que por ali passaram.

Agradeço aos fundadores da comunidade católica Fala Senhor, Júnior Silva, Simone Azevedo e demais membros.

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Vê como o chão dos céus

É denso, cravejado de pátinas de ouro brilhante: Não há o menor orbe que contemples,

Mas em seu movimento, como um anjo, canta... Tal harmonia está nas almas imortais:

Mas, enquanto esta veste suja e decadente Grosseiramente se fechar em si,

Não poderemos ouvi-la O mercador de Veneza

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RESUMO

OLIVEIRA, Vinicius Morais de. Entre o mosteiro de São Bento e a cidade: o canto gregoriano e o acústico contemporâneo da cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em História), PUC-SP, São Paulo, 2014.

O tema central da presente dissertação é historicizar no tempo presente a paisagem sonora interna do Mosteiro de São Bento, as permanências medievais contidas em sua arquitetura e em sua produção musical, ao lado de toda a sonoridade dicotômica, acelerada e ruidosa dos sons urbanos de seu arrabalde. Ambos os espaços têm seus territórios sonoros identitários. Diante da preeminência de que o estudo da produção sonora das sociedades vem criando novas possibilidades para a historiografia atual, o problema da pesquisa também procurou oferecer subsídios à investigação histórica das regras de leitura da escrita musical do canto gregoriano e todo o conjunto complexo de nomenclaturas oriundas da análise musicológica. Propõe-se ainda uma reestruturação na hierarquia do mecanismo ocular em equilíbrio com a escuta consciente dos sons, promovendo novos modelos cognitivos das nossas capacidades sensíveis. Assim, as principais fontes documentais utilizadas foram as fontes sonoras, um pequeno acervo fotográfico e os relatos orais das pessoas que por ali passaram.

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ABSTRACT

OLIVEIRA, Vinicius Morais de. Between the monastery of St. Benedict and the city: the gregorian chant and the contemporary acoustic of São Paulo city. Dissertation (Master‟s Degree in History), PUC-SP, São Paulo, 2014.

The central theme of this dissertation is to historicize the present time, the domestic soundscape of the Monastery of São Bento, the medieval remnants contained in its architecture and in its musical production, beside all dichotomous, accelerated and noisy loudness of its surroundings‟ urban sounds. Both spaces have their sonorous territories‟ identities. In view of the prominence that the sound production‟s study of societies is creating new possibilities for the current historiography, the research issue also sought to provide subsidies to the historical investigation of the music writing reading rules through gregorian chant and the whole complex set of nomenclatures derived from musicological analysis. It also proposes a restructuring in the ocular mechanism hierarchy in equilibrium with the conscious listening of sounds, promoting new cognitive models of our sensitive capacities. Thus, the main documentary sources used were sound sources, a small photographic collection and oral reports from people who passed by in both spaces.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...14

CAPÍTULO I – PRELÚDIO: A VOZ DE APOLO...24

1.1 EM TERRITÓRIOS SONOROS...24

1.2 POR ENTRE CARACTERES E SONS: O TEMPO RELIGIOSO DA ARQUITETURA E SEU ISOLAMENTO ACÚSTICO...36

1.3 A REGRA DE SÃO BENTO: INDÍCIOS NORMATIVOS PARA A PROJEÇÃO ACÚSTICO-MUSICAL...45

CAPÍTULO II – INTERLÚDIO: APOLO ECOA E RESISTE NO TERRITÓRIO URBANO CONTEMPORÂNEO...54

2.1 ECOS MEDIEVAIS: ENTRE O IMAGINÁRIO E A AUDIÇÃO...54

2.2 O SOAR DA MITOLOGIA HELÊNICA NO ÓRGÃO DE TUBO...68

CAPÍTULO III – POSLÚDIO: DIONÍSIO NA CIDADE DAS SÍNCOPES...82

3.1 O MICROCOSMO DA NOTAÇÃO MUSICAL GREGORIANA E A NOTAÇÃO DA PAISAGEM SONORA INTERNA DO MOSTEIRO...82

3.2 A RÍTMICA DO ESPAÇO URBANO E OS TERRITÓRIOS SONOROS NA MEMÓRIA...101

3.2.1 O silêncio virou silêncio e, às vezes, virou ruído e som...106

3.3 ONDE ESTÁ APOLO?...112

CONSIDERAÇÕES FINAIS...117

FONTES E BIBLIOGRAFIA...121

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LISTA DE FIGURAS E QUADROS

Figura 1 – Dependências externas do Metrô São Bento...31

Figura 2 – Largo de São Bento, 1862/1863...33

Figura 3 – Patriarca São Bento e ornamentos acima da entrada principal...36

Figura 4 – Vista panorâmica do centro da igreja e adornos...48

Figura 5 – Pombas cinzenta e branca...56

Figura 6 – Papa São Gregório Magno...59

Figura 7 – Santa Cecília, São João Evangelista e São Paulo Apóstolo...76

Figura 8 – Monge segurando um órgão portátil...77

Figura 9 – Divisão matemático-pitagórica dos sons...86

Figura 10 –Hino a São João, de Guido A‟rezzo...87

Figura 11 – Recorte pormenorizado 1...91

Figura 12 – Recorte pormenorizado 2...92

Figura 13 – Recorte pormenorizado 3...92

Figura 14 – Largo de São Bento em 1900...103

Quadro 1 – Sons presentes durante a liturgia eucarística dominical...97

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LISTA DE MÚSICAS DO CD

1 - High Hopes (Pink Floyd)

2 - Indicação sonora da estação São Bento

3 - Hino a São João Batista (Guido d‟Arezzo)

4 - Missa ao Papa Marcelo - Kyrie (Giovanni Palestrina)

5 - Trítono tocado melodicamente e harmonicamente

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INTRODUÇÃO

O interesse em produzir história utilizando as fontes musicais ou os planos acústicos percorre toda esta dissertação de mestrado. O potencial que tais fontes têm para elucidar uma determinada sociedade amplia, em muito, a visão do historiador, e nos conduz ao trabalho interdisciplinar.

Nós, humanos, vivemos rodeados de sons que, constante e inequivocamente, procuram-nos alcançar, tocando o nosso corpo, igualmente sonoro. Portanto, se imaginássemos um mundo sem sons seria altamente penoso e, ao mesmo tempo, pareceria impossível.

O estudo do piano clássico, iniciado aos treze anos de idade mais o repertório do Jazz, do Blues, do Rock, dentre outros estilos, foi fundamental em minha formação pessoal.

Nessa época, as inúmeras experimentações em estúdios de ensaios, aulas de prática musical, o convívio entre os demais estudantes e a busca insistente em compreender a linguagem da improvisação em meu instrumento contribuíam para que a urbe paulistana fosse descoberta no âmbito musical. Alguns lugares eram chamados de “redutos musicais” pelos estudantes e professores, aguçando nosso aprendizado. Ver músicos paulistanos e de outros lugares interpretarem temas de Miles Davis, Al Jarreau, Herbie Hancock1, as rodas de chorinho, os recitais, pequenas operetas, dentre muitos outros estilos, era sentir-me privilegiado por estar adentrando nesse universo.

Nessa mesma época, uma expressão um tanto conhecida foi proferida em algum palco desta cidade por um exímio instrumentista ao meu lado, aconselhando seu aluno nervoso ao tocar. Ela modificou toda minha formação intelectual e pessoal desde então. Ele tirou o bocal do saxofone soprano de sua boca e disse: “cara, dizem que os grandes bluesmans

cegos do passado, ao tocar, enxergavam o mundo com os ouvidos. Feche os olhos, não precisamos deles e apenas toque!”.

