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43º. Encontro Anual da ANPOCS Caxambu/outubro de ST 42: Trabalho, sindicalismo e os desafios sociológicos

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43º. Encontro Anual da ANPOCS

Caxambu/outubro de 2019

ST 42: Trabalho, sindicalismo e os desafios

sociológicos

As Configurações do trabalho no contexto da produção de

commodities no estado de São Paulo

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As configurações do trabalho no contexto da produção de

commodities no estado de São Paulo

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Maria Aparecida de Moraes Silva2

Nas últimas décadas, o Brasil se destacou, internacionalmente, pela produção de commodities, como: açúcar, suco de laranja, soja, café, carnes, minerais e outros produtos. Essa produção se sustenta graças à disponibilidade de terras, clima, água e somas gigantes de investimentos nacionais, estrangeiros, subsídios estatais e também ao desenvolvimento de pesquisas em diversas áreas do conhecimento, como agronomia, genética e química. A ideologia do agronegócio, cuja principal diretriz é a sustentabilidade ambiental, contribuiu para a justificação do modelo de produção baseado na concentração da propriedade, na pilhagem de camponeses e recursos naturais, que são recursos comuns, como a terra, água e minerais. A riqueza e a grandeza dessa produção são mostradas em feiras agrícolas, nas medias principalmente na televisão e em eventos nacionais e internacionais. O objetivo deste artigo é analisar o inverso desse modelo: o mundo dos trabalhadores, ou seja, sua face oculta, invisível e negada. A proposta é o estudo do trabalho em dois espaços: na cana e no laranjal. A abordagem analítica é o trabalho como sofrimento, entendido como individual e social. Sofrimento que inclui, portanto, condições objetivas e subjetivas. Sofrimento que se refere à desapropriação das condições objetivas (terra) e da condição do sujeito. Sofrimento que se refere à desapropriação do status camponês. Ainda assim, esse processo gera um trabalhador que permanece camponês no imaginário. A metodologia é história oral, através de entrevistas, histórias de vida, fotografias e observação de campo.

1 Pesquisa financiada pela CAPES e CNPq e Fapesp.

2 Professora Sênior do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos

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Palavras-chave: trabalho rural; sofrimento relações de gênero / classe / etnia; desapropriação de condições objetivas e subjetivas.

Introdução

A chamada “revolução verde” foi um projeto responsável por profundas transformações na agricultura da América Latina, incluso na brasileira, a partir de meados dos anos de 1960, sob a égide dos EUA3. Tais transformações foram de ordem econômica,

politica e social. Foi um processo que implicou em concentração de terras, expulsão de camponeses e mudanças na maneira de produzir a partir do incremento de fertilizantes, agrotóxicos e maquinários, além da aplicabilidade do conhecimento científico, por meio de pesquisas nas áreas de química, genética e engenharia agronômica. Houve também muitas transformações relacionadas aos produtos agrícolas. No Brasil, foi um processo que recebeu o apoio do Estado por meio de incentivos fiscais, nova legislação para regular a produção (Estatuto da Terra em 1964) e nova legislação laboral para o campo (Estatuto do Trabalhador Rural em 1963). Vale dizer que este período foi caracterizado pelos governos da ditadura militar, muito embora o Estatuto do Trabalhador Rural tenha sido aprovado em 1963, tratava-se de um conjunto de leis que, ao fim e ao cabo, ratificaram a negação dos direitos aos trabalhadores do campo. Foi posto em prática o processo de militarização da

questão agrária, segundo o qual, assegurou-se a expulsão de camponeses por meio da

violência e também a implantação do pacote tecnológico que implicou em mudanças profundas na estrutura agrária do país (Martins,1984; Martins, 2014); Silva, 1999).

Portanto, tratou-se da implantação de novos padrões da acumulação do capital no agro. Em razão da destruição de formas de trabalho caracterizadas pela parceria, arrendamento, pequena produção, utilização de terras comuns, a população expulsa concentrou-se nas periferias urbanas. Com isso, as necessidades de reprodução social foram reordenadas. Essa população passou a depender exclusivamente da venda da força de trabalho para a

3 O pai da “revolução verde foi Nelson Borlaug, que desenvolveu as sementes híbridas no México, por meio

de pacote tecnológico, que incluía desde estruturas de mecanização até irrigação, emprego de fertilizantes químicos e pesticidas. A ideologia que sustentava a “revolução verde” era o combate à fome do mundo, por meio do aumento da produtividade, conseguido pela industrialização da agricultura com o apoio do Estado (Mendonça,2018: 67 e ss.) Esse processo que revolucionou a maneira de produzir foi responsável pela expulsão de milhões de camponeses no Brasil. Somente no estado de São Paulo, na década de 1960, foram expulsos 2,5 milhões de pessoas da área rural, na sua grande maioria, posseiros, arrendatários, parceiros, trabalhadores e pequenos proprietários de terra.

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subsistência. Muitos não conseguindo o emprego urbano, em virtude da ausência de qualificação e, até mesmo, da pouca escolaridade ou analfabetismo, tornaram-se boias

frias4, ou seja, trabalhadores rurais que residiam nas cidades e trabalhavam no campo.

Os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram o vertiginoso processo de urbanização do país, no período de 1940 a 2010, e o declínio paulatino da população rural. Em 1940, viviam na área rural 69% da população; em 2010, este percentual cai para16%. No estado de São Paulo, segundo a mesma fonte, em 2010, viviam no campo apenas 4% da população, ou seja um pouco mais de 1,6 milhões, enquanto nas cidades viviam quase 40 milhões de pessoas.

No estado de São Paulo as mudanças na agricultura implicaram na substituição paulatina das fazendas de pecuária e de café para a produção de cana de açúcar. Esse produto hoje ocupa quase seis milhões de hectares de terras paulistas, segundo o gráfico 1, sendo responsável por quase dois terços da produção do país. Além da cana, as plantações de laranja expandiram-se rapidamente, tornando o estado o maior produtor de suco de laranja do país. Assim, paulatinamente, novas configurações laborais foram surgindo, caracterizando-se pela presença maciça de trabalhadores migrantes e temporários, provenientes dos estados do nordeste e do Vale do Jequitinhonha (MG). Tais configurações ocorreram no contexto da reestruturação produtiva em várias escalas e momentos históricos, segundo a lógica da territorialização do capital.

Gráfico 1

4 Assim chamados porque passaram a comer comida fria. O vocábulo popular boia, significa comida

preparada durante a madrugada antes da ida aos campos de trabalho. Os alimentos eram colocados em marmitas, não térmicas. Assim, no momento de serem ingeridos no almoço, já estavam frios.

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Fonte: Gráfico elaborado pela autora a partir dos dados do IBGE

O intuito deste artigo é analisar as relações sociais e laborais rurais no estado de São Paulo, levando-se em conta dois produtos: cana e laranja. Tanto os dados quantitativos da produção das commodiites5 como os qualitativos, produzidos por nossas pesquisas, ao

longo de quase 40 anos, demonstram que o processo do avanço técnico-científico nas últimas décadas é acompanhado da degradação do trabalho. As commodities - açúcar, etanol, suco de laranja - possuem duas faces. Uma delas se manifesta nos dados quantitativos elevados e crescentes a cada ano, e a outra (ocultada) se refere à degradação, superexploração da força de trabalho, além dos danos ambientais causados pelo uso excessivo dos agroquímicos (Bombardi, 2017).

