PUC-SP
Ana Paula da Silva Baima
O supereu como estrutural do sujeito e o consumo como
o ideal do Outro na contemporaneidade
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
PUC-SP
Ana Paula da Silva Baima
O supereu como estrutural do sujeito e o consumo como
o ideal do Outro na contemporaneidade
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Social, sob a orientação do Professor Doutor Raul Albino Pacheco Filho.
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104 15 seguimentos segmentos
Banca Examinadora
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Ao Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho, por me acolher como integrante do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade e por orientar, com dedicação e interesse, a realização deste trabalho.
Ao Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado e ao Prof. Dr. Luis Guilherme Coelho Mola, pelas férteis e valiosas contribuições no Exame de Qualificação e por gentilmente aceitarem participar de minha Banda de Defesa.
Ao Prof. Dr. Conrado Ramos, referência clínica e teórica no meu percurso na psicanálise.
À Profa. Dra. Ana Laura Prates Pacheco, por me orientar e me apoiar nos primeiros momentos de investigação sobre o tema dessa dissertação.
Aos colegas do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise de Sociedade do Instituto de Psicologia da PUC-SP, que muito me ajudaram e motivaram.
Aos integrantes da equipe do Centro de Reeducação Reviver, por apoiarem e incentivarem meu desenvolvimento teórico-clínico.
Às amigas Rosemary Jimenez e Vivian Anijar Fragoso Rei, por me auxiliarem e incentivarem nos momentos de dúvidas e incertezas relacionadas ao presente trabalho.
Aos meus pais, por sempre me apoiarem, acreditarem em minhas escolhas e demonstrarem orgulho de mim.
A Rafael, pelo amor e dedicação.
Aos meus amigos e familiares, por torcerem por mim e compreenderem meus momentos de ausência e distanciamento.
Ao corpo docente do Programa de Psicologia Social da PUC-SP.
A Marlene Camargo, pela disponibilidade em esclarecer dúvidas e ajudar.
BAIMA, Ana Paula da Silva. O supereu como estrutural do sujeito e o consumo como o ideal do Outro na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.
O intuito do presente trabalho é contribuir para a compreensão de como o sujeito está implicado na sociedade contemporânea. Para tal feito, buscamos pensar como a instância psíquica supereu pode auxiliar no entendimento do capitalismo caracterizado pelo consumo incessante de mercadorias. Partimos do posicionamento de que o supereu é estrutural do sujeito e que, independentemente das configurações sociais, denuncia a falta e ordena a busca pelo gozo pleno. Para defender nossa posição teórica e melhor entender as teorizações existentes sobre o conceito, realizamos um levantamento das principais formulações freudianas e lacanianas sobre o assunto. Apesar de nossa retomada da teoria psicanalítica não ultrapassar o ano de 1964, foi possível considerar que o supereu está relacionado com a entrada na cultura e mantém sua estrutura de imperativo de gozo em qualquer configuração social. Refletimos sobre a atuação do supereu na sociedade contemporânea articulando a instância psíquica em questão e o ideal do Outro. Enquanto o supereu traz uma injunção sem atributo específico e relacionada ao registro real, o Outro, apesar de invariável em sua estrutura simbólica, é influenciado pelas características do contingente histórico. O ideal do Outro, influenciado pelo capitalismo que incentiva o consumo, oferece ao sujeito do desejo, caracterizado pela falta, a fantasia de que o gozo pleno é possível pelo consumo. A nosso ver, o capitalismo atual parece tirar proveito da estrutura do supereu, que sempre denuncia a falta do sujeito e opera mandatos de gozo pleno. O supereu é importante para a aderência ao consumo, visto que, sem a sua injunção de busca pelo gozo, ideal do Outro não teria sua força imperativa. Faz-se necessária a presença do supereu, como olhar que vigia e voz que critica, para que o consumo como ideal do Outro atue como um imperativo. A presente pesquisa demarca que a teoria sobre o supereu deve ser considerada quando se pretende entender como o sujeito está implicado no capitalismo contemporâneo.
BAIMA, Ana Paula da Silva. The superego as structural in the subject and the consumption as the Other ideal in the contemporary society. Master’s Dissertation. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC - 2011.
The general purpose of this research is to contribute to the comprehension of how the subject is involved in the contemporary society. In order to achieve this objective, we limit ourselves to discussing how the operation of the superego can be of great help in understanding the capitalism characterized by the incessant consumption of merchandise. First, we adopt the ideas that superego is structural in the subject and that, no matter what social configurations, it points out the lack and orders the seek for total jouissance. In order to show these both notions are accurate and understand the theories related to the concept in details, we conduct a careful study based on the main formulations of Freud and Lacan. Despite the fact that this study doesn’t take into account what Lacan says after 1964, it’s possible to prove that superego is related to the entrance into the culture and that it maintains its structure of jouissance imperative in every society. From this point on, we discuss the superego course of action in contemporary society articulating it with the Other ideal. While superego presents an injunction without a specific content and related to the Real, the Other, although invariable in its symbolic structure, is influenced by historical aspects. The Other ideal, influenced by capitalism that promotes consumption, offers the subject of the desire, characterized by the lack, the fantasy that the total jouissance is possible through buying what is sold by the market. From our point of view, present capitalism takes advantage of the structure of the superego, which always points out the lack of the subject and orders the search for jouissance. Superego is important to the adherence to consumption because without its injunctions the Other ideal wouldn’t have any imperative strength. The presence of the superego, as a look that observes and a voice that criticizes, is essential to the consumption as the Other ideal. Without it, it would not act as an imperative. This research shows that the theory of superego has to be considered when we intend to understand how the subject is implicated in contemporary capitalism.
INTRODUÇÃO... 9
CAPÍTULO 1: Considerações sobre o supereu em Freud... 24
1.1.Primeiros fragmentos do supereu em Freud... 24
1.2. A formulação do supereu na teoria freudiana... 29
1.3. Supereu e cultura... 35
1.4. A questão do pai... 40
1.5 Manifestações do supereu: a culpa na clínica psicanalítica freudiana... 43
CAPÍTULO 2: Algumas formulações sobre o supereu em Lacan... 47
2.1. Um Lacan durkheimiano... 47
2.2. O supereu no retorno a Freud... 57
2.3. O supereu e o registro real: objeto a... 73
CAPÍTULO 3: Supereu como estrutural do sujeito e consumo como ideal do Outro... 91
INTRODUÇÃO
Desenvolvido no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, o presente trabalho está amparado na concepção de que a teoria psicanalítica é um
arcabouço teórico que instrumentaliza reflexões acerca da sociedade e da subjetividade
característica de uma determinada época. Tomando como base a Escola Francesa de
Psicanálise, entendemos que as contribuições oferecidas pelas teorias psicanalíticas
apresentadas por Sigmund Freud e por Jacques Lacan são relevantes não só para o
entendimento de fatores relacionados à clínica, mas também para o estudo de questões que
se estabelecem em sociedade.
Compreendemos a teorização psicanalítica, com tudo o que ela oferece para a
compreensão do sujeito, como fundamental para o entendimento de questões que se
apresentam em sociedade. A nosso ver, o estudo da interlocução entre uma organização
social e aspectos subjetivos não pode prescindir da utilização de conceitos psicanalíticos.
Na sociedade atual, por exemplo, para entender o ajustamento entre interesses do capital e
características subjetivas é necessário nos questionar se existem fatores estruturais do
sujeito que corroboram para a alienação no laço social capitalista e para a manutenção do
“status quo” ou, ainda, se a própria estruturação do sujeito não traz a possibilidade de
resistência diante de estados de dominação.
