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CIDADÃO. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil.

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J O Ã O F E R E S J Ú N I O R

Organizador

E D I T O R A U F M G B E L O H O R I Z O N T E

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© 2009, Os autores © 2009, Editora UFMG

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil / João Feres C744c Júnior, organizador. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009.

249 p. - (Humanitas Pocket)

Contém partes do Diccionario político y social iberoamericano: conceptos políticos en la era de las independencias, 1750-1850, sendo produto do projeto Iberconceptos.

Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7041-737-4

1. Brasil - História. 2. América Latina - História. I. Feres Júnior, João. II. Série.

CDD: 981 CDU: 981 Elaborada pela DITTI - Setor de Tratamento da Informação

Biblioteca Universitária da UFMG

ASSITÊNCIA EDITORIAL: Euclídia Macedo e Letícia Féres EDITORAÇÃO DE TEXTOS: Maria do Carmo Leite Ribeiro REVISÃO DE TEXTO E NORMALIZAÇÃO: Lira Córdova PROJETO GRÁFICO: Cássio Ribeiro

REVISÃO DE PROVAS: Beatriz Trindade, Cláudia Campos, Karen M. Chequer, Renata Passos e Renilde Silveira

FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA: Robson Miranda (extraída de www.laicidade.org)

PRODUÇÃO GRÁFICA: Warren Marilac

EDITORA UFMG

Av. Antônio Carlos, 6.627 - Ala direita da Biblioteca Central - Térreo Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG

Tel.: + 55 31 3409-4650 Fax: + 55 31 3409-4768 w w w. e d i t o r a . u f m g . b r e d i t o r a @ u f m g . b r

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SUMÁRIO

A HISTORIA CONCEITUAL D O BRASIL

N O M U N D O IBERO-AMERICANO 7 REFLEXÕES SOBRE O PROJETO IBERCONCEPTOS

João Feres Júnior 11 AMÉRICA/AMERICANOS

João Feres Júnior

Maria Elisa Máder 25 C I D A D Ã O

Beatriz Catão Cruz Santos

Bernardo Ferreira 43 CONSTITUIÇÃO

Lúcia M. Bastos Pereira das Neves

Guilherme Pereira das Neves 65 FEDERAL/FEDERALISMO

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B E A T R I Z C A T Ã O C R U Z S A N T O S B E R N A R D O F E R R E I R A

CSDADÃÓ

Na língua portuguesa, bem como na espanhola, a pa-lavra cidadão tem uma significação mui particular, ela designava o morador ou vizinho de uma cidade. Sabe-se que pelo direito feudal as povoações, segundo que eram cidades, vilas ou lugares, tinham assim diferentes direitos, gozavam certos privilégios, liberdades, isenções (...) [O cidadão], por isso, gozava diferentes direitos que não se estendiam a todos os membros da sociedade; (...) isto porém acabou.1

Este discurso de Pedro Araújo Lima na Assembleia Constituinte de 1823 faz parte do debate sobre o artigo do projeto de constituição que definia quem eram os brasilei-ros. O artigo foi objeto de uma discussão acalorada, pois, no momento em que o deputado faz o seu discurso, não só a palavra cidadão assumia um novo significado, mas a

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própria ideia de brasileiro era nova. Entretanto, na edição de 1823 do Diccionario da lingua portugueza, as mudanças apontadas por Araújo Lima permaneciam ignoradas. O cidadão era "o homem que goza dos direitos de alguma cidade, das isenções, e privilégios, que se contêm no seu fo-ral, posturas", ou "o vizinho de alguma cidade", ou, ainda, o "homem bom". No Novo diccionario critico e etymologico da lingua portugueza, de 1836, cidadão é alguém "apto para os cargos municipais". Todas estas definições pertencem a um quadro de referência de fundo hierárquico, que, aos olhos de Araújo Lima, havia ficado para trás. Não por acaso, na sequência da sua fala, ele insistia que "deve ser extensa esta denominação [de cidadão] a todos os indivíduos, porque seria odioso que conservássemos uma diferença, que traz sua origem de tempos tão bárbaros".2

Entre o final do período colonial e as décadas iniciais do Brasil independente, o vocábulo cidadão sofreu trans-formações no seu significado cujo resultado foi o estabe-lecimento de um conceito novo. Sob alguns aspectos, essas transformações são tributárias dos rumos assumidos pelo conceito de cidadão na história europeia. Isso implicou a passagem de uma compreensão hierárquica da cidadania para um entendimento igualitário. Nesse sentido, a his-tória do conceito de cidadão no Brasil, entre 1750 e 1850 acompanha e atualiza a sua trajetória no mundo europeu. No entanto, a separação que o constituinte estabelece entre dois tempos claramente distintos precisa ser matizada. Para que a natureza das transformações mencionadas possa ser apreendida na sua complexidade, é preciso associá-la a dois outros aspectos sem os quais o quadro permaneceria incompleto e simplificado. Referimo-nos ao papel que o conceito irá desempenhar na definição das fronteiras de

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pertencimento à coletividade em uma sociedade marcada, por um lado, pela sua condição colonial e, por outro, pela permanência de relações escravistas.

Quando Araújo Lima fazia o seu discurso na Cons-tituinte, ele punha em evidência uma associação muito , comum no Antigo Regime português. A condição de ci-dadão e a de vizinho não raro se confundiam. Em ambòs os casos, estava em jogo um estatuto jurídico-político que definia o pertencimento de um indivíduo à comunidade local em termos de privilégios, deveres, isenções, costumes. Portanto, ainda que nos diferentes dicionários o cidadão e o vizinho apareçam vinculados à habitação mais ou me-nos permanente em um lugar, esta é apenas uma parte da definição. A vizinhança, como pode se ler em Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel (1514-1521), estava associada ao gozo de "privilégios e liberdades de vizinho, quanto a ser isento de pagar os direitos reais, de que, por bem de alguns forais e privilégios dados a alguns lugares, os vizinhos são isentos".3 O estatuto do vizinho é inseparável de um

"di-reito de vizinhança",4 que distingue uma comunidade local

como um corpo privilegiado. As prerrogativas do vizinho se referem em primeiro lugar a esse corpo privilegiado e é como membro do grupo, e não a título subjetivo, que o indivíduo desfruta delas.