5Segundo dados publicados na Folha de S. Paulo, 28 de maio, 2019, p. A22, no período de 1989 a 2019,

a produtividade por hectare no Brasil passou de 1.692 para 3.768; o volume da produção aumentou de 71,5 milhões de toneladas para 237,7 milhões; da carne de frango passou de 2,1 milhões para 13,5 milhões; a área com produtos agrícolas passou de 42,2 milhões de hectares para 237,7 milhões, havendo, portanto, um aumento de 49%. No tocante à produção de grãos, o crescimento da área foi de 231%. A soja apresentou uma evolução de 287%, quanto ao valor da produção. Nos últimos dez anos, as exportações do agronegócio somaram 90 bilhões de dólares, enquanto no período de 2000 a 2010, esses valores correspondiam a 38 bilhões de dólares. As exportações de açúcar passaram de 1 milhão de toneladas para 28 milhões no período de 1989 a 2019. Segundo dados da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) em 2018 a produção de cana foi de 633, 26 milhões de toneladas, de etanol 30,4 bilhões de litros numa área de 8,66 milhões de hectares, dos quais, quase seis milhões no estado de São Paulo; quanto às caixas de laranja (40,8kg/caixa), a produção correspondeu a 284 milhões no ano de 2018.

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Para dar conta da análise dessa face ocultada, a metodologia da história oral possibilitou a descida ao âmago dessas produções, por meio da análise do detalhe, dos fenômenos invisíveis, tanto dos objetivos como subjetivos, vivenciados por aqueles/as que trabalham nessas terras. Portanto, propomos a análise do processo de trabalho e das representações dos/as trabalhadores/as sobre os danos físicos, morais e psíquicos produzidos pelas relações sociais laborais por meio da interpretação antropológica e sociológica, com base em entrevistas, relatos orais, trajetórias de vida, memórias, observação de campo, realização de oficinas, produção de imagens e pertencimento à

mesma comunidade de destino dos sujeitos da pesquisa. Nosso intento é trazer à luz,

sobretudo, os elementos da subjetividade resultantes das relações laborais que cindem os sujeitos, tornando-os estranhados em relação ao produto de seus trabalhos e também em relação a si mesmos. Por outro lado, o mesmo processo que produz o estranhamento6 gera

o (des) estranhamento, por meio da dialética conflitiva das relações subjetivas e sociais. A fim de dar conta desta proposta, serão apresentados, inicialmente, de forma descritiva, os processos de trabalho da cana de açúcar e da laranja e, em seguida, a análise das representações sobre o trabalho e a estrutura dos sentimentos vivenciados.

Quem são os trabalhadores no campo paulista

A fase correspondente ao período da ditadura militar (1964-1985) foi responsável pelas novas configurações do trabalho rural com as seguintes características: trabalho temporário, exercido, basicamente por migrantes provenientes do Vale do Jequitinhomha/MG e estados do nordeste do país que se alojavam nas periferias das cidades e também nos barracões7 e alojamentos das usinas canavieiras. Foram centenas de

milhares de homens e mulheres, alguns acompanhados das famílias movidos pelas necessidades de sobrevivência e também dos sonhos de melhorarem de vida (Maciel, 2016). Ao longo de mais de seis décadas, assistiu-se no período de março a novembro, a presença dessas pessoas, consideradas de “fora”, nos canaviais. Com o final da safra, a grande maioria retornava aos seus locais de origem, munidos da esperança de regressarem

6 Utilizaremos a interpretação de Ranieri (2004: 15-16) dos conceitos de alienação e estranhamento em Marx.

Segundo Ranieri não é tão evidente que estes dois conceitos sejam sinônimos, embora haja uma unidade entre eles. No decorrer do texto, serão aprofundadas estas reflexões.

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no ano seguinte. Alguns, requeridos para as atividades da entressafra, permaneciam nos locais de destino, os quais, com o passar dos anos, tornaram-se migrantes estabelecidos. No que se refere à grande maioria, o vaivém espacial e temporal foi o marcador de suas trajetórias. Tornaram-se sujeitos da migração permanentemente temporária, como a definimos alhures (Silva,1999).

A presença desses trabalhadores8 no estado de São Paulo só foi possível graças ao

processo de violência, acima mencionado, que culminou na tomada de suas posses de terra, configurando-se o que Harvey (2010) definiu como acumulação por espoliação. Portanto, tratava-se de um processo social determinante da condição de fornecedores da força de trabalho tão-somente. Separados de suas terras, de suas famílias, de suas culturas, tornaram-se no espaço de pouco tempo, sujeitos cindidos, fraturados, logo despossuídos dos referenciais de pertencimento que deixaram para trás.

É uma mobilidade que pressupõe bagagem, uma mala, uma mochila, um saco às costas9. Portanto, a primeira questão é essa: Quem parte? Quem fica? O que traz em sua

bagagem aquele que parte? Quem deve/pode partir? Quem não deve/não pode partir? O que colocar na bagagem? Algumas roupas, fotos de pessoas da família, alguns objetos de memória e a ilusão ... No caso dos maranhenses, eles trazem sacos de farinha e a muda de uma vinagreira para o preparo do arroz de cuxá10, para dar sabor à comida. Uma espécie

de pedaço da cultura camponesa dos babaçuais. No caso dos mineiros, o óleo de pequi11,

um pedaço de rapadura... Enfim, pedaços, partes de um todo que fica para trás.

O que ele deixa para trás? A casa, a família, a terra, enfim o lugar, lugar social, lugar de pertencimento, de reconhecimento ... Ao deixar o lugar para trás, o emigrante transforma-se no atopos, sem lugar, deslocado, inclassificável (Bourdieu, 2010:16). Uma espécie de lugar bastardo, de “lugar que não é da gente”, de “terra que não é da gente”. Assim, configura-se a dupla ausência: ausência na/da terra da gente (partida). Uma sorte

8 A grande maioria é de negros e descendentes de indígenas. Logo, pessoas discriminadas, segundo os

fenótipos étnicos/raciais. No tocante às mulheres, somam-se as discriminações de gênero.

9 Constatações a partir de duas pesquisas nos locais de origem: uma em Minas Novas/MG e outra em

Timbiras/MA. Momento em que as famílias se despedem dos que partem em ônibus fretados pelos

turmeiros para diversas cidades do estado de São Paulo.

10 Cuxá é o arroz preparado com uma vinagreira existente no Maranhão (estado do meio norte do Brasil). A

viagem levava em torno de três dias e três noites num percurso de mais ou menos três mil quilômetros até os locais de destino.

11O pequi (Caryocar brasiliense), também chamado de pequizeiro, piqui, piquiá e pequiá, é uma árvore da família das cariocaráceas nativa do cerrado brasileiro.https:pt.wikipedia.org/wiki/pequi. Acesso em 20/05/2019.

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de ausência presente; e ausência na terra que não é da gente (chegada não reconhecida). É uma sorte de presença ausente.

Vale ainda lembrar, segundo as advertências de Sayad, que não se trata de um simples deslocamento de força de trabalho. É necessário investigar os mecanismos responsáveis pela gênese do processo que produziu o emigrante, este sobrante, disponível para migrar. É preciso também se perguntar como tais trabalhos no outro espaço social são disponíveis e ainda mais: disponíveis para os imigrantes (Sayad, 2010: 21). Embora Sayad tenha analisado a situação dos argelinos na França a partir dos anos de 1970, sobretudo, suas considerações são valiosas para a compreensão do ato de suportar as condições de trabalho nos campos paulistas pelos migrantes. São ideias essenciais ao entendimento de que sujeitos estamos falando, quem são eles/as? Por que se destinam aos trabalhos mais pesados e são submetidos à superexploração, à violência laboral e ao processo de perda paulatina da condição de trabalhador/a? As respostas à essas questões estão no interior do laboratório secreto da produção. No entanto, cabem ainda, algumas considerações sobre a forma de contratação dos trabalhadores.

Antes de 2008, a mobilidade era em grupos, geralmente agenciados pelos turmeiros (enganchadores), responsável pela turma e pelos contratos de trabalho. Os turmeiros eram pessoas do mesmo grupo social dos trabalhadores e que, portanto, os selecionava a partir do (re) conhecimento que possuía dos mesmos. Assim, os que participavam de greves, os que causavam encrencas ou os que não conseguiam cortar a quantidade de cana exigida (média) não eram aceitos. Apenas os bons eram admitidos. Eram transportados em ônibus fretados pelos turmeiros. Nos locais de destino, os trabalhadores eram conduzidos aos alojamentos no interior das áreas de cana ou alugavam casas (barracos) nas cidades. Nos alojamentos das usinas, as mulheres não eram admitidas. Deste modo, os que vinham com a família eram obrigados a alugar moradias nas cidades.

