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O enorme ponteiro negro do relógio está ainda imóvel, mas prestes a executar o seu gesto de cada minuto: esse salto elástico porá todo um mundo em

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Academic year: 2022

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O enorme ponteiro negro do relógio está ainda imóvel, mas prestes a executar o seu gesto de cada minuto: esse salto elástico porá todo um mundo em movimento. O mostrador do relógio ficará lentamente para trás, cheio de desespero, desprezo e tédio, enquanto um a um os pilares de ferro passarão por nós, levando com eles, como brandos atlantes, a cúpula da estação; o cais começará a afastar ‑se, e com ele tomarão um destino desconhecido pontas de cigarro, bilhetes usados, flocos de luz do sol e de cuspo; um carro de bagagem deslizará, com as rodas imóveis; e na sua esteira seguirá um quiosque de jornais coberto de revistas com capas sedutoras: fotografias de beldades nuas e de um cinzento de pérola; e pessoas, pessoas, pessoas no cais em movimento, movendo também elas os pés, mas mantendo ‑se imóveis, avançando ao mesmo tempo que, todavia, recuam como num sonho atormentado, presas de um inconcebível esforço, de náusea, de uma fraqueza de algodão que lhes toma as pernas, enquanto os seus corpos se inclinam para trás, quase caindo de costas.

As mulheres eram mais do que os homens como acontece sempre nas despedidas. A irmã de Franz, com a palidez da hora precoce nas faces magras, e um cheiro desagradável a estômago vazio, embrulha‑

da numa capa de tecido aos quadrados, como decerto nunca se vira numa rapariga da cidade; e a sua mãe, baixa, redonda, toda de casta‑

nho como uma figura de monge pequena e compacta. Depois, eis que os lenços começaram a agitar ‑se.

E não eram só esses dois sorrisos familiares que recuavam; não era só a estação que se afastava, levando consigo o quiosque dos

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jornais, o carro de bagagem e um vendedor de sandes e fruta, cujos belos morangos, grandes e suculentos, vermelhos e cintilantes, pe‑

diam positivamente que os trincassem proclamando a sua afinidade com as papilas gustativas — embora já distante agora, por desgraça, não era só tudo isso que ficava para trás, porque era todo o velho burgo, envolto na sua neblina cor ‑de ‑rosa matinal que se afastava também: o grande Herzog de pedra da praça, a catedral sombria, as tabuletas das lojas — um chapéu alto, um peixe, bacia de cobre de um barbeiro. E já não havia maneira de fazer com que o mundo pa‑

rasse. As casas desfilam solenemente diante dos olhos, as cortinas agitam ‑se nas janelas abertas da casa dele, os soalhos da casa soltam estalidos breves, as paredes rangem, a sua mãe e a sua irmã estão a tomar o café da manhã no meio da corrente que se precipita, os mó‑

veis estremecem com os solavancos crescentes, e as casas, a cate‑

dral, a praça, as ruas laterais movem ‑se cada vez mais veloz e mis‑

teriosamente. E embora os campos cultivados tivessem começado havia já algum tempo a desdobrar a sua colcha de remendos do outro lado da janela da carruagem, Franz continuava a sentir nos seus pró‑

prios ossos o movimento de retirada da pequena cidade onde passara vinte anos da sua vida. Além de Franz, no compartimento de terceira classe e bancos de madeira, havia duas velhas senhoras com os seus vestidos de bombazina; uma mulher roliça com as suas inevitáveis faces vermelhas e a sua inevitável cesta de ovos no regaço; e um rapaz louro de calções acobreados, robusto e anguloso, muito pare‑

cido com o seu próprio saco de viagem, a rebentar de tão cheio e que se diria esculpido em pedra amarela: tirara ‑o com a máxima energia de cima dos ombros para o arremessar para a rede da bagagem.

O lugar junto à porta, diante do de Franz, estava ocupado por uma revista ilustrada que exibia a foto de uma jovem imponente; e junto à janela, no corredor, de costas para o compartimento, via ‑se de pé um homem de ombros largos e com um sobretudo preto.