O pensamento filosófico e as teorias da sociedade mostram inequívoca relevância na oferta de contribuições para a crítica do capitalismo. Resta, contudo, acrescentar a isso a consideração do que é da ordem do sujeito. (PACHECO FILHO, 2009, p. 155)
Com base nesse pressuposto, nossa proposta é pensar como um aspecto que
concebemos como estrutural do sujeito atua no contingente histórico atual. Na tentativa de
supereu1. Entretanto, para delimitar nossa questão de pesquisa, convém contextualizar o
contingente histórico em que inserimos nossa discussão.
Esse trabalho se insere na sociedade capitalista contemporânea, caracterizada pelo
consumo incessante de mercadorias. Apesar de não termos o intuito de oferecer uma
definição sintética, singular e monolítica dessa configuração social, buscaremos apresentar
alguns aspectos que julgamos fundamentais para a articulação com o conceito psicanalítico
supereu.
Apoiados em Berman (2001), entendemos que as sociedades capitalistas
contemporâneas já não se assemelham às sociedades típicas do capitalismo que se
instaurou com o surgimento da indústria mecanizada e da racionalidade econômica.
Berman (2001) descreve com clareza a existência de duas fases do capitalismo: a primeira,
chamada de fase clássica, tem como características centrais a produção e a acumulação, e a
segunda, intitulada fase modernizada, apresenta como marca central o consumo.
O capitalismo alcançou sua fase modernizada com o aumento da capacidade técnica
de produção. Conforme Marcuse (1964/1967), no capitalismo avançado o sistema de
produção tornou-se capaz de produzir bens de consumo em alta escala e passou a utilizar
as conquistas científicas em relação à natureza para produzir e entregar, em quantidade
cada vez maior, mercadorias para o consumo. O problema é que, com essa elevada
capacidade de produção, o capitalismo passou a depender do consumo para sua sustentação
econômica, e isso não significou a condução de um sistema mais brando, flexível e
humanitário. O capitalista percebe que o consumo não precisa retardar a acumulação e que
1 No decorrer do presente texto as traduções dos termos alemães “das Es”, “das Ich”, “das Überich” não serão
ele pode até fazê-la avançar ainda mais furiosamente. Desta forma, o consumo se
transforma em um negócio.
No sistema capitalista contemporâneo, o aparato técnico passa a determinar não só
a produção de uma mercadoria, mas também a manutenção e a ampliação desta no
mercado. De acordo com Safatle (2008), o incentivo ao consumo é o problema econômico
central. Com o desenvolvimento tecnológico e com o aumento da produtividade, nem todas
as atividades de trabalho estão diretamente envolvidas nos processos de produção. Grande
parte dos empregos está envolvida com processos de ampliação do consumo, como a
publicidade e o marketing. Junto a isso, as mídias e a indústria cultural podem ser pensadas
como elementos fundamentais para a manutenção desse sistema. Segundo Adorno
(1967/1994), a indústria cultural tem grande importância na formação da consciência dos
consumidores e propaga o espírito do capitalismo avançado. Ela determina o consumo das
mercadorias e impõe padrões de comportamento que propagam a dependência e a servidão
do homem ao sistema capitalista.
Apesar de as pessoas serem livres para consumir, a “liberdade” de consumo não é
uma liberdade plena. Só é possível escolher dentro das opções oferecidas pelo mercado e
não é possível influenciar o conjunto de opções disponíveis para a escolha. Não
controlamos o que está disponível para escolha, todas as possibilidades, mesmo que
excessivas, são pré-selecionadas e a “livre escolha” é uma falácia.
Na sociedade capitalista contemporânea a dominação aparece disfarçada de
liberdade. Apesar da capacidade elevada de produção e de atender grande parcela das
necessidades dos indivíduos, a sociedade limita a liberdade por meio da implantação de
necessidades materiais e intelectuais. Conforme Marcuse (1964/1967), a sociedade
industrial avançada produz “necessidades falsas”, ou seja, necessidades concebidas como
têm controle, e que proliferam a dominação, a miséria e a injustiça. A sociedade marcada
pelo consumo se caracteriza pelo totalitarismo das escolhas, onde, apesar de a propaganda
transmitir a ilusão de que escolhas são feitas pelos consumidores, todas as escolhas são
dadas e só são possíveis dentro do sistema vigente. (RAMOS, 2009)
Antunes (2009) mostra como a própria evolução do capitalismo, apesar de propagar
a ilusão de liberdade de escolha, segue determinando e orientando as necessidades e
escolhas a favor do capital. Antunes (2009) explica que mesmo com a emergência da crise
no padrão taylorista/fordista2 de produção, que vigorou na grande indústria durante todo o
século XX e que se baseava na produção em massa, a resposta capitalista para enfrentar tal
crise fez aumentar ainda mais o consumo das mercadorias que são determinadas pelo
sistema. Com a instauração do sistema toyotista, as mercadorias oferecidas para consumo
passaram a ser mais variadas e heterogêneas. Entretanto, mesmo que esse processo faça
com que na contemporaneidade exista a sensação de que as exigências mais
individualizadas são atendidas, essa sensação é ilusória, pois a produção se dá por
segmentos de mercado e os consumidores são enquadrados em categorias que achatam
suas singularidades.
Além de a livre escolha entre uma ampla variedade de mercadorias previamente
determinadas não significar liberdade, também não se oferece a possibilidade de não
consumir.
A “sociedade de consumidores”, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que promove, encoraja, reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas. Uma sociedade em que se adaptar aos preceitos da cultura de consumo e segui-los estritamente é, para todos os fins e propósitos práticos, a única escolha aprovada de maneira incondicional. (BAUMAN, 2008, p. 71)
Bauman (2008) explica que na sociedade caracterizada pelo consumo todos
precisam ser consumidores e que a participação ativa nos mercados de consumo é a
2 Os elementos constitutivos da crise taylorista/fordista de produção são de grande complexidade e envolvem
principal virtude que se espera dos cidadãos. O consumo não configura apenas um direito,
mas um dever humano que não conhece exceção. Acredita-se que corresponder ao
imperativo social de consumo dependa apenas da disposição e do desempenho individual,
e não consumir é considerado uma falha da pessoa. Independentemente de idade, sexo ou
classe social, quem não responder como consumidor irá se sentir inadequado, deficiente e
excluído. As pessoas que reagem de forma inadequada aos apelos dos mercados de bens de
consumo são “consumidores falhos” e consideradas desnecessárias para a sociedade de
consumidores.
Bauman (2008) acrescenta que, apesar do constante surgimento de novas
necessidades, o capitalismo de consumo deve seu sucesso não à satisfação de necessidades,
mas ao surgimento contínuo de novos desejos. Novas mercadorias exigem novos desejos.
A insaciabilidade dos desejos e a instabilidade da satisfação dos consumidores
harmonizam-se com o imperativo social de procurar recorrentemente a satisfação no
consumo de mercadorias.