Segundo o jurista português Pascoal José de Melo Freire, no livro Instituições de direito civil português, de 1789, entre a cidadania e a vizinhança seria possível estabelecer uma diferença, já que os direitos do cidadão teriam um alcance maior do que os referentes aos vizinhos, fundamentalmente dirigidos ao âmbito municipal.5 A despeito dessa provável

diferença, importa salientar que os dois estatutos remetem a uma mesma lógica concreta e particularista, segundo a

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qual a integração do indivíduo a res publica é concebida em termos de uma diferença baseada em privilégios. De maneira geral, o estatuto de cidadão se refere a um con-junto de prerrogativas, que está vinculado aos cargos da administração local, principalmente da câmara. O cida-dão é o "homem bom", que se distingue dos demais por uma posição superior, garantida pela hereditariedade ou alcançada por mecanismos de enobrecimento. Assim, a definição de cidadão, embora não se confunda com a de nobreza, se aproxima dela, identificando-se a uma série de marcas que distinguem aqueles que buscavam ser reconhecidos como os "principais da terra" ou os "homens principais".6 Na sociedade colonial, o estatuto de cidadão

tem, entre outros pré-requisitos, a ideia da "pureza de sangue" - ou seja, a ausência da mácula que contamina a descendência das "raças infectas", judeus, mouros, negros, indígenas, ciganos7 - e a inexistência de qualquer "defeito

mecânico" - isto é, de qualquer vínculo com atividades manuais, os ofícios mecânicos.8 Nesse contexto, cidadão e

povo são noções diversas. Em uma representação de 1748 do Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro sobre a procissão de Corpus Christi, os vereadores cobram a presença dos "Cidadãos", da "Religião" (ordens religiosas), das "Irmandades e Confrarias" e do "mais Povo".9 O povo

aqui não se confunde com o conjunto dos cidadãos, mas designa os ofícios mecânicos (artesãos), que exerciam fun-ção simbólica relevante nas cerimônias régias e que haviam tido participação política por um certo período de tempo em algumas cidades do reino e da América portuguesa.10

Na verdade, essas noções de cidadão e de vizinho têm que ser compreendidas no horizonte das concepções

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corporativas que marcaram as representações teológico--políticas da sociedade e da monarquia portuguesa no Antigo Regime. Para tais concepções, a hierarquia social era pensada como a expressão de uma ordem mais geral do mundo, na qual cada coisa encontra a sua razão de ser no desempenho de uma função e na ocupação de um lugar que lhe são próprios. O todo é o resultado da articulaçãp entre as suas diferentes partes, cada uma cumprindo o papel que lhe compete em vista do bem comum. Em termos das relações políticas, a perspectiva corporativa impõe o reconhecimento de uma organização da vida coletiva que precede a vontade humana e que requer a preservação da autonomia e da diferença dos corpos sociais em relação à sua cabeça, o rei. Este último tem como principal incumbência a preservação da harmonia do todo através da realização da justiça, entendida como a atribuição a cada qual daquilo que lhe compete.11 Esta compreensão de

origem medieval será reatualizada na época moderna com a difusão no mundo português das doutrinas políticas corporativas da Segunda Escolástica, cuja influência se manteve na América portuguesa até o final do século XVIII, resistindo aos esforços de reforma empreendidos pela Ilustração. Para os autores da Segunda Escolástica, a ordem política apresenta um duplo caráter: ela decorre de uma ordenação natural das coisas que escapa ao arbítrio humano; simultaneamente, é pactuada, porque resulta da transferência ao governante de direitos que residiam originariamente nos corpos da República.12

Nesse quadro, a ideia de constituição remete, em pri-meiro lugar, a uma estruturação natural da sociedade, antes de ser o resultado de um ato de vontade dos cidadãos de

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um Estado. A precedência da constituição e do direito sobre a livre escolha dos membros da coletividade está na base do estatuto do cidadão. Este último é inseparável da ideia de que a comunidade política é produto da articula-ção entre corpos sociais que são por natureza diversos e desiguais em direitos. Por isso, a constituição é a condição dos pactos dos quais os cidadãos tomam parte, e não o oposto.13 Da mesma forma, as palavras nação e pátria não

eram portadoras de um significado político vinculado à ideia de direitos à cidadania. A pátria, em geral, designava o lugar de origem dentro dos domínios portugueses.14

Nação, quando compreendida em termos políticos, era, antes de tudo, a "nação portuguesa", sinônimo de Estado português e, portanto, expressão de uma unidade que se imaginava resultante da submissão e da fidelidade de todos os súditos à monarquia.15

No contexto do Antigo Regime português e da socie-dade colonial das décadas iniciais do século XVIII, o esta-tuto de cidadão apresenta-se como o resultado de uma concepção partilhada do poder, segundo a qual o exercício do governo local é compreendido como uma prerrogativa de alguns corpos sociais e indivíduos e, ao mesmo tempo, como um serviço cuja merecida contrapartida deveria ser a ampliação dos privilégios. Sendo assim, não é de se espantar que, em 1655, os oficiais da câmara da cidade de São Luiz do Maranhão demandassem junto ao rei os mesmos privilégios que distinguiam os cidadãos da cidade do Porto desde 1490. Tampouco surpreende que o rei atendesse à reivindicação, alegando que o fazia em retri-buição aos serviços prestados pelos súditos fiéis e na expectativa de que a fidelidade já demonstrada viesse a se renovar.16 Como o estatuto do cidadão pressupõe o

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reconhecimento prévio de uma determinada ordem da vida social, toda disputa em torno dele se dá dentro de limites muito precisos, que são aqueles colocados pela própria compreensão hierárquica e, por extensão corpo-rativa e estamental, da sociedade. É possível disputar sobre os critérios de acesso aos privilégios que definem a cida-dania, mas não sobre a sua condição privilegiada.

Ao longo do século XVIII, esse quadro tendeu a se transformar como resultado da incorporação de uma linguagem referida a um novo sujeito do direito: o indi-víduo. Tal fato foi o produto da difusão de duas retóricas nem sempre convergentes, ainda que ambas tributárias do jusnaturalismo moderno: a retórica igualitária dos di-reitos subjetivos e a da soberania popular. A repercussão no ultramar do ideário das Luzes, da independência das colônias inglesas e da Revolução Francesa foi a principal responsável pela assimilação dessas novas retóricas. No entanto, a acolhida das novas ideias no mundo português se deu dentro de limites muito claros, buscando conciliar a preservação de estruturas sociais e políticas do Antigo Regime e um programa de'reformas modernizantes ins-pirado no racionalismo do século XVIII. Além disso, a vigilância e a censura sobre as noções que se chocavam com as instituições da monarquia e a proibição das tipografias na América portuguesa impunham limites à circulação da palavra impressa. A disseminação de novas ideias ocorria sobretudo por intermédio de alguns impressos, manus-critos e pela comunicação oral e não sob a forma de uma reflexão de cunho mais sistemático e livresco. A formação de um novo conceito de cidadania será essencialmente clandestina e ganhará a luz do dia com as vestes da sedi-ção, nos movimentos de contestação da ordem colonial

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que ocorrerão nos anos finais do século XVIII e início do XIX. Portadores de projetos políticos distintos e, muitas vezes, marcados por diferenças internas, alguns desses movimentos trouxeram a público noções que punham em questão a ordem do Antigo Regime e, com ela, a concepção hierárquica e estamental da cidadania.