A partir de 2009, há uma mudança na forma de contratação. Os contratos passaram a ser feitos nos locais de origem. Porém, antes havia a seleção feita pelos turmeiros (enganchadores). Selecionados, eram examinados pelos médicos (das empresas), a fim de descartar os que sofriam de doenças cardíacas ou os portadores da doença de chagas12. Os

12 Doença de Chagas ou Tripanossomíase americana é uma doença tropical parasitária causada pelo

protozoário Trypanosoma cruzi e transmitida principalmente por insetos da subfamília Triatominae. https://pt.wikipedia.org/wiki/Doença_de_Chagas. Acesso em 23/05/2019.

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escolhidos eram transportados em ônibus das empresas até os locais de origem. O contrato laboral era temporário e referente ao tempo da safra da cana. Ao chegarem aos locais de destino, eram conduzidos às casas ou alojamentos situados nas cidades. As mulheres não eram aceitas e o espaço era totalmente controlado pela vigilância das empresas, realidade assemelhada à instituição total, segundo Goffman (2001).

A mudança da forma de contratação ocorreu em razão do aumento vertiginoso da mecanização do corte manual da cana. Com o passar do tempo, criou-se o mercado laboral temporário regulado. Ademais, em razão das denúncias das mortes de trabalhadores por exaustão durante a jornada , de trabalho escravo, causaram vários problemas às empresas: ações trabalhistas, multas instauradas pelo Ministério Público (MP) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), além de sanções dos compradores globais de açúcar e etanol (Silva, Verçoza, Bueno, 2013 b; Silva, Martins, 2010). A fim de garantir as exportações e os lucros das empresas, além da prevalência da ideologia das commodities, baseada na produção do agribusiness, responsável pelo desenvolvimento econômico do país, o Estado elabora um pacto social entre empresários e trabalhadores - Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de trabalho na Cana de Açúcar - , em 2009, cujo objetivo era impor alguns limites ao processo de superexploração vigente, segundo o cumprimento da NR3113.

O laboratório secreto da produção nos canaviais

Para dar conta da proposta deste artigo, analisaremos depoimentos colhidos com mulheres e homens que migraram para o estado de São Paulo e atualmente residem nas cidades. Alguns estão ainda trabalhando, enquanto outros já são aposentados ou afastados por problemas de doenças contraídas durante o período laboral14.

A jornada laboral inicia-se em torno das 4:30hs, momento em que a refeição é preparada para ser levada ao local de trabalho ou para ser deixada a outras pessoas da família, principalmente, crianças. É uma tarefa que cabe às mulheres, sobretudo. Às

13 Em 2005, foi criada a NR31 (Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde), destinada aos trabalhadores

rurais, pelo MTE. Estas normativas visavam criar um ambiente laboral condizente com o Trabalho Decente, promulgado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) em 1999, ao qual o Brasil aderiu.

14 As entrevistas e observações de campo foram realizadas durante os anos de 2007 e 2017. Em 2017 foram

realizadas mais de 70 horas de entrevistas gravadas, além de um acervo fotográfico com trabalhadores/as da laranja em diversos municípios do estado de São Paulo.

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6:00hs, os ônibus partem e, em geral, às 7:00hs inicia-se a atividade, definida pelo

turmeiro, responsável pela turma e também pelo controle do trabalho. Nos canaviais,

atualmente, houve, em razão do processo de mecanização (gráfico 2), praticamente a extinção dos cortadores de cana. No entanto, não houve o desaparecimento do trabalho e sim um processo de reconfiguração laboral por meio da combinação de máquinas e trabalho manual. Como se trata de um fenômeno muito recente, a memória laboral referente ao corte se constitui num elemento central na maioria das narrativas, tanto pelos que estão ainda trabalhando, quanto pelos que estão afastados ou aposentados. Trata-se de uma atividade que deixou marcas profundas nos seus corpos e em suas subjetividades. A fim de dar ao leitor a dimensão da carga laboral e seus efeitos sobre os corpos, faz-se necessário uma breve descrição dessa atividade.

Gráfico 2

Mecanização da lavoura de cana no estado de São Paulo

Apud Bunde (2017)

Ao chegarem aos canaviais, os turmeiros dividiam os trabalhadores, segundo o eito15, composto por cinco ruas (fileiras) de cana. O trabalho é iniciado pela terceira fileira.

O corte da cana16 consiste em vários movimentos de flexão de braços, pernas e coluna

15 Eito é uma palavra advinda do período da escravidão, cujo significado é o local de trabalho.

16 Algumas horas antes do corte, geralmente à noite, a cana era queimada. O objetivo era o aumento da

produtividade. As queimadas em milhões de hectares provocaram vários danos ambientais, sobretudo, em razão da queima de animais como tatus, cobras, lagartos, lobos, veados (os dois últimos em extinção). Este ato, considerado um verdadeiro crime ambiental, foi responsável por muitas doenças cardiorrespiratórias dos trabalhadores e também das pessoas das cidades, mormente de crianças e idosos.

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 2007 2014 2017

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(Foto1). O trabalhador abraça um feixe de canas (10 canas aproximadamente), desferindo golpes para cortá-las ao rés do chão. Em seguida, corta os ponteiros (pontas), lançando os feixes nos montes localizados na terceira fileira. Na sequência, são cortadas as canas das demais fileiras. Deste modo, além de cortar a cana, há a necessidade de carregá-la até o monte (leira) na terceira fileira17 para, em seguida, ser recolhida pelos guinchos e colocada

nos caminhões, que a transporta até o engenho. Portanto, o desgaste de energia ocorre tanto no momento do corte como no momento de carregar as canas nos braços até os montes. A exigência de cortar a cana ao rés- do-chão deve-se ao fato de que a maior quantidade de sacarose se concentra próxima à raiz da planta, ao contrário dos ponteiros, que são descartados, pois os transportes dos mesmos até os engenhos acarretariam prejuízos às empresas.

Foto 1

Foto: Acervo do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), 2007.

No tocante aos EPIs (Equipamentos de Proteção Individuais), há a touca árabe, o boné, óculos, botas, caneleiras e luvas. Levando-se em conta as altas temperaturas que podem chegar a 40º, segundo as regiões e os meses mais quentes do ano, e o peso dos EPIs, o desgaste da força de trabalho pode exceder a capacidade laboral. Segundo pesquisas advindas da área médica, da agronomia ergonómica e também da sociologia (Barbosa, 2010; Laat, 2010; Verçoza, 2018; Silva, 2016; Reis, 2018, Alves, 2006; Silva, Verçoza,

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2018), a sobrecarga laboral pode, além de causar várias doenças osteomusculares, cardiológicas, respiratórias, sendo estas últimas causadas pela fuligem, levar à morte. No estado de São Paulo, segundo denúncias à Pastoral do Migrante, no período de 2004 a 2009, 23 trabalhadores migrantes faleceram em função da exaustão, provocada pelo trabalho na cana (Faciolli, 2009; Silva, et al, 2013 a).

Ouçamos a voz de Clarisse, senhora negra, que aprendeu a cortar cana com o avô, que trabalhava ajoelhado em razão das dores na coluna. Clarisse aos 70 anos de idade, conseguiu se aposentar, mas as marcas do trabalho lhe causam até hoje, sofrimentos em razão das dores sofridas.

Entrevistadora: Esse trabalho na cana teve algum efeito para saúde da senhora?

