PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP
FACULDADE DE DIREITO
CAROLINA ASSED FERREIRA
A PRIVATIZAÇÃO DA GUERRA E SEUS IMPACTOS NO DIREITO
INTERNACIONAL HUMANITÁRIO
DOUTORADO EM DIREITO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP
FACULDADE DE DIREITO
CAROLINA ASSED FERREIRA
A PRIVATIZAÇÃO DA GUERRA E SEUS IMPACTOS NO DIREITO
INTERNACIONAL HUMANITÁRIO
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito, na área Direito das Relações Sociais, sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães.
BANCA EXAMINADORA
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Agradecimentos
Ao meu orientador Prof. Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães, sem o qual este trabalho seria inviável.
Aos funcionários da Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pela atenção dispensada nestes anos de curso.
Ao meu irmão Gustavo Assed Ferreira e à Mônica Teresa Costa Sousa pelas horas dispensadas a esta tese.
“Posto diante de todos estes homens reunidos, de
todas estas mulheres, de todas estas crianças (e
Deus) falando à multidão, anunciou: ‘A partir de hoje
chamar-me-eis Justiça’. E a multidão respondeu-lhe:
“Justiça, já nós a temos, e não nos atende”. Disse
Deus: ‘Sendo assim, tomarei o nome Direito.’ E a
multidão tornou a responder-lhe: ‘Direito, já nós o
temos, e não nos conhece’. E Deus: ‘Nesse caso,
ficarei com o nome Caridade, que é um nome bonito.’
Disse a multidão: ‘Não necessitamos de caridade, o
que queremos é uma Justiça que se cumpra e um
Direito que nos respeite”.
RESUMO
O presente trabalho é uma análise do tema da privatização da guerra, por meio da atuação de empresas militares privadas (EMP) ou empresas de segurança privadas (ESP), tendo em vista seu crescimento vertiginoso no atual estágio da globalização econômica, bem como sua relação com a questão energética. Analisa-se o tratamento internacional do direito de guerra, denominado Direito de Haia, e o direito de proteção às vitimas em situação de conflito armado, denominado Direito de Genebra, que, em essência, é o Direito Internacional Humanitário propriamente dito. O trabalho contextualiza historicamente o assunto tratado e aborda a maneira pela qual as decisões sobre essa temática são tratadas no âmbito da Organização das Nações Unidas, verificando seus impactos sobre o processo de paz mundial. Analisa-se o papel das empresas militares privadas e a responsabilização sobre os atos de seus contratados, chamados de “novos mercenários”. Por fim, verificados os dois lados de uma mesma realidade, combatentes de um lado e o tratamento dispensado às vítimas de outro, são feitas as conclusões finais sobre o tema.
Palavras-chave
ABSTRACT
This thesis analyses the subject of privatization of war through the action of private military companies (PMC) or private security companies (PSC), in view of their vertiginous growth in the present stage of economic globalization, as well as their relation with the energy issue. It analyses, also, the International Law on war, known as Hague Law, and the International Law on the protection of victims in a situation of armed conflict, known as Geneva Law which, in essence, is the International Humanitarian Law. The thesis contextualizes the subject historically and approaches the manner in which decisions on this subject are treated in the United Nations, verifying their impacts on the world peace process. The role of the private military companies and the responsibility over acts of their contracted people, known as “new mercenaries”, is analyzed. Finally, taking into account both sides of the same reality, combatants on one side, and the treatment given to victims on the other, final conclusions on the subject are made.
Keywords
INTRODUÇÃO ...12
CAPÍTULO 1 - O USO DA FORÇA E SUA REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA...16
1.1. EVOLUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO USO DA FORÇA...16
1.1.1. O Uso da força na antiguidade oriental à antiguidade greco-romana...16
1.1.2. O Uso da força no Medievo e na Idade Moderna...26
1.1.3. O Uso da força na Idade Contemporânea até os dias atuais...39
1.2. O CONCEITO DE GUERRA JUSTA E DO USO LEGÍTIMO DA FORÇA SEGUNDO O PENSAMENTO DE FRANCISCO DE VITÓRIA, FRANCISCO SUAREZ, GENTILI, HOBBES, GROTIUS E KANT...49
1.2.1. Francisco de Vitória e Francisco Suarez...49
1.2.2. Alberico Gentili...55
1.2.3. Hugo Grotius...58
1.2.4. Immanuel Kant...62
1.3. REALISMO CLÁSSICO, REALISMO NEOCLÁSSICO E NEO-REALISMO...68
1.4 O REALISMO APÓS A GUERRA FRIA: O PAPEL DA OTAN...93
1.5. OS ASPECTOS CENTRAIS DA SOBERANIA E AS MUDANÇAS NA CONDIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO: OS NOVOS DESAFIOS DE SEGURANÇA...112
CAPÍTULO 2 - O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO...127
2.1. CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO...127
2.2. DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO (jus in bello) e o DIREITO DE GUERRA (jus ad bellum) ...141
2.3. DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E DIREITOS HUMANOS...159
2.4. AS OPERAÇÕES DE MANUTENÇÃO DE PAZ DA ONU...167
2.5. AS CONVENÇÕES DE GENEBRA DE 1949 E OS PROTOCOLOS ADICIONAIS DE 1977...179
2.5.4. A Quarta Convenção de Genebra...201
2.5.5. I Protocolo Adicional...209
2.5.6. II Protocolo Adicional...223
2.5.7. III Protocolo Adicional...229
2.6. A IMPORTÂNCIA DO COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV) PARA O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E A ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA...230
CAPÍTULO 3 - GUERRA, PODER E TERRORISMO...256
3.1. A PROIBIÇÃO DO USO DA FORÇA NA SISTEMÁTICA DA ONU E O ALCANCE DO CONSELHO DE SEGURANÇA: CASOS RECENTES...256
3.1.1. Legítima defesa preventiva...267
3.1.2. Legítima defesa contra o terrorismo...276
3.1.3. Intervenção em defesa da democracia...287
3.1.4. Intervenção unilateral humanitária...295
3.1.5. A responsabilidade de proteger...310
3.2. O TERRORISMO INTERNACIONAL E A INDEFINIÇÃO DOS “ATOS TERRORISTAS”...317
3.3. VIOLAÇÕES AO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO...330
3.3.1. Prisões de Guantánamo e Abu Ghraib...332
3.3.2. Massacre de civis no Iraque...351
3.4. CORTES E TRIBUNAIS DE CRIMES DE GUERRA...363
3.5. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E OS NOVOS RUMOS DA COMUNIDADE INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA NA IMPLEMENTAÇÃO DA PAZ...398
CAPÍTULO 4 - A ATUAÇÃO DOS NOVOS ATORES NÃO ESTATAIS NA CONDUÇÃO DOS CONFLITOS ARMADOS: A PRIVATIZAÇÃO DA GUERRA...422
4.1 AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS (EMP) OU EMPRESAS DE SEGURANÇA PRIVADAS (ESP) E SUA ATUAÇÃO NOS CONFLITOS ARMADOS...422
4.2. AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DAS EMP/ESP E DOS SEUS
CONTRATADOS E SUAS ÁREAS DE ATUAÇÃO...473
4.3. OS MERCENÁRIOS E A REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL ACERCA DO TEMA...490
4.4 A PRIVATIZAÇÃO DO USO DA FORÇA EM FACE DA QUESTÃO DA SOBERANIA ESTATAL...512
CONCLUSÃO...535
BIBLIOGRAFIA...549
INTRODUÇÃO
O atual cenário mundial aponta para o surgimento de novos atores na condução e participação em conflitos armados, por meios das empresas militares privadas (EMP) ou empresas de segurança privadas (ESP). O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, como órgão encarregado da segurança e da paz mundial enfrenta, nesse sentido, novos desafios, notadamente após o 11 de setembro, em decorrência das políticas norte-americanas na “guerra contra o terrorismo”, do aumento do fundamentalismo e do abuso aos direitos humanos e humanitários.