Anos depois, a frase ecoou de forma peculiar na minha graduação em História: como compreender os planos sonoros das sociedades e submetê-los pedagogicamente aos estudos históricos? Quais são os lugares de repouso acústico numa megalópole? Como apontar, ao

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menos, os fragmentos de sons que um dia fizeram parte do cotidiano urbano? Percebi assim, que antigas igrejas poderiam preservar certa memória desse passado.

O mosteiro de São Bento é certamente esse lugar. Situado no coração central da cidade de São Paulo, surge como tema central desta dissertação e faz parte de minha experiência com os sons na História. Ele contém um campo sonoro muito diferente da cidade atual que o circunda. Seus sons ainda preservam uma memória de um passado medieval fragmentado, que não está facilmente em evidência, pois a própria urbe atual ao seu entorno produz seu campo sonoro de forma intensa e díspar.

Assim, verifiquei que os processos de intensa urbanização e industrialização, iniciados principalmente em 1960, firmam-se na paisagem sonora paulistana. O mosteiro permanece alheio a tais mudanças, mas a população ao seu redor é diversificada, coabitando com espaço urbano, principalmente em atividades comerciais atuais. Ele não interfere no cotidiano dessas pessoas nesse sentido.

A pesquisa teve como ponto de partida esse estranhamento. Como é possível, hoje, o mosteiro ou a abadia beneditina oferecer aos seus fiéis e aos seus religiosos residentes um espaço de preservação aos sons sagrados e também silenciosos?

Sua fundação inicia-se ainda no período colonial por volta de 1600 e, portanto, esse espaço testemunhou, ao longo do tempo, as grandes transformações que a própria cidade passou. Devido à sua importância, são dependentes e interligados ao mosteiro de São Bento de São Paulo os mosteiros beneditinos de Sorocaba, fundados em 1676, o de Jundiaí, fundado em 1668, e o de Santos, fundado em 1650.2

Nas práticas ritualísticas beneditinas, mantém-se, ainda, com poucas alterações ao longo do tempo, o canto gregoriano. Ele é essencial para dar significação à ordem religiosa bem como ao espaço acústico, ambos estudados na presente pesquisa.

A utilização das fontes sonoras para os estudos históricos será posta no corpo desta pesquisa nos seus registros escritos da abadia, contrastando-os com a paisagem sonora do entorno da igreja. De fato, a cidade atual não parece mais agregar-se de maneira sacramental ao tempo religioso, mas este último ainda está coevo dentro do monastério.

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Atualmente, é cena comum encontrarmos nas grandes cidades outras formas de ouvir os sons. Se pensarmos em um estudante do século XXI, portando seu inseparável “decodificador de ondas sonoras”, entendendo como tal, seu i-phone, detentor de múltiplas funções que não são somente as de comunicação, mas também enriquecido por um repertório musical devidamente escolhido, poderá ser acessado como fonte histórica, uma vez que, fragmentos de sua memória vivida3estarão contidos ali.

Os avanços tecnológicos do século XX, especificamente os relativos ao desenvolvimento e armazenamento de dados, enquanto a gravações musicais se refere, vem provocando profundas alterações não só quanto à velocidade, mas também quanto à variedade dos sons.

Das gravações musicais realizadas nas vitrolas das primeiras décadas do referido século aos programas digitais atuais de computadores que registram e modificam os sons a uma velocidade antes inimaginável, muito se caminhou e em curto espaço de tempo. Cabe perguntar então, como os compositores do passado armazenavam as suas músicas?4

Talvez, a resposta rápida e objetiva que o leitor teve foi por meio da escrita. Sim, uma escrita musical. Mas essa escrita musical, levando em consideração a dificuldade que se tem em descrever para o papel os sons, de fato, nos dá elementos de uma cultura? Em outras palavras, podemos compreender os sons historicamente? Então, se o leitor faz tantas e tão variadas perguntas, é necessário repensarmos as muitas questões.

A expressão popular utilizada por muitos atualmente: “uma música toca e mil lembranças vêm”, é um bom exemplo para repensar o quanto a dimensão sonora faz parte da nossas vidas. Os sons artificiais, naturais, estéticos, religiosos, tecnológicos, da vida privada, dos espaços públicos, sons das grandes cidades e os sons rurais constituíram e afirmaram a existência humana e formam diferentes categorias. Estes também são campos de disputas, de tensões e/ou repouso. O ato de ouvi-los tornou possível esta pesquisa.

3 A música é um canal de recordação para nossa memória. Podemos ter inúmeras sensações ao lembrarmo-nos de músicas infantis em brincadeiras na escola, na adolescência, etc. No decorrer desta dissertação, a memória

musical estará contida nos relatos de algumas fontes e estarei arraigado nelas. Acerca de “memória vivida”, ver BOSI, Ecléa. Memória e sociedade:lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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Muito se fala da expressão cunhada poluição sonora5, nos veículos de comunicação, ou para quem habita os grandes centros urbanos, mas pouco se estuda quanto à historicidade do termo.

Os sons são essencialmente invisíveis (a olho nu) e toda notação musical, por mais simples que seja, é uma representação fragmentada do sentido da visão, embora encontremos seguramente registros gráficos muito confiáveis na vida de um músico executante, por exemplo.

Em intensos diálogos bibliográficos e, por vezes, percorrendo limiares entre a historiografia e as fontes musicais, fui compondo a dissertação. O leitor logo perceberá minha inquietude em atentar nossos ouvidos para uma escuta consciente6 dos sons musicais e também não musicais.

Leitor ouça à sua volta. Quais são os sons que o circulam agora neste momento em que você chega neste parágrafo? São esses sons agradáveis ou desagradáveis para você? Eles estão em um espaço público ou privativo? Faça uma pausa! Existe silêncio absoluto agora? A proposta do exercício, o qual eu destaquei anteriormente, fez você refletir e conscientizar alguns dos sons que o rodeiam. Portanto, é nesse movimento entre consciência e inconsciência7 que os caminhos e possibilidades de investigação serão conduzidos nesta dissertação, interdisciplinarmente.

A intenção de questionar e entender alguns aspectos da relação entre cultura sonora e o mosteiro de São Bento motivou-me a construir um estudo abalizado em práticas, valores e sentimentos materializados em formas de sons ou músicas.

O esforço de identificar a produção sonora como artefato histórico e entender suas múltiplas expressões é o que circunda o desenvolvimento da pesquisa. Estamos de fato dispostos a ouvir no mesmo âmbito em que utilizamos a visão?

5 “A poluição sonora é hoje um problema mundial. Pode-se dizer que em todo o mundo a paisagem sonora atingiu o ápice da vulgaridade em nosso tempo, e muitos especialistas têm predito a surdez universal com a

última consequência desse fenômeno, a menos que o problema venha a ser rapidamente controlado.” SCHAFER,

R. Murray.A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 2001, p.17.

6 Escutar conscientemente significa, dentre outros, educar nossa audição. Schafer propõe exercícios dessa escuta para os pesquisadores ao analisar e esmiuçar os sons, separando-os, como categorias de análise. Para mais compreensão, caminharei interdisciplinarmente com a noção de consciência e inconsciência em Jung, mais adiante.

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A primazia do sentido da visão, construída ao longo da Modernidade Ocidental8 e levada à máxima potencialidade, fez com que os saberes, de certa maneira, se distanciassem da cognição auditiva e investigação epistemológica9 dos sons nas ciências humanas. Não que houvesse consciência destes ao longo da história humana.