Clarice: Teve, teve porque eu tenho um problema na coluna, problemas nos pés, por causa do sapatão que apertava, e eu já tenho o pé assim oh, e aí entortou mais o meu pé, chegava de tarde no ônibus eu precisava tirar o sapatão e vir embora descalça, aquela caneleira apertava na perna, e hoje em dia eu tenho dor nas pernas, dor assim no pé, nos braços assim, dói, tem dia que eu não posso nem lavar roupa, de tanto que dói o corpo, e a gente assim mesmo, com tudo que eu sofri, estou sofrendo, porque tudo isso é fruto da roça, do serviço, tudo que eu estou passando, tem dia que eu não levanto da cama; você viu aquele dia que você veio aqui, eu estava toda torta, eu falei que não estava boa, eu não estava boa nem para conversar (....). Sem contar as dores na coluna ... minha coluna está toda desgastada ... Não consigo mais abaixar e até para levantar da cama é difícil. Entrevistadora: E a cana queimada, a senhora teve algum problema com a fuligem da cana? Clarice: Com a fumaça da cana? Aquela poeira? Aquilo que me deu a sinusite, aquilo provoca muito, provoca muita doença aquilo, o pó da cana, é mesma coisa esse fogão de lenha, o médico até proibiu, e eu por causa da vista, que eu operei a vista e por causa da sinusite, porque a cana ela é queimada, conforme você corta faz aquela poeirinha (...). É, e vem tudo para o nariz, e quando chega de tarde o nariz da gente assim por dentro assim, está tudo preto, até a volta assim do olho, é perigoso também para vista e eu furei a vista uma vez aqui, no cantinho do olho18.

Ademais do corte, a recolha dos pedaços de cana (bitucas)19 que ficam na terra após

o corte, é uma tarefa que cabe, em geral, às mulheres. Trata-se de uma atividade penosa, pois exige-se a postura agachada do corpo. Os fiscais do trabalho (feitores)20 escolhem as

mulheres, pois, segundo eles, elas são mais habilidosas, cuidadosas e deixam o canavial

limpinho. São verdadeiras faxineiras dos canaviais. Essas representações acerca do gênero 18 Entrevista realizada pela autora com Clarisse, 70 anos de idade, ex-cortadora de cana em várias usinas

do estado de São Paulo, em 2007.

19 Bituca é um termo popular que corresponde ao resto do cigarro que não é fumado e é descartado. 20 Feitor é também um termo da época da escravidão e se reporta ao responsável pelo controle dos

trabalhadores. É o responsável pela disciplina, aplicação de advertências, suspensões e demissões. Na época da escravidão, geralmente, eram negros (da confiança dos senhores) que exerciam o total controle, inclusive a aplicação de castigos e torturas.

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feminino reforçam os padrões discriminatórios e contribuem para a elevação dos níveis de exploração em função das tarefas exercidas serem consideradas leves, portanto, passíveis de serem pagas a preços mais baixos.

Cristiane, que trabalhou nos canaviais e laranjais, relata-nos sobre o trabalho na

bituca, na catação de pedra e no plantio da cana: Entrevistadora; como era esse trabalho da bituca?

Cristiane: A bituca (...) Era, era cansativo porque assim, a máquina (guincho) passava carregando o caminhão, que nem naquela foto que a senhora tem do livro, e aí aquela cana que caía, que a máquina não juntava de novo, era o pessoal da bituca que ia juntar, então a gente carregava aqueles feixes de cana, e aí estipulava tipo assim, cada três ruas um monte, então quem pegava na rua (fileira) do meio, se tinha bastante cana, cada três ruas um monte, era a rua do monte, aí quem pegava na rua do meio, era o dono da rua do monte, cinco ruas... um eito para baixo e um eito para cima, o de cá trazia aqui e daqui trazia aqui, mas aí quando tinha pouca cana, eles faziam os montes, às vezes longe, às vezes a rua do monte tinha pouca cana e as ruas do lado tinham bastante, e quem ia com a rua do monte como às vezes tinha pouca cana ele levava cana longe, aí os montes às vezes ficavam longe um do outro, e quem estava do lado que pegava bastante cana sofria, porque tinha que carregar longe, até que a gente começou aprender a viver e a hora que a distância estava longe a gente fazia outro monte, mas no começo eles falavam que não podia, e a gente tinha que carregar longe e voltar para trás e ir de novo, e voltar para trás. Era preciso trabalhar agachada ou ajoelhada. Doía muito o corpo. No final do dia, a gente se sentia moída ...

Entrevistadora: E recebia por produção também? Cristiane: Por produção, por metragem.

Entrevistadora: Cristiane, eu entrevistei algumas mulheres, faz uns dois anos, e elas trabalhavam catando pedra, você já ouviu falar desse trabalho?

Cristiane: Eu não cheguei a fazer, mas meu esposo fez. Na usina, porque como tem a colhedora hoje, então lugar de muita pedreira, quando tem pedra muito grande eles cavoucam tudo em volta de enxadão, aí vem com a máquina, com a carregadeira, alguma coisa, aí eles rolam aquela pedra na concha da máquina, a máquina leva e amontoa em um lugar, senão, se é pedra menor um pouco que dá para carregar, eles vão carregando, fazendo um monte, depois vem a carregadeira e tira dali. Entrevistadora: Mas é preciso entrar lá no meio do canavial?

Cristiane: Tem que andar rua por rua procurando as pedras, onde é lugar de pedreira assim que tem, eu não cheguei a fazer, mas meu marido contava para mim o que ele fez. Ele é dessa turma, que eu falei, que a gente trabalhava, que é... catava pedra. É um trabalho perigoso esse, pesado, perigoso. Catava pedra, plantava cana ... Depois quando acabou a bituca aí o pessoal ficou só com tirar pedra do meio do canavial, carpir carreador, plantar cana, que daí mudou o sistema de plantio, que antigamente o caminhão entrava no meio e o pessoal subia em cima e ia jogando a cana no chão, hoje não, hoje o caminhão entra, aí vem uma carregadeira e vai distribuindo os feixes de cana a cada distância, aí o pessoal pega o feixe de cana nas costas e sai esparramando nas ruas que é para plantar. Hoje é, o plantio mudou totalmente. Mas naquela época era difícil demais.

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Cristiane: Depois o trator cobre com a terra e o pessoal passa repassando se ficou alguma ponta de fora e cobre essas pontas que ficaram de fora. Antes, trabalhava ajoelhado. De cima do caminhão, os homens lançavam a cana e as mulheres iam colocando nos sulcos e cortando. Atrás vinha o trator tapando o sulco ... Tinha que ser muito rápido, trabalhar na velocidade do caminhão e do trator.

Entrevistadora: Seu marido tem problemas de saúde?

Cristiane: Meu marido foi despedido e está aguardando a resposta do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social). Ele pediu para ser aposentado por invalidez, pois não aguenta mais trabalhar. Sofre muito com a coluna. Ele tem artrose na coluna ... O serviço era muito ... nessa época que ele estava na usina o serviço estava muito pesado, porque era... que nem a mulher disse para senhora, que era catar pedra, era carregar feixe de cana esparrando... andar naquela terra arada com feixe de cana nas costas para esparramar a cana para o pessoal picar, e aí o médico, que consultou ele, falou para ele que ele não tinha mais condições de fazer esse serviço; ele falou para o médico: eu vou fazer o quê? Estudo, eu não tenho, para dizer que eu vou arrumar um serviço na cidade, na idade (52 anos em 2017) que eu já estou também ... não vou conseguir. É difícil21.

A descrição dessas atividades feitas por Clarisse e Cristiane revela os meios responsáveis pelos altos ganhos de produtividade, configurando-se um processo de violência laboral e superexploração do trabalho, dado que a forma de pagamento é por produção, além da imposição de um quantum (média) de cana cortada ou pedaços recolhidos por dia de trabalho. Caso esta média (10 a 15 toneladas cortadas/dia) não seja atingida, os trabalhadores correm o risco de serem dispensados no final do mês ou receberem advertências ou ganchos (suspensão de até três dias). Dados de uma pesquisa realizada nos canaviais paulistas mostram que o trabalhador que cortar de 10 a 13 toneladas de cana por dia, desfere 3.498 golpes de facão e faz 3.080 flexões de coluna (Laat, 2010). No que tange aos canaviais alagoanos, os dados da pesquisa de Verçoza (2018: 209-213) apontam para a confirmação do nexo causal entre excessivo esforço e mortes súbitas. Para a obtenção desses resultados, o autor realizou o acompanhamento da frequência cardíaca de 22 trabalhadores ao longo de uma jornada laboral, por meio do monitor de frequência cardíaca, modelo Polar RC3 GPS.