Em face desse contexto surge a preocupação em particular com esse novos combatentes, denominados “novos mercenários”, bem como com as vítimas desses conflitos armados, tanto internos, quanto internacionais, cuja regulamentação se dá por meio do Direito Internacional Humanitário, também denominado jus in bello. Os dois lados desse mesmo cenário, combatentes e vítimas demandam uma revisão do papel do indivíduo, como violador e vítima de direitos humanos.
No atual estágio da globalização econômica, tanto a força armada quanto a força econômica são vistas como formas de atuação política dos Estados nas relações internacionais. Todavia, o próprio papel do Estado é cada vez mais atrelado aos interesses de grandes conglomerados transnacionais, notadamente na questão energética. Se a guerra ao longo do tempo cedeu espaço à economia, o direito da guerra envolveu-se com ela, transformando o direito internacional dos conflitos armados em um estudo da ilegalidade da guerra e na contenção da força econômica quando utilizada como agressão nas relações internacionais1
As organizações internacionais, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, assumiram um papel preponderante na tentativa de conduzir e coordenar a busca de um consenso entre as nações, para promover a paz e os respeito aos direitos humanos. Para tanto, foram relevantes o Pacto Briand-Kellogg e a Carta das Nações Unidas, tornando a guerra proibida, salvo as exceções do seu exercício em legítima defesa ou com a autorização do Conselho de Segurança da ONU.
Os conceitos de soberania, guerra, direito e relações internacionais estão historicamente inter-relacionados e em constante transformação.2 A regulamentação
existente que trata sobre o tema avençado, notadamente a Carta da ONU e as Convenções de Genebra e seus dois Protocolos, que cuidam dos direitos das vítimas nos conflitos armados, não contempla de forma satisfatória as novas transformações das atual sociedade internacional. Tudo isso coloca em xeque o papel do Conselho de Segurança da ONU, uma vez que os aspectos visivelmente políticos da sua constituição, aliado a falta de critérios jurídicos claros e precisos, impede que esse órgão conduza de modo totalmente imparcial e eficiente o processo de paz.
Esse cenário gera uma situação de impunidade, especialmente por parte dessas empresas militares privadas, visto que, embora seus contratados não sejam militares, muito deles atuam no combate, ocasionando muitas vítimas, principalmente civis, enquanto essas empresas lucram milhões de dólares provenientes dos seus contratos privilegiados com o governo dos Estados, cujo preço final é pago pelos contribuintes.
Os Tribunais Internacionais, notadamente o Tribunal Penal Internacional, possui competência para julgar os crimes mais graves, como os crimes de agressão, crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra. Dentre esses últimos estão inclusas as violações às Convenções de Genebra. Todavia, questões políticas e não jurídicas impedem o bom funcionamento do tribunal, como a não ratificação de seu estatuto, o Estatuto de Roma, por Estados importantes como os Estados Unidos. Sem mencionar o entrave de outros fatores, tais como a existência de mais de noventa tratados bilaterais que comprometem outros países a não entregar cidadãos americanos ao TPI3.
Levado em conta uma análise realista das relações internacionais, a ausência de um poder soberano mundial facilita a propensão de cada Estado pela constante luta pelo poder, pela segurança e pela dominação. Sob essas circunstâncias, a política internacional é vista como uma eterna luta pelo poder, isto é, uma arena de rivalidades, conflitos e guerras entre Estados.4
O fato é que com a globalização, as novas tecnologias de informação, comunicação e transportes impulsionaram sobremaneira o comércio internacional, acarretando um entrelaçamento cada vez maior entre o Direito Internacional Público e o Direito Internacional Privado, por meio de um processo no qual o Direito Internacional Público se privatiza e o Direito Internacional Privado se politiza5.
3 BYERS, Michael. Alei da Guerra: Direito Internacional e Conflito Armado. Rio de Janeiro: Record,
2007, p. 183.
4 JACKSON, Robert; SØRENSEN, Georg. Introdução às relações internacionais: Teorias e abordagens.
Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 102-3.
A mescla entre o âmbito público e o privado é bastante visível no processo de privatização do uso da força pelo fato das empresas militares privadas recrutarem em seus quadros de funcionários ex-agentes militares, cujas carreiras estiveram atreladas ao Estado. Essa confluência de interesses proporciona lucros exorbitantes, capazes de alimentar a guerra, aumentar o crime organizado, o tráfico internacional de armas e de drogas, a miséria e o terrorismo enraizado no fundamentalismo.
No que diz a esse aspecto negativo da globalização, Ulrich Beck em sua obra, Risk Society6, denominou-o de sociedade de risco, na qual a distribuição dos riscos não corresponde às diferenças sociais, econômicas e geográficas da típica primeira modernidade. O conceito de sociedade de risco se cruza diretamente com o de globalização, uma vez que os riscos são democráticos, afetando nações e classes sociais sem respeitar fronteiras de nenhum tipo. O homem criou o progresso, serviu-se dele, mas o mesmo progresso tornou servos aqueles a quem serve.
Para analisar os diversos aspectos que envolvem a questão da privatização da guerra, o presente estudo baseou-se na análise de diversos assuntos. Inicialmente, no primeiro capítulo foi feita uma contextualização histórica sobre o tema, analisou-se o conceito de guerra justa e do uso legítimo da força segundo o pensamento de importantes autores. Discorreu sobre a teoria realista das relações internacionais e sua importância com o tema proposto, bem como os novos desafios da segurança nos dias atuais.
No segundo capítulo, abordou-se a evolução histórica e o conceito de Direito Internacional Humanitário (jus in bello) e do Direito de Guerra (jus ad bellum). Também foram analisadas as operações de manutenção de paz da ONU, e ainda as Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais. Ressaltou-se especialmente o papel do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) como grande divulgador e edificador de um ordenamento jurídico humanitário internacional, bem como a relevância das suas ações, que visam minorar o sofrimento das vitimas que são afligidas pelos efeitos da guerra.
No terceiro capítulo, tratou-se da proibição do uso da força na sistemática da ONU. Após, analisou-se a questão do terrorismo internacional, bem como as violações ao Direito Internacional Humanitário, notadamente, as prisões de Guantánamo e Abu
Ghraib e o massacre de civis no Iraque. Ainda, discorreu-se sobre as cortes e tribunais de crimes de guerras, tais como o Tribunal de Nuremberg, o Tribunal de Tóquio e os dois tribunais “ad hoc” criados pelo Conselho de Segurança da ONU, para apuração de crimes na ex-Iugoslávia e em Ruanda. Analisou-se o papel do Tribunal Penal Internacional e seus impactos nos novos rumos da comunidade internacional na implementação da paz.
No quarto capítulo, discorreu-se sobre a atuação das empresas militares privadas na atual economia globalizada, abordando para tanto, a origem e a evolução histórica do mercenarismo. Foram analisadas as principais empresas militares privadas e seu campo de atuação no cenário mundial. Após isso, foi abordada a questão dos atos dos contratados desses empresas militares privadas, também denominados “novos mercenários”, bem como a regulamentação jurídica internacional acerca do tema e a privatização do uso da força em face da questão da soberania estatal.
Por fim, analisados os dois lados de uma mesma realidade, combatentes de um lado e o tratamento dispensado às vítimas de outro, serão feitas as conclusões sobre o tema, passando pela questão do papel da ONU na condução da paz, a importância da análise mercantil da guerra e sobre a possibilidade ou não de tribunais internacionais como o Tribunal Penal Internacional darem uma resposta satisfatória a essa questão.
CAPÍTULO 1- O Uso da Força e sua Regulamentação Jurídica
O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada sempre que possível, dos interesses alheios. (Fernando Pessoa)
Todos pensam em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo. (Liev Tolstói)
1.1. Evolução e contextualização histórica do uso da força
Nos tempos mais remotos, a guerra envolvia os instintos mais primitivos do homem na
luta pela sobrevivência. Partia-se de um conceito realista no qual o conflito é inerente à
natureza humana, envolvendo profundas conseqüências políticas. A guerra passa a ser um dos
instrumentos de política constantemente utilizado na história
7
.
A trajetória da própria civilização humana remete-se, invariavelmente, à ocorrência de
inúmeras guerras travadas entre as diversas nações. Da barbárie até a proibição como regra
geral do uso da força consoante a Carta das Nações Unidas de 1945, teve como pano de fundo
a discussão sobre se uma guerra é justa ou injusta, legítima ou ilegítima. Nesse sentido,
analisar-se-á a evolução do uso da força ao longo da história até os dias atuais.