O comboio avançava agora rapidamente. Franz levou com um gesto brusco a mão ao peito, movido pelo receio de ter perdido a carteira com todas as várias coisas que continha: o bilhete pequeno e sólido e um cartão ‑de ‑visita de um desconhecido com o seu precio‑

so endereço, bem como um mês inteiro de vida humana em marcos alemães. A carteira mantinha ‑se, sem novidade, no seu lugar, dura e

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quente. As velhas senhoras começaram a agitar ‑se e a segredar, en‑

quanto desembrulhavam sandes. O homem do corredor voltou ‑se e, cambaleando levemente, dando meio passo atrás e dominando de‑

pois as trepidações do chão, entrou no compartimento.

Perdera a maior parte do nariz, ou nunca a chegara a ter. A pele pálida, como pergaminho, aderia, repulsivamente crispada, ao que lhe restava de cana do nariz; as narinas tinham renunciado por com‑

pleto ao sentido da dignidade e encaravam o observador intimidado como dois buracos súbitos, negros e assimétricos; as faces e a fronte mostravam toda uma série de sombreados geográficos — amarela‑

dos, rosados, vivamente reluzentes. Teria herdado aquela máscara?

E, caso contrário, que doença, que explosão, que ácido o desfigura‑

ra? Praticamente não tinha lábios; a ausência de pestanas dava aos seus olhos uma expressão de surpresa. E, contudo, vestia com ele‑

gância, com esmero, e era bem constituído. Trazia um fato assertoa‑

do por baixo do sobretudo grosso. Tinha o cabelo liso como uma peruca. Puxou um pouco para cima as calças ao sentar ‑se, com um gesto tranquilo, e com as mãos, calçadas de luvas cinzentas, abriu a revista que deixara poisada em cima do assento.

O calafrio que percorrera as omoplatas de Franz reduzia ‑se agora a uma sensação estranha na boca. Sentia a língua repulsivamente viva; o céu ‑da ‑boca, desagradavelmente húmido. A memória abriu‑

‑lhe a sua galeria de figuras de cera, e ele soube — soube que ali, num extremo algures da sua memória, o esperava uma câmara de horrores. Lembrou ‑se de um cão que vomitara à entrada de um talho.

Lembrou ‑se de uma criança, uma criança ainda trôpega, que, inclinando ‑se com a dificuldade própria da sua idade, apanhara apli‑

cadamente do chão para a levar à boca uma coisa nojenta que parecia uma chupeta de bebé. Lembrou ‑se de um velho que tossia num trans‑

porte e soltara um coágulo de muco na mão do cobrador. Eram ima‑

gens que Franz habitualmente mantinha à distância, mas que, como um enxame, pareciam continuar sempre à espreita no fundo da sua vida e saudavam com um espasmo de histeria qualquer nova impres‑

são que se lhes assemelhasse. Depois de cada choque desse tipo, em dias ainda recentes, costumava atirar ‑se de bruços para cima da cama tentando combater o assalto da náusea. As suas recordações escola‑

res pareciam procurar sempre evitar quaisquer possíveis, impossí‑

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veis, contactos com a pele suja, borbulhenta, viscosa deste ou daque‑

le seu companheiro que viesse incitá ‑lo a participar num jogo ou comunicar ‑lhe um segredo salivado.

O homem estava a folhear a revista e a combinação do seu rosto com a capa irresistível era intoleravelmente grotesca. A mulher rubi‑

cunda ocupava o lugar ao lado do monstro, e tocava ‑o com o seu ombro amodorrado. O saco de viagem do jovem passageiro roçava a sua mala preta coberta de etiquetas. E o pior era que as velhas senho‑

ras, ignorando o seu vizinho infecto, trincavam as suas sandes e sorviam informes bocados de laranja, embrulhando as cascas em pedaços de papel que iam acumulando delicadamente debaixo do assento. Mas quando o homem pôs de lado a revista e, sem descalçar as luvas, começou a comer uma rosca de pão com queijo, lançando olhares agressivos em redor, Franz não pôde aguentar mais. Pôs ‑se rapidamente de pé, levantou o rosto lívido como o de um mártir, ti‑

rou a sua modesta mala da rede, pegou na gabardina e no chapéu, e fazendo chocar desajeitadamente a mala na ombreira da porta, apressou ‑se a sair para o corredor.

