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Retrato de uma cultura Banto/Ameríndia/Católica/Juremeira/(Umbandista?) nos sertões nordestinos

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RETRATO DE UMA CULTURA BANTO/AMERÍNDIA/CATÓLICA/ JUREMEIRA/(UMBANDISTA?) NOS SERTÕES NORDESTINOS*

Bartolomeu Figueirôa de Medeiros (Frei Tito)

1. Introdução

O campo inicial da pesquisa foi a comunidade de Conceição das Crioulas, situada no Município de Salgueiro, Sertão Central de Pernambuco. O objetivo prioritário previsto na elaboração deste primeiro relatório não dizia respeito mais à confecção do laudo pericial antropológico. Este já havia sido solicitado à Profa. Vânia Fialho pela Fundação Palmares, tendo em vista trabalho semelhante executado por ela na comunidade de Castainho, também no interior do Estado. Nem é, de outro lado, proporcionar informações iniciais a respeito da vida e organização dos negros em seu bairro rural, bem como do quadro de suas inter-relações com a população circundante. Isto já foi feito por pesquisas do Centro de Cultura Luiz Freire, bem como do vídeo produzido pela mesma ONG de Olinda, Pernambuco.

Além disso, o mapeamento e a descrição da comunidade rural negra já foi esboçado em trabalhos apresentados por mim e demais membros da equipe de pesquisadores, na 11 Reunião de Antropólogos

do Norte e Nordeste, realizada no Recife, em maio de 1997, bem

como no V Congresso Afro-Brasileiro, acontecido em Salvador, em agosto do mesmo ano. Naturalmente, procurarei dar as informações sobre o meio ambiente, composição étnica da população da Vila de

Conceição, sempre que se fizerem necessárias para melhor

compre-ensão do texto.

* Texto desenvolvido a partir do relatório parcial da pesquisa comunidades Remanescentes de Quilombos no Interior de Pernambuco , financiada pela Fundarpe/Facepe.

­Doutor, Professor do Programa Pós-Graduado de Antropologia Cultural da Universidade Federal de Pernambuco.

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Retrato de uma cultura banto/anicrindialcató}ica/juremejra (umbandista?) nos sertões nordestinos

Trata-se agora de começar a aprofundar tudo aquilo que foi apenas descrito em primeira e já em segunda mão nos trabalhos

supracitados, além de dar prosseguimento à pesquisa documental e

de campo. Sobretudo, é preciso mergulhar mais fundo na memória oral do povo dos sítios mais afastados - daqueles que têm estado mais longe dos focos das máquinas fumadoras, das conversas com

jornalistas, e indagar: o que existe de cultura atro-brasileira tradicional - e se existe - para além desse substrato de miscigenação, de contatos freqüentes inter-étnicos com os indígenas, os mestiços e a população branca/loura, esta, residente na sede do distrito?

O recorte do meu trabalho pessoal de pesquisa foi se

cons-truindo a partir das formas e mentalidades da vivência religiosa da

comunidade negra. Éo assunto principal que desenvolvo neste texto mais compacto.

Chamou-me a atenção o conjunto das manifestações mágico-religiosas, observadas principalmente através da profusão de

curandeiros/as e benzedeiros/as, e da significativa inserção dos negros

na dança ritual do Toré, executado regularmente pelos indígenas Atikun, que habitam a Serra do Umã, que se limita com a Vila da Conceição, onde está situada a reserva indígena - já demarcada

pela Funai e por uma originária daquele povo, chamada dona Rosinha, que desceu a serra e vive num sítio que hoje pertence a Conceição

das Crioulas, de nome 'Sítio Massapê". A partir destas e de outras observações, feitas por mim pessoalmente e pelos auxiliares de pesquisa, concluí que se poderia enveredar por um roteiro de investigação recortado entre quatro questões básicas:

- por que os negros dançam o Toré e não as giras de Xangô ou

Candomblé?

- o que existe de influência umbandista e/ou de Jurema, nas manifestações religiosas dos negros?

- o que provém dos antigos moradores negros?

- como é recebida e interpretada a herança cultural católica, local-mente onipresente nas práticas e nas entidades invocadas por negros, mestiços e indígenas, nas quais os santos - alguns deno-minados de caboclos —são invocados no mesmo pé de igualdade

com Janaína, lemanjá e outros, tal qual acontece em alguns

tipos de Umbanda?