A Conjuração Baiana de 1798 é, nesse sentido, exem-plar. Expressão da crise do Antigo Regime, ela foi um episódio cujo alcance permaneceu pontual e localizado. No entanto, permite vislumbrar desdobramentos possí-veis da assimilação na sociedade escravista de uma ideia de cidadão como titular de direitos de caráter igualitário. Projeto abortado de revolução contra o que se designava como o "despotismo" e a "tirania" da Coroa portuguesa, a Conjuração Baiana de 1798 tem entre seus traços distinti-vos a assimilação do ideário da Revolução Francesa. Como proclamavam os pasquins afixados nas ruas da cidade de Salvador, seria chegada a hora dos "homens cidadãos", dos "povos curvados e abandonados pelo rei" levantarem "a sagrada bandeira da liberdade".17 Ao incorporar o ideário

francês, o discurso dos conjurados atingia as bases esta-mentais da sociedade colonial e as concepções de direito que lhe eram próprias e, ao mesmo tempo, transformava a igualdade de direitos em condição de pertencimento à comunidade política. Na nova ordem, as distinções de estatuto entre os homens livres seriam abolidas e o governo seria a expressão da soberania do povo. Como observava outro pasquim dirigido ao "poderoso e magnífico povo bahinense republicano", "será maldito da sociedade nacio-nal todo aquele ou aquela que for inconfidente à liberdade coerente ao homem".18 Dessa forma, em movimento similar

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Norte e na Europa, a legitimidade do exercício do poder se transferia do trono para o povo. Compreendido agora como um conjunto de indivíduos juridicamente iguais, o povo deixava de ser uma das ordens da sociedade para se transformar no titular dos direitos de soberania: é o povo que, na linguagem dos pasquins, "quer", "manda", "ordena" fazer uma revolução, abrir os portos, elevar a remuneração dos soldados, criar um "novo código", punir os oponentes do movimento.19 Se a nação no vocabulário político dos

insurgentes continua a ser sinônimo de Estado, ela já não se identifica mais com a unidade da Coroa, mas remete à vontade coletiva do povo.20

Na Conjuração Baiana, a noção de "liberdade coerente ao homem" e a concepção abstrata de direito que lhe é correspondente encontraram expressão em uma expecta-tiva de eliminação das distinções fundadas nas diferenças de cor. Como antecipava um pasquim: "Cada um soldado é cidadão, mormente os homens pardos e pretos que vivem escornados e abandonados, todos serão iguais, não haverá diferença, só haverá liberdade, igualdade e fraternidade."21

A abolição da escravidão não figurava entre as reivindica-ções dos revoltosos, apesar de ter sido vocalizada por alguns deles. Ainda assim, a bandeira de uma cidadania que eliminasse as diferenças de cor trazia consigo um potencial de questionamento não só das desigualdades estamentais e dos estatutos de pureza de sangue a elas associados, mas também da própria ordem escravocrata. Esta ameaça, no final do século XVIII, ganhava contornos ainda mais nítidos em função das notícias da rebelião de escravos iniciada em 1791 na colônia espanhola de São Domingos.

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A possibilidade - entrevista na Conjuração Baiana e que se reproduzirá em outras ocasiões - de que o ideal de uma cidadania igualitária se disseminasse como uma demanda pela abolição das discriminações de cor e, em último caso, como um grande conflito social imprimirá uma tônica particular aos debates políticos sobre o conceito de cidadão que se inauguram à época da independência. As controvérsias em torno da amplitude dos direitos de cidadania ocorridas na Constituinte brasileira de 1823 são um momento importante desse debate.

A discussão na Constituinte de 1823 está marcada pela necessidade que então se colocava de fundar um novo corpo político após a separação de Portugal. Dessa forma, a definição sobre o cidadão brasileiro implicou a determi-nação das fronteiras que separariam este último dos não--cidadãos, isto é, de todos aqueles que não participariam do "pacto social" sobre o qual se fundava o Estado nascente. A linguagem é, em grandes linhas, a do jusnaturalismo moderno. A sociedade é criada pelos indivíduos tendo em vista a preservação dos seus direitos. Serão cidadãos aqueles que, por meio do seu consentimento, estabele-cerem um poder comum para a sua própria segurança e conservação. No entanto, a determinação da natureza do pacto social brasileiro se deparava com duas grandes difi-culdades. A instituição da nova ordem se dava a partir de uma secessão no interior da antiga "família portuguesa": como diferenciar os cidadãos do Estado que se formava em relação aos membros do antigo reino português? Ou ainda: dado que até então todos eram igualmente membros da "nação portuguesa", como distinguir a partir de agora brasileiros e portugueses? Além disso, uma outra questão

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se colocava: quais dos membros da sociedade brasileira poderiam ser considerados parte efetiva do pacto social?22

Nas palavras de um dos constituintes: "Por ser heterogê-nea a (...) população" brasileira, seria preciso diferenciar aqueles que poderiam reivindicar o título de cidadão dos demais, evitando "confundir as diferentes condições de

homens por uma inexata enunciação".23 /

Às vésperas do rompimento com Portugal, "brasileiro" não indicava uma identidade política diferenciada. Com efeito, "até o início de 1822, nascer brasileiro significava ser português'; com isto designava-se apenas o local de nascimento dentro da nação portuguesa".24 A palavra podia

ser igualmente utilizada para apontar os que, nascidos em Portugal, tinham residência fixa ou interesses mais per-manentes no mundo americano.25 Em fevereiro de 1822,

Hipólito José da Costa, no seu jornal Correio Braziliense, ainda acreditava ser necessário diferenciar "brasiliense" ("o natural do Brasil"), "brasileiro" ("o português europeu ou o estrangeiro que lá vai negociar ou estabelecer-se") e "brasilianos" ("os indígenas do país").26 Em 1823, nos

debates da Constituinte, brasileiros e portugueses passam a ser concebidos como membros de nações diferentes. Em parte, essa distinção se baseará no critério da naturalidade, já que os cidadãos brasileiros se definirão, entre outras coisas, pelo fato de terem nascido no território da nova nação. Mais do que o critério da naturalidade, porém, será a adesão, tácita ou explícita, à causa da independência, isto é, o engajamento no novo pacto social, que, para os constituintes, estabelecerá a diferença entre brasileiros e portugueses. Ponto de vista semelhante fora defendido por Frei Caneca, em texto do início de 1822, publicado no

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ano seguinte. Segundo ele, "pátria não é tanto o lugar em que nascemos, quanto aquele em que fazemos uma parte e somos membros da sociedade".27 Seria preciso distinguir

a "pátria de lugar" ("efeito do puro acaso") da "pátria de direito" ("ação do nosso arbítrio").28 Esta, e não aquela, seria

a verdadeira "pátria do cidadão". De modo similar, dizia José Martiniano de Alencar na Constituinte, "é cidadão brasileiro tanto o nascido em Portugal como o nascido no Brasil, contanto que entrassem de princípio no novo pacto social".29 No momento que se desenham os contornos

do novo Estado, o que define o cidadão brasileiro é, em primeiro lugar, o seu consentimento.