A natureza investigativa apegou-se por décadas ao regime da opulência para que nossa psique criasse associações imagéticas e transpusessem-nas em favor de nossa linguagem. O limite entre ver e ouvir, (re)cria diferentes possibilidades de estudos, se procurarmos unir tais sentidos.

Com essas indagações, muitos pesquisadores em distintas áreas do saber em meados do século XX, – musicólogos, antropólogos, físicos, historiadores, psicólogos e matemáticos –, aproximaram disciplinas até então não relacionadas entre si, a fim de interpretar o universo sonoro.

Alguns experimentos laboratoriais realizados por físicos, na segunda metade do século passado em Cimática10, possibilitaram estudar as frequências sonoras separadamente e, estas, quando “colocadas” para vibrarem em superfícies aquosas ou simplesmente o sal jogado em chapas metálicas geraram figuras geométricas concisas, semelhantes a mandalas11.

Ora, nossa audição não dispõe de pálpebras como nossos olhos com a função de “ligar e desligar” e, por esse motivo, está constantemente ativa ao longo de nossas vidas captando as ondas sonoras. Essas ondas são codificadas e entendidas de acordo com cada costume social e revelam claramente traços, perfis, hábitos em diferentes contextos, podendo transformar-se em música para algumas sociedades ou meros ruídos incompreensíveis para outras.

8 Não pretendo fazer uma reflexão historiográfica acerca deste termo, mas foi essencial a leitura do livro: GAY, Peter. Modernismo: o Fascínio da Heresia - de Baudelaire a Beckett e mais um pouco. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

9 No período histórico denominado de Renascimento, a cristandade intensificou as representações visuais de seus santos em telas, esculturas ou pinturas nas paredes das igrejas.

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Nesse sentido, a música precisa ser compreendida como linguagem humana, uma vez que os sons fazem parte de nosso mundo. As fontes sonoras precisam compor o método do historiador, pois sua audição também faz parte de seu instrumental investigativo.

Portanto, dialogar com as fontes sonoras é afinar nosso ouvido, viabilizando-o como ferramenta de acesso à experiência humana. O pesquisador que possuir audição atenta pode aproximar a leitura dos sons na História.

Seu primeiro trabalho será a “observação histórica” [...]. Ele não deve

ignorar “a imensa massa dos testemunhos não-escritos”, aqueles da arqueologia em particular [...]. Mas se “o passado é, por definição, um

dado que nada mais modificará [...] o conhecimento do passado é uma coisa em progresso que se transforma e aperfeiçoa incessantemente”.12

Um dos autores mais importantes para compreender as fontes sonoras é o musicólogo, educador, compositor e precursor da investigação acústica, chamado Murray Schafer. Inspirado em seus estudos, busco tornar possível a análise das fontes acústicas, tornando-as compreensíveis, nas imensidades das representações que os panoramas sonoros podem nos ofertar. No início da década de setenta do século anterior, ele desenvolveu um grande projeto acústico com o nome The World Soundscape Projetc (WSP), com a intenção de criar e compreender parâmetros de estudos das paisagens sonoras, trazendo-os para o âmbito das Ciências Humanas, Exatas, como a Acústica e, até mesmo, desenvolvendo com alguns colegas médicos docentes da universidade em que lecionava as implicações dos ruídos fabris e tecnológicos na saúde humana.

Cabe destacar, ainda, sua escolha em tornar tais estudos evidenciados, intitulando-os em categorias ou termos como: ecologia sonora, rumo a um projeto acústico e limpeza de ouvidos. Com relação e este último, compete uma breve citação do próprio autor:

Sugeri, também, que as pessoas (crianças de preferência) precisavam

ser submetidas a exercícios de “limpeza de ouvidos”, para que a

competência sonológica da sociedade como um todo pudesse melhorar, pois se, tal como nas culturas orais, essa competência pudesse ser adquirida, o problema da poluição sonora desapareceria. Eles concluíram que eu era um sonhador... Todavia, após anos de trabalho na questão da poluição sonora, posso afirmar que há somente

12 LE GOFF, Jacques. Prefácio. In: BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história ou o ofício do

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dois modos de resolver essa questão: o que acabo de citar, ou uma crise de energia de dimensões mundiais.13

Há de fato, uma permanência histórica medieval14 na cultura monástica beneditina no local estudado, por conter alguns costumes corriqueiros do cotidiano, as orações diárias, o uso do latim na liturgia eucarística, os cursos ministrados para leigos durante a semana, bem como os ensaios musicais, contrapondo-se aos costumes da urbe paulistana.

Um observador atento, ao caminhar pelos arrabaldes do mosteiro, logo perceberá a intensidade das relações humanas circunscritas naquele espaço. Suas ruas estão cheias de pedintes, artistas de rua e pessoas vendendo os mais diversos produtos.

Nesse espaço faz-se presente uma imensa multiplicidade de sons, provenientes dos motores de carros, buzinas, vozes dos artistas de rua, lamento dos pedintes, dentre outros, configurando essa paisagem. Eles representam um campo sonoro difuso e um território de tensões.

Em alguns pontos desta dissertação, um personagem fictício percorrerá tais labirintos surgidos na paisagem sonora do mosteiro e na paisagem sonora de seu entorno. Ele é um agente para mostrar ao leitor características do tema aqui trabalhado, resultantes de minha investigação. Por isso, às vezes, o personagem vai (des) cobrir os sons estudados, o insistente silêncio na abadia e a presença dos monges que foram objeto de diálogo com os frequentadores do mosteiro. Suas pontuadas aparições não seguirão uma lógica linear e sequencial por episódios ocorridos. A momentaneidade fictícia de suas ações cooperará com a necessidade das fontes no texto.15

A esse respeito, também conduzi a pesquisa à maneira de um antropólogo-historiador, ou seja, construindo um diário de campo, e um pequeno acervo fotográfico. Em suas experiências, teremos contato com as fontes elegidas para compor a pesquisa e

13 Apud: FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. O lobo no labirinto. São Paulo: UNESP, 2004, p.42 (grifo nosso).

14 Durante algumas visitas ao interior do mosteiro e em conversas com seus residentes, procurei coletar dados relativos às permanências medievais vividas por estes. Constatei a insistência do imaginário medieval ligado às

noções de pecado e salvação e a preservação do silêncio no local para “escutar Deus”. Farei apontamentos de tais permanências históricas e/ou mudanças em tais costumes.

15“[...] o tempo na narrativa não decorre somente das relações entre autor e o texto, mas depende, também, das relações entre o texto e seu destinatário, o leitor [...]. As vivências do personagem, embora nítidas, são

objetificadas, integrando um tempo parcelado, cujos momentos indefinidos caem na rede do presente.” NUNES,

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adentraremos na investigação histórica. Tal criação versa por configurar e dinamizar principalmente os eventos sonoros na escrita dissertativa.

Assim, quando o personagem olha para frente do mosteiro, ele visualiza a imagem do patriarca fundador da ordem, posta como guardião da abadia em tamanho natural, situada acima do paço principal e reflete de maneira figurativa as muitas transformações na cidade paulistana e do cotidiano religioso presentes ali.

Com esse exemplo metafórico da disposição da imagem do patriarca como testemunha do passado, valorizei meu caminho interdisciplinar. A narrativa do personagem fará, por vezes, a transposição das fontes acústicas para nossa visão. Codificá-las ao corpo do texto é um recurso exigente para os pesquisadores da linguagem sonoro musical.