1.1.1. O Uso da força na antiguidade oriental à antiguidade greco-romana
Durante a pré-história, no final do período Neolítico ocorreu a chamada Idade dos
Metais. Nessa época, o desenvolvimento de armas e utensílios criados a partir do cobre, do
bronze e, posteriormente, do ferro tornou-se usual, possibilitando o surgimento das primeiras
civilizações da Antigüidade. Ocorreu um grande avanço técnico na agropecuária, indústria e
transporte. Cristalizou-se a vida urbana e a estratificação social. As primeiras guerras e o
processo de dominação de uma comunidade sobre outra contou com o desenvolvimento das
armas de metal.
7
- Civilização Egípcia:
Originalmente formada por tribos nômades indo-européias que se instalaram na região
do vale do rio Nilo, a civilização egípcia estabeleceu-se consubstanciada em uma monarquia
teocrática centralizada no faraó, soberano hereditário e absoluto. Por volta de 2000 a.C. a
civilização egípcia realizou as primeiras incursões contra os beduínos do Sinai e conquistou
minas de cobre e pedras preciosas. Os hicsos, de origem caucasiana, invadiram o Egito por
volta de 1800 a.C, graças a sua poderosa máquina de guerra, que possuía cavalaria, carros de
guerra e as armas de ferro, equipamentos até então desconhecidos para os egípcios. Todavia,
dada coesão formada pelo povo egípcio, os hicsos foram expulsos em 1600 a.C. e os egípcios
conquistaram a Síria, Palestina, Mesopotâmia, Chipre, Creta e ilhas do mar Egeu.
O Egito antigo, cujo apogeu foi com Tutmés III, baseou sua acumulação de recursos
financeiros em uma forte organização militar que fez deste o primeiro império mundial. A
forte xenofobia empreendida no período do Novo Império pós-hicsos, aliada a ofensiva
maquinaria de guerra levou-os a conquistar territórios desde a quarta catarata do Nilo até o
Eufrates, ocupando, portanto, boa parte da região denominada Crescente Fértil. Todavia, em
332 a.C. passou a fazer parte do Império Macedônico e, a partir de 30 a.C., do Império
Romano.
- Civilização Hebraica:
Os hebreus, principal povo habitante da Palestina, localizada no Oriente Médio, às
margens do rio Jordão, inicialmente possuíam acentuada descentralização política, mas, a
partir do século XII a.C converteram-se em uma monarquia nacionalista e xenófoba, que
derrotou outros povos da região (sobretudo os filisteus), iniciando o Império Hebraico.
Todavia, após seu apogeu, sob o reinado de Salomão, ocorreu o cisma dos judeus (hebreus),
formando-se então, dois reinos: o de Israel, ao norte, constituído de 10 tribos, com capital em
Samaria e o de Judá, ao sul, constituído de 02 tribos, com capital em Jerusalém. Isso
favoreceu a invasão de nações estrangeiras, entre elas a do II Império Babilônico, de
Nabucodonossor e do Império Romano, que gerou a diáspora hebraica, a dispersão dos judeus
pelo mundo (70 d.C.).
- Civilização Mesopotâmica:
A civilização mesopotâmica, localizada na faixa de terra entre os rios Tigre e Eufrates,
de leis consuetudinárias; pelos acádios, que difundiram a cultura suméria; pelos amoritas
(semitas) fundadores do I Império Babilônico e da criação do Código de Hamurabi (século
XVIII a.C.)8; pelos assírios, famosos pelo seu forte militarismo e violência para com os povos
conquistados; e pelos caldeus, fundadores do II Império Babilônico, com destaque de
Nabucodonossor, que subjugou os hebreus (cativeiro da Babilônia). A região era formada por
cidades-estados que constantemente revezaram-se na supremacia política.
Dentre os povos das civilizações mesopotâmicas os assírios destacaram-se pelo seu
forte militarismo e pela sua brutalidade, não sendo raro o esfolamento vivo nas pedras, cortes
nas orelhas, narizes e genitais, daqueles que ousassem ameaçar seu domínio. Após vários
séculos de poder, acabaram sendo derrotados por uma coalizão anti-hegemônica com
inimigos externos de seu império assírio, como os medos.
- Civilização Persa:
A civilização persa, formada inicialmente por tribos nômades aparentadas dos escitas,
do Cáucaso, deslocou-se para o planalto do Irã, mesclando-se aos povos locais, os medos. Em
539 a.C., os persas derrotam os medos e, sob a liderança de Ciro II, iniciaram o Império Persa.
Ciro submete as sociedades da Mesopotâmia, consolidando a hegemonia na Pérsia.
Conquistou a Babilônia, o reino da Lídia e as colônias gregas da Ásia Menor. A civilização
persa assimilou e adaptou muitos aspectos da prática assíria, mas ao contrário destes, os
persas tiveram uma influência imperial branda, tornando-se uma sociedade hegemônica de
Estados.
A partir de 522 a.C., durante o reinado de Dario (558 a.C.- 486 a.C.), o Império
estende-se para Trácia, Macedônia e parte da Índia. Sem conseguir administrar rebeliões no
vasto território, Xerxes (519 a.C.- 465 a.C.), que sucede Dario em 486 a.C., entra em conflito
com as cidades gregas. As Guerras Médicas, também conhecidas como Guerras Medas,
Guerras Greco-Persas ou Guerras Greco-Pérsicas, (492 a.C.- 448 a.C.) acabaram com a vitória
dos gregos. Em 331 a.C., os persas são submetidos ao Império Macedônico.
Nesse contexto, destaca-se a Batalha de Gaugamela (ou Batalha de Gaugamelos)
travada em 331 a.C., na qual Alexandre III da Macedônia derrotou Dario III da Pérsia. A
batalha foi decisiva para abrir o Oriente para os macedônios. Além de lutar no território do
8
adversário, os macedônios ainda estavam em número muito menor: contavam com apenas
7.000 cavaleiros e 40.000 soldados, enquanto as forças de Dario eram de 40.000 cavaleiros,
200.000 soldados persas, 6.000 mercenários gregos e 200 carruagens de guerra.
Não havia muitos motivos para que os persas não triunfassem, mas a composição
multinacional do exército de Dario acabou lhe prejudicando, uma vez que seus homens não
conseguiram coordenar-se de forma eficiente, terminando a dinastia que iniciara com Ciro no
século VI a.C., e que foi durante séculos o maior império do mundo ocidental.9
Sob o comando de Alexandre, o Grande, o Império macedônico expandiu-se pela Ásia
Menor, Egito, Síria, chegando até a Índia. Essa expansão não foi apenas militar e territorial,
mas também cultural, por meio do helenismo, isto é, do sincretismo da cultura helênica
(grega) com a oriental. Todavia, este Império mostrou-se efêmero, uma vez que se dissolveu
rapidamente após a morte prematura (33 anos) de seu precursor, Alexandre, vítima de
paludismo, na Babilônia. O período conhecido como Helenístico (sécs. III-II a.C.) foi
marcado pela invasão macedônica e pela difusão da cultura helenística.
- Civilização Grega:
A civilização grega desenvolveu-se no sul da península Balcânica, na costa da Ásia
Menor e nas ilhas do mar Egeu. O relevo da Grécia, bastante acidentado, o solo
predominantemente árido e o litoral muito recortado foram fatores naturais que, além de
dificultar a comunicação entre os povos, impulsionaram os gregos a se dedicarem ao
comércio marítimo, como forma de superar os entraves naturais da região.
O período pré-Homérico ou Micênico (século XX-XII a.C.) foi marcado pelas
invasões dos povos indo-europeus, como os aqueus, jônios, eólios e dórios, que subjugaram
os primeiros povos que habitavam a Grécia, os pelasgos. Este primeiro período histórico é
marcado pela formação da primeira civilização da região, a micênica, que se desenvolveu sob
forte influência cretense.
