Resenha
Televisão: ensaios metodológicos.
(DUARTE, Elizabeth Bastos. Editora Sulina, 2004. 158p.)
Patrício Alves Miranda da ROCHA1
Após fazer breves considerações sobre o conceito de grade de programação, levando em conta a complexidade do “processo comunicativo televisivo”, a autora discorre sobre o espetáculo midiático que se tornou o fatídico 11 de setembro de 2001, ressaltando que a televisão em muito contribuiu para o sucesso dos atentados terroristas, considerando ainda uma provável intenção por parte dos autores do atentado de provocar uma transmissão mundial ao vivo dos ataques às torres do World Trade Center. A autora destaca que o intervalo de quinze minutos entre a primeira e a segunda colisão dos aviões foi o tempo necessário para que as equipes de reportagem se posicionassem com seus equipamentos a fim de registrarem ao vivo, para todo o mundo, o ataque a segunda torre, sendo este tempo “insuficiente, como ficou demonstrado, para colocar em ação a defesa americana” (p.16). Por um instante a televisão perdeu o comando da produção do espetáculo, seus comentaristas ficaram perdidos, tentando explicar o que eles próprios, surpresos, não conseguiam entender, ou não aceitavam como verdade: o que parecia de início um estranho acidente aéreo era na realidade um terrível atentado. Além disso, a repercussão do fato nos dias que se seguiram, com as repetidas exibições do atentado serviu para a divulgação da causa muçulmana fundamentalista.
Com relação ao Brasil, a televisão desde o seu surgimento na década de 50 é predominantemente comercial. São as grandes redes que determinam a forma de fazer TV, a partir dos interesses mercadológicos que a regem, apesar do caráter público da concessão dos seus canais de difusão, cujo espectro radiofônico é um bem pertencente à União. Sendo a TV comercial aquela que dita o tom e a qualidade das produções, resta a TV pública, segundo Duarte, perseguir estes modelos de produção, apesar de
“enfraquecidas, empobrecidas, carentes do ponto de vista de recursos humanos e técnicos, desaparelhadas do ponto de vista tecnológico e sempre comprometidas por questões políticas e ideológicas” (p.17). Vale ressaltar que também na TV comercial, as questões políticas e ideológicas têm forte influência no discurso televisivo, e na composição dos textos, sobretudo no telejornalismo.
No capítulo seguinte, a autora discorre sobre o arcabouço teórico-metodológico da comunicação e sua aplicação nos estudos que tem por objeto a televisão e seus processos comunicativos. Devido ao seu caráter híbrido e complexo, a televisão enquanto objeto de estudo carece de teorias que contemplem a complexidade de seus produtos midiáticos. A autora frisa que “a ênfase que necessariamente deve ser conferida às instâncias de produção e recepção nesse tipo de produção, precisa ser melhor compreendida” (p. 21 – grifo nosso). Mas adiante, a autora destaca: “Um outro aspecto que convém ter presente é que o lugar do pesquisador é sempre o de receptor: cabe a ele interpretar os fenômenos, isto é, dotá-los de sentido” (p. 21 e 22 – grifo nosso). O termo recepção utilizado pela autora remete a um conceito já superado pelas culturas pós-massivas, onde a interação é a principal característica do indivíduo que usufrui das novas mídias. Alguns teóricos alegam que o termo receptor carrega uma impressão de passividade, e sugere a substituição do termo por fruidor, ou seja, aquele que usufrui, que utiliza ativamente os meios de comunicação. Quanto ao pesquisador, a partir do momento em que ele precisa interpretar os fenômenos e dotá-los de sentido, isso já faz dele um ser ativo no processo da pesquisa, o que caracteriza algo mais do que uma recepção passiva da informação.
A televisão enquanto meio de comunicação cujo processo de produção envolve procedimentos complexos, utiliza um arsenal de linguagens sonoras e visuais para dar ao espectador sua impressão de mundo, sua versão dos fatos, empresta-nos seu olhar e com ele sua percepção de mundo, suas representações. Esta complexidade faz com que teorias generalizantes não se apliquem à análise do que a autora denomina “textos midiáticos”, diferentes de outros tipos de texto. Também, segundo a autora, “a detecção da existência de formas universais organizadoras da narrativa não resolve o problema de quem busca as diferenças que caracterizam um tipo específico de produção discursiva como o televisivo” (p. 23). Assim, ela propõe um “alargamento da noção de texto” que
permita uma análise semiótica dos produtos midiáticos na televisão, englobando vários tipos de intertextualidades. É preciso levar em conta, além dos processos discursivos, aspectos sociais, econômicos, culturais e tecnológicos.