Tais registros estarão ficcionalmente em seu i-phone sendo coletados, durante minhas visitas ao mosteiro e no caminhar próximo a ele. O acesso ao seu aparelho está contido no repertório do CD16.

As gravações foram realizadas durante as visitas ao mosteiro e no caminho percorrido ao local da pesquisa.

Esse percurso sonoro foi organizado de maneira tal que a sua escuta pudesse trazer a „experiência‟ da personagem aos nossos ouvidos, proporcionando melhor significado para a produção textual.

De fato, o que ele ouvirá „ficcionalmente‟ contribuirá didaticamente com a transposição dos sons. Esse recurso por mais que exaurisse meu tempo, uma vez que não possuo nenhum romance escrito ou alguma obra ficcional de importância literária, ajudou-me a apreender o universo da cultura sensível musical de maneira pedagógica.

Escolher palavras adequadas para elucidar ou até mesmo simbolizar um som é um jogo de risco. As ondas sonoras pertencem ao campo do invisível, captado por nossa audição em nossa temporalidade.

Os registros musicais tentam representar em linguagem simbólica os sons e estão em constante mudança, pois dependem de elementos em cada época.17 O historiador, diante

16 Sigla inglesa para compact disc.

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desses elementos sonoro temporais18, mergulha em um universo de possibilidades que são desafiantes.

A partir dessas considerações iniciais, como resultado final, a dissertação divide-se similarmente em uma sinfonia orquestral.

Em Prelúdio, pretendemos apresentar o personagem Crispin, deixando que seu caminho seja trilhado pela arquitetura histórica do monastério, bem como sua busca ao elemento acústico do sagrado.

Em Interlúdio, o foco estará direcionado para os indícios dos arquétipos apolíneos e no recuo de forma mais intensa, na sacralidade do medievo. O desafio será encontrar tais traços intersubjetivos na forma em que a Igreja pensou acerca de sua escolha sonora no seu espaço sagrado como um todo.

Em Poslúdio, tanto paisagem sonora interna da abadia quanto a paisagem sonora de seu externo serão postos em tabelas acústicas, possibilitando visualizar as diferenças entre os sons. A grafia medieval do canto gregoriano será analisada historicamente, com influência metodológica da micro-história e da análise musicológica, em um movimento interdisciplinar. As notas escritas, portanto, são elementos microscópicos que amplificam o imaginário medieval ecoado atualmente no espaço estudado.

Foi coletado, ainda, depoimentos de algumas pessoas que passaram pelo mosteiro. Veremos as sensações que elas tiveram acerca dos sons, do silêncio e dos ruídos da urbe paulistana com amoedo complementar nesta pesquisa.

As fontes em ambos os movimentos “sinfônicos” serão o pequeno acervo fotográfico e sonoro do local, algumas representações imagéticas19, dois textos agostinianos, uma narrativa mítica de Apolo e Hermes, o órgão de tubo, instrumento este, primordial para veiculação sagrada do som, a notação das tabelas da paisagem sonora interna e externa ao mosteiro e os depoimentos orais, colhidos e transcritos aqui. Todas indicam a importância de

Introduziu uma nova dimensão, a vertical, pela qual a frequência, ou a altura, era indicada ficando os sons

agudos acima e os graves abaixo.” SCHAFER, R. Murray.A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 2001, p.176.

18 Termo criado nesta pesquisa procurando evocar diferentes temporalidades históricas no ato de ouvir conscientemente.

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arguciar a multidimensionalidade sonora dos ruídos, do silêncio e os sons do sagrado entre ambas.

Assim, tanto o espaço sacramental da abadia quanto o espaço ruidoso da cidade serão verificados nas órbitas cidade/mosteiro, em seus devidos territórios sonoros identitários. O sino da abadia e seu som talvez seja uma interface muito fraca entre ambos, mas ainda está presente no local, conforme veremos.

Contudo, foram os pedaços de ruídos, músicas, imagens, fragmentos de escritas em diversas temporalidades, que remontei procurando dar sentido histórico e musical no tempo presente da urbe paulistana.20

20“Uma história que deite seus alicerces no passado, mas volte-se para o cotidiano presente dos povos, é vital

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CAPÍTULO I – PRELÚDIO: A VOZ DE APOLO21

1.1 EM TERRITÓRIOS SONOROS

Uma metrópole sempre revela coisas novas. Ela tem ramificações sonoras em suas artérias que pulsam como num organismo vivo. Todas as ruas produzem, sobretudo, sons artificiais, provenientes dos carros, ônibus, caminhões ou motos.

Já em muitas ruas de tráfego automotivo menor, encontramos momentos de breve silêncio. É o caso de alguns bairros residenciais. No entanto, alguns lugares ou edificações antigas parecem compor muito mais momentos de silêncio do que propriamente de ruídos.

Enquanto um jovem caminhava certo dia pela importante e agitada rua chamada Florêncio de Abreu, situada no coração central da cidade paulistana, estranhamente seu olhar diferiu dos demais caminhantes. Parecia procurar alguma coisa, mas não algo que estivesse caído de sua mochila, ou quando não conhecemos um lugar e ficamos pedindo por alguma informação. Suas mãos seguravam um caderno e ele, a todo instante, realizava anotações. Nessa rua de muito movimento, tal cena é atípica, embora sua fisionomia logo evidencie ser um estudante observando o lugar. Em um determinado momento, ele guardou seu caderno na mochila, colocou-se em direção ao mosteiro, parando por um instante na frente dele e adentrou na igreja.22

Ela é conhecida como “igreja do mosteiro de São Bento”. Aliás, é muito comum que todo aquele agitado lugar, em seu arredor, seja referenciado pelos paulistanos como: “vou ir

21 Na Hélade, os templos apolíneos geralmente mantinham em suas práticas ritualísticas a utilização de instrumentos musicais serenos como a lira ou as flautas. O título sugere uma relação histórica a tal fato com o desejo da ordem monástica beneditina em preservar a serenidade e o silêncio, na ideação litúrgica de seus ritos ligados à sublimação e ao êxtase no interior da abadia. Apolo e todas as suas representações divinas possui este

traço: “[...] realizador do equilíbrio e da harmonia dos desejos, não visava a suprimir as pulsões humanas, mas

orienta-las no sentido de uma espiritualização progressiva, a mercê do desenvolvimento da consciência.”

BRANDÃO, Junito. Mitologia grega.vol. 2.Rio de Janeiro: Vozes, 1987, p.90.

22 Entretanto, os momentos de silêncio da capital paulistana e, em particular, do centro urbano próximo ao Largo São Bento são difíceis de experimentar. Muito do que ocorre com esse personagem fez parte da minha experiência enquanto pesquisador nos arredores do mosteiro e, também, dentro dele. Devido às temporalidades históricas heterogênicas compostas nas fontes, procurei abalizar-me em alguns aspectos ficcionais na narrativa, escrita em itálico. Essa presunção foi influenciada pela obra de Reinhart Koselleck, principalmente neste trecho:

“O intervalo temporal força o historiador a fingir a realidade histórica, sem falar do “acontecer” de alguma coisa.