O fato de que o português seja concebido como não-- cidadão, ainda que o converta em estrangeiro, não afeta o seu estatuto jurídico de homem livre. O mesmo já não se pode dizer quando foi preciso definir "para dentro", e não mais "para fora", as fronteiras da cidadania, separando as diferentes "condições de gente" que compunham a sociedade. Isso implicou uma tentativa de estabelecer uma distinção entre os que pactuariam para a formação da sociedade civil e os que não possuiriam títulos jurídicos para participar dela, os negros escravos e os índios. Daí a necessidade de diferenciar entre o brasileiro e o cidadão brasileiro. Nos termos do deputado Francisco Carneiro de Campos:

O nosso intento é determinar quais são os cidadãos brasileiros e, estando entendido quem eles são, os outros poder-se-iam chamar simplesmente brasileiros, a serem nascidos no país, como escravos crioulos, os indígenas, etc., mas a constituição não se encarregou desses, porque não entram no pacto social: vivem no meio da sociedade civil, mas não fazem parte dela.30

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Os índios estariam excluídos, porque, embora livres e nascidos no país, sequer reconheceriam a existência da nação brasileira e de suas autoridades, vivendo inclusive em "guerra aberta" contra elas.31 Já os escravos, nascidos

ou não no Brasil, a sua situação é outra, uma vez que o seu estatuto de não-cidadão será pensado com referência a uma condição jurídica precisa: o fato de que não são donos de si mesmos, o seu estado de privação de liberdade. Os escravos, observava Francisco Gê Acaiaba Montezuma, em relação "ao exercício de direitos na sociedade, são consi-derados coisa, ou propriedade de alguém". O seu estatuto jurídico os tornava incapazes de serem membros da socie-dade civil brasileira, pois, como insistia Montezuma, "este nome só pode competir, e só tem competido a homens livres".32 Dessa forma, se estabelece uma clara demarcação

entre cidadãos - que por serem livres podem reivindicar a "qualidade de pessoa civil"33 - e os escravos - que, mesmo

quando naturais do país, não são livres e não são senhores da sua própria vontade, não podem tomar parte do pacto social, "não passam de habitantes no Brasil".34

Havia, no entanto, uma condição adicional de homens em relação à qual o estatuto de cidadão precisou ser defi-nido. Uma condição ambígua, já que livre, natural do país, habitante do seu território, integrada à ordem política do Império e, no entanto, marcada pela condição servil: os escravos libertos. O lugar dos libertos no interior da sociedade política colocava no centro do debate a questão sobre a amplitude tolerável de uma noção de direitos de cidadania baseada na ideia de uma "liberdade coerente ao homem". Em outros termos, dada a continuidade da ordem escravista, qual o grau aceitável de abstração do conceito de cidadão em relação às desigualdades que organizavam

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mestiços contra os brancos. A simetria dos pontos de vista remete, no entanto, a um mesmo pano de fundo: a tensão entre o novo conceito de cidadania consagrado na Constituição e a continuidade das relações escravistas.

No debate político dos anos 1830 e 1840, duas respos-tas oposrespos-tas e polares buscam fazer face a essa tensão. Em linhas gerais, elas foram expressão do antagonismo entre liberais e conservadores e encontraram na Constituição de 1824 o quadro de referência da sua argumentação.44 Desde

os debates da Constituinte, a discussão sobre a igualdade jurídica se restringia à esfera dos direitos civis. Como

observava Pedro Araújo Lima, "a palavra cidadão não induz igualdade de direitos".45 A Constituição outorgada

consagrará esse ponto de vista. Segundo Pimenta Bueno, principal comentador da Constituição imperial, os direi-tos políticos seriam um atributo daqueles que, além de membros da "sociedade civil ou nacional", participariam da "ordem ou sociedade política".46 No debate político

brasileiro do século XIX, a diferenciação entre cidadãos portadores de direitos políticos e aqueles apenas titulares de direitos civis será elaborada a partir da distinção entre cidadão ativo e passivo, originária do constitucionalismo francês. O primeiro, nos diz Pimenta Bueno, desfruta de uma liberdade relativa a "tudo quanto não lhe é proibido pela lei"; já o segundo possui a liberdade política que "decreta essa lei".47 O exercício dos direitos políticos, diz o

mesmo autor, seria "uma importante função social", antes de ser "um direito individual ou natural". Para possuir tais direitos, seria preciso "oferecer à sociedade certas garantias indispensáveis",48 sob a forma de "capacidades e

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Na Constituição de 1824, a diferenciação entre cida-dão ativo e passivo foi instituída com base em critérios censitários, que também estabeleciam diferentes graus no exercício dos direitos políticos. Nos debates políticos dos anos 1830 e 1840, o princípio que sustentava os critérios censitários da Constituição - a ideia de que a propriedade é a condição para o exercício independente dos direitos políticos - não será, em linhas gerais, questionado. á o entanto, duas alternativas opostas serão derivadas do texto constitucional, visando conciliar escravidão e cidadania. Do ponto de vista dos liberais, as qualificações censitárias não negariam a igualdade fundamental dos cidadãos perante a lei, apenas estabeleceriam distinções fundadas em critérios adquiridos, e não herdados. Nesse sentido, o acesso aos direitos políticos dependeria apenas dos talentos individuais. A escravidão estaria justificada pelo direito de propriedade e não por quaisquer diferenças qualitativas entre os indivíduos. Não haveria razão, portanto, para a existência de categorias intermediárias entre os cidadãos e os escravos.50 Como afirmava um jornal radical dos anos

1830, "entre nós não há mais do que povo e escravos; e quem não é povo já se sabe que é cativo".51 Entre os

con-servadores - "partido" que se torna hegemônico a partir da década de 1840 -, prevalecerá a ideia de que seria preciso demarcar as diferenças entre os membros da sociedade, atualizando e legitimando na nova ordem as prerrogativas que haviam organizado o Antigo Regime português. A preservação da ordem escravocrata se torna sinônima da conservação e reprodução de hierarquias tradicionais, que podiam ser lidas agora à luz das exigências censitárias do texto constitucional. Dessa forma, a associação entre cidadania, liberdade e propriedade se torna a referência

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das desigualdades que deveriam existir entre livres e pro-prietários (os cidadãos ativos), livres e não-propro-prietários (os cidadãos passivos) e não-livres e não-proprietários (os não-cidadãos).52

NOTAS

1 DAC, 24/09/1823, p. 106. 2 DAC, 24/09/1823, p. 106.

3 ORDENAÇOENS, Livro II, Título XXI. 4 FREIRE, 1789, Livro II, Título II, § 7. 5 Cf. FREIRE, 1789, Livro II, Título II, § 5. 6 BICALHO, 2003, p. 146. 7 CARNEIRO, 2005. 8 BICALHO, 2003, p. 143. 9 Apud SANTOS, 2005, p. 114. 10 SCHWARTZ, 2004; SANTOS, 2005. 11 HESPANHA; XAVIER, [s.d.], p. 122-125.