No nosso entendimento a autora, ao referir-se a textos midiáticos, faz uma analogia aos processos comunicativos escritos, tornando possível trazer os processos midiáticos para o campo da lingüística, da Análise do Discurso, fazendo da organização dos elementos de construção da narrativa audiovisual (efeitos visuais e sonoros, iluminação, enquadramento, velocidade de corte dos planos, etc) algo equivalente ao que seria a gramática para o texto escrito. Seria uma visão reducionista dos processos de construção de sentido nas mídias audiovisuais? Vimos anteriormente que a autora frisou a necessidade de expandir, de alargar a noção de texto para que pudesse abarcar a complexidade da televisão enquanto objeto de estudo. Entendemos que a complexidade do objeto leva à necessidade de delimitar aspectos do objeto a serem analisados para tornar viável a aplicação de embasamentos teóricos que contemplem estes recortes, estes aspectos. Não seria reducionismo, e sim, a delimitação de um espaço a ser pesquisado dentro de um todo mais amplo e complexo, cujas teorias não poderiam abarcar.
Falando das relações entre os interlocutores, a autora discorre sobre como se dá o contrato social implícito entre a mídia televisiva e a sociedade para quem o discurso é dirigido. Citando Foucault, “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento ao seu redor” (p. 29). Na televisão, o que vira notícia não é o fato em si, mas os comentários que se tecem a respeito do fato. Desta forma, os enunciadores televisivos põem em jogo a veiculação, credibilidade e aceitação do seu discurso, cabendo ao grupo social aceitar ou não esta proposta. Em outra visão, com base em Greimas, este contrato se daria de forma semelhante a um jogo, onde os enunciadores televisivos utilizariam estratégias de manipulação para induzir a aceitação de seu discurso. Porém são muitos os interesses e os sujeitos envolvidos no discurso televisivo, que deve ainda se adaptar às limitações da mídia televisiva, seus processos de produção, circulação e consumo das mensagens. Levando-se em consideração o caráter predominantemente comercial da televisão brasileira, visando a maximização dos lucros, o texto seria então uma
mercadoria disputando espaço de forma mercantilista, com o intuito de atrair a audiência necessária para a obtenção dos patrocínios dos programas.
Uma estratégia cada vez mais comum da televisão é a de revelar seu processo de produção. Programas humorísticos deixam aparecer de forma proposital as falhas de seus atores, os lapsos de riso, as situações engraçadas que estes erros provocam; os telejornais tem como cenário de fundo suas redações, põem em quadro outras câmeras presentes no estúdio, tudo com a pretensão de construir efeitos de verdade, de realidade. A televisão mostra-se por dentro, torna-se transparente, leva o espectador para a sua cozinha, tudo em prol da cumplicidade com os atores sociais. Estes mesmos atores sociais tornam-se discursivos nos programas de reality show, ou ainda interagem com o meio provocando mudanças, desvios de rota na programação. Tudo isso não por simpatia, mas por ser o espectador o comprador do seu negócio, a audiência que fomenta os anúncios e, conseqüentemente, o faturamento das emissoras. Para isso utiliza-se de estratégias comunicativas (que podem ou não se manifestar no texto) e estratégias discursivas (configuradas no texto). Um bom exemplo é o conceito de grade de programação, onde um programa puxa a audiência do outro, formando um todo harmonioso com o intuito de manter o espectador preso ao canal pelo maior tempo possível.
A principal característica do “circo eletrônico” (expressão título do livro escrito por Daniel Filho) é o entretenimento. “E entretenimento é leveza, superficialidade, humor; é espetáculo” (p. 50). Como o telespectador, já saturado pelos problemas da vida cotidiana, não está disposto a dedicar atenção à temas densos, complexos, cabe à televisão acertar o tom, dar ao espectador a leveza de conteúdo que não exija muito da atenção do espectador. Daí a perigosa necessidade de, em nome do tom de leveza necessário para a manutenção da audiência, apelar-se a formatos perigosos como o Linha Direta e sua mistura de ficção e realidade ou o Big Brother.
A autora destaca a influência dos avanços tecnológicos nas mudanças provocadas no discurso televisivo, como forma de manter a audiência: o satélite, o controle remoto, os canais por assinatura segmentados, os meios de interação por telefone e internet, a TV digital (no dia em que a interatividade deixar de ser vista como uma ameaça ao modelo de negócio), etc. Para Duarte, “claro está pelo exposto que cada
avanço dos meios técnicos provoca toda uma re-acomodação da gramática televisiva” (p. 62).
No capítulo que trata de gêneros, subgêneros e formatos, a autora demonstra inquietação com a divisão por gêneros adotada pela televisão. Segundo ela, dizer que um programa é de entretenimento ou informativo é o mesmo que não informar nada sobre ele. Embora estes conceitos estejam presentes no senso comum dos espectadores, acabam gerando uma perigosa indefinição sobre o conceito de realidade. Seriam as notícias de um telejornal, com relação ao texto, a realidade dos fatos ou o olhar da emissora sobre os mesmos? Afinal, o processo de edição é também um processo de construção de um discurso.