Os dórios, aproveitando-se da destruição da civilização micênica pelos “povos do
mar”, invadiram a região do Peloponeso no século XII a.C., deixando a região que
originalmente haviam ocupado, isto é, o norte da península grega. Os dórios, povo
extremamente guerreiro, foram os responsáveis pelo deslocamento dos povos da Grécia
continental para as ilhas do mar Egeu e para a Ásia Menor. Esse movimento populacional
9
ficou conhecido como primeira diáspora. Este povo sedentarizou-se na região da Península do
Peloponeso, e sua principal polis, Esparta, acabou impondo-se regionalmente, sobretudo após a vitória sobre Micenas, com a conseqüente escravização daquele povo, os hilotas.
O período Homérico (século XII-VIII a.C.) foi marcado pela formação dos genos,
comunidades coletivas lideradas por um patriarca, que buscavam a sobrevivência, tendo na
terra a sua principal base econômica. No final deste período, a população aumentou
significativamente, e conseqüentemente, o consumo também. Porém, a produção era limitada
e não acompanhou esse aumento, o que provocou disputas por terras cultiváveis entre os
genos. Tal fato alterou a estrutura interna das comunidades gentílicas, uma vez que a terra foi
dividida de forma desigual, beneficiando os mais próximos ao chefe comunitário, o pater. Desse modo, uma grande parcela da população excluída da posse de terras cultiváveis
emigrou para regiões do mediterrâneo ocidental, fundando ali várias colônias. Essa nova
dispersão do povo grego ficou denominada como segunda diáspora.
O período Arcaico (século VIII-VI a.C.) foi marcado pela formação das pólis ou cidades-estados, que se originaram com a junção de várias tribos que buscaram formar
alianças regionais que lhes garantissem segurança. Cada pólis possuía um universo econômico e político próprio. A monarquia cedeu lugar para a oligarquia, como conseqüência
do enriquecimento da aristocracia. Muitas cidades-estados mantiveram-se oligárquicas, já
outras evoluíram no sentido de uma incipiente democracia, com destaque para Atenas.
Esparta, cidade-estado fundada pelos dórios, em uma região fértil do Peloponeso, o
vale do rio Eurotas, era uma sociedade conservadora, estamental, desigual, oligárquica e
guerreira. A educação espartana era fortemente militarista, visava à formação de guerreiros,
cujos meninos eram entregues ao Estado aos oito anos para aprender lutar, correr, lançar
dardos, e inclusive, matar hilotas (povo proveniente das populações conquistadas). Essa
sociedade guerreira era conservada por um código de leis atribuído a Licurgo (lendário
legislador de Esparta), através do qual, totais privilégios eram concedidos aos
cidadãos-soldados espartanos.
A cidade-estado de Atenas foi fundada principalmente pelos jônios, na região da
Ática. Esta sociedade era dividida entre os eupátridas, detentores das melhores terras, que
possuíam plenos direitos políticos; os georgóis, que eram pequenos agricultores; os thetas,
“marginais” para os quais nenhuma terra restou; os demiurgos, que se dedicavam ao comércio
e ao artesanato; e os escravos, prisioneiros de guerra, que eram tratados como coisa (res). A monarquia ateniense após algum tempo evoluiu para uma oligarquia, comandada
à escassez de terras e ao aumento demográfico, emigraram para pontos do Mediterrâneo, onde
fundaram várias colônias. Assim sendo, os comerciantes atenienses passaram a ter uma
significativa importância na constituição da economia grega e começaram a exigir
participação política.
Essa rivalidade de classes resultou no surgimento de reformas feitas por legisladores,
destacando Drácon, que elaborou as primeiras leis escritas, mas manteve os privilégios
políticos existentes; e Sólon, que aboliu a escravidão por dívidas e dividiu a sociedade de
acordo com os critérios censitários, favorecendo assim, a ascensão dos demiurgos. Criou
ainda instituições como a Bulé, a Eclésia, e o Helieu, bem como, se aboliu a servidão por
dívidas no campo. As reformas de Sólon descontentaram os georgóis, que desejavam a
redistribuição das terras e aos eupátridas que viram seu poder diminuído pelos demiurgos.
Esse clima propiciou a ascensão da tirania, com ditadores que, aproveitando-se da
situação, tomaram o comando do poder. O primeiro foi Pisístrato, que conseguiu amenizar a
situação, por meio da distribuição de terras aos georgóis e com a promoção de obras públicas.
Porém, seus filhos Hípias e Hiparco não continuaram com as reformas, o que causou uma
revolta social, e, abriu caminho para uma precoce democracia liderada por Clístenes.
Dentre as medidas adotadas por Clístenes, destacam-se a divisão de Atenas em dez
tribos, onde cinquenta homens eram sorteados independentemente de sua posição social para
fazer parte da Bulé (assembléia encarregada de elaborar projetos de lei), diluindo a força dos
aristocratas; a Eclésia (assembléia popular) teve seus poderes ampliados podendo votar pelo
ostracismo, ou seja, caso alguém pusesse em risco a democracia ateniense, seria exilado por
dez anos, tendo suspenso todos os seus direitos políticos. É importante frisar que a
“democracia” ateniense excluía da vida política mulheres, escravos e estrangeiros (metecos).
O período clássico (século V - IV a.C.) foi marcado pelo apogeu da civilização grega,
que expandia o poderio de suas cidades-estados, gerando, por conseguinte, conflitos
hegemônicos tanto no plano interno como no plano externo. Sob o comando de Dario I, os
persas que já haviam conquistado boa parte do Oriente, seguiam sua expansão em direção à
Grécia. A cidade de Mileto (Ásia) revolta-se contra o domínio persa, buscando o apoio de
Atenas. Inicia-se assim, as já supracitadas guerras greco-persas ou guerras médicas.
A primeira foi vencida, pelos gregos na batalha de Maratona. Na segunda guerra
médica, os persas foram derrotados na batalha de Salamina, por uma aliança de cidades
gregas lideras por Atenas: a Liga ou Confederação de Delos. As cidades eram independentes
politicamente, mas obrigadas a contribuir com navios, dinheiro e soldados com o esforço de
Após as guerras médicas, Atenas conheceu o apogeu de sua cultura, principalmente,
no século V a.C. (século de ouro) com o governante Péricles. Foi um período de grande
produção artística e literária, embelezamento, urbanização da pólis e ampliação da democracia ateniense. Uma característica básica desse período foi o humanismo, a preocupação com a
valorização do homem, passando a filosofia grega a se preocupar fundamentalmente com o
homem, como é o caso dos sofistas. Em meio aos sofistas surgiu Sócrates que cuidou de
pesquisar, por meio de seu método, a maiêutica10, o homem e suas virtudes. Todavia, o
período se caracterizou também pelo marcante “imperialismo” ateniense em relação aos
demais integrantes da Liga de Delos, transformados em meros tributários de Atenas.
Para se contrapor à essa hegemonia de Atenas, Esparta organizou com outras
cidades-estado, a Liga do Peloponeso. Essa rivalidade gerou uma guerra interna, a famosa Guerra do
Peloponeso, que apesar da vitória espartana, deu início ao declínio de toda civilização grega,
uma vez que esta se encontrava, irremediavelmente, desestruturada. Posteriormente, a cidade
de Tebas veio se opor à frágil hegemonia espartana, vencendo-a na batalha de Leutras. Porém,
sua supremacia durou pouco e a invasão macedônica tornou-se inevitável.
Tucídides, grande historiador grego, relatou pormenorizadamente referida guerra, em
especial as operações militares, em sua obra a “História da Guerra do Peloponeso”, demonstrando a inevitabilidade da mesma e a semelhança que os mesmos acontecimentos
poderiam vir novamente a ocorrer em face da própria natureza humana: “(...) quem quer que
deseje ter uma idéia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão
a ocorrerem circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo
humano, julgará a minha História útil” 11.