12 HESPANHA, 2000; HESPANHA; XAVIER, [s.d.], p. 127-133. 13 HESPANHA; XAVIER, [s.d.], p. 122-125; HESPANHA, 2000. 14 BERBEL, 2003, p. 348.

15 JANCSÓ; PIMENTA, 2000; CHIARAMONTE, 2003.

16 Cf. Alvará de 15 de Abril de 1655. In: ANDRADE E SILVA, 1856,

p. 226. 17 MATTOSO, 1969, p. 149. 18 MATTOSO, 1969, p. 155-156. 19 MATTOSO, 1969, p. 158-159. 20 JANCSÓ; PIMENTA, 2000, p. 147. 21 MATTOSO, 1969, p. 157. 22 Cf. SLEMIAN, 2005. 23 DAC, 23/09/1823, p. 90.

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24 RIBEIRO, 2002, p. 46. 25 RIBEIRO, 2002, p. 46. 26 Apud PIMENTA, 2006, p. 78-79. 27 CANECA, 1823, p. 98. 28 CANECA, 1823, p. 80. 29 DAC, 26/09/1823, p. 118. 30 DAC, 24/09/1823, p. 106. 31 Cf. DAC, 23/09/1823, p. 90. 32 DAC, 23/09/1823, p. 90. 33 DAC, 30/09/1823, p. 106. 34 DAC, 23/09/1823, p. 135. 35 Cf. MATTOS, 1987, p. 113; GRINBERG, 2002, p. 184. 36 Cf. MATTOS, 2000; BERBEL; MARQUESE, 2006. 37 MATTOS, 2000, p. 13.

38 DAC, 30/09/1823, p. 136. 39 DAC, 23/09/1823, p. 93. 40 DAC, 30/09/1823, p. 139. 41 MATTOS, 2000, p. 22.

42 MATTOS, 2000; MARQUESE, 2006; BERBEL; MARQUESE, 2006. 43 DAC, 30/09/2006, p. 136, 138. 44 Cf. MATTOS, 2000, p. 33-35. 45 DAC, 24/09/1823, p. 106. 46 BUENO, 1857, p. 526. 47 BUENO, 1857, p. 550. 48 BUENO, 1857, p. 553. 49 BUENO, 1857, p. 551. 50 MATTOS, 2000; GRINBERG, 2002. 51 Apud BASILE, 2004, p. 165. 52 GONÇALVES; MATTOS, 1991, p. 17-18.

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L Ú C I A M . B A S T O S P E R E I R A D A S N E V E S G U I L H E R M E P E R E I R A D A S N E V E S

CONSTITUIÇÃO

Se a análise de um conceito consiste em distinguir "as diversas significações que estão vivas na língua, mas que obtêm uma determinação mais restrita em cada contexto do discurso",1 compreender o significado do termo

cons-tituição, no mundo luso-brasileiro da segunda metade do século XVIII em diante, pressupõe um recuo temporal até a Restauração de 1640, momento de refundação da monarquia portuguesa.2 Rompido o pacto estabelecido nas

Cortes de Tomar de 1580 com Felipe II de Espanha, coube à nação portuguesa em 1640 o direito de aclamar um novo soberano, ato insurrecional legitimado pela reunião em Cortes, nas quais o duque de Bragança viu-se aclamado como D. João IV (1640-1656).3 Realização máxima de uma

reflexão sobre o poder e a sociedade com profundas raízes nos séculos anteriores,4 a que não eram estranhas certas

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M A R C O A . P A M P L O N A

NAÇÃO

Falar de nação, ou dos demais conceitos congêneres, implica atenção às várias camadas de tempos superpostos que carregam e às composições bastante específicas desses muitos tempos que em diferentes momentos costumam expressar.

O período que nos interessa aqui - de 1750 a 1850 - mostra-se particularmente rico para demarcarmos as sutis mudanças de ênfase entre os distintos significados que comporta o vocábulo. As profundas transformações políticas e sociais experimentadas entre 1760 e 1830 -associadas ao ciclo das revoluções modernas, iniciado nas colônias com a Revolução Americana, seguido pelas Revo-luções Francesa e do Haiti e ampliado com as revoRevo-luções liberais desencadeadas nas metrópoles ibéricas e com as independências das suas colônias americanas - intervieram radicalmente. Ao longo desses anos, novos, diferentes e acelerados processos de mudanças semânticas foram caracterizando o termo. Em especial, tratou-se de redefinir

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a conotação política que já então particularizava a palavra nação e ampliá-la, ajustando-a a diferentes conjunturas.

Assim, ainda que a inicial polissemia característica do vocábulo fosse mantida, com seus conhecidos aspectos de natureza étnica e cívica, a identificação com o político fortaleceu-se e ganhou novos contornos.

Num espaço de tempo não superior ao de duas gerações, novos conteúdos se afirmaram e ressignificaram progres-sivamente o termo. Mesmo quando os velhos significados permaneciam (é o caso do conteúdo étnico que sempre acompanhou o termo natio, identificando-o à descendência ou à gens), eram os vínculos entre nação e Estado, ou nação e ordem política, os que marcariam as vozes mais representativas desse embate cultural no período.

Observamos isso, inicialmente, por meio da análise do léxico político e do seu registro nos dicionários de época. O Vocabulário Portuguez e Latino, do padre Raphael Bluteau, publicado em 1716, já definia nação como um "nome cole-tivo, que se diz da Gente, que vive em alguma grande região ou Reino, debaixo do mesmo Senhorio". E, acrescentava:

Nisso se diferencia nação de povo, porque nação com-preende muitos povos, & assim Beirões, Minhotos, Alentejões, & c. compõem a nação Portuguesa; Bávaros, Saxões, Suábios, Hamburguenses, Brandenburguenses, & c. compõem a nação Alemã; Castelhanos, Aragoneses, Andaluzes, & c. compõem a nação Espanhola.1

Tal percepção - ao associar a Nação ao Reino, à auto-ridade de um mesmo Senhorio, à Monarquia - via-se ainda relacionada ao contexto do Antigo Regime. Junto a ela, outros sentidos prévios do termo continuam sendo

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lembrados, mantendo-se a associação a etnias, castas, a uma mesma língua, ascendência ou origem comum. Há inclusive referências ao que Bluteau chamou de "Nações de extraordinário e monstruoso feitio de que fazem men-ção Autores antigos & modernos". Dentre esses estranhos grupos, destacam-se os Masuyüs, uma nação do Grão-Pará mencionada pelo padre Simão de Vasconcellos, no seu livro Notícias do Brasil, sobre os quais afirma, fantasiosamente, serem "casta de gente que nasce com os pés às avessas". Também os Curinqueans são citados como habitantes das terras do Grão-Pará, com "dezesseis palmos de alto, aos quais todos os outros têm muito respeito".2 Tácito,

falando--nos de Gentiles nationes, os da mesma nação, ou Cícero, mencionando a Gentilia sacrificia, também são citados. Aí estão, enfim, as nações associadas a vários grupos étnicos, a vários "outros", definidos de inúmeras maneiras, mas, especialmente, em função do seu lugar de origem. Assim, as nações, continuavam a designar o modo como na Antigui-dade os romanos se referiam aos "bárbaros" que habitavam o Império, vindos de diferentes regiões; ou como eram classificados os estudantes, de forma a atribuir-lhes uma identidade nas universidades medievais - por exemplo, os da Universidade de Paris, representando a fidèle nation de Picardie ou a honorable nation de France, entre outras.3