Nota-se que somente 4 trabalhadores não extrapolaram a carga cardiovascular limite de 33%. Dentre eles, dois foram os que produziram menos toneladas. Ao todo, 81,82% ultrapassaram o limite da carga física de trabalho ... Destacam-se alguns trabalhadores que ultrapassaram o limite de carga cardiovascular em níveis extremos, como a situação (de um deles) que atingiu 46,15% ... A média da CCV (Carga Cardiovascular) do grupo foi de 36,2% ...

21 Entrevista realizada pela autora com Cristiane, 48 anos, primeira mulher tratorista em uma grande

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Os resultados também demonstram incidência de elevadíssimo índice de frequência cardíaca máxima. Os trabalhadores “13” e “18” ultrapassaram o limite da frequência teórica, chegando, respectivamente, a picos críticos de 187 a 200 batimentos por minuto (Verçoza, 2018, p. 210).

Em virtude do esforço e das altas temperaturas, produz-se um distúrbio hidroeletrolítico, com possíveis danos às células. Caso não houver um atendimento imediato, segundo avaliação de médicos, por meio de hidratação, poderá ocorrer mortes súbitas. Segundo os depoimentos de trabalhadores, são comuns as câimbras em todo o corpo durante a jornada de trabalho. Em Alagoas, a denominação dada a essa situação é “canguru” (devido ao encolhimento dos braços junto ao corpo, tal como o animal australiano)22.

Segundo Marini (2011), a superexploração ocorre por meio de três fatores combinados: aumento da jornada de trabalho; aumento da intensidade laboral; redução do consumo em razão dos salários serem pagos a baixo do valor da força de trabalho23.

O depoimento seguinte é de Maria, esposa de um cortador de cana que superava a média exigida. Era considerado um dos melhores (“podão de ouro”). Seu relato revela sentimentos ambíguos de desespero, impotência e revolta.

Maria:

- Quando ele chegou da roça, eu vi ele preto, eu falei: ai meu Deus do céu, foi porque que te jogaram dentro da carvoaria, você brigou, te jogaram dentro duma carvoaria? Que eu nunca tinha visto aquilo24. Meu Deus do céu, mas eu sofri. Eu lavava essas roupas e lavava e pensava que

tirava, ele que me ensinou, não que isso não sai tudo não. Foi sofrido, olha ele chegou aqui... Pra

22Além do “canguru”, os dados da pesquisa de Verçoza mostram, por meio da aplicação do questionário

nórdico, com perguntas sobre a auto percepção da dor. Dos 33 entrevistados, a maioria relatou dores na região lombar (87,88%), além dos punhos e ombros e tem outras regiões do corpo. (p: 162-163). Nos canaviais de São Paulo a denominação para a mesma ocorrência é birola.

23 Em 2013,segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo (FETAESP), os

valores da tonelada de cana cortada variam entre R$ 3,80 e R$ 4,00. E o piso salarial mensal, regional, variava entre R$ 775 e R$ 840 para uma jornada semanal de segunda a sexta-feira, das 7h às 16h20. “Para se sustentar e à sua família, o cortador de cana deveria ter um piso correspondente a pelo menos três salários mínimos (R$ 2.034)”, disse Roberto dos Santos, secretário geral da FETAESP. De acordo com o dirigente, não há no momento nenhuma opção que permita ao trabalhador ganhar o suficiente.

https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2013/02/sistema-de-pagamento-por-producao-causa-doencas-e-morte-entre-os-cortadores-de-cana-adverte-pesquisador-de-sao-carlos/.

Em 2017, o pagamento por tonelada de cana era em torno de R$ 5,50.

24 A família era proveniente da Bahia. Na medida em que a cana ia sendo cortada, ia despendendo da

mesma a fuligem que impregnava o corpo e a roupa. No depoimento, Maria relata as dificuldades de lavar a roupa, tendo em vista que a fuligem era impregnada do melaço criando uma camada aderente, difícil de ser removida.

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você ver, quando nós chegou aqui nós morou na Edineuza eu fiquei trabalhando, ele desempregado. Ele adoeceu de dormir no chão gelado. Não tinha onde dormir, nós cozinhávamos dentro de uma lata de óleo com jornal. Tinha uma menininha que nos preparava todo dia, eu com fome, a menina trazia um prato cheio de bolo (...). Ele ia trabalhar com dois pedaços de bolo. E ele chegou a ir pro hospital e deu pneumonia, aí foi um sofrimento ... Depois que as coisas melhoraram assim, pelo menos nós temos uma cama pra dormir. Gela, mais ainda gela. Mas devagarinho, se Deus quiser nós chegamos lá. Mas eu nunca vi daquele jeito, olha, vou lhe dizer uma coisa, eu já conheci, mas sofrimento igual trabalhar em cana, eu nunca vi. Eu nunca, tem gente que, meu Deus do céu. Que chega mesmo. Tem uma vez que ele chegou que ele caiu. Pensei que ele tinha morrido. Eu queria puxar as pernas dele: não, deixa eu do jeito que eu estou. Meu Deus do céu, que subia aquela bola assim na perna; ele tentava dormir, mas não conseguia; aquela bola subia pelo corpo todo; eu esfregava e esfregava ... e ele gritando de dor; eu falava: o meu Deus, pelo amor de Deus, você vai aguentar isso? Eu pensava , você pode acreditar que tinha vez que eu achava que ele estava aleijado, de ver a situação dele e nunca ... tinha visto ele assim. Está aí um trabalho que ninguém valoriza, sabia, ninguém valoriza não, você trabalha, trabalha de lascar e quando vai lá pedir um valinho de 10 reais: não pedir valinho (referente ao vale refeição) não, não. Mas é pra eu levar mistura, ainda fala que não tem, mesmo que dá, dá, mas reclamando do sacrifício. Está doido, essa vida não, mas, se Deus quiser um dia nós saímos dessa25.

O depoimento é revelador da superexploração26 e do estranhamento em relação ao

espaço, ao clima frio durante o inverno, a fome, o salário aquém das necessidades de reprodução da família e da solidariedade proveniente de uma menina que lhes fornecia dois pedaços de bolo, que eram ingeridos durante o trabalho. Por conta de dormir no chão, sem ter cama ou até mesmo um colchão, o marido foi acometido por pneumonia. Estranhamento que revela também o sofrimento individual e social. Mais adiante, retomaremos essas reflexões.

O laboratório secreto da produção nos laranjais.

A cultura da laranja é distribuída desigualmente no Brasil, concentrada um pouco mais de 70% no Estado de São Paulo, e o restante distribuído nos estados: Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. Na safra de 2017/2018, foram colhidas 398,35 milhões de caixas de laranja no estado de São Paulo e sudoeste de Minas Gerais27. Segundo Neves

(2010), de cada cinco copos de laranja consumidos no mundo, três são de origem brasileira. Várias pesquisas (Paulillo, 2000, 2006) já demonstraram o potencial da citricultura brasileira, particularmente, a paulista, desde a década de 1960 com a formação dos Complexos agroindustriais (Almeida, 2002).

25 Entrevista realizada pela autora com Maria, esposa de um cortador de cana, em Barrinha (SP) em 2007. 26 Para o aprofundamento das reflexões sobre a superexploração do trabalho, ver Guanais (2018) e Felix

(2019).