Por fim, desenvolverei, num 52 item, a questão da solidarie-dade vivida entre os habitantes que têm o dom de curar; solidariesolidarie-dade para com os doentes e entre si, vivenciada no respeito mútuo entre os carismas e dotes curativos de cada um.

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Bartolomeu Figueirôa de Medeiros (Frei 'flto)

2. Os negros de Conceição das Crioulas e o Toré

Inicio a primeira questão com o fato já descrito pela Prof.a Mabel Ann B. de Albuquerque', de que os indígenas de nação Gari ri

teriam sido os "donos" das terras, de acordo com as histórias orais obtidas tanto dos negros como da população mestiça mais velha, fato documentado historicamente. Neste caso, estabeleceu-se um

acordo pelo menos tácito de ocupação de partes do terreno, entre os primeiros habitantes e os negros recém-vindos, no século XIX. Além disso, o nome de "cabocla" ou "caboca", dado indistintamente a negros e mestiços, falecidos e vivos; também as freqüentes alusões a casa-mentos entre primos, e de que "tudo é de um famia só (dona Maria

Antônia, negra do Sitio Lagoa)" nos remete a uma miscigenação não apenas étnica mas igualmente sócio-religiosa, o que foi se confirmando à medida que eu, a Prof.a Mabel e os estudantes pesquisadores ouvíamos contar dos médiuns e de pessoas já libertas de males,

sobre a realização de sessões de curas, de expulsão de demônios

de gente negra, índia e branca, por parte de médiuns indígenas,

negros e mestiços, que trabalham com caboclos. Assim, temos o

depoimento de dona Cecília, senhora negra: "de vez em quando as minhas menina recebe, e ela (dona Afonsina, médium que trabalha com caboclos bons) é que cura... aqui recebe tudo que é de coisa

ruim."

As toadas, também chamadas de "cantigas", executadas por diversas pessoas, a nosso pedido, repetem as alusões aos caboclos,

tanto os da terra, como os do mar. Do acervo já gravado apresentamos as seguintes, entoadas pela senhora negra dona Joaninha:

"Bahia é terra de coco, do azeite do dendê; a água do coco é doce, eu também quero beber (bis);

roda baianada, baianada é catimbó; eu amarro o feiticeiro é na ponta do cipó" (bis).

Essa toada é para aqueles que vêm amarrados, é para os violentos.Então a gente reza. Vou cantar agora a cantiga de Cosmin:

"Fui no mato apanhar flor, encontrei cajá no chão, Encontrei com Santa Barba e São Cosme e Camião (bis).

1 coordenadora do curso de Ciências Sociais da UFPE e coordenadora da Pesquisa, juntamente como autor.

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Retrato de uma cultura banto/ameríndia/católica/juremeira (umbandista?) nos sertões nordestinos

Cadê, meu irmão, cadê irmão meu; cadê meu irmão que não vem brincar mais eu (bis)."— Essa aíé dos "encantos"

Vou canta uma toada de caboclo: a da "pisadinha, que a gente sai (ou 'cai') nela'

«Como é bonito a pisada dos caboclo, quando ele anda no alto dos outro; Salve a mãe Sereia, salve lemanjá, salve os caboclo das água do mar; Salve a Mãe Sereia, Salve lemanjá, salve os caboclo das água do mar."

É interessante, a referência e a "presença", em pleno Sertão Central de Pernambuco, de caboclos do mar. Até que esta região não dista muito do pólo gesseiro de Pernambuco e dos contrafortes da Serra do Araripe, onde se encontram fósseis de peixes marítimos, vendidos pelos proprietários das jazidas, a indicar ter sido a região leito do oceano!

A respeito deste fato, o Prof. Roberto Motta, comentando minha apresentação no Congresso Afro-brasileiro, de Salvador/BA, já refe-rida, avançou a hipótese de contatos migratórios passados entre a população de Conceição e o Estado do Maranhão, onde já foi farta-mente documentada a presença de caboclos de diversas categorias (do mar; inclusive) nos cultos afro-brasileiros maranhenses, pela Prof. Mundicarmo Ferretti. E digna de registro, igualmente, a suspeita do prof. Sérgio Ferretti, feita na mesma ocasião, de que as crenças dos negros em caboclos podem ter sua origem em contatos culturais na própria região do Sertão pernambucano, devido à presença majoritária de descendentes de negros bantos (assim chamados os grupos étnicos predominantes no Sudoeste africano).