O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros são instados a justificar seu mérito, é uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada “agora” sucessivo. (BAUMAN, 2008, p. 60)
Conforme Bauman (2008), a sociedade capitalista atual alega que a satisfação plena
de todos os desejos humanos é possível pela via do consumo. Porém, há uma contradição
nessa promessa de satisfação. É exatamente o fracasso na tentativa de satisfação que
permite a condução da sociedade caracterizada pelo incentivo ao consumo. Apesar de
prometer a satisfação plena, a sociedade atual prospera ao perpetuar a insatisfação. Sem a
repetida desilusão com os objetos adquiridos a demanda de consumo logo se esgotaria, e a
economia voltada para o consumo se extinguiria. Por essa razão, em concordância com
Safatle (2008), é possível chamar a sociedade contemporânea de sociedade da insatisfação
Bauman (2008) defende que um método para manter os consumidores insatisfeitos
é a rápida depreciação e desvalorização dos produtos. O consumismo envolve velocidade,
excesso e desperdício. “O verdadeiro ‘ciclo econômico’, aquele que de fato mantém a
economia em expansão, é o ciclo do ‘compre, desfrute e jogue-fora’” (BAUMAN, 2008, p.
126). Antunes (2009) explica que a necessidade de ampliar cada vez mais a produção e o
consumo de mercadorias trouxe a necessidade de reduzir o tempo de vida dos produtos. O
capitalismo avançado converteu-se em inimigo da durabilidade dos produtos, e o
desperdício, a destrutividade e a obsolescência tornaram-se seus traços determinantes.
Para Bauman (2008), no entanto, o que permite que a constante frustração com os
objetos de consumo não seja um impedimento para o fluxo dessa economia de insatisfação
é o excesso de mercadorias apresentadas aos consumidores. Segundo Bauman (2009), o
excesso de mercadorias oferecidas renova constantemente a promessa de satisfação e
impede que as constantes desilusões com os objetos adquiridos suprimam a vontade de
buscar por uma nova mercadoria. Se a mercadoria que trará a satisfação plena ainda não é
essa, a próxima a ser consumida o será.
A partir desse ponto podemos começar a circunscrever a proposta de nosso estudo,
que apresenta como teoria principal a psicanálise. Mesmo sem desconsiderar o
posicionamento sociológico de Bauman (2008), que traz o surgimento de novas
mercadorias como responsável pela renovação da busca por satisfação presente nos
consumidores, a proposta do presente trabalho é tentar entender como o sujeito teorizado
pela teoria psicanalítica lacaniana está implicado nesse processo que se apresenta na
sociedade caracterizada pelo consumo incessante de mercadorias. O capitalismo de
consumo depende de as necessidades e desejos dos consumidores não terem fim, e exige
que os mesmos se impulsionem numa busca incessante por um gozo pleno. Essa demanda
que a teoria psicanalítica, sobretudo a teoria sobre o supereu, pode auxiliar a entender essa
questão. A nosso ver, a insaciabilidade do desejo e a busca incessante por um gozo pleno
não é uma condição específica das pessoas que vivem em uma sociedade caracterizada
pelo consumo. Entendemos essas características de insatisfação e busca pelo gozo, que se
evidenciam na contemporaneidade, como uma condição estrutural do sujeito. Cabe, então,
mostrar de que maneira algo que remete à estrutura do sujeito, como o supereu, pode
auxiliar no entendimento de uma particularidade do capitalismo caracterizado pelo
consumo. Como algo da estrutura do sujeito se articula com um aspecto histórico?
Para delimitar melhor essa nossa posição teórica e nossa questão, entretanto,
convém dar um passo para trás e falar sobre a noção de sujeito que sustenta nossa
argumentação. Mesmo sem realizar uma abordagem exaustiva sobre o assunto, visto que o
conceito de sujeito não configura o foco dessa pesquisa, apresentaremos nossa concepção
sobre o sujeito da psicanálise.
Primeiro, é preciso esclarecer que o conceito de sujeito não foi explicitamente
trabalhado no decorrer da obra freudiana. Apenas indiretamente, ao se preocupar com o
inconsciente e ao teorizar a pulsão, Freud aborda o sujeito do inconsciente. Com o auxílio
do estudo realizado por Cabas (2009), é possível afirmar que os atos falhos, chistes,
repetições, lapsos, sonhos – que foram trabalhados por Freud como manifestações do
inconsciente –, por demonstrarem a existência de uma dimensão psíquica não coincidente
com a consciência, mostram a existência do sujeito do inconsciente, que posteriormente foi
teorizado por Lacan.
Lacan foi o responsável por colocar a noção de sujeito no coração da doutrina
psicanalítica3. Resumidamente, é possível afirmar que o sujeito teorizado por Lacan é uma
3 O sujeito em Lacan não é um conceito de entendimento fácil e não temos o objetivo de esmiuçar toda a
função. É uma função que se define por uma inconsistência radical e que não se resume ao
eu imaginário. Embora o imaginário e o simbólico enlacem essa inconsistência e lhe
ofereça sustentação, o simbólico não é capaz de significar todo o sujeito e há sempre algo
que escapa a esse enlace. Ao mesmo tempo que o significante representa o sujeito para
outro significante, ele não o significa, pois o sujeito é uma função que carece de
substância, seu substrato é vazio.
O sujeito é um efeito do significante, mas o que se impõe a partir da entrada na
ordem significante é que ele está igualmente determinado pelo real, por esse resto da
operação simbólica que denota o objeto perdido4. Esse objeto, resto da operação
significante, é o que permite a incidência da pulsão em sua insistência por satisfação e
gozo.
É possível entender, com o levantamento realizado por Cabas (2009), que o sujeito
da psicanálise tem uma dupla causação. Uma causação simbólica, onde o sujeito aparece
como efeito da demanda significante e se manifesta nos movimentos da cadeia, e uma
causação real, em que o sujeito aparece como resto da operação significante. O sujeito é o
ponto onde o real e o simbólico se cruzam.
Não estamos igualando o objeto perdido e a função do sujeito: o que afirmamos
com base em Cabas (2009) é que a causa do sujeito é congruente com o furo real. O sujeito
brota de um nada e é pelo fato de ter como base esse furo, esse nada de substância, que o
sujeito neurótico5 busca evitar se apropriar de sua inconsistência com o auxílio de ideais,
identificações e busca pelo gozo.
Com base nessas afirmações sobre o sujeito teorizado por Lacan, entendemos a
busca incessante por um gozo pleno e a impossibilidade de atingir tal gozo, que se
apresentam com evidência na contemporaneidade, como algo não-exclusivo da sociedade
4 O conceito de objeto perdido é abordado com mais ênfase no item 2.3.
5 Esclarecemos que apesar de Lacan ter teorizado também a estrutura perversa e a estrutura psicótica, esse
caracterizada pelo consumo, mas como uma característica inerente à estrutura do sujeito, e
por esse motivo trans-histórica. Concordamos com Cabas (2009) quando afirma que o
imperativo de gozo sempre existiu e que de forma nenhuma há um novo sujeito na
contemporaneidade.
Impõe-se, então, considerar a seguinte questão: as teorizações que dizem respeito
ao sujeito podem contribuir para a compreensão do capitalismo contemporâneo alicerçado
no consumo?
Nosso posicionamento é que o supereu é uma instância inerente à estrutura do
sujeito, que surge com a constituição do sujeito barrado e que, independentemente das
configurações sociais, aponta a falta do sujeito e ordena a busca pela impossível
restauração da falta, pelo gozo pleno6.
O problema é que esse posicionamento acarreta um impasse: se defendemos que o
supereu é estrutural do sujeito e, dessa forma, não depende das variáveis apresentadas na
objetividade histórica para existir, por que vislumbrar uma articulação entre ele e as
questões que se apresentam na sociedade?