Também o Dicionário da língua portuguesa de Antonio de Moraes Silva, ao longo de várias edições - como na sua quarta edição, de 1831 - , registrava o significado "antigo" do vocábulo, associando-o a atributos etnoculturais e ao estrangeiro - ao não igual ou "outro" - e, sobretudo, àquele que não podia ser reconhecido como par, ou cidadão. Daí a expressão "Gente de Nação". O Dicionário de Moraes Silva registrava esse último termo, identificando-o aos

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"descendentes de Judeus, Cristãos novos. Raça, casta, espé-cie". Observamos, entretanto, que o significado antigo não era o primeiro a vir anunciado no verbete. Uma definição principal e mais ampla em geral o precedia, tal como no dicionário de Bluteau. Em ambos os léxicos, o primeiro sig-nificado do termo nação vinha referido a civitas e descrevia sobretudo "a gente de um paiz, ou região, que tem Lingua, Leis e Governo á parte". Como exemplos concretos desses grandes aglomerados de gente, politicamente organizados, vinham citadas a "Nação Francesa, Espanhola, Portuguesa". Tidas como modernas, nelas valorizava-se, sobretudo, a ordem política, ainda que fossem admitidas a unidade de língua e o território como expressões importantes para particularizá-las.

Na 5a edição do Dicionário de Moraes Silva, de 1844, o

termo nação manteve os mesmos significados da edição anterior de 1831. O registro da etimologia de algumas pa-lavras - por exemplo, "Nação" (do latim natio, onis) - era a única novidade apresentada. Foi apenas com a 6a edição

do Dicionário, em 1858, que as grandes transformações semânticas observadas previamente apareceram consoli-dadas. Reproduzamos na íntegra o verbete nela presente para melhor comentá-lo.

Nação, s. f. (do Lat. natio) A gente de um país, ou re-gião, que tem lingua, leis, e governo à parte: v. g. a nação Francesa, Espanhola, Portuguesa. §. Gente de Nação; i. e. descendente de Judeus, Cristãos novos. §. Nação; fig. raça, casta, especie. Prestes.

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+ (Nação, Povo. Sin.) No sentido literal e primitivo. A palavra nação indica uma relação comum de nascimento, de origem; e povo uma relação de número, e de reunião. A nação é uma dilatada família; o povo é uma grande reunião de seres da mesma espécie. A nação consiste nos descendentes de um mesmo pai, e o povo na multidão de homens reunidos em um mesmo sitio. Em outra accepção a palavra nação compreende os naturais do paiz; e o povo todos os habitantes. Um povo estrangeiro que forma uma colônia em país longínquo, continua ainda a ser Inglês, Português, Espanhol etc. é-o por nação, ou de origem. Diversos povos reunidos, ligados por differentes relações comuns em um mesmo paiz, formam uma nação; e uma nação se divide em vários povos, diversos uns dos outros por differenças locais e físicas, ou políticas e morais. A nação está intimamente unida ao paiz pela cultura, ela o possui; o povo está no país, ele o habita. A nação é o corpo dos cidadãos; o povo é a reunião dos reinicolas. Uma nação divide-se em muitas classes; o povo é uma delas; é a parte mais numerosa de que a nação é o todo.4

Após as quatro primeiras linhas, em que são repro-duzidas definições presentes em edições anteriores, nos deparamos com acréscimos, de fato, novedios. Primeira-mente, está a apresentação de nação como sinônimo de povo, não mais a sua soberania repousando no Monarca ou no Reino, indicando-nos que o jusdivinismo progressiva-mente cedera lugar ao jusnaturalismo. Em segundo lugar, ressignifica-se uma distinção fundamental entre esses dois termos. A nação, inicialmente associada à origem e à relação comum de ascendência, vem agora descrita como "uma dilatada família" que "...consiste nos descendentes de um mesmo pai". E, o povo, inicialmente, identificado a uma

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mera relação de número, uma reunião; é agora a "multidão de homens reunidos em um mesmo sítio". E, enquanto a primeira expressão compreende apenas "os naturaes do paiz", a segunda diz respeito a "todos os [seus] habitantes". Tais diferenças e redefinições se dão a partir do sentido novo e fundamental que a palavra nação começou a revelar nos anos que se seguiram ao vintismo, no mundo ibérico - nos referimos ao sentido de separação, de distinção de um povo em relação a outro. Uma tal dimensão que não escapou absolutamente a Moraes Silva. Assim, quando o autor nos diz, por exemplo, que "(uni) povo estrangeiro que forma uma colônia em país longínquo, continua ainda a ser Inglês, Português, Espanhol etc. é-o por nação, ou de origem", ele está entendendo o "nacional" como algo que se situa na base do "internacional"; e, simultaneamente, como o oposto ao estrangeiro. Em suma, o adjetivo "nacional" passou a significar não só o que é "relativo à nação", mas o que é "relativo à nossa nação", com a exclusão das outras. E é nessa última acepção, com a particularização agora de uma dada nação entre as outras, que passamos a assistir ao desenvolvimento dos muitos nacionalismos que marcaram o século XIX.

No mundo luso-brasileiro, a diferenciação conceituai mais importante entre os dois termos tratados deu-se à época do vintismo e foi, a saber, aquela que acabou identificando a nação ao "corpo dos cidadãos". Assim, enquanto o vocábulo povo permaneceu associado ao conjunto maior dos habitantes do reino, à "reunião dos reinicolas", a relação entre nação e civitas viu-se reforçada ou enfatizada. Nação tornou-se indissociada, no léxico político do período, da ideia de uma dada ordem política, ou de uma "república" (do latim respublica, res e publica,

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a coisa pública); ou o "que pertence, e respeita ao público de qualquer Estado". E, segundo a definição bastante clara de Moraes Silva, nação referia-se não a todos, mas apenas aos que eram cidadãos, aos que gozavam de direitos e privilégios em algum foro, aos que habitavam cidades ou vilas e, em suma, aos que, por se encontrarem nessa con-dição, como pertencentes a uma particular "vizinhançá", ou compondo um dado "corpo de cidadãos", passavam a poder reivindicar a sua representação na nação moderna que se afirmava. As definições de cidadão e de cidade que predominaram a partir dos anos de 1820, e que nos são dadas por Moraes Silva nesta mesma edição, bem como as de povo, reiteram essa perspectiva. É a nação que, como "conceito fundamental",5 se faz combinar a esses outros de

similar importância - povo, cidadão etc. - redefinindo, informando e direcionando o conteúdo político e social da própria língua.