Ele está obrigado a servir-se basicamente dos meios linguísticos da ficção para apoderar-se de uma realidade

(25)

lá à Rua Florêncio de Abreu na São Bento”, ou mesmo, para quem deseja ir à cosmopolita Rua Santa Ifigênia comprar qualquer coisa que se possa imaginar, se diz: “desce na estação São Bento, que fica mais perto” ou simplesmente “desce na São Bento.”.23

São por esses simples diálogos que Crispin inicia suas investigações. Eles demonstram uma importância peculiar do mosteiro em relação à cidade, inclusive sonoras. Ao centro da igreja, logo acima da entrada principal, a imagem imponente do patriarca fundador da ordem beneditina chama a sua atenção. Ela parece lançar sobre a cidade um olhar vigilante sem descanso, ao mesmo tempo em que testemunha as transformações urbanas daquele entorno, sofridas ao longo do tempo. As vidas que ali circulam diariamente talvez não notem a projeção medieval evocada por ela, principalmente com as torres projetadas em forma pontiaguda e janelas escuras estreitas, lembrando certamente na imaginação de um caminhante mais atento um castelo pequeno.

Passado algum tempo dentro da igreja, ele sai em direção à cidade e retorna para sua casa. Tudo o que fez nesse dia foi observar e anotar alguns dados que julgou ser importante. Dias depois, Crispin decide ir ao mosteiro novamente, iniciando assim um ciclo de visitas durante algumas semanas escolhidas por ele. Ao dirigir-se para o mosteiro seu transporte principal é o metrô. Quase toda a vez em que ele utiliza tais veículos tem como hábito colocar um item muito comum nos dias atuais em seu corpo: fones de ouvido.

Quando a febre desses aparelhos estava em seu auge, muitos ouviam com volume intenso, gerando incômodo aos demais passageiros. Com o passar do tempo, uma lei foi criada para proibir a utilização de objetos sonoros dentro dessas dependências, como vemos nos avisos fixados.24 Num coletivo de pessoas, em espaços públicos, mesmo as músicas mais agradáveis tornam-se desagradáveis a outrem, dados pela multiplicidade de gostos pessoais.25 Poucos resistem ao hábito de ouvir música nos transportes urbanos.

23“Os sistemas de nomeação [...] de ruas [...] também podem facilitar a estruturação dos elementos. Significados e associações sejam sociais, históricos, funcionais, econômicos ou individuais, constituem todo um domínio para

além das qualidades físicas [...].” LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.120.

24 Lei municipal nº 6.681/65, que proíbe o uso de aparelhos sonoros nos veículos de transporte coletivo.

25 “Negativamente, o processo de personalização remete para a fractura da socialização disciplinar; positivamente, corresponde à instalação de uma sociedade flexível assente na informação e na estimulação das necessidades, no sexo e nos «factores humanos», no culto da naturalidade, da cordialidade e do humor. É assim que opera o processo de personalização, novo modo de a sociedade se organizar e se orientar, novo modo de

gerir os comportamentos.” LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Portugal: Relógio d‟Água Editores, 1983,

(26)

O esforço de ouvi-las ameniza a viagem, pois os ruídos estridentes produzidos nos túneis norte-sul da linha azul, neste exato momento, por exemplo, não são nada agradáveis para Crispin e para a maioria também.“Às vezes, quase espontaneamente, é fácil se concentrar nas músicas e ouvi-las sem problemas. Mas em outras, os sons que não quero ouvir, entram, ou melhor, invadem minha audição. Quase nada na cidade soa com consonância acústica”, pensou ele.26

A cidade parece gerir tantos sons que Crispin intriga-se ao analisá-los. Para ele, é como entrar num eterno confronto com ela, caso todos os habitantes resolvessem resistir a eles. “Se fizéssemos isso sempre, nem faríamos parte integrante da cidade, talvez”, pensou, enquanto imaginava também que a melhor forma de viver diante de tantos ruídos, seria esquecê-los.

O espaço do metrô é, de fato, uma disputa entre o organismo humano e o organismo mecânico, portanto sintético. Numa constância frenética e intensa, a cidade engole todos os sons naturais evocando os artificiais. É impossível deixar de notar o descontentamento das pessoas em ouvi-los, mas conforme estas vivem nesse cotidiano, os sons da cidade insistem em formar uma simbiose estranha com os corpos de seus habitantes.

Contudo, Crispin relembra que o mosteiro de São Bento é um ambiente muito diferente em comparação com outros espaços internos da cidade. A produção sonora dele o diferencia tanto historicamente quanto artisticamente.

A própria arquitetura parece evocar um passado medieval, com paredes largas, escuras e herméticas. “Talvez, com todas as mudanças ocorridas na cidade, indagadas por ele, seus sons não são mais notados, do ponto de vista da cidade”, indaga consigo mesmo27.

26 A palavra consonância é empregada de duas maneiras: a primeira infere ao ato corriqueiro de falá-la denotando concordância entre partes, agradável etc.; a segunda maneira liga-se diretamente com o vocabulário da escrita composicional em música – significa que os sons são resolvidos em cadências que propiciam ao ouvinte um repouso harmônico, pertencentes, grosso modo, ao estudo de harmonia musical. No decorrer da análise musical do canto gregoriano, veremos que as notas foram criadas para soar concordantes entre si do ponto de vista da mentalidade religiosa medieval. O ato de ouvir músicas com fones de ouvidos, em seus inúmeros tamanhos e cores nos coletivos urbanos, faz parte de nosso contemporâneo e, esses acessórios sonoros parecem integrar-se como a linguagem do corpo nas urbes, contribuindo na autoafirmação dos indivíduos nos espaços coletivos.

27“As sociedades são, com efeito, submetidas à sucessão rápida dos acontecimentos. Pulsações da atualidade, às vezes regulares, muitas vezes acidentais e imprevistas. Esse ritmo é intensificado pela difusão massiva das

“notícias”, situação ignorada nas sociedades tradicionais.” (tradução de Circe Fernandes Bittencourt) SEGAL,

(27)

Ele rapidamente pensa na presença do sino, marcando sonoramente as horas ao alto da igreja e conclui sua reflexão, procurando uma música para ouvir que relembra o esquecimento da paisagem sonora produzida pelos sinos dos santuários monásticos, há muito tempo atrás. O badalar estridente e altamente ressoante deles pode ser ouvido nesta canção:28

Além do horizonte do lugar em que vivíamos quando jovens Em um mundo de imãs e milagres

Nossos pensamentos vagavam constantemente sem limites O soar do sino da divisão começou

Ao longo da Grande Estrada e de sua calçada Será que ainda elas se encontram na encruzilhada?

Havia uma banda que tocava fora do tempo seguindo nossos passos Correndo antes dos tempos, levaram embora nossos sonos Deixando incontáveis pequenas criaturas tentando nos prender ao chão

De uma vida consumida por uma lenta decadência

A grama era mais verde As luzes eram mais brilhantes

Com amigos por perto As noites de surpresas

Olhando além das brasas de pontes resplandecendo atrás de nós Um relance do quão verde era do outro lado

Passos rumo ao progresso são tomados, mas em seguida regredimos de novo Puxados por uma força interior

Às alturas, com a bandeira desfraldada

Alcançamos às rarefeitas alturas daquele mundo tão sonhado Sobrecarregados para sempre por desejo e ambição

Ainda há um desejo insaciado

Nossos olhos cansados ainda se perdem pelo horizonte Apesar de que, por esta estrada, termos por várias vezes passado

A grama era mais verde As luzes eram mais brilhantes

O sabor era mais doce As noites eram maravilhosas

Com amigos por perto A brilhante névoa do amanhecer

A água correndo O rio sem fim Para sempre e sempre.29

28 Faixa 1 do CD.

29 PINK FLOYD. High hopes. Álbum “The division bell”. Columbia Records, 1994. Este álbum é considerado uma obra-prima para a década na qual foi produzido. Sua instrumentação é brilhante do ponto de vista estético, por utilizar muitos sons considerados ruídos em música, mas que ao ouvi-los, integram-se enquanto elemento

(28)

Essa música inicia-se com sons vindos de uma paisagem sonora rural30, possivelmente circundada por muitas árvores ou, até mesmo, podemos criar figurativamente a imagem de um pequeno vilarejo.