Para lidar com essa questão e esclarecermos a relevância do conceito supereu na
reflexão sobre a sociedade contemporânea, achamos imprescindível lançar mão das
contribuições que Askofaré (2009) nos oferece a respeito da distinção entre sujeito e
subjetividade. Esse autor tem como pressuposto a importância de articular a noção
psicanalítica de sujeito e as considerações a respeito da história como processo. Ele propõe
que a noção de subjetividade, usualmente empregada em contextos teóricos não
psicanalíticos, deva ser utilizada para falar da relação que o sujeito estabelece com a
objetividade histórica. Para defender tal proposta, Askofaré (2009) cita o próprio Lacan
(1953b/1998), que no “Discurso de Roma” salienta a importância de o psicanalista
considerar a subjetividade de sua época. Em concordância com Lacan (1953b/1998),
Askofaré (2009) evoca pontos que possibilitam uma perspectiva de articulação entre a
estrutura do sujeito e a história. Um ponto que julgamos central é:
Esse Outro, do qual o inconsciente é o discurso, não se reduz aos pais; é o Outro do discurso universal que determina o inconsciente como transindividual. Ora, o Outro, entendido nesse sentido, ou seja, o simbólico, se ele é invariável em sua estrutura – aquela da linguagem –, é também submetido às mudanças, às mutações, às rupturas, às subversões. Quem pode contestar as mudanças introduzidas no Outro pelo advento do monoteísmo, a invenção da escrita, a emergência da ciência moderna e, mais recentemente, das biotecnologias e da informática?!(ASKOFARÉ, 2009, p.169)
Entendemos, com as contribuições de Askofaré (2009), que, apesar de a estrutura
do sujeito, como efeito do significante, ser sempre a mesma e não sofrer modificações a
partir de mudanças históricas, o Outro7 se modifica conforme as características específicas
de cada época.
Segundo Askofaré (2009), a noção de subjetividade tem como base as modificações
sofridas pelo Outro. O conceito de Outro permite, mesmo sem ignorar a universalidade da
estrutura do sujeito, pensar na relação que este estabelece com a objetividade histórica.
Amparados no ensinamento de Askofaré (2009) de que o Outro é invariável em sua
estrutura simbólica, mas que sofre mutações conforme as características de cada época,
compreendemos que o ideal do Outro na contemporaneidade sofre influência do
capitalismo de consumo. É com base nesse pressuposto teórico que julgamos relevante
pensar o supereu, instância estrutural do sujeito, na sociedade que tem o consumo como
ideal a ser seguido.
Na presente pesquisa defendemos a ideia de que na contemporaneidade o consumo
tem atuado como ideal do Outro, e nos questionamos como podemos pensar a articulação
entre o supereu, instância estrutural do sujeito que atua vigiando e impelindo o sujeito a
buscar o gozo pleno, e o contingente histórico atual que elege o consumo como o ideal que
todos devem seguir. Como se dá a articulação entre supereu, como estrutural do sujeito, e o
consumo como ideal do Outro?
Nossa questão deixa claro que partimos do posicionamento de que o supereu é
estrutural do sujeito. Compreendemos que as teorias freudianas e lacanianas são
trans-históricas e que a definição de supereu como imperativo de gozo fala de uma característica
estrutural do sujeito. Entretanto, é preciso destacar que sustentar nossa posição não é uma
tarefa tão fácil. O conceito supereu é vastamente utilizado para o estudo das interlocuções
entre psicanálise e sociedade, e é possível encontrar estudiosos que argumentam que o
supereu sofre modificações conforme mudanças na sociedade. Por exemplo, no texto “A
obsolescência da psicanálise”, Marcuse (1965/1998) afirma que, em decorrência de
mudanças no papel social da imago paterna, a definição freudiana de supereu se tornou
obsoleta na sociedade atual.
Nosso posicionamento teórico não coincide com o do autor citado. Conforme já
salientamos, compreendemos que o supereu, por ser estrutural do sujeito, não sofre
alterações em sua estrutura de imperativo a partir de modificações nas formas de
socialização. Parafraseando Cabas (2009), nossa concepção é que o supereu sempre
existiu, continua existindo, e que de forma nenhuma há uma nova estrutura do supereu na
contemporaneidade. A nosso ver, as mudanças na sociedade influenciam o ideal do Outro.
Não desprezando a importância do uso do conceito supereu para o estudo da
sociedade, concordamos com Pacheco Filho (2009):
Entendo que a noção utilizada por inúmeros autores de “imperativo de gozo” pode manter sua pertinência para caracterizar a mudança nos processos de socialização observada na passagem do “capitalismo de produção” para o “capitalismo de consumo”, desde que despida de pretensas alusões a uma (falsa) falência da “função paterna” e de uma (igualmente falsa) alteração estrutural do sujeito. (PACHECO FILHO, 2009, p. 154).
Conceber que a estrutura do supereu se modifica, ou que ele deixa de existir,
paterna talvez seja resultado das lacunas e reformulações encontradas na teoria sobre esse
conceito. Em decorrência do elevado interesse pelo assunto, o tema de minha monografia
de conclusão do curso de especialização em Psicologia Clínica8 foi o supereu. Ao longo
desse prévio trabalho, foi feita uma breve revisão desse termo psicanalítico tanto na obra
de Sigmund Freud quanto na obra de Jacques Lacan. Apesar de o caráter breve da pesquisa
não ter permitido contemplar todo o aprofundamento que a abordagem do supereu
demanda e de não termos explorado as aberturas que o mesmo possibilita para o estudo da
sociedade, foi possível constatar que a teoria sobre o supereu envolve enigmas, mistérios,
lacunas e reformulações. Tanto em Freud como em Lacan, a teoria sobre o supereu, assim
como outros conceitos psicanalíticos, não se apresenta de forma clara e linear, o que torna
a abordagem dessa instância psíquica complexa e passível de conclusões precipitadas e de
mal-entendidos.
Muitas afirmações a respeito do supereu podem decorrer de uma leitura pouco
rigorosa e por vezes equivocada das formulações de Freud e Lacan. As lacunas, as
reformulações, os entraves teóricos e os mistérios que enlaçam esse conceito podem
permitir interpretações não convergentes com os postulados desses teóricos. Por esse
motivo, não vemos como defender que o supereu é estrutural do sujeito e realizar uma
articulação com a sociedade contemporânea, com base nesse pressuposto, sem partir de um
acompanhamento cronológico das principais teorizações freudianas e lacanianas sobre esse
conceito.
A pretensão não é resolver os paradoxos e mistérios que envolvem o supereu e
excluímos qualquer tentativa de síntese definitiva. No entanto, reler o supereu em Freud e
levantar as contribuições de Lacan, além de possibilitar a compreensão das teorizações
8 Curso iniciado em 2006 e finalizado em 2008. Realizado na Coordenadoria Geral de Especialização,
sobre esse conceito, permitirá que nossa discussão apresente um rigor teórico condizente
com os postulados desses teóricos.
Salientamos que nossa pesquisa não abrange todo o ensino lacaniano. Mesmo
conhecendo a relevância dos seminários mais tardios para o estudo da sociedade, em
decorrência da complexidade e do restrito período de realização do estudo, não utilizamos
os ensinamentos lacanianos posteriores a 1964, ano de apresentação do Seminário 11, “Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise”.
Nos primeiros capítulos, apesar de não termos como objetivo o esgotamento de
todas as elaborações freudianas e lacanianas sobre o tema, nem termos a pretensão de
apresentar de maneira sistemática todos os momentos em que esses autores citam o
conceito que estamos tratando (como já afirmamos, nos restringimos às formulações
lacanianas até o ano de 1964), buscamos acompanhar o percurso que Freud e Lacan
traçaram em suas abordagens sobre o supereu.