Ora, é sabido pela literatura sobre as religiões tradicionais africanas no Brasil (cf. p. ex. Bastide, 1971: 393ss; Lopes, 1988; Altuna, 1974) que um componente forte na cultura banto é o culto aos antepassados, recentes e ancestrais. Estes e outros autores também sustentam que os bantos seriam mais maleáveis para se aculturarem às crenças dos demais povos com os quais entram em contato. Tem-se sustentado isto no Brasil, não Tem-sem um certo juízo de valor sobre uma pretensa inferioridade da cultura banto. Sérgio Ferretti pode ter razão, ao suspeitar que o interior do Brasil, ainda não muito estudado sob o ponto de vista das culturas e religiões negras, apresentaria 2 A citação completa da obra de Aluna, Raul Ruiz de Asúa está nas Referências

Bibliográficas.

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Bartolomcu Figueirôa de Medeiros (Frei 'fio)

uma influência banto bem maior que a iorubá, esta predominante no litoral e, por isso mesmo, mais estudada. A maleabilidade cultural dos bantos propiciaria uma maior mistura com outras influências, sejam européias-católicas, sejam indígenas. Portanto, os negros dançariam o Toré tranqüilamente, nele colocando suas entidades e crenças

respectivas. As giras de Xangô e/ou Candomblé são encontradas

principalmente nos centros urbanos mais antigos, nas cidades de pequeno e médio porte da área açucareira do Nordeste e nas cidades mineiras do ciclo do ouro, onde teria se concentrado em maior quantidade o contingente africano de procedência iorubá. As exceções a esta situação encontramo-las no Rio de Janeiro e São Paulo, cidades onde o Candomblé é, em sua maioria, praticado por migrantes da Bahia, Pernambuco, Maranhão, - destacando-se atualmente, em São Paulo,o fenômeno conhecido por reafricanização do Candomblé

paulista— e das cidades mineiras e nordestinas do tipo apresentado acima. Os cultos que se firmaram ali desde o século passado, foram os cognominados de "macumba" paulista e carioca por Bastide (cf. p. exemplo 1971:393ss). Posteriormente, a partir de 1939, surgiu e se codificou a Umbanda, classificada como "uma religião brasileira" por Bastide (1971:41 9ss) e Conconne, em sua tese de doutorado', entre outros autores.

Bastide não se refere ao Toré na classificação que faz das

'religiões afro-brasileiras", em sua obra máxima (1971), na qual dese-nhou, com bastante êxito, um mapeamento geográfico dessas tradi-ções religiosas, por ele incorporadas ao mundo cultural negro, no Brasil. Deveria tê-lo incluído, pois que a Pajelança e o Catimbó, - a

primeira predominando no Norte, a segunda no Nordeste do país, onde são notáveis as influências indígenas e caboclas - são por ele arroladas como religiões ligadas à herança africana. Tanto uma como outra demonstram traços em comum com o Toré.

Deste modo, pode-se aplicar a este o que Bastide afirma com respeito à participação do negro no Catimbó. De saída, ele demonstra mais uma vez sua postura de privilegiamento do Candomblé como uma religião mais sistema-tizada, superioràs demais tradições

afro-brasileiras, ao rotular o Catimbó de uma "religião que corresponde à

desorganização social" (1 971 :255ss), o que implicaria a desorganização do negro que aceita participar daqueles cultos. Assim, o negro que se organizaria e se integraria socialmente, que crescesse em sua auto-estima, deixaria o Catimbó, a Pajelança e, por extensão,

3 Conforme as Referências Bibliográficas.

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Retrato de uma cultura banto/ameríndia/católica/jurerneira (umbandista?) nos sertões nordestinos

o Toré. Parece que estamos escutando um argumento das lideranças

dos movimentos de consciência negra... Tal asserção é de um voluntarismo difícil de aceitar, além de trair uma perspectiva evolucionista e hierárquica - no sentido atribuído a este conceito por Louis Dumont - ancorada esta na distinção entre religiões mais puras e menos puras, mais autênticas e menos autênticas.