Surgem sons curtos de pássaros nos primeiros segundos da canção, propiciando uma atmosfera minimalista e imprimindo o tempo da natureza. Afirmando ainda mais a importância dessa paisagem, a inserção sonora brevíssima e quase inaudível de um inseto voando instantes antes do sino tocar traz à tona detalhes desse local.

Logo que o sino reverbera, este afirma o andamento31 musical, “ajustando” temporalmente os sons naturais dessa paisagem. Na sequência, o surgimento de três acordes32 lentos e agudos, realizados pelo piano e tocados suavemente, parecem entrar de maneira contrapontística33, e repetem-se durante a instrumentação. Porém, quando a melodia surge em registro vocal grave nessa atmosfera bucólica de forma suave, percebemos estranhamente que o sino, na verdade, é quem bate em contraponto, mesmo mantendo o andamento anterior.

na tradição de tocar um sino quando existe uma forte discordância entre os políticos no Parlamento Inglês, indicando hora de votação. A grande maioria das letras refere-se à necessidade de dialogar em situações de conflito, como tema geral, embora haja questões conflituosas entre os integrantes da banda, o que colaborou para inspirar as canções. BLAKE, Mark. Comfortably Numb: The Inside Story of Pink Floyd. Boston: Da Capo Press, 2008. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=hKXhLoWCPQ8C&printsec=frontcover&hl =ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. Acesso em 08 dez. 2012. Escolhi esta música por haver a marcação do sino e trazer ruínas de um tempo passado por meio da letra, fazendo a personagem questionar o tempo residual sonoro do sino e a temporalidade sonora contemporânea lo-fi.

30 A paisagem sonora, configurada pelos efeitos dos pássaros e sem ruídos tecnológicos no início da canção é de alta fidelidade (hi-fi). Ela assume toda a instrumentação de maneira a afirmar o sentido composicional das palavras.

31 O andamento indica a velocidade da execução de uma música e a duração do som e do silêncio, escritos pelas notas musicais. Ele subdivide-se em três grandes categorias de velocidade: lento, médio e rápido. Para marcar a velocidade, é utilizado um aparelho chamado metrônomo, patenteado pelo mecânico austríaco Johann Nepomuk Maelzel, em 1816. Antes dessa invenção, o andamento era estabelecido por uma movimentação pendular, ou mesmo, marcado pela pulsação cardíaca. Na atualidade seu uso é indispensável aos músicos. Para mais, conferir: STANLEY, Sadie (Ed.). Dicionário Grove de Música. Tradução de Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p.28.

32 Os acordes são uma sucessão de notas diferentes, tocadas simultaneamente e pertencendo a uma determinada escala musical, podendo ser estáveis ou instáveis, do ponto de vista da estrutura de cada estilo musical. Ibidem, p.5.

33 O contraponto é o estudo de escrever duas ou mais melodias diferentes de forma a serem tocadas em simultaneidade. Na história da música Ocidental, ele foi utilizado “pela primeira vez no séc. XIV, quando a

teoria do contraponto começou a se desenvolver [...]. O termo, às vezes, é reservado para a teoria ou o estudo de

(29)

O piano passa a marcar o tempo forte da pulsação34 e o sino, portanto, bate em contraponto. Essa mudança muito sutil, porém evidente ao ato de ouvir consciente, delata claramente a intenção do autor em afirmar o significado de sua mensagem na letra da melodia. “Além do horizonte do lugar em que vivíamos quando jovens/ Em um mundo de imãs e milagres/ Nossos pensamentos vagavam constantemente sem limites/ O soar do sino da divisão começou”. Portanto, o sino na canção marca divisões entre o passado desse lugar rememorado (do autor) com a temporalidade atual a que este pertence.

Na segunda estrofe, surgem os demais instrumentos da banda, com mais intensidade e fluidez, sobrepondo intencionalmente o volume do badalar do sino, mas que se mantém insistentemente pulsante.

Ao indagar Crispin sobre a existência de alguns elementos físicos daquele tempo passado em “Ao longo da Grande Estrada e de sua calçada/ Será que ainda elas se

encontram na encruzilhada?”, “a grande estrada” e “sua calçada” sobrepõem-se ao badalar sonoro do sino, afirmando a temporalidade do progresso do século XX, ruidosa, visto na canção como agente: “[...] esquizofrênica da pós-modernidade com a aceleração dos tempos de giro na produção, troca e no consumo” 35 e nas demais: Olhando além das brasas de

pontes resplandecendo atrás de nós/ Um relance do quão verde era do outro lado/ Passos rumo ao progresso são tomados, mas em seguida regredimos de novo,

[...] produzem, por assim dizer, a perda de um sentido futuro, exceto na medida em que o futuro passa a ser descontado no presente. A volatilidade e a efemeridade também torna difícil [...] o retorno de interesses e de instituições básicas, como a família e a comunidade e a busca de raízes históricas são indícios da procura de hábitos mais seguros e valores mais duradouros num mundo cambiante.36

34O termo “pulsação” corresponde também à velocidade e ao andamento musical. No entanto, a subjetividade do músico executante infere-se estritamente nessa organização temporal, de modo a unir o “sentir” com as

ordenações das notas tocadas.

35 HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a origem da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992. Apud: PRADO, Gustavo Silva. A verdadeira Legião Urbana são vocês (1985-1997). Dissertação (Mestrado em História Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012, p.40-41.

(30)

Ademais, a instrumentação dialoga melancolicamente com do discurso poético e metafórico da canção, principalmente com os solos cortantes da guitarra aguda e bem timbrada ao término do último refrão “As noites eram maravilhosas/ Com amigos por perto/ A brilhante névoa do amanhecer/ A água correndo/ O rio sem fim”. 37

Por fim, o sino deixa de bater com evidência nesse trecho, conforme a guitarra se apresenta com os temas ao fundo realizados pelos efeitos dos teclados, que conduz à harmonia musical. A guitarra afirma sua posição com notas agudas e de forma muito sensível. Nos últimos segundos do solo, o badalo do sino reaparece em efeito decrescendo38 soando igualmente ao início da canção.

“É curioso ouvir um sino tocar dentro de uma música principalmente ao marcar seu andamento”, pensou ele, enquanto retirava seus fones de ouvido e guardava-os em sua mochila, relacionando essa preservação sonora dos sinos como herdeira do passado medieval. “O canto gregoriano advém do sistema musical modal”, pensou consigo mesmo, imaginando um tempo passado em que a cidade ainda integrava o som do sino do monastério.39

– Estação São Bento, disse o condutor.40

Tão logo o metrô parou, Crispin desembarcou confortavelmente na agitada estação. Boa parte dela encontra-se no subterrâneo, com acesso a algumas ruas como a Ladeira Porto Geral, a famosa Rua Florêncio de Abreu e o viaduto Santa Ifigênia.

37 Preferi não analisar as demais estrofes por conter muitos elementos pessoais ligados a sentimentos humanos, ao qual o compositor se lança. Veemente, estes escapam dos parâmetros investigativos desta dissertação. A personagem, ao ouvir a canção, dentro de sua memória, cria associações mentais dos elementos urbanos circundantes e os questionam, nesse movimento do presente para o passado. Ela recoloca a posição histórica do mosteiro que resiste ao tempo acelerado da urbe atual. Para tanto, se pensarmos o mosteiro no início do século XVIII, este não estaria fora do contexto sonoro da cidade, uma vez que a cidade certamente circundava-se na paisagem sonora hi-fi.