No capítulo inicial apresentamos algumas considerações relevantes sobre o supereu
em Freud e deixamos claro como o conceito foi passando por constantes impasses e
reformulações no decorrer da teoria freudiana. Procuramos levantar textos que alicerçaram
a formulação do conceito freudiano e, em seguida, apresentamos o texto “O eu e o isso”
como o marco freudiano da apresentação dessa instância psíquica. Também falamos sobre
a relação do supereu com a cultura a partir de “O mal-estar na civilização”; e discutimos a
questão do pai, devido à sua importância para pensar o supereu. Finalizamos o capítulo
pontuando as manifestações dessa instância psíquica, descritas por Freud enfaticamente na
culpa. Trabalhamos nesse capítulo noções como ideal de eu, identificação, pai e culpa.
No segundo capítulo demonstramos as valiosas contribuições que Lacan oferece
sobre o supereu durante seus diferentes momentos teóricos. Apresentamos como esse autor
descrevemos como tais elaborações são superadas no seu período mais estruturalista. Além
disso, sem ultrapassar o ano de 1964, tentamos situar os avanços ocasionados à noção de
supereu no momento em que Lacan foca suas elaborações sobre o real, época em que
qualifica o supereu como objeto a.
No terceiro e último capítulo, amparados no levantamento teórico realizado,
situamos a relação entre supereu e sociedade e buscamos pensar o supereu como instância
estrutural do sujeito, que atua vigiando e impondo a busca pelo gozo pleno, no contingente
histórico atual, que elege o consumo como o ideal que todos devem seguir. Como
encontramos comentadores das teorias de Freud e de Lacan que buscam articular o
conceito supereu com a sociedade contemporânea, não ignoramos as produções já
existentes. Buscamos realizar nossa discussão considerando reflexões realizadas por
autores atuais. Fazemos uso das contribuições oferecidas por autores como Pacheco Filho,
Ramos e Quinet.
O intuito não é esmiuçar toda a complexidade da sociedade contemporânea e não
visamos o aprofundamento de uma teoria social. Nosso campo privilegiado de estudo é
psicanálise e tomamos a mesma como a teoria principal dessa pesquisa. Nesse ponto,
concordamos com Safatle:
Não se trata nesses casos de incorrer em alguma espécie de déficit sociológico, mas insistir que nenhuma perspectiva sociológica pode abrir mão de compreender a maneira como os sujeitos investem libidinalmente os vínculos sociais, mobilizando com isso representações imaginárias e expectativas de satisfação que muitas vezes acabam por inverter o sentido de determinações normativas que visam racionalizar tais vínculos. (SAFATLE, 2008, p. 114)
Nosso objetivo principal é explorar a teorização do conceito supereu e tentar
compreender questões relacionadas à sociedade caracterizada pelo consumo à luz da teoria
sobre essa instância psíquica. Esse estudo é relevante, pois a teoria psicanalítica sobre o
supereu pode auxiliar a entender como o sujeito está implicado no processo de dominação
supereu como estrutural do sujeito e o ideal de consumo da sociedade oferece
contribuições para pensar a sociedade e a subjetividade na contemporaneidade.
CAPÍTULO 1: Considerações sobre o supereu em Freud
1.1.Primeiros fragmentos do supereu em Freud
Pretendemos neste primeiro momento do trabalho trazer um breve panorama de
algumas formulações teóricas que precederam a elaboração do conceito supereu. Apesar de
esse conceito ter sido utilizado pela primeira vez na segunda tópica freudiana, resgatar
algumas bases clínicas e teóricas que alicerçaram o surgimento dessa instância psíquica e
pontuar alguns impasses encontrados nesse processo, permitirá não apenas refletir sobre a
evolução desse conceito na obra freudiana, mas também pensar as bases que nutriram
Lacan para a realização de seus próprios pareceres sobre o assunto.
Apesar de a nomenclatura supereu ter aparecido pela primeira vez em 1923, no
texto “O eu e o isso”, desde o começo da psicanálise é proposta uma clínica que mostra
claramente a incidência do que posteriormente Freud passou a chamar de supereu. Os
primeiros casos clínicos freudianos, que vão de 1886 a 1897, ressaltam a
autorrecriminação, a severidade da consciência moral e a culpabilidade das neuroses
obsessivas; a posição de vítima e o avassalamento do eu na histeria; o delírio de
perseguição e de ser notado na paranoia; e o impedimento compulsivo na fobia. Todas
essas manifestações clínicas podem ser consideradas fundamentais para o desenvolvimento
da teoria sobre a instância psíquica intitulada supereu.
Mesmo sabendo que os fenômenos observados na histeria, na fobia e na paranoia
também são precursores do desenvolvimento do conceito supereu, ressaltamos a
importância da clínica da obsessão. Em seu estudo sobre atos obsessivos, Freud
(1907/1980) realiza uma minuciosa investigação sobre as causas que movem a
autorreprovação e a culpa, termos futuramente ligados à manifestação do supereu. No texto
compulsivas o sistema simbólico perde sua eficácia, há algo que transcende o desejo,
obtura a lógica. Nesse texto, Freud inaugura o eixo conceitual que permitirá falar
posteriormente de consciência de culpabilidade inconsciente. Quem sofre de compulsões e
proibições se comporta como se estivesse sob uma consciência de culpa sobre a qual nada
sabe. Por trazer a ideia de uma consciência de culpa inconsciente, o texto acima citado
possibilita pensar uma das manifestações que futuramente foi atribuída ao supereu.
No texto “Totem e tabu” (1913/1980), esses questionamentos iniciais sobre a culpa
foram claramente relacionados à lei que proíbe o desejo incestuoso e o parricida. Nesse
texto, através do mito do assassinato do pai primitivo, Freud mostra que o fundamento da
lei é a lei da proibição do incesto. As mais antigas e importantes proibições ligadas aos
tabus são as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações
sexuais com membros do mesmo clã totêmico.
Gerez-Ambertín (2003) ressalta nesse mito freudiano sobre a origem da cultura9 os
pontos que considera precursores da constelação supereuoica10: 1. Após seu assassinato, o
pai morto volta mais forte do que foi em vida. A incorporação canibalística do pai pelos
filhos proporciona uma identificação por incorporação, e o que o pai proibia com sua
existência os filhos passam a proibir em seus psiquismos; 2. O retorno do pai morto
instaura o arrependimento e a culpa nos irmãos. O sistema totêmico é um pacto com o pai
morto, no qual, obedecendo a seus preceitos, os filhos obtêm amparo e indulgência; 3. O
arrependimento e a culpa são comuns nos filhos e sustentam os dois tabus fundamentais do
totemismo: não matar o pai e não manter relações sexuais com os membros do sexo oposto
9 Na horda primitiva, o pai primordial todo-poderoso que exercia total poder sobre o clã, possuindo todas as
fêmeas e matando ou expulsando os outros machos, é assassinado e devorado pelos filhos. A partir de então esses filhos fazem um pacto no qual nenhum membro do clã exerceria esse poder supremo novamente.
10 Usaremos a nomenclatura instância supereuoica para nos referirmos ao supereu. Como já salientado na
pertencentes ao mesmo clã11. 4. O pai terrível não é aniquilado por completo no pacto entre
os irmãos, sobra um resto, um espectro do pai morto que ameaça retornar. Há um resíduo
real do pai primordial que não se torna símbolo, e esse resto do pai gera o temor por seu
retorno. Assim, há uma ambivalência em relação ao pai. O pai tanto protege e preserva a
vida como ataca e leva à morte. Esse resto real do pai morto age como um comando.