Na obra, famoso também foi o Diálogo de Mélos no qual o autor tenta reproduzir com
a máxima fidelidade o que teria sido dito pelos políticos e chefes militares em suas
manifestações, ao comentar o diálogo entre os generais atenienses, Cleômedes e Tísias, com
os magistrados de Mélos (colônia de Esparta que, diferente do restante das ilhas, se insurgia
contra o domínio dos atenienses):
Deixemos de lado as belas palavras sobre a justiça. De nossa parte, não teremos a pretensão de que nosso domínio seja merecido por termos derrotado os persas. Vocês não devem alegar que, não tendo prejudicado de modo algum o povo ateniense, têm o direito de ser deixados em paz. Falaremos sim sobre o que é viável e o que é necessário. Pois é assim que a
10
Processo dialético e pedagógico socrático, em que se multiplicam as perguntas a fim de obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito geral do objeto em questão.
11
guerra é: os que têm vantagem de poder exigem o máximo que podem, e os
fracos aceitam as condições que conseguem obter12.
Os melianos apelaram ao princípio da justiça, ou seja, a sua honra e dignidade como
um Estado independente deveriam ser respeitadas pelos líderes atenienses. Mas, conforme
Tucídides relatou, nas relações internacionais, a justiça ao invés de significar um tratamento
igual para todos, ela se refere ao conhecimento de seu próprio lugar e à adaptação à realidade
natural do poder desigual.13
No trecho acima transcrito fica evidenciado como a lei não possuía império em face do
poderio militar do mais forte. Nas palavras dos generais, os homens “por toda parte
dominarão a quem superarem pela força”. Ou seja, inter arma silent leges: em tempos de guerra, cala-se a lei.
Não obstante os filósofos gregos terem legado sua rica filosofia à humanidade,
dedicaram-se pouco ao problema da guerra, em decorrência da organização política de suas
cidades-estados. Porém, não havia dúvida de que a guerra, na Grécia antiga, era uma maneira
possível de solucionar controvérsias entre uma pólis e outra.
Para Zenão, filósofo grego fundador da escola estóica por volta de 335 - 263 a.C., a
verdadeira cidade correspondia a todo o universo, sendo seus cidadãos homens livres
governados conforme o princípio da igualdade.14 Para os estóicos a guerra era vista como a
luta para o retorno da paz. Os estóicos adotavam, diferentemente do filósofo Aristóteles, a
concepção política de que a verdadeira cidade é o universo inteiro, e que todos são iguais
perante a lei, não somente no que tange aos direitos políticos, mas também uma igualdade
entre homens e mulheres e uma equiparação social com o fim da escravidão15.
A escola estóica preconizava a indiferença à dor de ânimo oposta aos males e agruras
da vida. Foi bastante influenciada pelas doutrinas cínica e epicurista, além da clara influência
de Sócrates, autor da frase “Conheça a ti mesmo”, e que por criticar o Estado ateniense durante as Guerras do Peloponeso, foi condenado à morte, tendo sido executado com cicuta
(339 a.C.). Nesse contexto, são precisas as palavras de Marilena Chauí:
os poderosos tem medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo, pois fazia a juventude pensar (...). Sócrates
12
TUCÍDIDES, op. cit., p. 348. 13
JACKSON; SØRENSEN, op. cit., p. 107. 14
HUCK, op. cit., p. 25. 15
não se defendeu e foi levado a tomar um veneno - a cicuta- e obrigado a suicidar-se. Por que Sócrates não se defendeu? ‘Porque, dizia ele, ‘se eu me
defender estarei aceitando as acusações, e eu não as aceito (...)16.
- Civilização Romana:
A civilização romana desenvolveu-se na península Itálica durante o século VIII a.C. a
partir da cidade de Roma. A doutrina de guerra justa surgiu solidamente com a civilização
romana, dotada de grande caráter religioso. Inicialmente cabia aos fetiales, colégio de sacerdotes, decidir acerca da guerra. Na República romana, quando os fetiales recomendavam o recurso à guerra, o Senado romano, juntamente ao povo romano, decidiam pela declaração
da guerra justa e pia (bellum justum et pium). Somente eram justas as guerras que obedeciam aos ditames do ius fetiales. Assim, a guerra nascia com um fundamente religioso e transformava-se em matéria de direito público.17
Durante a República (509 à 27 a.C.), após as guerras na Itália, tornou-se imperiosa a
expansão fora da península, desafiando o Império cartaginês, que controlava o Mediterrâneo
ocidental. Este conflito ficou denominado de Guerras Púnicas. Em número de três, com a
vitória romana, teve como principal conseqüência o controle da orla do Mediterrâneo pelos
romanos (mare nostrum).
Especialmente pelo interesse pela Sicília por parte das maiores cidades do
Mediterrâneo ocidental, os exércitos mercenários se impuseram como imprescindíveis, uma
vez que os cartagineses não possuíam qualquer tradição na utilização de tropas cívicas. No
decorrer das Guerras Púnicas foi possível sustentar as diversas relações possíveis entre a
tradição militar helenística e as condições específicas da Sicília, no que se refere ao
mercenarismo como difusor das práticas bélicas helenísticas, integrando as tropas em um todo
funcional e especializado.
Todavia, foi durante o Império romano (27 a.C. à 476 d.C.) que ocorreu a maior
extensão de seu território, notadamente no reinado de Trajano (98 à 117 d.C.). Desde suas
primeiras conquistas, Roma tornou-se militarista, expansionista e escravista, baseando sua
economia na exploração das colônias conquistadas.
O general Mário iniciou uma série de reformas em seu exército, ao constatar que sua
base de recrutamento, os camponeses, não possuía interesse e habilidade em lutar, o que
provocava indisciplina e deserção. Passou a convocar a classe dos proletarii (indivíduos sem bens e com prole para sustentar), contrariando a tradição romana, que restringia o
16
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994, p. 38. 17
recrutamento militar aos proprietários de bens. Os soldados passaram a ser assalariados, o que
foi determinante para a profissionalização militar.
A passagem do exército para a condição de profissional e permanente fez com que ele
passasse a ser controlado muito mais pelos seus generais do que pelos políticos, uma vez que
eram os primeiros que se incumbiam da fixação do pagamento dos salários bem como da
repartição do espólio de guerra.
Assim, o exército romano após longos períodos de guerra tornou-se uma força militar
profissional, passando de uma milícia citadina para constituir-se em um exército permanente,
formado também por escravos, mercenários e estrangeiros. Com a crise do três pilares que
sustentavam o império romano, militarismo, escravismo e expansionismo, o sistema veio a
ruir com a posterior invasão bárbara.
O escravismo, durante o Império Romano, tornou-se efetivamente o modo de
produção predominante em Roma. A alta freqüência das guerras facilitava a aquisição de mão
de obra escrava, uma vez que a tornava abundante e barata, eliminando praticamente o
trabalhador livre da economia romana. O império romano vivia basicamente dos tributos
cobrados aos latifundiários e aos comerciantes, o que propiciava a viabilidade de manutenção
de seu exército, responsável pelo abastecimento contínuo de escravos.
A partir do século III as guerras significativamente retraíram-se e, por conseguinte, o
número de escravos também diminuiu. Essa retração de mão-de-obra, por sua vez, gerou um
declínio na produção agrária, iniciando assim um círculo vicioso (menos produção, menos
comércio, menos riqueza, insolvência, menos exército, menos escravos, menos produção...)
que aprofundou de modo irreversível a crise geral do império.
Mas é importante que se frise que uma das causas desse declínio foi justamente a crise
no exército militar que, em face da retração das conquistas e a conseqüente crise econômica
não foi possível efetuar o pagamento do soldo. Os soldados mercenários não tinham interesse
em lutar por Roma, uma vez que não sendo sua pátria não existia nenhum sentimento que os
fazia continuar guerreando pela sua defesa.
Nessa breve síntese das principais civilizações da Antiguidade Oriental e Clássica,
percebe-se que a guerra sempre esteve presente como instrumento da política de cada império
que a utilizou como via de dominação e subjugação dos povos conquistados. Nesse primeiro
momento o direito não tinha nenhum papel relevante a respeito do tratamento legal da guerra,
que era movida por interesses econômicos, em geral, para aumento territorial e conseqüente
1.1.2. O Uso da força no Medievo e na Idade Moderna
Na Idade Média, a imensa influência da Igreja na condução política, social, cultural e
econômica de toda a Europa Ocidental, trouxe uma noção de guerra justa como sendo aquela
fundamentada na causa destinada à reparação de um dano sofrido e não por mera vingança.