38 Com algumas exceções, a grande maioria dos termos musicais advém da língua italiana. A expressão decrescendo faz gradativamente o volume de uma canção diminuir até encontrar o silêncio. No entanto, o andamento pode manter-se dentro dessa regra ou sofrer uma leve desaceleração. Esse efeito é geralmente empregado ao término das canções. Ver: STANLEY, Sadie (Ed.). Dicionário Grove de Música. Tradução de Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

39“O campo modal [...] abrange toda a vasta gama das tradições pré-modernas: as músicas dos povos africanos, dos indianos, chineses, japoneses, árabes, indonésios, indígenas das Américas, entre outras culturas. Ele inclui também a tradição grega antiga [...] e o canto gregoriano, que se constituem, ambos, em estágios modais da

(31)

Figura 1 – Dependências externas do Metrô São Bento41

Na imagem42, alguns elementos relatam ao nosso olhar temporalidades sobrepostas no espaço registrado. A Modernidade extraiu o nível superior da cidade, provendo-o em função de um local de passagem. Para quem opte sair do metrô em direção ao centro da cidade e ao mosteiro, este é um local de acesso direto.

As características físicas e funcionais desse espaço estão claras no projeto arquitetônico realizado para ausentar o nível do metrô e submetê-lo ao nível acima do entorno da abadia43. A horizontalidade maciça e grande da parede à direita da figura imprime a temporalidade da cidade e limita ao caminhante visualizar o espaço externo, bem como ter uma visão panorâmica deste, como um todo. A separação entre passado e presente encontra-se nos diferentes níveis de altura do metrô com o nível de altura da cidade.

41 Foto do autor, em 08 de fev. de 2013, por volta das 11 horas da manhã, horário de Brasília. Esse local preserva relativo conforto e silêncio aos fins de semana e em horários específicos durante a semana. É possível encontrar ao redor desse espaço assentos e uma lanchonete.

42“A imagem na fotografia é sempre um duplo, emanação física do objeto, vestígio da luz, marca e prova do real. Entretanto, por mais fiel que a fotografia possa ser, ela não é, efetivamente, aquilo que registrou. É apenas um duplo. Com isso, o que a fotografia revela é a diferença e a separação entre o real fotografado, que foi engolido pelo tempo que passa, e o seu registro – capturado, congelado e eternizado na foto.” SANTAELLA,

Lucia. Leitura de imagens.São Paulo: Melhoramentos, 2012, p.78.

43“Tanto os valores temporais de que o motivo fotografado está carregado quanto as opções espaciais feitas pelo fotógrafo, na sua simbiose corporal e sensória com a câmera, ficam plasmados em uma foto. Por isso mesmo, os valores temporais e opções espaciais podem ser tomados como guias para a leitura da imagem fotográfica.”

(32)

Em meio a esses níveis, temos a protagonista da ação: a escada. Nela, deparamos com um dado muito importante: a ligação entre os espaços físicos de durações temporais distintos que se unem para dar passagem aos caminhantes, sendo um elo de ajuntamento dos tempos sobrepostos.

Entre esses elementos arquitetônicos contidos, a aceleração temporal é manifestada na presença flagrada da quantidade de pessoas que por ali trafegam. De fato, não há uma solidão física e a movimentação dos corpos retira a percepção dos tempos distintos, indicando um ambiente de estar apenas na momentaneidade. Nesse aspecto,

[...] a hermenêutica dos estudos do cotidiano se propõe antes como um método do que como teoria para o conhecimento histórico, na medida em que aceita a efemeridade das perspectivas, a instabilidade das categorias analíticas constantemente reconstruídas, e a historicidade inerente ao processo de conhecimento.44

O típico caminhar acelerado dos passantes na urbe paulistana indicia um costume coletivo produzido pela influência desta enquanto um “lugar” físico e também mental, advindo da cidade atual. Assim, tal espaço produz diferentes e inúmeras formas sonoras porque “a vida nas cidades é mediada pelo curso das interações pessoais apoiadas na intersubjetividade. Nessa perspectiva de análise, a cidade pode ser entendida como uma rede intersubjetiva de trocas afetivas e intelectuais subjacente à vida social”.45

O dinamismo das interações urbanas articula-se também, a priori, dentro da constante produção dos sons urbanos artificiais e dos corpos humanos (incluindo a motricidade do corpo em juntarem-se com os veículos automotivos, as máquinas do trabalho em obras de construção ou a comunicação verbal dos caminhantes) com os elementos físicos ou estruturais da cidade.

No caso da fotografia, os sons que a compõem, no momento do registro, eram principalmente o ruído contínuo dos carros circulando acima, vindos da Rua São Bento, e vozes humanas em menor volume.

44 MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru - SP: Edusc, 2005, p.29.

45 KASUE, Cleusa Sakamoto. Cidade um ambiente psicológico de suporte ao desenvolvimento humano. In: AVELINO, Yvone Dias (Org.). Polifonias da cidade: memória, arte e história.São Paulo: D‟Escrever, 2009,

(33)

No registro fotográfico abaixo, em contrapartida, encontramos um panorama sonoro muito diferente desse mesmo espaço.

Figura 2 – Largo de São Bento, 1862/186346

A presença e a mensagem sonora circundada na imagem da igreja beneditina apresenta uma amplitude de volume menor se comparada à figura 1. As ruas de terra, portanto, absorvem muito mais a onda dos sons do que as atuais asfaltadas que têm a capacidade de ampliar a gama de ruídos mecânicos e manter, assim, a poluição sonora paulistana.

A visualidade dos indícios de ruralidade encontrada nela é a ausência da poluição sonora oriunda dos sons artificiais, os grandes aglomerados de pessoas e, ainda, aproximar – mesmo que não haja no registro imagético – a presença muito maior dos sons da natureza, principalmente, os sons de pássaros ou dos animais de tração que faziam parte da urbe nesse tempo.

O diálogo indecifrável de algumas pessoas registradas e principalmente os dois homens mais à direita talvez sejam a principal evidência de som ao redor nesse recorte fotográfico, sendo contrastante com a figura 1.

(34)

Poderiam eles estar esperando suas respectivas esposas enquanto elas fazem suas orações pessoais dentro da igreja?47 Se partirmos da percepção de seus ouvidos, o que poderíamos escutar do entorno do monastério naquele tempo? Talvez a melhor proeminência fosse a sonoridade metalizada do sino, ao alto da torre. Seu som certamente ecoaria por muitos metros a fio, diferentemente de hoje, que é engolido pela poluição sonora aprisionante no limitar do Largo de São Bento.

Esse aprisionamento sônico, passível de compreensão histórica, se fortalece na arquitetura dos prédios ao redor e faz com que o som estridente do sino seja absorvido por suas paredes, impedindo sua expansão, bem como a gama dos sons humanos e artificiais todos achatados no local analisado.48

De tal modo, ao olhar para ambas as imagens e compará-las, percebemos o repto do mosteiro em resistir com a arquitetura (de)sacralizada dos prédios gerados no crescimento econômico no centro da capital paulistana, pois:

Um distrito bem-sucedido torna-se uma espécie de celeiro natural de construções, ano após ano. Alguns dos prédios antigos são substituídos por novos – ou reformados a ponto de equivaler a um novo. Portanto, com o passar do tempo, há uma mistura constante de edifícios de várias idades e de vários tipos [...]. Mais uma vez estamos tratando dos efeitos do tempo sobre a economia [...]. Mas, neste caso, estamos tratando da economia no tempo são hora a hora ao longo do dia, mas em termos de décadas e de gerações.49

Os efeitos do tempo econômico que a citação demonstra retiraram da cidade uma paisagem sonora mais próxima do interior silencioso do monastério, conforme “ouvimos” na fotografia de Militão.50

47“As igrejas paroquiais foram convertidas, nesse tempo, em espaço para namoricos, marcação de encontros

proibidos e traições conjugais.” PRIORE, Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011, p.49.