Podemos pensar que todos esses fundamentos apresentados por Freud em “Totem e Tabu”
serviram como base para posteriores desenvolvimentos sobre o supereu.
Em “Totem e tabu” (1913/1980), Freud estabelece a hipótese do Totem como
determinante dos laços sociais e do Tabu como responsável pela moralidade. Segundo tal
premissa, o tabu atuaria como um imperativo insensato12 que deve ser seguido rigidamente
para não implicar castigos. Para Freud (1913/1980), a consciência moral do tabu é a forma
mais antiga da consciência moral. Esta se manifestaria como uma voz interior
confrontando a parte desejante do eu.
A questão de uma voz interior que aponta uma divisão do eu contra si mesmo é
trabalhada por Freud no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1980) 13. Nesse
texto Freud traz o conceito de ideal de eu e formula uma base que posteriormente lhe
permitirá a constituição da instância supereuoica. O ideal do eu é considerado a projeção
de uma imagem ideal que surge como substituto ao narcisismo perdido da infância, no qual
o sujeito era o próprio ideal. A formação desse ideal de eu é ocasionada pelo deslocamento
da libido para um ideal vindo de fora, que surge da influência crítica dos pais e educadores
(transmitida, sobretudo, pela voz) e de fatores sociais como os ideais da família e da
sociedade.
11 Essas imposições são consideradas raízes do complexo de Édipo, que se ancora nas proibições do incesto e
do parricídio.
12 Nesse texto Freud faz referência ao imperativo categórico kantiano.
13 Apesar de esse texto trazer formulações teóricas relevantes como as sobre o narcisismo primário,
O conceito de ideal de eu pode ser considerado fundamental para a elaboração da
noção de supereu. No texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1980), Freud
aponta que a formação do ideal de eu permite a atuação de um sensor crítico que compara
o eu e o ideal, sensor este, responsável pela autocrítica e pela censura. Mesmo que nesse
momento teórico o supereu ainda não estivesse definido, a relação entre o ideal de eu e a
estruturação do conceito supereu é salientada em uma nota de rodapé apresentada nesse
texto14. Tal nota afirma que foi a combinação do ideal de eu com um agente psíquico que
observa constantemente o eu que possibilitou a Freud sua futura elaboração sobre o
supereu.
A atuação desse censor crítico, que atua censurando o eu e aparece, muitas vezes,
nos delírios de insignificância e na consciência moral, permite pensar a divisão do sujeito
contra si mesmo apresentada no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914). Essa
cisão do sujeito contra si mesmo, que permitirá a formulação do conceito supereu, também
é retomada e aprofundada no texto “Luto e melancolia” (1915/1980). Ao se referir à
perturbação do melancólico15, Freud aponta que na melancolia uma parte do eu se
contrapõe à outra, julga-a criticamente, toma-a por objeto. Isso sugere a existência de uma
instância crítica que faz parte do eu, mas atua de forma separada do eu, contra o próprio eu.
A ideia da existência de um sensor que atua de forma crítica no interior do aparelho
psíquico mostra a atuação do supereu, mesmo que este ainda não tenha sido nomeado. O
problema é que nesse período de elaborações teóricas que antecedem a formulação do
supereu é possível visualizar certa confusão entre a instância que critica o eu e o ideal de
eu. Na obra freudiana, sobretudo em textos anteriores a 1923, como “Psicologia das massas
14 Transcrição literal da nota de rodapé apresentada no texto Sobre o narcisismo: uma introdução: “Foi da
combinação entre esse agente e o ideal do ego que Freud posteriormente deduziu o supereu. Cf. Capítulo XI de Group Psychology (1921c) e o Capítulo II de The Ego and the Id (1923b)”
15 No texto Luto e melancolia Freud não restringe a atuação da instância crítica à melancolia, apontando a
e a análise do eu” (1921/1980), o ideal de eu é descrito como uma instância que compara o
eu e o critica a partir de seu modelo. Mesmo que o ideal de eu não atue com uma crítica
cruel e desmedida como o supereu, isso ilustra como em momentos da obra freudiana a
diferença entre ideal de eu e a instância responsável pela crítica não fica tão clara.
No texto freudiano “Psicologia das massas e a análise do eu” (1921/1980), a função
de criticar o eu, que futuramente é atribuída ao supereu, é considerada um atributo do ideal
de eu. Neste texto, Freud (1921/1980) retoma que as melancolias mostram o eu divido em
duas partes, uma vociferando contra a outra. Freud (1921/1980) afirma que a parte que se
comporta cruelmente contra a outra pode ser chamada de ideal de eu, e tem como funções
a auto-observação e a consciência moral.
É possível observar que no processo teórico que culminou na elaboração do
conceito supereu a diferença entre a instância responsável pela crítica e o ideal de eu foi
um tanto nebulosa. A dificuldade no período de germinação dessa categoria psicanalítica
não foi sem efeitos. No texto “O eu e o isso”, de 1923, onde ocorre a formulação da
instância supereuoica, Freud não faz nenhuma diferenciação entre supereu e ideal de eu,
ambos os conceitos são apresentados como sinônimos. Além disso, no decorrer de sua obra
são observadas tentativas de aproximação e diferenciação entre ambos.
Voltaremos a tratar dessa questão nos itens posteriores deste trabalho. Por hora,
essa tentativa de levantamento de alguns antecedentes teóricos do supereu e a pontuação de
indícios que sugerem uma confusão entre ele e o ideal de eu ilustra o quanto desde sua
1.2.A formulação do supereu na teoria freudiana
Em 1923, Freud publica “O eu e o isso”, texto que, como já mencionamos
anteriormente, representa um marco na construção teórica do supereu. É nesse texto que o
supereu alcança sua nomeação e uma posição clara no aparelho psíquico.
Até 1923, Freud situava a organização do aparelho psíquico conforme sua primeira
tópica, ou seja, o psiquismo estaria dividido em: consciente, pré-consciente e inconsciente.
Nessa primeira tópica, a concepção de que conteúdos mentais produziriam efeitos
poderosos, mesmo não estando conscientes, é o que permite pensar em inconsciente. Esse
conceito de inconsciente é obtido a partir da teoria do recalque, na qual existiriam ideias
impedidas de tornarem-se conscientes por uma força que se oporia a elas. De forma
simplificada, podemos afirmar que nessa primeira tópica o inconsciente seria o recalcado,
o pré-consciente seria o latente – passível de ser trazido à consciência pela memória – e o
consciente seria a superfície do aparelho mental, ligado à percepção.
Entretanto, com o seguimento de seus estudos, Freud passa a perceber que essa
divisão do aparelho psíquico em consciente, pré-consciente e inconsciente é insuficiente
para os fins práticos da clínica. Ele apresenta, então, sua segunda tópica, na qual expõe
uma nova organização dos processos mentais e estabelece a existência de três instâncias:
eu, isso e supereu.
O eu seria a instância psíquica mais ligada à consciência e realizaria recalques para
excluir certos conteúdos da mente. Porém, Freud depara-se com algo desse eu que é
inconsciente, que se comportaria exatamente como o recalcado, ou seja, produziria efeitos
mesmo não sendo consciente. Essa descoberta traz consequências importantes para a
concepção de inconsciente. O inconsciente passa a não ser sinônimo de recalcado, mesmo
que o recalcado seja inconsciente. Nem tudo que é inconsciente é recalcado, uma parte do
Freud delimita então que o eu tem início no sistema perceptivo, abrange o
pré-consciente que está relacionado aos resíduos mnêmicos e tem uma parte que é
inconsciente. Para explicar a existência de uma parte do eu que é inconsciente, Freud traz à
tona a questão do “isso”. Ele propõe a existência de um isso psíquico, desconhecido,
inconsciente e relacionado às pulsões, sobre cuja superfície repousaria o eu, desenvolvido a
partir do sistema perceptivo. O eu não se encontraria nitidamente separado do isso, ele
seria a parte do isso modificada pela influência do mundo externo, pelo intermédio do
sistema perceptivo.