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O avanço da citricultura se insere também no contexto da chamada “revolução verde” implantada no país durante a ditadura militar, como foi mencionado acima. Ainda que tenha havido muitos problemas relacionados às pragas, sobretudo, ao greenning28, que

causaram a erradicação de 15 milhões de árvores, o estado de São Paulo ainda é o maior produtor. Isso ocorreu, segundo Neves (2010), devido ao deslocamento territorial das plantações para o sudoeste do estado. Contudo, esse deslocamento implicou na falência de muitos pequenos produtores familiares e na concentração da produção. De modo geral, as grandes empresas processadoras de suco são também proprietárias das plantações e há os grandes proprietários que vendem o produto às processadoras. Encontramos em nossa pesquisa na região central do estado, um grande proprietário que possui oito milhões de pés de laranja. A venda é destinada ao consumo interno (in natura) e apenas uma parte é vendida para sucos.

O processo de concentração pode ser quantificado pelos números seguintes: Em 2001, as propriedades com mais de 400 mil árvores detinham 16% das árvores do parque citrícola do estado, enquanto em 2009 esse percentual saltou para 39%. Já as propriedades com dez mil a 199 mil árvores detinham 61% das árvores do cinturão, valor este reduzido para 40% em 2009 (Neves, 2010: 50).

Quanto à produtividade, verifica-se que as áreas atingidas pelas pragas apresentaram um declínio expressivo. Em 2009, 44% dos hectares plantados no cinturão citrícola apresentaram produtividade abaixo do necessário para ter renda. Neles são produzidas em média 280 caixas/hectare. É uma grande diferença em relação às demais propriedades que somam os outros 56% dos hectares, nos quais foram aferidas em média 909 caixas por hectare. (Neves, 2010: 50).

A queda da produtividade foi o fator fundamental para a eliminação da produção de milhares de agricultores familiares. Segundo dados da CONAB em 2011, os dados

28 O cancro cítrico é uma doença bacteriana que causa queda prematura das folhas e frutas e que na década

de 1990 atingiu o seu ápice. É a mais antiga das quatro doenças presentes no Brasil. A CVC (clorose variegada dos citros), uma doença bacteriana que afeta o sistema vascular das árvores reduzindo o tamanho das frutas ao tamanho de uma bola de golfe, foi a que mais danos causou até hoje e teve sua origem nas regiões norte e noroeste do Estado de São Paulo, posteriormente migrando para o centro do cinturão citrícola. A morte súbita, uma doença vascular capaz de matar a árvore em 12 meses, desenvolveu-se principalmente nas regiões norte e Triângulo Mineiro em laranjeiras enxertadas sobre o porta-enxerto do limão-cravo. Finalmente tem-se o greening, a mais recente doença bacteriana e a que causa maior preocupação aos citricultores pela velocidade em que se alastrou do seu ponto de origem, na região central de São Paulo, para as demais regiões (Neves, 2010, p 54).

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referentes á ocupação na citricultura paulista foram: Os proprietários, arrendatários, parceiros e seus familiares representavam 9% do número total dos ocupados (23 mil pessoas). Os tratoristas representavam 4% (10 mil); os mensalistas 7% (19 mil) e os trabalhadores volantes, 79%, correspondendo a mais de 208 mil pessoas.

Seguindo a proposta deste texto, será analisada a configuração das relações de trabalho nos laranjais. A descrição do processo de trabalho é importante para a compreensão dos níveis de exploração da força de trabalho e, em decorrência, dos resultados para o corpo e as doenças relacionadas. A Figura 1 demonstra o eito nos laranjais.

Os trabalhadores são também, em sua maioria, migrantes. São provenientes dos estados do nordeste, principalmente do Piauí (Maciel, 2016). Configuram-se dois processos concomitantes: a mobilidade do capital e a mobilidade do trabalho. Segundo Gaudemar (1977), na mobilidade do trabalho há dois princípios de liberdade. A liberdade positiva, quando o trabalhador vende livremente sua força de trabalho e a liberdade negativa, quando há a imposição da mobilidade, dado que se tal não ocorrer, o trabalhador não tem como garantir sua sobrevivência.

Vale ainda dizer que, em se tratando do mesmo espaço produtivo ou, melhor, do mesmo processo de territorialização do capital canavieiro, está ocorrendo um verdadeiro nomadismo de trabalhadores de uma plantação a outra. Portanto, a mobilidade não ocorre apenas de uma região a outra, como também no interior de um mesmo território. Com isso, configura-se um processo de mobilidade permanente (Silva, 2016). Assim sendo, com o incremento da mecanização do corte manual da cana, houve um declínio sensível do número de migrantes para esta atividade, como vimos em linhas atrás. Muitos deles, sobretudo, as mulheres, movem-se em busca dos empregos na laranja, quer como

pragueiras quer como colhedoras. Dados da nossa pesquisa revelam que há um percentual

de 60% de homens e 40% de mulheres empregadas na colheita.

Da mesma maneira que os trabalhadores da cana, os da laranja também são levados aos locais de trabalho (eitos) pelos turmeiros. No entanto, segundo o que observamos e também segundo a pesquisa de Maciel (2016), as turmas são formadas nos locais de destino e não nos locais de origem como no caso da cana. Os turmeiros também possuem as

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mesmas funções relacionadas ao controle da produção e da disciplina do trabalho. São proprietários dos ônibus que transportam os trabalhadores e são contratados pelas empresas. Recebem um valor relacionado ao aluguel do ônibus e cobram um percentual da produção de cada trabalhador. Logo, eles são responsáveis pelo número de caixas colhidas por cada trabalhador. Quanto mais elevado for o número de caixas, maiores serão seus ganhos. Portanto, tal como ocorre nos canaviais, há uma seleção dos melhores colhedores.

Na Figura 1, é representado o eito designado para cada trabalhador pelo turmeiro. As fileiras (ruas) distam entre si de seis a sete metros. As árvores atingem a atura de seis a 10 metros29. Os instrumentos de trabalho são: a escada de ferro com 15 degraus, medindo

3,5 metros, cujo peso é 35 Kg; o bag (sacola) com fundo falso, preso por dois ganchos, com uma alça acoplada no ombro do colhedor, comporta até 27,2 kg. Entre a segunda e terceira fileiras são depositados os chamados big bags que comportam de 500 a 550 kg e onde são depositadas as laranjas colhidas. O material da sacola e do bag maior é de plástico30. Em nossa pesquisa, há as caixas, onde são depositadas as laranjas colhidas; cada

caixa pesa em torno de 40,8 kg, como já mencionado em linhas atrás. Figura 1 Representação do eito da colheita de laranjas

Apud Costa, 2013: 31.

29 Recentemente, ao realizar uma visita a um pomar de laranjas próximo a Valência (Espanha), constatei

que as laranjeiras alcançavam, em média, dois metros de altura. Portanto, no ato da colheita, não há necessidade da escada, tal como ocorre nos laranjais do Brasil.

30 O fato de ser de plástico tem provocado muitos conflitos, pois com o peso, o plástico cede, fazendo com

que o bag passe a comportar uma maior quantidade de laranjas. No entanto, o cálculo da empresa é invariável. Os colhedores se sentem lesados, pois eles recebem com base no cálculo em caixas colhidas.

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É importante observar que o trabalhador recebe pelo número de caixas colhidas, ou seja, o pagamento é por produção, tal como na cana. O ato de colher as laranjas consiste em vários movimentos dos membros inferiores, dos superiores e das mãos, além do peso do bag (sacola) preso ao pescoço. Primeiramente, são colhidas as laranjas das partes mais altas, que exigem o uso da escada. Esse é o momento de maior periculosidade laboral, dado que há a necessidade de se equilibrar na escada, sem o apoio das mãos, pois as mesmas são simultaneamente utilizadas para colher as laranjas, com gestos envolvendo a rotação dos punhos para facilitar o arranque, sem danificar os galhos e sem deixar cair as frutas.