Aquela carruagem fora atrelada à composição do rápido numa estação deixada para trás havia pouco, e o ar que se respirava dentro dela era ainda fresco. Franz experimentou imediatamente uma im‑

pressão de alívio. Mas a tontura ainda não lhe passara. Uma muralha de faias tremulava do outro lado da janela numa sequência marche‑

tada de sol e sombra. Ele começou, a passo incerto, a mover ‑se ao longo do corredor, agarrando ‑se aos puxadores e a outras coisas que encontrava, enquanto ia espreitando para dentro dos compartimen‑

tos. Só num deles descobriu um lugar livre; hesitou e passou adiante, sacudindo de si a imagem de duas crianças de feições pálidas, com as mãos negras de pó, encolhidas na expectativa de verem a mão da sua mãe agredir ‑lhes a nuca, enquanto desciam velozmente do banco e se punham a brincar no chão indescritível, entre os pés dos passa‑

geiros e papéis sebentos. Ao chegar ao extremo da carruagem, Franz deteve ‑se, tomado por um estranho pensamento. Era um pensamento tão doce, tão audacioso e excitante, que o obrigou a tirar os óculos e a limpá ‑los. «Não, não posso, está fora de questão», disse ele num sopro para consigo, mas apercebendo ‑se já de que, apesar de tudo, não poderia resistir à tentação. Depois, compondo o nó da gravata

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com o indicador e o polegar, atravessou num ímpeto estrepitoso as plataformas instáveis que davam acesso à carruagem contígua, na qual entrou por fim, com uma deliciosa sensação de fraqueza no fundo do estômago.

Era uma carruagem schnellzug de segunda classe, e para Franz a segunda classe exercia uma espécie de atracção fulgurante, que che‑

gava a ser ligeiramente pecaminosa, com um sabor excessivo, como o do gole de um espesso licor branco, ou o dessa enorme toranja parecida com um crânio amarelo que, uma vez, comprara a caminho da escola. Com a primeira classe nem sonhar era possível — destinava ‑se a embaixadores, generais, actrizes de uma condição quase sobrenatural. A segunda, contudo… a segunda… Se ele tives‑

se ao menos coragem para tanto. Diziam que o seu pai (um lamentá‑

vel notário), em certa ocasião — havia já muito tempo, antes da guerra —, viajara em segunda classe. Fosse como fosse, Franz não conseguia decidir ‑se. Parou no início do corredor, junto ao letreiro que indicava a distribuição dos lugares na carruagem, e agora já não era um vislumbre de floresta cerrada como uma cerca, mas uma pai‑

sagem de grandes prados que deslizava majestosamente diante dos seus olhos, e, ao longe, paralela aos carris da linha, corria uma auto‑

‑estrada, onde passava a toda a velocidade um automóvel liliputiano.

O cobrador, que passava por ali na sua ronda, livrou ‑o de mais dificuldades. Franz pagou o suplemento que promovia o seu bilhete à categoria imediatamente superior. Um breve túnel ensurdeceu ‑o com a sua treva ressoante. Depois, fez ‑se de novo luz, mas o cobra‑

dor desaparecera, entretanto.

O compartimento, no qual Franz entrou com uma inclinação de cabeça tão silenciosa como não correspondida, estava ocupado por duas pessoas somente: uma bela senhora de olhos cintilantes e um homem de meia ‑idade com um bigode aparado e fulvo. Franz pen‑

durou a gabardina e sentou ‑se cuidadosamente. O assento era extre‑

mamente macio; uma saliência semicircular e aconchegada separava à altura das têmporas um lugar do outro; as fotografias nos tabiques do compartimento eram maravilhosamente românticas: um rebanho de ovelhas, uma cruz no alto de um penedo, uma cascata. Franz es‑

tendeu devagar as pernas compridas, tirou devagar do bolso um jornal dobrado. Mas não se sentia capaz de ler. Entorpecido por tan‑

Referências

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