As principais filosofias a influir nessa sociedade foram a Patrística18, de São Agostinho e a
Escolástica de São Tomás de Aquino.
A partir da idéia dos estóicos, São Agostinho enxergou a guerra como instrumento
para a restauração da paz, e, portanto, consideram injustas as que são baseadas em vingança,
na busca pelo poder ou outro motivo mesquinho, sendo que a palavra final sobre a justiça
deveria ser revelada somente por Deus no dia do Juízo Final.
São Agostinho resgatou o pensamento grego em uma síntese entre a filosofia clássica,
notadamente a de Platão, com a doutrina cristã. Em sua obra, “Cidade de Deus”, lança as bases morais e teológicas de um direito que admitia o uso da força, distinguindo a guerras que
têm como escopo combater as injustiças causadas pelos homens; e as guerras que têm como
fundamento a vontade divina. De acordo com seu pensamento:
Deus só pode criar um mundo que contenha o bem moral criando pessoas significativamente livres. E, uma vez que toda pessoa é a exemplificação de uma essência, ele só pode criar pessoas significativamente livres mediante a criação de essências que lhes sejam próprias. Mas se toda essência dessa natureza sofre depravação de um extremo ao outro do mundo, então não se importa que essências tenha Deus criado, pois as pessoas resultantes, se livres a respeito de ações moralmente significantes, sempre despenharão também algumas ações erradas. Se toda essência própria de uma criatura sofre depravação de um extremo ao outro do mundo, então está para além do poder do próprio Deus criar um mundo que contenha o bem moral, mas
nenhum mal moral19.
Na obra “Cidade de Deus”, Santo Agostinho faz uma complexa dialética entre o sensível e o inteligível, alma e corpo, espírito e matéria, bem e mal e ser e não ser. Acrescenta
18
A Patrística tinha como objetivo conciliar a nova religião (Cristianismo) com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois assim seria possível converter os pagãos a nova realidade (evangelização e defesa da religião cristã contra ataques teóricos e morais que recebia dos antigos. Para impor tais idéias criaram-se os dogmas de fé (decretos divinos) irrefutáveis e inquestionáveis. Assim, as verdades não seriam mais provenientes da razão humana e sim seriam verdades reveladas de forma sobrenatural recebidas por uma graça divina, superior ao simples conhecimento racional. Portanto, o grande tema da Patrística foi a possibilidade ou não de conciliar razão e fé.
19
história à filosofia e interpreta a história da humanidade como sendo o conflito entre a Cidade
de Deus, inspirada no amor a Deus e nos valores que Cristo pregou e a Cidade humana,
baseada nos valores imediatos e mundanos. Essas cidades estão presentes na alma humana, e
no final, a Cidade de Deus triunfará; nesse momento a Cidade de Deus será separada da
Cidade Satânica, em que predomina a guerra, a injustiça e o egoísmo.20
Portanto considerava que, em alguns momentos, seria necessário o recurso de certa
força militar contra os inimigos. Ele especificamente não considerava como justificativa
válida para a guerra: “o desejo de causar dano, a crueldade da vingança, uma mente
implacável e insaciável, a selvageria da revolta e o orgulho da dominação", considerando a
guerra como uma trágica necessidade do relacionamento entre os povos. De acordo com seu
pensamento, a qualificação de uma guerra como boa ou má depende das circunstâncias e dos
objetivos que ela visa.
A concepção de São Agostinho sobre o mal, é alicerçada na teoria platônica,
considerando que o mal não é um ser, mas sim a ausência de um outro ser, o bem. O que resta
quando não existe a presença do bem é o mal. Deus seria a completa personificação do bem,
e, portanto não poderia ter criado o mal. Deus é somente bondade, e assim não pode praticar o
mal. Segundo São Agostinho, a paz verdadeira é a “tranquilidade da ordem”, o que equivale a
reta disposição de todas as coisas segundo os princípios da lei divina e da lei natural.21
São Agostinho em outra obra “De Libero Arbitrio” afirma que o mal decorre do livre arbítrio, mas nunca da origem divina. Em seu diálogo com Evódio (personagem), o mesmo
lhe pergunta se Deus é o autor do Mal e de onde vem praticarmos o mal? Segundo, São
Agostinho o homem por meio da sua vontade é livre para escolher algo bom, resultante da
vontade de Deus ou algo mal resultante da prevalência da vontade das paixões humanas. E
concluiu o livro I do Livre Arbítrio dizendo: “Fazemos (o mal) por livre-arbítrio da vontade”
(De lib. arb. I, 16, 35).
Todavia, de acordo com o pensamento de Santo Agostinho, não são todos os homens
que recebem a graça das mãos de Deus, mas somente alguns são eleitos predestinados à
salvação, não sabendo previamente quais serão esses eleitos. Valendo-se de uma leitura da
doutrina da predestinação agostiniana, a Igreja Católica, nos séculos seguintes, utilizou-a
desvirtuadamente para justificar as atrocidades da Inquisição, como torturas, mortes e queima
de pessoas consideradas hereges, ou seja, almas perdidas destinadas ao inferno.
20
CONCEIÇÃO, Gilmar Henrique da. A Filosofia Política de Santo Agostinho: algumas aproximações. In: Tempo da Ciência (15), 2º semestre 2008, p. 99.
21
Sua filosofia acabou sendo “útil” também no medievo, uma vez que, interpretando-a
de modo não aprofundado, passou a justificar a condição de senhor e de vassalo da sociedade
feudal da época, visto que o homem não detinha poder sobre seu destino que já estava traçado
e determinado por Deus. Assim, a natureza humana é por essência corrompida, estando na fé
em Deus a remissão da salvação eterna.
Essa visão pessimista em relação à natureza humana foi substituída na Baixa Idade
Média por uma concepção mais otimista e empreendedora do homem, com a filosofia
escolástica, partindo-se do pressuposto de que o progresso do ser humano dependia não
apenas da vontade divina, mas do esforço do próprio homem.
Como maior representante da Escolástica, São Tomás de Aquino, procurou
harmonizar a razão (resgate a Aristóteles) e a fé, com a defesa do livre arbítrio. Ainda que o
próprio Aristóteles tenha afirmado que “alguns, desde o momento em que nascem são
destinados a obedecer e outros a mandar” 22, São Tomás de Aquino defendeu que os homens
são livres para decidir seu destino, agindo de acordo com sua natureza racional. Por meio da
sua principal obra, a “Suma Teológica”, São Tomás de Aquino, argumentou que a fé e a razão deveriam andar juntas para auxiliar o homem na busca do conhecimento. No tocante à guerra,
São Tomás de Aquino entendia ser o príncipe a autoridade temporal a decidir sobre ela, como
representante de Deus.
Na teologia tomista, a classe sacerdotal adquiriu grande importância, uma vez que sua
orientação era fundamental na definição do certo e do errado em todas as atividades do
homem, possibilitando a este precaver-se do pecado e encontrar o bom caminho da salvação,
de acordo com a concepção do livre arbítrio. São Tomás de Aquino estabeleceu categorias
para determinar quando era justo o recurso à força pelos cristãos:
Três coisas são necessárias. Em primeiro lugar, a autoridade do soberano por cujo comando a guerra deve ser realizada, pois não é da alçada das pessoas privadas declarar guerra (...) É função daqueles que tem autoridade recorrer à espada da guerra na defesa do bem comum contra um inimigo externo (...) Em segundo lugar, é necessário que haja uma justa causa, ou seja, que aqueles que forem atacados devam sê-lo porque o merecem devido a alguma falta. Em terceiro lugar, é necessário que aqueles que fazem a guerra tenham uma intenção protegida por direitos, de modo que tenham como intenção a realização e a promoção do bem (...) Pois pode ocorrer que uma guerra seja declarada por uma autoridade legítima e por uma causa justa, e ainda assim
seja tornada ilegal devido a uma intenção perversa.23
22
ARISTÓTELES.. La política. Madrid: Alba, 1996, p. 32. 23
Portanto, a guerra deveria ser declarada pela autoridade soberana, ser motivada pela
ocorrência de um ilícito, e os combatentes, por sua vez, deveriam possuir uma intenção lícita
no intuito de fazer o bem e evitar o mal, em uma concepção bastante maniqueísta, e por isso
mesmo, de difícil conclusão, dando ensejo a inúmeros argumentos com pontos de vistas
considerados como justos.