Em seguida, os colhedores vão descendo paulatinamente os degraus da escada e colhendo as laranjas na parte do meio. A parte mais baixa, chamada de saia ou barrado, é colhida sem o uso da escada, o que exige os movimentos de flexão das pernas, muitas vezes, com a postura agachada. Colhem-se, por último, as laranjas no chão. Assim que o

bag é preenchido, as laranjas são depositadas nas caixas, localizadas entre a segunda e

terceira fileiras. Portanto, além do peso, há a necessidade de caminhar alguns metros até as caixas, esforço empreendido também com as pernas. Os ganchos são acionados e as laranjas aí depositadas. Imediatamente, o ciclo recomeça com mais um movimento relativo à mudança da posição da escada ao redor da laranjeira.

Constatamos uma jornada de trabalho extremamente intensiva31, dado que aí

também vigora o sistema da média estipulada por trabalhador: 70 caixas diárias colhidas ao preço de R$1,00/caixa em 2017. Caso a média não seja atingida, há o risco da perda do emprego, tal como na cana, onde a média inferior a 10 toneladas cortadas por dia implicam em sanções (ganchos), impedindo o trabalho por três dias, ou até mesmo, a dispensa. Nas duas atividades, há a exigência de carregar o peso (27,2 Kg de laranja e 35 Kg da escada; 15 kg/feixe de cana), além de caminhar (4,4 mil metros no caso da cana e 8,8 mil metros nos canaviais).

Segundo um estudo da área da engenharia de produção, empregando a metodologia da ergonomia situada na colheita da laranja, verifica-se que o tempo despendido para subir na escada, carregar o bag, descarregar as laranjas, mudar a escada e mudar de árvore não são computados no preço da força de trabalho (Costa, 2013:86-87).

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(...) observa-se que o ciclo descarregar a sacola ... compreende as atividades de andar até o bag, descarregar sacola, e retornar á árvore, somando um tempo de trabalho de 168 segundos (...) 81% deste tempo não agregam valor.

Outro ciclo da colheita com alta repetitividade e carregamento de peso (...) corresponde à atividade de movimentação da escada. Além de não agregar valor ao processo ela acrescenta movimentos extremos e uso de segmentos de precisão, potenciais causadores de lesão (...).

Ouçamos, em seguida, as vozes de duas mulheres que trabalham no controle de pragas e distribuição de veneno.

As pragueiras e o trabalho na torre

Francislene: (...) daí ali eles estavam precisando de uma pessoa que fizesse o curso de pragueira. eles pagaram o curso para mim, fiz o curso lá em Descalvado, e eu fazia inspeção no pomar de laranja. Assim, a pragueira ela faz o quê? Ela divide o pomar, eles pegam o mapa, ah está, é para fazer o nosso serviço aqui, a gente vai ver onde está tendo tal praga para eles poderem usar o veneno ali. E uma forma de pulverizar somente as plantas que tiverem pragas. Esta era a nossa função. No curso, eles dão as instruções sobre os tipos de pragas. A gente anotava numa pranchetinha os tipos de praga tudo e ali eles davam uma tabelinha, com uma tabelinha; a gente anotava o lote e o número da árvore afetada.

(...) a principal praga que a gente via ali, era ferrugem, e depois foi aquela, o greening o greening que matou quase todos os pomares do estado de São Paulo, que aqui quando pegou não teve jeito, quando veio o greening foi terrível.

Entrevistadora: Como você identificava o greening, como fica a laranja? A laranjeira?

Francislene: A gente vê a folha, porque quando já está na laranja, tem que pulverizar mesmo, porque senão mata a laranjinha, a gente fiscalizava a folha, atrás da folha assim, ela tinha um pozinho pretinho, daí tem uma lupinha pequeninha assim, você colocava, se aquele pozinho andasse, aquilo lá era o pozinho do greening, e era muito fácil dele espalhar, por isso que tinha que arrancar a planta para não contaminar as outras (...) além desta praga, havia outra que deixava a laranja avermelhada. Éramos em duas para realizar o trabalho de inspeção e também matar as formigas com veneno.

Entrevistadora: Como era este trabalho?

Francislene: É uma bombinha de bombear, é uma garrafinha grande com mais ou menos, cinco quilos, com um pó dentro e esse pozinho você leva na mão e uma mangueirinha comprida, daí você bota dentro de um buraquinho. Enquanto uma trabalhadora bombeia aqui, a outra (você vai olhando assim, como é pó vai saindo o pozinho longe, longe), então uma bombeava e a outra ia tapando os buraquinhos; você olha assim na plantação, verdinha, saía aquele pozinho, onde saía pozinho era um buraco da formiga. A gente ficava o dia inteiro fazendo isso.

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Francislene: Com o pé. Saía jogando terra com o pé, amassava terra e jogava lá dentro e tapava. (...)32.

O trabalho na torre

Entrevistadora: O que é a torre?

Michele: A torre é onde você olha o greening. O greening é assim, é um trator e tem uma torre em cima que vão duas mulheres, tipo uma casinha assim, mas vão duas mulheres olhando em cima, e a tratorista ali embaixo, e eu estou no trator embaixo e elas ali em cima, olhando o greening que é uma praga.

Entrevistadora: Mas aí o que as duas mulheres que estão em cima da cabine do trator fazem? Michele: Quando elas veem... aí elas batem (na parte que sustenta a torre do trator), eu encosto o trator no pé da laranjeira e elas conferem se é o greening ou não, eu vou e marco o pé, marco na folha de anotações na pranchetinha e marco as ruas com uma fita fosforescente verde (para ser visualizada à distância pelos tratorista do veneno).

Entrevistadora: Mas vê de longe assim, dá para ver?

Michele: É, porque o trator vai andando bem devagarinho, a torre, e elas duas vão olhando assim, de cima para baixo, uma de cada lado e eu que dirijo o trator, embaixo eu tenho que olhar a rua dos dois lados, assim mais... eu vejo embaixo e elas olham em cima, mas consegue ver sim.

(...)

Entrevistadora: Quanto você recebe em média?

Michele: Mil e quinhentos e cinquenta, assim por mês mais ou menos. É por mês, e tem uma cesta de noventa e oito reais O ano todo, o ano todo. É, porque a gente é... é registrada pela fazenda, aí a safra, são os colhedores. É, é separado.

Entrevistadora. Mas o quê você faz quando não tem safra, quando não tem colheita, por exemplo? Michele: Não, a gente olha o ano inteiro, aí quando para, assim, a torre é difícil parar, a gente vai, vai trabalhar na... carpir, vai matar formiga, vai desbrotar. Porque mesmo que não tenha laranja, a gente continua. O controle da praga é o mesmo, com a laranja ou sem a laranja, então é o mesmo serviço o ano todo. Sim, porque é difícil ficar sem laranja33.

32 Entrevista realizada pela autora com Francislene, cuja função era inspecionar os pomares para o

controle de pragas, em outubro de 2017 no município de São Carlos/SP.

33 Entrevista realizada pela autora em outubro de 2017 com Michele, primeira mulher tratorista de uma

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O trabalho de inspeção na torre. Foto: MAMS, 2017

As duas mulheres que estão na torre, além da tratorista, são as responsáveis por detectar as pragas, que são de vários tipos. Portanto, trata-se de uma tarefa que exige muita acuidade visual e responsabilidade, além de ser fundamental para a reprodução dos laranjais. Os depoimentos dos responsáveis pelo controle de trabalho afirmam que essa atividade é desempenhada principalmente por mulheres porque elas são mais cuidadosas,

responsáveis e elas cuidam das plantas. Portanto, os estereótipos relacionados ao gênero

feminino reforçam as formas de exploração do trabalho que contribuem para o aumento dos níveis de acumulação dos capitais aplicados nessas atividades produtivas.

Em busca da (des) objetivação

Em linhas atrás, afirmamos que essas relações laborais se caracterizavam por relações sociais advindas do estranhamento que atingiam as subjetividades dos/as trabalhadores/as, produzindo, todavia, uma dialética conflitiva entre estranhamento e (des) estranhamento. Há um paralelo entre crescimento da produção, incremento da tecnologia de um lado, e, do outro, o aumento da intensidade da produtividade, resultante do desgaste e degradação da força de trabalho, uma espécie de auto-sacrifício. Os depoimentos apresentados revelam o grau de sofrimento decorrente do trabalho, mormente, das condições de trabalho e da forma de pagamento imposto, por meio do quantum de trabalho. Na colheita da cana e da laranja predominam o trabalho temporário de migrantes

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provenientes de outros estados do país. São contratados por safra, sendo dispensados no final das mesmas. Em geral, a grande maioria retorna aos seus locais de origem e regressam para as safras seguintes. Portanto, trata-se de uma migração permanentemente temporária. São vidas que são tecidas num vaivém permanente.