No entanto, essa formulação teórica não é tão simples assim. Freud prossegue
formulando a existência de uma parte diferenciada do eu e a denomina supereu, que, nesse
primeiro momento, é concebida como sinônimo de ideal de eu16.
Para explicar como o supereu se forma, Freud retoma a ideia, já tratada neste
trabalho ao citarmos o texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1980), de que o
ideal de eu17 é efeito das primeiras identificações da infância. Ele aponta que por trás do
ideal de eu está a identificação com o pai. Afirma que a fase sexual denominada complexo
de Édipo culmina na identificação do filho com o pai e, desse processo, surge o supereu.
Essa concepção freudiana aponta o supereu como herdeiro do complexo de Édipo,
ou seja, ao término desse complexo surge a instância supereuoica. Para compreendermos
essa relação, convém falarmos um pouco mais sobre esse complexo, que atravessa toda
obra freudiana e pode ser considerado a pedra angular da teoria psicanalítica.
Conforme Faria (2003), o complexo de Édipo freudiano consiste num momento
organizador do desenvolvimento sexual infantil. Sua descrição baseia-se em três premissas
16 É importante ressaltar o quanto, nesse texto de 1923, Freud fala do supereu e ideal de eu de forma
indiscriminada e não há ainda a precisa diferenciação que é apontada em textos freudianos posteriores. Para acompanhar o pensamento freudiano, optamos, nesse momento, por seguir com a concepção de supereu e ideal de eu como sendo a mesma coisa.
17 No texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914) o termo supereu ainda não havia sido formulado
universais, pontuadas por Freud em seus primeiros textos: a existência da sexualidade
infantil, a primazia fálica e o fato de a mãe ser o primeiro objeto de amor da criança,
independentemente do sexo. A existência da sexualidade infantil é exposta por Freud em
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1980), texto em que a criança é descrita
como perversa-polimorfa, e a primazia fálica se caracteriza pela ideia infantil de que todos,
inclusive as mulheres, possuem pênis.
É com base nesses pressupostos que Freud desenvolve sua teoria sobre o Édipo,
presente em seu texto “A dissolução do complexo de Édipo” (1924/1980). Nesse texto ele
aponta que na fase fálica18 o menino desenvolve uma atividade masturbatória intensa e isso
acarreta em ameaças de castração por parte dos adultos. Essas ameaças, que primeiramente
não geram efeitos na criança e são desconsideradas, quando num momento posterior são
resignificadas pela visão do órgão sexual feminino, permitem o estabelecimento na criança
do que Freud designa por complexo de castração. Segundo Faria (2003), a primazia fálica,
por supor a presença de pênis em todos os seres, é uma forma de articulação da questão
sexual na qual a criança se esquiva da problemática da falta do órgão sexual. O que o
complexo de castração evidencia é a inverossimilhança da premissa fálica, uma vez que há
falta do pênis na mulher. “A criança passa a ter que lidar com a evidência, a partir do
complexo de castração, de que há falta, o que para ela passa a indicar que há presença, mas
também ausência.” (FARIA, 2003, p. 36)
A partir do complexo de castração a criança se confronta com a ideia de que o pênis
é algo que pode faltar, e essa possibilidade exige um posicionamento que consiste na saída
do complexo de Édipo. De acordo com Freud (1924/1980), a criança depara-se com um
impasse: sua satisfação no campo do complexo de Édipo pode custar-lhe o pênis. Diante
disso, ela deve decidir se prefere manter seu investimento narcísico no pênis ou a catexia
18 A fase fálica consiste no período em que ocorre uma concentração das catexias libidinais da criança em seu
libidinal em seus objetos parentais. Nesse conflito, normalmente triunfa o desejo de manter
o pênis, e o eu da criança volta as costas ao complexo de Édipo. Normalmente o menino,
com intenção de preservar seu pênis, abandona a atividade masturbatória e afasta-se de sua
mãe como objeto de amor.
Conforme Faria (2003), essa solução do complexo edípico permite ao menino
identificar-se ao pai. Desse processo, decorre a formação do supereu. De acordo com Freud
(1924/1980), as catexias de objeto são abandonadas e substituídas por identificações. Para
Freud (1924/1980), ao término do complexo de Édipo, a autoridade do pai é introjetada no
eu e permite a formação do núcleo do supereu. Nesse processo o supereu assume a
severidade do pai e perpetua a proibição do incesto. As tendências libidinais pertencentes
ao complexo de Édipo são, em parte, dessexualizadas e sublimadas e, em parte, são
inibidas em seu objetivo e transformadas em impulsos de afeição. Esse processo introduz o
período de latência, no qual o desenvolvimento sexual da criança tem uma interrupção.
A partir desse texto de 1924, Freud vincula organização fálica, complexo de Édipo,
ameaça de castração, formação do supereu e período de latência. Entretanto, salienta-se
que o processo até aqui descrito se refere, como foi expressamente dito, somente a crianças
do sexo masculino, ficando em aberto a questão do complexo de Édipo e da formação do
supereu nas meninas.
De acordo com Freud (1924/1980), também o sexo feminino desenvolve um
complexo de Édipo, um supereu e um período de latência. Além disso, no caso da menina,
a mãe também é o primeiro objeto de amor e há a primazia fálica inicial, na qual a menina
concebe o clitóris como um pênis que irá crescer. O clitóris na menina inicialmente
comporta-se exatamente como um pênis, porém quando ela efetua uma comparação com
uma criança do sexo masculino, a menina percebe que seu “pênis” é “pequeno” e sente isso
seu “pênis” crescerá. A criança do sexo feminino não entende sua falta de pênis como uma
característica de sua sexualidade, acredita que em alguma época anterior possuía um órgão
igualmente grande, mas que o perdeu por castração. Por essa razão a menina aceita a
castração como um fato consumado, diferentemente do menino, que teme a possibilidade
de sua ocorrência.
Entretanto, Freud (1924/1980) aponta que a renúncia ao pênis não é tolerada pela
menina sem alguma tentativa de compensação. Ela faz uma equação simbólica do pênis
para o bebê, ou seja, seu complexo de Édipo culmina em um desejo de receber do pai um
bebê como presente. A menina entra no complexo de Édipo ao perceber-se castrada e esse
processo é gradativamente abandonado, visto que esse desejo jamais se realiza. Porém,
Freud não deixa de admitir que a compreensão do Édipo da menina é insatisfatória,
incompleta e vaga.
Em seus textos posteriores “Sexualidade feminina” (1931/1980) e “Feminilidade”
(1932/1980), Freud acrescenta algumas formulações sobre o complexo de Édipo feminino
e o divide em duas etapas. Na primeira, compatível ao Édipo do menino, a mãe é o objeto
de amor e o clitóris a zona erógena. Já na segunda fase, o pai passa a ser o objeto de amor e
a vagina a zona erógena.