Segundo São Tomás de Aquino a lei é uma regra e medida dos atos humanos, segundo
a qual se é induzido a fazer ou deixar de fazer de acordo com a razão. A lei deve se ordenar ao
bem comum, ou seja, “a lei não é mais do que um ditame da razão prática existente no
príncipe que governa uma sociedade perfeita”24.
A igreja, bem como os governantes, cuja autoridade laica era fragmentada,
objetivavam o uso da força a serviço da ordem, para manutenção da paz, e os argumentos de
São Tomás de Aquino para a guerra justa entre os cristãos foram concebidos para aumentar a
segurança da possessão legítima. 25
A despeito de Cristo impor aos homens que se amem mutuamente, a igreja, maior
instituição medieval, admitia a guerra em ultima ratio, ou seja, a guerra poderia ser admitida como sendo o último recurso que os homens deveriam recorrer para a reconstrução da paz.
Neste contexto, estão inseridas as cruzadas, que eram expedições de caráter religioso e
militar organizadas pelos reis, papas (oficiais) e populares. A Igreja Católica buscando
recuperar sua influência no oriente impulsionou as cruzadas, cujos fatores principais foram:
libertar lugares religiosos tradicionais; realizar a guerra santa contra o Islã; canalizar o
excedente populacional; expandir o território; saquear especiarias, reabrir o mar Mediterrâneo
que estava bloqueado pelos árabes; e, alcançar seu ideal de reunificação das duas igrejas,
anulando a autonomia da Igreja Ortodoxa no Oriente.
Notavelmente, a guerra santa serviu aos interesses materiais da igreja católica que viu
no movimento uma oportunidade de expandir sua influência e poder. A justificação da
vontade divina na luta contra o Islã legitimou uma guerra que se compôs de oito cruzadas
(1096-1099; 1147-1149; 1189-1192; 1202-1204; 1218-1221; 1228-1229; 1250; e 1270), além
das cruzadas das crianças (1212), baseado na crença que apenas as almas puras poderiam
libertar Jerusalém. Essa cruzada foi responsável pela miséria de milhares de meninos e
meninas, sendo que boa parte morreu pelos caminhos, outra parte sucumbiu frente à repressão
24
AQUINO, op. cit., art. 4. 25
de governantes e autoridades eclesiásticas, e outras terminaram afogadas em naufrágio ou
vendidas como escravos no norte da África.26
A cristandade medieval foi marcada pela violência difusa e local com a qual a natureza
fragmentada da autoridade certamente contribuiu. A nobreza e o clero procuraram, no início
do século XI, determinar quando era necessário, legítimo e certo aos olhos de Deus, o recurso
específico e organizado às armas, chamado guerra. À medida que a cristandade tornou-se
mais civilizada, a igreja interessou-se pela possibilidade de se considerar qualquer guerra
entre cristãos permitida e, caso fosse, que tipo de guerra seria justa e como deveria ser
efetuada. A posição básica da igreja católica no medievo era a de que, quaisquer atos de
beligerância contra outros cristãos estavam essencialmente errados.27
As guerras também aconteciam com grande freqüência dentro dos feudos, entre grupos
rivais de cavaleiros. A autoridade e o poder de engajamento em batalhas não eram
monopolizados pelo Estado, como viria a acontecer na Idade Moderna; os reis, no medievo,
não conseguiam controlar os conflitos. Os direitos de fazer a guerra acabavam por pertencer
aos cavaleiros e seus seguidores que combatiam em defesa do papa, do imperador, do rei, ou
por eles mesmos, motivados, em geral, por questões relativas à religião, herança, impostos ou
punição de criminosos. Era difícil categorizar essas guerras como sendo civis ou
internacionais, já que as mesmas não estavam relacionadas ao controle exclusivo de
determinado território. 28
A própria segurança era exercida por esses cavaleiros e pelos governantes locais que
atuavam em castelos ou cidades fortificadas. Como não havia polícia, a justiça era,
geralmente, exercida pelas próprias pessoas, por meio de vinganças ou represálias. O papa
fiscalizava as disputas políticas entre reis, e estes, por sua vez, tinham por função defender a
fé; e os cavaleiros eram considerados “soldados” cristãos.29
O conceito de “cavalheirismo” estava assentado na concepção de que, pelo fato da
nobreza ter emergido por meio de proezas militares, a sua essência era que o comportamento
de chevaliers ou cavaleiros louvava não somente as virtudes da coragem, mas também as da honra, da gentileza, da cortesia, e em grande parte, da castidade.30
O cavalheirismo constituía um modo de vida sancionada e civilizada pelas cerimônias
da igreja, tornando-se quase indistinguível das ordens eclesiásticas dos monastérios. No
26
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 30. 27
WATSON, op. cit., p. 207. 28
JACKSON; SØRENSEN, op. cit, p. 35. 29
Ibid. 30
século XII, as ordens militares, os templários (os Cavaleiros de São João, os Cavaleiros
Teutônicos) foram estabelecidos em imitação consciente das fundações monásticas, tornando
com elas um poder paralelo. Nas figuras míticas de Persival e Galahad, padres e cavaleiros se
confundem em um propósito a que aspirava a cristandade medieval, estando essa mescla de
guerreiro germânico e de sacerdote latino na base de toda a cultura medieval.31
Notadamente, com o fim das cruzadas, suas consequências trouxeram ao campo
econômico alguns reflexos, sendo um dos principais, a reabertura do mar Mediterrâneo, que
alavancou o renascimento urbano-comercial, desenvolvendo-se as rotas comerciais, e as
feiras, futuros mercados e cidades.
Surgiram as escolas, faculdades e universidades medievais. As cidades tiveram origem
nos burgos fortificados e estavam sujeitas à autoridade e às leis do senhor feudal. Sua luta
pela emancipação (movimento comunal) era feita pacificamente, via indenização ou pela luta
armada. Legitimavam suas conquistas pelas cartas de franquia.
Surgia então um pré-capitalismo, caracterizado pela vida urbana, pela economia de
mercado, pelo comércio monetário, pela sociedade de classes, pelo surgimento da burguesia e
pelo modo de produção assalariado. Assim, a Baixa Idade Média foi marcada pela crise do
feudalismo, pelo fim das invasões, pelo crescimento demográfico incompatível com a
produção estática e limitada do sistema feudal, pela marginalização da população que deixava
os feudos, rumo às vilas e antigos centros urbanos (futuros mercados); e ainda por aqueles que
viviam do saque.
Todavia, no século XIV, ocorreu a crise desse pré-capitalismo, caracterizada pela
fome, pela peste negra e pela Guerra do Cem Anos (1337-1453). A solução para a crise foi a
expansão marítimo-comercial, que só tornou-se possível por meio da aliança do rei com a
burguesia, e a conseqüente centralização política, formando os futuros Estados Nacionais
Modernos.
A construção do capitalismo se inicia no século XV (capitalismo comercial),
entretanto, seria mais correto afirmar que o capitalismo se consolidou neste século, tendo em
vista que o período anterior (pré-capitalismo, séculos XI à XV) representou o verdadeiro
berço do sistema.32
Portanto, a Idade Média foi marcada pelo surgimento e pela crise do modo de
produção feudal, pela formação de um pré-capitalismo, pela grande influência da Igreja
Católica em toda a condução da vida política, econômica, social e cultural da Europa
31
HOWARD, op. cit., p. 4-5. 32
Ocidental, por inúmeras guerras, tanto religiosas, como foram as cruzadas, como entre reis,
como a Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França (1337-1453); todas com brutal
violência e desordem.
A Idade Moderna tem como características principais o antigo regime, politicamente
baseado no absolutismo, e economicamente, no mercantilismo (colonialismo). Todos os
poderes passaram a se concentrar nas mãos dos monarcas, com o apoio econômico da
burguesia e com a domesticação da Igreja. O rei possuía o poder temporal (político) e o
espiritual (religioso), fazendo com que um desrespeito a ele fosse um desrespeito a Deus.