Cidadão (do latim civis) referia-se ao homem que gozava dos direitos de alguma cidade, de isenções ou pri-vilégios que a condição de "vizinho" em uma cidade lhe conferia. Era no Brasil sinônimo de "homem bom". Com a frase "faziam um juiz cidadão da cidade, ou vila, e outro fidalgo", Moraes também deixa claro que cidadão não se confundia com fidalgo. Sua definição é melhor precisada quando analisamos a descrição que ele mesmo faz de cida-de (do espanhol ciudad, do latim civitas). Primeiramente, a cidade é descrita apenas como "povoação de graduação superior às Vilas. Antigamente deram este nome a vilas, ou Concelhos, e povoações grandes." E sua definição plena se dá quando Moraes afirma que "a Cidade por excelência se entende daquela onde estão os que falam". As gentes da cidade ou da vila opõem-se, pois, às da corte. Os cidadãos

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são já votantes e eleitores e é nessa condição que poderão passar a representar a nação.

A representação da nação, em suma, não se fazia por indivíduos quaisquer e não podia ser o somatório numé-rico daqueles, tomados isoladamente. Ela era a represen-tação de "um certo tipo de gente", de "uma dada condição de gente" - daqueles que pertenciam a corpos (políticos) específicos. O "cidadão" era, pois, sinônimo de "pessoa honrada" ou "vizinho de alguma cidade"; correspondia, via de regra, aos homens de propriedade e posição no conjunto da população do Império brasileiro; representava a "boa sociedade" naquela ordem, no dizer de limar Rohloff de Mattos.6 O "cidadão" vinha identificado às muitas polities

anteriores - associadas quer às vilas, comunidades de sú-ditos, e vizinhanças -, em especial àquelas profundamente enraizadas nas instituições coloniais do passado e que puderam parcialmente sobreviver. Nessas comunidades, os significados se sobrepuseram uns aos outros, misturaram--se tradição e modernidade, no dizer de François-Xavier Guerra. Ainda que restritos ao caso do México, os seus estudos mostraram como essa relação, ao mesmo tempo de oposição e complementaridade, e de permanente ambi-guidade entre tradição e modernidade, contribuiu para manter a polissemia de alguns desses conceitos - tais conio cidadão, soberano, povo etc. — abusivamente empregados ao longo do século XIX.7

A chamada regeneração vintista portuguesa e seus imediatos desdobramentos no ultramar representaram uma primeira e importante inflexão para o processo de transformação semântica do vocábulo nação e das demais expressões a ele diretamente relacionadas. A singularidade luso-brasileira, entretanto, começou antes - nos anos de

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1808 e 1815. O fato de Portugal ser uma monarquia com-pósita e um agregado de reinos não impediu o caráter uni-tário do Estado de prevalecer. Diferentemente da Espanha, a monarquia plural que produziu "nações" hispânicas de seus fragmentos, durante a ocupação,8 o Reino português

e seus domínios foram mantidos. Contribuíram para isso, primeiramente, a transmigração da Corte para o Rio de Janeiro em 1808; em segundo lugar, a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1815.

Durante os anos iniciais da década de 1820, entretanto, constrangimentos vários, de natureza estrutural e conjun-tural, criaram circunstâncias particulares que acabaram redirecionando as ações políticas dos principais agentes. É desse período a profusão de "atos de fala"9 enunciados

no interior de comunidades argumentativas específicas (nos referimos, por exemplo, aos debates em jornais, constituintes, cortes e assembleias). É no interior desses espaços, dependendo sempre de variáveis temporais e de lugar, e referido a meios sociais determinados, que o sen-tido convencional de um dado termo começa a mudar, ora mais rápida, ora mais lentamente. É observando tais "atos de fala" que podemos perceber como e quando os velhos significados passam a perder o seu peso, misturam-se com novas conotações e começam a atribuir positividade a expressões antes tidas como derrogatórias; ou mesmo a condenar aquelas antes consideradas corretas. Quando antigas designações se mostram inadequadas à realidade ou incompatíveis com as novas ideias professadas, elas costumam ser redefinidas. O resultado final apresentado pelos dicionários é importante, mas encontra-se já crista-lizado. O léxico não nos permite a percepção do embate mais vivo, captar todas as tensões que a fala em ato carrega,

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com sua intencionalidade e emoção, e que, num ou noutro momento específico, sofre transformações.

Para captarmos um pouco dessa dinâmica, cabe pro-cedermos a uma rápida análise de certas falas que foram marcantes na conjuntura cambiante dos anos que se seguiram ao vintismo. Para uma periodização desses anos cruciais do ponto de vista da afirmação do Estado-nação moderno na América portuguesa, sugerimos a diferenciação, grosso modo, de dois momentos de inflexão chave. Um primeiro momento, associado ao debate em torno do constitucionalismo (1821-1822), contempla tanto a defesa de um governo constitucional ainda nos marcos do reino de Portugal, como a opção pelo governo constitucional com a separação e criação do Império do Brasil. Assim, reconhecer-se "brasileiro", entre 1820 e 1822, não signifi-cava necessariamente abrir mão do sentimento de perten-cimento político à "grande família lusitana". Entretanto, o termo politizava-se crescentemente, com a adesão à "causa do Brasil", e transitava da defesa da "paridade de direitos entre os Reinos" para a adesão à independência e à unidade do novo Império brasílico, após o setembro de 1822.

Isso ficou bastante claro em algumas das vozes mais representativas dos embates culturais à época, e que foram veiculadas pela imprensa que apoiava a separação do Brasil de Portugal. Assim, juntamente com as discussões de A Malagueta, de Luís Augusto May, os debates apresentados no menos exaltado Revérbero Constitucional Fluminense ao longo desses anos revelaram magistralmente essas muitas tensões. O primeiro número do Revérbero, por exemplo, não poupou elogios ao "memorável 24 de Agosto de 1820", que desferira, afirmava o hebdomadário, um golpe mor-tal ao absolutismo. Ele era dirigido aos "portugueses de

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ambos os Mundos!", "de um e outro hemisfério", e os dois brasileiros responsáveis pelo jornal - Joaquim Gonçalves Ledo e o cónego e poeta Januário da Cunha Barbosa -intitulavam-se "amigos da nação e da pátria". A epígrafe que se repetiria em todos os próximos números - Redire sit nefas ("Voltar atrás é crime") - lembrava o compromisso coletivo de conservar "intacta, inviolável, e sagrada a santa e augusta obra da nossa regeneração política", associada ao 24 de Agosto de 1820. Tratava-se, diziam eles, de não deixar apagar "o sagrado fogo da Liberdade, que accen-dido no Doiro, inflammou-se no Téjo, e generalisou-se do Amazonas ao Prata". Finalizavam o primeiro número com o brado: "Avante, Amigos da Nação e do Rei; unidos triunfaremos, e divididos voltaremos ao nada."10