Conforme Faria (2003), a questão anatômica não pode ser ignorada ao pensar as
diferenças entre o complexo de Édipo feminino e masculino. Como a menina não tem
pênis, ela não pode temer sua perda, assim, o que caracteriza o complexo de castração na
mulher é a constatação de que ela foi feita sem o objeto que ela tanto valoriza e o
surgimento da inveja do pênis.
A decepção de não ter um pênis leva ao abandono da mãe como objeto de amor, e
essa passa a ser odiada por ter feito a filha desprovida de pênis. Esse afastamento em
nesse momento que a criança do sexo feminino passa a esperar receber um bebê de seu pai
como objeto simbólico substituto do pênis que não tem. (FARIA, 2003)
Citando Freud, Faria (2003) acrescenta que a saída normal do Édipo feminino deixa
quase sem solução o surgimento do supereu feminino: “A castração, não tendo sido uma
ameaça nem uma imposição que gera temor, teria uma eficácia frágil na formação do
superego feminino e, consequentemente, na inserção da menina na cultura.” (FARIA,
2003, p. 42)
É segundo essa concepção que no seu texto “Algumas consequências psíquicas da
distinção anatômica entre os sexos”, Freud (1925), em decorrência da dificuldade na
dissolução do Édipo feminino, propõe que o supereu feminino não é tão independente de
suas origens emocionais como ocorre nos homens. Por isso, as mulheres demonstrariam
menor senso de justiça do que os homens, tendo seus julgamentos influenciados por
sentimentos de afeição e hostilidade.
Apesar dessas diferenças entre o complexo de Édipo na mulher e no homem, não se
pode ignorar a importância que Freud atribui a esse processo na formação do supereu.
Além disso, salientamos que os impasses decorrentes desse complexo são simplesmente
uma vertente que permite indagações sobre a formação do supereu. No texto “O eu e o
isso” (1923/1980), mesmo considerando a relação entre a constituição do supereu e o
complexo edípico, Freud não restringe o supereu como possuindo uma única origem.
Nesse texto de 1923, encontramos uma formulação bastante intrigante a respeito do
supereu: além de ele ser herdeiro do complexo de Édipo, ele também é um representante
do isso.
É possível constatar que o supereu congrega as forças do isso ao observarmos o
caráter compulsivo dessa instância, a qual se manifesta como um imperativo categórico.
e as vicissitudes libidinais do isso. O supereu é, para Freud (1923/1980), o representante do
isso, e essa relação entre o supereu e os impulsos instintuais do inconsciente soluciona o
enigma de como os conteúdos do supereu podem permanecer inconscientes e inacessíveis
ao eu.
Partindo dessas formulações, é possível concluir que, em seu texto de 1923, Freud
procura um lugar para o supereu no aparelho psíquico e tenta traçar um parentesco dessa
instância psíquica com o isso e com o complexo de Édipo. O que fica em aberto nesse
texto, entretanto, é a relação do supereu com a cultura, o que Freud traz mais enfaticamente
ao formular “O mal-estar na civilização” (1930/1980). Texto que abordaremos no próximo
item desse trabalho.
1.3. Supereu e cultura
No texto “O mal-estar na civilização” (1930/1980), Freud retoma algumas
formulações sobre o supereu expostas no texto “O eu e o isso” (1923/1980) e as relaciona
com a formação da cultura. Defende a tese de que a renúncia pulsional exigida pela cultura
ocasiona a formação do supereu.
Entretanto, antes de falar sobre a renúncia pulsional convém contextualizar o
conceito de pulsão, visto que pulsão configura uma elaboração freudiana que se tornou um
dos conceitos básicos da psicanálise e que sofre reformulações na obra de Freud. No texto
“Pulsão e seus destinos” (1915/1980), Freud descreve pulsão como sendo um conceito
situado na fronteira entre o mental e o somático. Pontua como suas principais
características: sua origem em fontes de estimulação dentro do organismo e seu
aparecimento como força constante.
Freud (1915/1980) descreve a pulsão como possuindo uma pressão (Drang), uma
quantidade de força que ela apresenta; sua finalidade é a satisfação, que é obtida
eliminando o estado de estimulação na fonte; a fonte é o processo somático que ocorre
num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental; e o objeto da
pulsão é a coisa pela qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade, é o que é mais variável
em uma pulsão e, originalmente, não está ligado a ela, podendo ser inúmeras vezes
modificado.
Nesse texto de 1915, Freud propõe a distinção da pulsão em pulsões de
autopreservação e as pulsões sexuais. O autor coloca essas pulsões como funcionando sob
o domínio do princípio do prazer. Entretanto, no texto “Além do princípio do prazer”
(1920), Freud traz reformulações sobre sua teoria pulsional e ultrapassa a divisão entre
pulsões sexuais e de autopreservação. Estabelece a existência de duas pulsões no humano:
a pulsão de vida e a pulsão de morte. Afirma que, ao lado da pulsão que busca preservar a
vida e formar unidades cada vez maiores, há outra pulsão que busca dissolver essas
unidades e conduzir o organismo de volta a seu estado primevo e inorgânico. Esse texto de
1920 possibilitou que os fenômenos do humano pudessem ser explicados pela ação dessas
duas pulsões. Surge a ideia de que uma parte da pulsão de morte é direcionada ao mundo
externo, aparecendo como um instinto de agressividade e destrutividade, e de que qualquer
restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição.
É a partir desse texto de 1920 que Freud passa a falar sobre a renúncia pulsional,
que possibilitará relacionar o supereu e a cultura em “O mal-estar na civilização”
(1930/1980). A partir das formulações apresentadas em “Além do princípio do prazer”,
Freud (1930/1980) adota o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui no
homem uma disposição pulsional original e de que esta é o maior impedimento à
civilização. De acordo com Freud, a civilização constitui um processo a serviço da pulsão
unidade da humanidade. Mas a pulsão de morte do homem se opõe a esse programa da
civilização.
Com esse retorno ao “Além do princípio de prazer” (1920/1980), Freud postula que
o significado da evolução da civilização representa a luta entre Eros e a Morte, ou seja,
entre pulsão de vida e pulsão de morte. De acordo com Freud (1930/1980), a civilização é
construída sobre uma renúncia à pulsão. Essa questão já aparecia no texto “Totem e tabu”
(1913/1980), que apresenta a cultura totêmica baseada em restrições impostas mutuamente
entre os filhos, os quais se privam da realização do desejo sexual incestuoso. Para Freud, a
proibição de uma escolha de objeto incestuosa constitui a mutilação mais drástica que a
vida erótica do homem já experimentou. Por essa razão, a tendência por parte da
civilização em restringir suas pulsões não pode ser vista como desvinculada da necessidade
de ampliar a unidade cultural.
Como a existência da civilização requer a vigência de normas que impeçam a total
realização da vida sexual e pulsional, o desenvolvimento da civilização impõe restrições à
liberdade e à agressão. Mas surgem as questões: quais os meios que a civilização utiliza
para inibir a agressividade? O que acontece no humano para tornar a agressividade
inofensiva ou inócua?
Freud aponta que a agressividade é introjetada, internalizada, enviada para o lugar
de onde proveio. Ou seja, dirigida para o eu. É a partir desse ponto que podemos retomar
nossa discussão sobre o supereu, pois, de acordo com Freud (1930/1980), a agressividade
que se dirige ao eu é o que permite a formação do supereu. A agressividade é assumida por
uma parte do eu, que se coloca contra o resto do eu, como supereu. Conforme
Gerez-Ambertín (2003), a repressão da agressividade realizada como pagamento pela entrada na
cultura resulta na instauração de um “co-mandante” que passa a coagir desde o interior. A