Segundo a autora, “uma estratégia freqüentemente presente nos textos televisivos é a ausência de limites precisos entre gêneros e subgêneros” (p. 71). Esta miscelânea é resultado da necessidade de auto-referenciação e autopromoção da televisão, muito útil na divulgação de sua marca, seus produtos. Por exemplo, um reality show como o Big Brother Brasil, da Rede Globo é uma produção conjunta dos departamentos de jornalismo e de produção da emissora. É jornalístico porque documenta o cotidiano de um grupo de pessoas isoladas em uma casa-estúdio; é ficção pelo tratamento dado no processo de edição, onde são construídas verdadeiras tramas novelísticas; é humorístico pelas charges criadas por Maurício Ricardo baseadas em situações narradas pelos participantes para outros membros da casa; é programa de auditório nos dias de eliminação, quando familiares dos participantes que estão no “paredão” aguardam a definição de quem vai sair da casa, rodeados por populares que compõem uma platéia... Veja como apenas neste exemplo o “gênero” reality show comporta dentro de si diversos “subgêneros” e “formatos”! Esta divisão não se demonstra satisfatória. Por definição, segundo Duarte, “os gêneros são então categorias discursivas e culturais que se manifestam sob a forma de subgêneros e se realizam em formatos” (p. 86).
Diante do desafio de ser assistida a qualquer preço, e da necessidade de apresentar conteúdo 24 horas por dia, a televisão acaba por repetir-se. Aquilo que funciona, permanece no ar com poucas variações: Fantástico, Zorra Total, A Grande Família... todos remakes ou programas que não variam muito sua fórmula. A pouca
variação visa manter o contrato proposto pela televisão com base no duplo princípio: prazer e seriedade. O prazer é responsável por manter o público, e a seriedade, por dar credibilidade às informações transmitidas.
A autora divide o discurso televisivo em três tipos de realidade: a meta-realidade (refere-se ao mundo exterior – telejornalismo, documentários), supra-realidade (sem compromisso direto com o mundo exterior – novelas, minisséries, telefilmes) e mais recentemente a para-realidade (não tem como referência um mundo exterior, mas um mundo paralelo, com acontecimentos construídos no interior do próprio meio – reality shows).
Os espaços de publicação dos discursos televisivos é a grade de programação. Nela identificamos os diferentes tipos de vozes: a da empresa, a da instituição (ponto de vista), a do marketing (comercial), a de interação com o telespectador, as do próprio telespectador (no interior dos próprios produtos) e as de instituição de um real paralelo que se constitui no próprio meio e alimenta as suas realidades discursivas. Segundo a autora,
ao exibir as lógicas – econômica, tecnológica, institucional – que presidem a produção de seus produtos e estruturam seu discurso, ao desvelar seus próprios dispositivos de realização, seus bastidores, a tevê se traduz enquanto onipresença, mas não fornece indicações sobre um possível e necessário retorno crítico da televisão sobre ela própria (DUARTE, 2004, p. 105).
Com relação aos telejornais, a autora trata o telejornalismo como subgênero do jornalismo, uma divisão um tanto duvidosa como já foi dito, que não funciona com outros “subgêneros”. Sobre o tempo presente, o aqui-agora do jornalismo é representado pelo âncora, que no sentido referendado por Greimas, personifica o imediatismo do programa, tornando-se um ‘ser de discurso”.A autora usa o exemplo dos telejornais da Rede Globo: Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal Nacional e Jornal da Globo. A questão do horário de exibição (respectivamente início da manhã, meio-dia, horário nobre- noite e início da madrugada) define a temporalidade do programa. A temporalidade funciona da seguinte forma:
PROGRAMA TEMPORALIDADE JN e Jornal da Globo Presente (apresentação)
Passado (notícias) Jornal Hoje Presente (apresentação)
Presente (notícias) Bom Dia Brasil Presente (apresentação)
Passado (notícias)
Futuro (diálogos entre apresentadores / entrevistas)
A autora encerra o livro dedicando os capítulos finais à demonstração da questão do tom a partir do exemplo da bem sucedida série Os Normais, e por fim dedica um capítulo ao Big Brother Brasil, exemplo de para-realidade que tem garantido a cada edição boa audiência e faturamento à emissora, dando ao espectador as características de onisciência, onipresença e onipotência, mesmo de forma induzidas, pois a TV não entrega o controle da situação ao espectador: joga com ele, faz ele pensar que está no controle, porém usa as ferramentas discursivas para manipular a decisão.