No estado de São Paulo, atualmente, tem havido uma progressão continuada do emprego de tecnologias avançadas, inclusive com uso de máquinas inteligentes (no caso da cana)34. Os que residem nesse estado disputam as poucas vagas de trabalho existentes

na colheita da laranja e outras atividades da cana como distribuição de veneno, coleta de restos de cana deixados pelas máquinas, após a colheita e recolha de pedras antes da entrada das máquinas. Estas atividades, em geral, são desempenhadas por mulheres.

No que tange à produção da laranja, além da colheita, como vimos, há também o trabalho com a distribuição de veneno pelas pragueiras. De acordo com Marx, o segredo do processo de acumulação capitalista se esconde nas profundezas do processo de trabalho. Os depoimentos nos encaminham para essas profundezas. Por meio de suas mãos, penetramos nos labirintos do mundo dessas produções e somos levados a entender e, ao mesmo tempo, a não conceber o inaceitável e o impensável. No que tange à distribuição de veneno, em geral, os relatos demonstram que há uma negação dos malefícios para a saúde. Constata-se o que Déjours (1987) afirma a respeito da ideologia defensiva, segundo a qual, a negação é uma forma de resistir aos processos de exploração e dominação impostos. Vale ainda a acrescentar que os mecanismos disciplinares impostos extravasam o local de trabalho (eito). Ademais, dos ganchos (suspensão por até três dias), da perda do vale-refeição, há ainda a imposição de uma jornada de trabalho 5x1, ou seja, trabalham-se cinco dias e descansa-se um. Com isso, a sociabilidade sofre fraturas porque impede-se que haja reuniões, encontros no período de lazer do não trabalho. É uma maneira de reduzir e até mesmo evitar as organizações coletivas como greves e trocas de experiências. Tais práticas confirmam que o capitalismo não é apenas um modo de produção que deva ser analisado só do ponto de vista econômico, mas também cultural; é um sistema que apropria das emoções, do afeto, além da mais-valia. Essa apropriação é mais ainda aprofundada quando os migrantes deixam (por um período de até nove meses, tempo da safra da cana) suas famílias nos locais de origem. Portanto, produz-se um trabalhador/a reduzido ao

34 Segundo a tendência vigente, em pouco tempo, as tarefas manuais na produção dessas commodities

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trabalho, que seja disponível e flexível para as tarefas determinadas pelas empresas, tarefas que podem exceder suas capacidades laborais, como vimos, ou ainda, tarefas que levam a um desgaste prematuro da força de trabalho, conduzindo-os ao descarte. Reis (2018:15-16) analisou a situação de homens e mulheres descartados/as ainda em idade produtiva, das atividades laborais em função do desgaste físico, psíquico, por meio da noção de pós/trabalho, segundo a qual, o adoecimento causado pelo corte de cana não termina com o final da safra, mas passa a fazer parte da vida e das relações de sociabilidade no espaço-tempo, além dos canaviais, produzindo, assim, o sofrimento social, envolvendo a família dos trabalhadores descartados, mormente as mulheres que serão as cuidadoras dos filhos e ou maridos. Assim, o sofrimento não é apenas individual, o que reforçaria sua compreensão como problema médico ou psicológico, mas é uma experiência social. Portanto é uma experiência incorporada na estrutura temporal das relações sociais (Das, 2011).

Segundo Ranieri, a partir de Marx, o trabalho estranhado não pertence ao seu ser, mas nega-se nele.

(O trabalhador) não se sente bem, mas infeliz ... não se desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua phisis e arruína o seu espírito ... o seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele ... O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação (Ranieri, 2004: 82-83). Grifos do autor.

As reflexões do autor, calcadas em Marx, traduzem as relações de estranhamento vivenciadas. No entanto, segundo os relatos colhidos, há manifestações de recusa contra esse processo, traduzidas numa sorte de dialética conflitiva entre estranhamento e (des) estranhamento. A questão colocada é a relação entre a realidade imposta e a clivagem do sujeito e o sofrimento daí resultante. Estaríamos diante de sujeitos passivos? A resposta é negativa. Durante décadas, muitas greves e outras manifestações de resistência cotidiana ocorreram (Menezes, 2002). Ademais, as lutas pelos direitos trabalhistas envolveram milhares de ações judiciais movidas por homens e mulheres nas duas atividades econômicas analisadas (Silva, Menezes, Ribeiro, 2014). Mas não é apenas isso. Ao serem inquiridos/as acerca do significado do trabalho, apesar dos efeitos negativos sobre a saúde de seus corpos, as respostas eram de dois matizes: a dor e o sofrimento, de um lado, e do outro, a valoração positiva.

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A palavra recorrente era a roça. Trabalhar na roça era algo positivo, ao contrário do trabalho na cidade, mormente, o doméstico, no caso das mulheres. Apesar das agruras impostas, o fato de fazerem parte da turma (grupo organizado pelos turmeiros), de serem reconhecidos uns pelos outros, de desenvolverem uma sociabilidade, baseada no companheirismo, de possuírem o sentimento de um comum-pertencer, de estarem entre os iguais a si mesmos, era a forma pela qual encontravam uma espécie de mito do eterno retorno ao camponês fraturado pela superexploração. Muitos lembravam das brincadeiras, das cantorias e, sobretudo, das relações de amizade produzidas. Muitas mulheres que já não podiam mais trabalhar, disseram que se levantavam bem cedo, para verem a passagem do ônibus que ia para o eito. Era uma maneira de sentirem a ida imaginada para a roça. Seguem sendo camponeses no espírito, segundo os termos de Bourdieu (1964). O sofrimento causado pela estrutura laboral imposta aos sujeitos é ao mesmo tempo sentido e negado, segundo diversos depoimentos. O desafio proposto neste texto foi o de compreender as distintas mediações entre a realidade vivenciada, as ilusões, as projeções e o imaginário, calcados na idealização de um passado camponês. Assim sendo, em muitas ocasiões, as representações sobre o trabalho são positivadas por se referirem à roça35 , ao

contrário do trabalho na cidade.

Bourdieu, Sayad (1964:100) ao analisarem a situação dos camponeses argelinos durante a fase do reagrupamento imposto pelos colonialistas, afirma: O camponês continua

sendo camponês porque ele não pode se conceber sendo outra pessoa e de outro jeito a não ser enquanto camponês; durante o tempo em que ele assim o é, o espirito camponês pode se perpetuar estranho, indiferente e, até mesmo hostil, à sedução de outros modos de vida que ele conhece e recusa 36 (tradução livre, M.A.M. S.).

A raiz da ilusão é também a do desejo, e a força da ilusão é a força do desejo (Bertrand, 1989: 27).O sentimento camponês é a manifestação (talvez desesperada) de se agarrar a um passado, ainda que irreal, capaz de revigorar projetos e o imaginário. Nas palavras de Williams (2009), é um pensamento sentido e um sentimento pensado. É nas engrenagens dessa dialética conflitiva que são produzidos as práticas e os desejos em busca da (des) objetivação e do reencontro com a condição de sujeitos. O espírito camponês parece estar

35 Roça é uma palavra que significa campo, rural.

36 Le paysan reste paysan tant qu’il ne peut se concevoir autre et autrement que paysan; aussi longtemps

qu’il em est ainsi, l’esprit paysan peut se perpétuer, étranger, indifférent et même hostile à la séduction des autres genres de vie qu’il connaît et refuse.

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misturado à terra e parece ser uma espécie de farol que aponta para o único caminho possível: a roça.

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