Assim, os monarcas emanciparam-se da autoridade político-religiosa da cristandade. O
clero e a nobreza, por sua vez, apoiaram o rei, em troca de privilégios, ao passo que a
burguesia financiou a monarquia, em troca do apoio desta aos seus negócios comerciais.
A Igreja Católica por muitos séculos estabeleceu-se como religião imperial, com a
proeminência do Papado. No final da Idade Média, Marsílio de Pádua (século XIV),
distinguindo explicitamente razão e fé, legitimou a separação dos poderes temporal e
espiritual. Em sua obra “Defensor Pacis” (1324) fez uma critica extremada à ambição da igreja de almejar pelo poder temporal, expondo uma doutrina do Estado laico. A
fundamentação de sua argumentação consubstanciar-se-ia na seguinte passagem do evangelho
de Mateus: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Marsílio de
Pádua é considerado como precursor da moderna secularização e da positivação do direito
fundado no poder político e não na vontade de uma pessoa.
A autoridade humana para legislar ou criar leis passa a ser de competência exclusiva
do conjunto de cidadãos ou a sua parte preponderante, distanciando-se assim do pensamento
tomista. O direito passa a estar desvinculado das normas religiosas da igreja, em uma ruptura
e passagem do humanismo de tradição teocêntrica para o nascedouro do humanismo
antropocêntrico que vai marcar a sociedade moderna.33
Com a laicização do Estado, a Igreja Católica perde a influência temporal que exercera
na sociedade durante o medievo e já na Idade Moderna sua influência religiosa é confrontada
pelas novas Igrejas Protestantes. Embora não fosse um exemplo de guerra declarada, não se
pode deixar de registrar o morticínio, o massacre e crueldade lamentavelmente ocasionados
no contexto das reformas religiosas que dividiram a população cristã européia durante os
séculos XVI e XVII.
33
Martinho Lutero criou a Igreja Luterana, submetendo-a ao Estado. Criticou a Igreja
Católica, condenando-a pela venda de perdão (venda de indulgências). No entanto, também
condenava o comércio, visto que o luteranismo considerava o dinheiro obra do demônio e
condenava o capitalismo, já que se sustentava na nobreza alemã, ainda caracterizada
fortemente pelos traços feudais. Assim, obteve o apoio de nobres, reis e príncipes.
Os cavaleiros, porém, eram nobres que não gozavam dos mesmos privilégios que os
príncipes ou os membros superiores do clero católico e estavam insatisfeitos diante das
explorações que sofriam dos mais poderosos na hierarquia política. A radicalização aconteceu
com a participação dos camponeses reivindicando um cristianismo compromissado com os
mais pobres e uma sociedade baseada na solidariedade. A luta, todavia, caminhou para um
confronto violento e muitos saques às propriedades dos nobres e do clero. Diante das
violentas ações dos rebeldes, Lutero publicou um panfleto manifestando seu repúdio:
Qualquer homem contra o qual se posso provar sedição está fora da lei de Deus e do Império, de modo que o primeiro que puder matá-lo está agindo acertadamente e bem (...) Pois a rebelião traz consigo uma terra cheia de assassínios e derramamentos de sangue, faz viúvas e órfãos, e põe tudo de cabeça para baixo (...). Portanto, que todo aquele que puder, elimine, mate e apunhale, secreta ou abertamente, lembrando-se de que nada pode ser mais venenoso, prejudicial ou diabólico do que um rebelde. É como quando se tem de matar um cão raivoso, se não o matarmos ele nos matará, e um país
inteiro conosco (...) 34.
A reação militar dos nobres contra a revolta foi devastadora e os rebeldes que
sobreviveram às lutas foram castigados com mutilações e condenados à forca. A Alemanha se
encheu de cadáveres e os mais ricos retomaram o controle de situação.
João Calvino foi responsável por criar, originariamente na França, o calvinismo,
baseado na predestinação. Considerado o teólogo do capitalismo, aprovava o lucro e a riqueza
por meio do trabalho, obtendo, portanto, o apoio dos burgueses comerciantes. De acordo com
Calvino a salvação da alma ocorria pelo trabalho justo e honesto e a miséria era a fonte de
todos os pecados. Essa idéia atraiu muitos burgueses e banqueiros para o calvinismo. Segundo
Calvino: “O comerciante que busca o lucro, pelas qualidades que o sucesso econômico exige:
o trabalho, a sobriedade, a ordem responde também ao chamado de Deus, santificando de seu
lado o mundo pelo esforço, e sua ação é santa” 35.
34
WILL, Durant. A reforma. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, p 284. 35
Todas essas reformas provocaram uma reação da Igreja Católica, que passou a ser
denominada de contra-reforma católica. Em 1545, o papa Paulo III convocou o Concílio de
Trento para estudar os problemas da fé, reafirmando os dogmas da fé católica e condenando
as teologias protestantes. Pelo Concílio de Trento, a Inquisição, instituição criada na Idade
Média, também denominada de Tribunal do Santo Ofício, foi reativada. Criou-se também, o
Índex, lista de livros proibidos pela igreja, dificultando o progresso cultural e científico no
mundo moderno.36
Embora a contra-reforma não tenha suprimido o protestantismo, ela anulou as
principais causas do movimento reformista, e nos países em que foi mais atuante (Portugal e
Espanha) foram justamente os que deram inicio à expansão marítima e ao colonialismo.
Assim, a fé católica foi transmitida por meio dos jesuítas, com destaque para a Companhia de
Jesus, que, semelhante a um exército (“soldados” de cristo como eram denominados os
jesuítas) tinha a missão de divulgar e espalhar a religião católica aos habitantes das terras
descobertas.37
Pesarosamente, não se pode deixar de constatar as enormes atrocidades cometidas pela
igreja católica, durante a contra-reforma. Apenas em Portugal, o Santo Ofício processou mais
de quarenta mil pessoas, queimou mais de mil e oitocentas nas fogueiras, além de condenar
mais de vinte e nove mil, entre as quais trezentos brasileiros. Na Espanha foram penitenciadas
trezentas e quarenta mil pessoas. Torturas como queimar as plantas dos pés dos interrogados,
estraçalhar os músculos e carnes de todo o corpo, aplicar ferro em brasa na boca foram
usadas, demonstrando a importância dada ao suplício como forma de redenção dada aos
condenados. Responsável por queimar Giordano Bruno e por ter perseguido Galileu, o Santo
Ofício da Inquisição, hoje denominado Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé38, vem
acusando muitas pessoas como hereges e advertindo muitos teólogos contemporâneos.39
36
Galileu foi condenado pela Inquisição e apenas não foi executado por renegar suas idéias acerca do heliocentrismo de Copérnio, sendo, todavia, condenado à prisão. Somente nos anos 90 do século Galileu foi perdoado oficialmente pelo papa João Paulo II.
37
O protestantismo no novo mundo ficou restrito à América do Norte, para onde foi levado pelos ingleses no século XVII.
38
Em 07 de maio de 2000, o "Roman Catholic Zenit News Service" registrou um documento escrito pela Comissão Teológica Internacional, apresentada por Joseph Ratzinger (atual papa Bento XVI), intitulado "Memória e Reconciliação”, cujo tema, "A Igreja e as Faltas do Passado" diz que "o mea culpa do papa (...) não representa uma interrupção radical na tradição da Igreja". O documento contém um ataque à Reforma Protestante, nos seguintes termos: "O Protestantismo criou uma nova historiografia da Igreja com o propósito de demonstrar que a Igreja Católica não apenas carrega a mancha do pecado, como é totalmente corrupta e destruída. Portanto, ela não é mais um instrumento de Cristo, mas do Anticristo, não sendo uma igreja, mas uma anti-igreja". (...) "Sem propósito algum, uma historiografia católica emergiu por meio do contraste (isto é, para o protestantismo) para mostrar que apesar dos pecados da Igreja, ela continua sendo a Igreja dos santos: a Santa igreja. (...) A Igreja atual não pode se constituir em tribunal que passe sentenças sobre o passado." 39