Maior ressignificação dos sentidos dessas e de outras expressões em uso no período - brasileiro, brasílico, por-tuguês, corcunda, nação, reino, império, pátria etc. - ficaria por conta da nova conjuntura, após a separação efetivada em 1822. Há uma maior politização dos termos utilizados. Assim, nos anos seguintes (1823-1824), o eixo do debate viu-se deslocado para outras direções. No novo cenário, o anticonstitucionalismo acabou se confundindo com o apoio ao português. Foi essa a sutil mudança operada também em relação ao corcundismo, como nos lembra Lúcia Bastos em seu trabalho.11 O epíteto de "corcunda",

inicialmente conferido aos defensores do absolutismo, passou a ser aplicado àquele que apoiava o interesse por-tuguês em geral. Em contrapartida, a partir de meados de

1822, especialmente na imprensa local, a "causa brasíli-ca" associou-se à luta contra "a revoltante agressão" dos portugueses e ao movimento pela independência e pela edificação de um Império brasílico, como alternativa ao

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Império luso-brasileiro. A reunião em junho do mesmo ano de uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, composta de deputados das muitas províncias brasílicas, serviu para reforçar mais ainda essa conotação. A expres-são corcunda passou a designar, de forma pejorativa, o antibrasílico, agora aqui entendido como aquele que se opunha à causa da separação do Brasil.12

A partir de 1823, com os debates da Constituinte e após a Constituição outorgada, em 1824, seriam deslanchadas novas discussões sobre os poderes das províncias brasílicas, dando início às discussões sobre as autonomias provinciais. O segundo momento de inflexão que assinalamos para o período é aquele marcado pela tensão entre a Corte e os governos provinciais e locais, pela disputa entre centrali-zação e federalismo, disputa essa fortemente acirrada na década de 1830. Ao projeto de unidade sob a direção do Rio de Janeiro, acalentado por grupos articulados ao aparato político lá instalado desde 1808, opunha-se a resistência daquelas elites provinciais mais ciosas de sua autonomia. Cabe lembrar que séculos de colonização haviam engen-drado unidades político-administrativas que mantinham fracos vínculos entre si e demandavam maior autonomia para gerir seus interesses, sem a interferência de governos a elas externos, fosse o de Lisboa, fosse o do Rio de Janeiro. Parece que a arquitetura de poderes no Portugal do Antigo Regime deixara suas marcas, pois, como insiste em afirmar Nuno Gonçalo Monteiro, uma das peculiaridades do reino era "a inexistência de poderes formalizados em âmbito regional". A instância de poder local privilegiada era a municipal - com conselhos municipais, marcadamente "a-regionais e antirregionais" - não a provincial.13

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Por outro lado, os desafios à manutenção da ordem escravista, a transferência da Corte para a colônia e os acon-tecimentos a ela subsequentes advindos com o vintismo haviam introduzido no panorama político a alternativa de unidade da América portuguesa em um único Estado. A tensão entre a proposta de unidade capitaneada pela Corte e a autonomia das províncias acabaria por marcar a histó-ria das décadas de 1830 e 1840. A unidade sob a direção de um Estado com capacidade de defender os interesses escravistas só era aceitável para as elites provinciais se lhes fosse garantida autonomia suficiente para gerir suas províncias e alguma participação na condução da, agora, política nacional.

A partir das reformas liberais da década de 1830 e, em especial, do Ato Adicional de 1834, ensaiou-se algo do novo modelo. Estabeleceu-se a divisão constitucional das respectivas competências do governo central e dos governos provinciais. Tratava-se de impedir que tendências centrífugas retalhassem a antiga Colônia em diversas uni-dades políticas autônomas, reclamadoras de soberania. Isso implicava a construção de um aparelho institucional, no qual as elites provinciais pudessem defender seus interesses específicos e, ao mesmo tempo, influenciar a política geral - o que se daria por meio das representações na Câmara dos Deputados.

De 1831 a 1837, abriu-se um quadro de enorme insta-bilidade política, que se fez acompanhar do sufocamento de insurreições de norte a sul em um território ainda em consolidação. Tais conflitos aceleraram a tentativa de institucionalização, por parte do Império, das chamadas instâncias de poder provinciais. Com a abdicação de

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D. Pedro, as reivindicações localistas recrudesceram e foram a principal marca das décadas de 1830 e 1840. Em diferentes momentos, três províncias proclamaram sua independência: no norte o Pará, no centro a Bahia e no sul o Rio Grande. Cinco grandes revoltas se seguiram ao Ato Adicional: no Pará a Cabanagem (1835-1840), na Bahia a Sabinada (1837), no Maranhão a Balaiada (1838-1841) e as mais controladas revoltas de São Paulo e Minas Gerais (1842). Em meio à Farroupilha, na província do Rio Grande, proclamou-se uma República independente e, por dez anos (1835-1845), manteve-se uma guerra fratricida na região contra o poder central.

Ao longo do último decênio de lutas (1840-1852), con-solidou-se a chamada direção Saquarema, logo simbolizada pela famosa "trindade" - Eusébio de Queiroz, Joaquim José Rodrigues Torres (futuro visconde de Itaboraí) e Paulino Soares de Souza (futuro visconde do Uruguai). Tecendo seus interesses a partir da Corte e passando pela província fluminense, os Saquaremas conseguiriam se espalhar pelas demais regiões abrangidas pelo Império.14

A discussão, pois, de quem deveria ser cidadão na nova ordem e a formação mesma da nação como efetiva comunidade de cidadãos caracterizaram esses anos de drásticas mudanças. A adoção do princípio mesmo da "soberania do povo" iniciou uma transformação mais profunda da moldura normativa existente até o momento para a legitimação do poder político.

Época de profunda ressignificação do vocabulário político e das linguagens em uso, os anos que se seguiram ao vintismo podem ser vistos como um período, acima de tudo, inventivo. É quando - diríamos - os contemporâneos

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passaram a explorar, talvez pela primeira vez, o significado mais radical de uma linguagem de direitos. Entretanto esses homens e mulheres de carne e osso, que certamente atuaram e sofreram, o fizeram a partir das instituições e organizações às quais estavam vinculados, a partir das unidades políticas e sociais de ação que conheciam e nas quais se viam inseridos naquele tempo de mudanças. /

NOTAS

1 BLUTEAU, 1716, p. 658. 2 BLUTEAU, 1716, p. 658.

3 GREENFELD, 1992; HABERMAS, 1996. 4 SILVA, 1858. Grifos do autor.

5 KOSELLECK, 2004, p. 35. 6 MATTOS, 1999. 7 GUERRA, 2001 e 2003. 8 GUERRA, 2003, p. 60. 9 POCOCK, 2003. 10 RCF, 1821, n. 1, p. 3, 12. 11 NEVES, 2003. 12 NEVES, 2003, p. 138-139. 13 MONTEIRO, 1993, p. 309. 14 MATTOS, 1999, p. 190.

Referências

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