48 O Personagem Crispin expõe no início do capítulo a presença marcante do sino na música Hight Hopes, ouvida por ele e indaga se o mesmo ainda tem significância para o local atual.

49 JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução de Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.209.

50 É necessário salientar algumas transformações por que a capital paulistana passou no século XIX, e as igrejas

também foram contempladas nesse momento. “A igreja de São Bento não foi o único templo paulistano a passar

por alterações em meados de 1800, pois vários outros estavam em reforma naquele tempo [...]. Parte de todo esse processo de atualização da arquitetura religiosa paulistana pode ser acompanhado por meio de fotos de Militão

(35)

A presença de maior preeminência do silêncio, talvez, fosse muito mais frequente no passado da cidade paulistana do que na atual urbe. O intenso volume sonoro atual só diminui durante tarde da noite, principalmente a partir das 21 horas no arrabalde estudado.

Destarte, a arquitetura do centro paulistano, hoje, com suas imbricações na estética e no tempo do trabalho, afirma a demolição dos nervos de um passado urbano mais condizente com a sonoridade regrada do dinamismo temporal do catolicismo, ajustado às festividades paroquiais, às procissões ou aos cortejos fúnebres que eram vistos por muitos passantes nas ruas.

Desse modo, o sino ainda tem um volume amplo, conforme arrestado, mas primordialmente seu significado histórico, ao passar pela rede intersubjetiva atual, já não evidencia mais o tempo religioso sonoro da ordem beneditina no espaço urbano arredor. Por mais, a afirmação sônica da identidade sacramental da importante abadia para a história da cidade paulistana limita-se apenas com seu badalar do sino, envolto, ou melhor, aprisionado como dito, na temporalidade dos ruídos exteriores do cotidiano da urbe.

Ao percorrer o caminho da escada, Crispin avalia com atenção o panorama acústico contido nela.

O piso inferior preserva um relativo silêncio, e seus ruídos projetam-se em volume menor. Mas ao final da subida, os ruídos oriundos da parte de cima da cidade aumentam de volume vertiginosamente.

Agora, seus olhos são tomados por uma gama de possibilidades culturais, e seus ouvidos atentam para as apresentações dos artistas de rua, dos passantes conversando e o fluxo contínuo dos automóveis.51

No entanto, a visão do mosteiro e sua colocação diante do espaço urbano chamam novamente sua atenção, fazendo-o fotografar a entrada principal da igreja, toda adornada similarmente a um importante monumento.

(36)

1.2 POR ENTRE CARACTERES E SONS: O TEMPO RELIGIOSO DA ARQUITETURA E SEU ISOLAMENTO ACÚSTICO

Figura 3 – Patriarca São Bento e ornamentos acima da entrada principal52

Entre os dois arcos basilares simétricos com forte influência românica encontra-se, em destaque, o guardião e patrono da ordem monástica beneditina São Bento. Sobre seu nascimento:

Após porfiados estudos, os historiadores monásticos beneditinos convencionaram situar os parâmetros biográficos de São Bento, o santo monge, natural de Núrsia, centro da Itália, entre os anos 480-547. Por sua Regra monástica que lhe é atribuída, ficou conhecido como o patriarca do Monaquismo Ocidental.53

Indumentado com seu manto54, com postura de vigília e com uma das mãos estendida para a cidade, a estátua alude à intenção de proteção ao mosteiro, enquanto espaço de sublimação ao Sagrado, e tal gesto parece delimitar as fronteiras exercidas que o espaço

52 Foto do autor, em 08 de fev. de 2013, por volta das 11 horas da manhã, horário de Brasília.

53 DIAS, Geraldo J. A. Coelho. A regra de São Bento, norma e vida monástica: sua problemática moderna e edições em português. História. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, III série, v. 3, p.9-48, 2002, p.3. Disponível em <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2278.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2013. 54“O monge ou a monja, no momento de se retirar do mundo, ao vestir o hábito e pronunciar seus votos, se cobre com um manto ou capa. Esse gesto simboliza a retirada para dentro de si mesmo e para junto de Deus, a consequente separação do mundo e de suas tentações, a renúncia aos instintos materiais.” CHEVALIER, Jean;

(37)

urbano estabelece, visto que “na tradição bíblica e cristã, a mão é o símbolo do poder e da supremacia. Ser alcançado pela mão de Deus é receber a manifestação do espírito”.55

O espaço sacromonástico intensifica-se por meio da construção arquitetônica do mosteiro e de seus elementos componentes ligados à simbologia cristã católica, conforme registrado no ato fotográfico. Portanto, a ideação das construções católicas ou, neste caso em específico, a estética das grandes e importantes abadias monásticas beneditinas espalhadas pelo mundo, seguem uma evidência e permanência histórica comum, talvez não tão perceptível ao longo da duração temporal56. Nesse sentido:

Pensemos por um momento no espaço da religião católica; esse espaço cobre toda a terra, porque a Igreja é indivisível; nesse universo, a área singular, seu conceito passa para segundo plano, assim como o limite ou a fronteira. O espaço é determinado com respeito a um centro único, a sede do papa; mas nesse espaço terrestre nada mais é que o momento, uma pequena parte do espaço universal que é o lugar da comunhão com os santos. [...]. No entanto, nesse quadro total e indiferenciado, onde o próprio espaço se anula e se sublima, existem

“pontos singulares”; são eles os espaços de peregrinação, os

santuários, onde o fiel entra em comunicação mais direta com Deus.57

Paralelamente com essa função espacial supracitada, a importância da disposição da imagem ao alto da entrada principal também afirma a proteção divina aos monges que estão sob seus auspícios e o configura como elemento de veneração aos devotos católicos frequentadores desse espaço.

A comunicação com o elemento sacramental dispõe de muitas formas e são manifestadas pelas sujeições das sonoridades características dos templos religiosos e suas concordâncias com as estruturações arquitetônicas. As disposições com os fenômenos ritualísticos dependem do

55 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olimpo, 2012, p.591. 56 Neste caso, as significações das temporalidades heterogêneas estão situadas nos ornamentos em toda a igreja em relação à paulistaneidade. Segal elucida e atenta às escolhas e aos diferentes caminhos que o historiador pode

percorrer em um tema. Assim, “[...] os ritmos não são independentes. Uma dada conjuntura pode estar ligada ao acontecimento de uma estrutura nova ou ao seu esboroamento. A conjuntura pode aparecer como causa; ela é

geralmente um sinal ou um elemento”. SEGAL, André. Pour une didactique de la durée. In: MONIOT, Henri

(Org.). Enseigneur L’histoire – des manuels à la mémoire. Berna: Peter Long Editions, 1984, p.7.

Imagem

Figura 1 – Dependências externas do Metrô São Bento 41
Figura 2 – Largo de São Bento, 1862/1863 46
Figura 3 – Patriarca São Bento e ornamentos acima da entrada principal 52
Figura 4 – Vista panorâmica do centro da igreja e adornos 88
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Referências

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