3. Umbanda e Jurema e suas influências nas crenças e práticas rituais

É mais difícil para mim escrever sobre este tema nesta fase inicial da pesquisa, por não possuir ainda dados suficientes para um tratamento adequado e suficientemente completo. Adianto, apenas, algumas suspeitas sobre possíveis influências umbandistas nas "cantigas, bem como nas entidades invocadas nos rituais de curas. O caso da Jurema é diferente: esta é citada diversas vezes pelos

médiuns e seus familiares, nas entrevistas. A esta religião é atribuída a procedência de caboclos, também. Nesse ponto, a primeira impressão que fica, poderia se resumir na frase de Marcel Mauss, no seu Ensaio sobre o Dom: "Aqui se mistura tudo... misturam-se as palavras e misturam-se as coisas."

Esta influência vem, sobretudo, dos contatos de uma das

médiuns principais, conhecida como "Bebé", com a Jurema. Esta senhora é considerada a que recebe entidades mais fortes, no pé da serra. Para ela são enviados os doentes que os demais não con-seguem curar de todo. Professora formada, de nível médio, diretora de uma escola rural próxima a sua casa, conhece e receita remédios

"de farmácia", paralelamente ao trabalho mediúnico. Católica de

formação - era e continua sendo catequista cadastrada pela paróquia de Salgueiro - enfrentou uma forte crise quando descobriu suas potencialidades curandeiras, ao ser identificada como "cabocla" (outro

nome dado aos médiuns) pelo médium de um município vizinho chamado para curá-la de seus "passamentos". Escrúpulos religiosos impediram-na de aceitar "desenvolve," estas capacidades, até que a

ação de um dos padres da região, aconselhando-a a não recusar esta forma de serviço à comunidade, alertando-a para o sentido social de sua mediunidade, e prometendolhe um certo acompanhamento -o que raramente é feit-o h-oje - a fez se iniciar nas artes de uma vivência que tem algo de Umbanda, de Kardecismo e do Catolicismo popular. Ela trabalha com caboclos, com orixás e com santos católicos,

também chamados de caboclos, às vezes. Suas entidades também

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Bartolomeu Figueirôa de Medeiros (Frei ilio)

possuem uma hierarquia de sabedoria e poder, à semelhança das tradições religiosas acima referidas.

Sem dúvida, ainda há muito a pesquisar neste ponto. Mas, podemos ter como clara a influência da Jurema e muitas perguntas sobre o tipo de interferência de práticas umbandistas na área ou, ao menos, uma certa coincidência e relação de semelhança com as mesmas, pelo teor das letras das cantigase por conta das entidades recebidas por muitos médiuns. Aliás, esta própria designação já indica

uma aproximação com a nomenclatura umbandista, também. A familiaridade de alguns médiuns e parentes com expressões como:

trabalho na esquerda, e entidades que vêm na esquerda, conforme

depoimentos de dona Afonsina, outra médium, que recebe

Sete Flecha, que vem na esquerda e na direita, Tranca Rua, Arranca Toco, que vem sempre na esquerda

demonstram que oculto aos caboclos em Conceição incluem estas entidades já muito de casa nos terreiros juremeiros e na Umbanda traçada com Jurema.

4. O que provém dos antigos moradores negros?

As histórias orais que já obtivemos dizem respeito mais aos mitos de origem do povoado. Naturalmente, eram o foco principal das entrevistas, no início da pesquisa. Quando se deparou, para os pesqui-sadores, a importância do papel dos curandeiros/as nas comunidades, priorizamos inicialmente a identificação dos médiuns, os sistemas de curas, o elenco das entidades invocadas, a hierarquia entre os mé-diuns, o que ficou patente pela existência de uma escala de poder sobre os espíritos "obsessores" e de carismas mais ou menos fortes para lidar com certos "males" físicos ou psíquicos.

Toma-se necessário construir pacientemente a trajetória des-sas práticas e de outras que vierem a ser descobertas, na comunidade: inquirir desde quando vêm sendo praticadas, tanto entre os negros como entre os indígenas, brancos e os mestiços. Reputo isto impor-tante, pois, constituem uma parte significativa da reconstituição da memória nacional e dos estudos de etnologia afro-brasileira rastrear a antiguidade dos modos como se realizam os rituais de cura e outros, sempre que isto for possível.

4 Utilizo aqui esta expressão,tirada da nomenclatura kardecista. No a percebi na boca dos entrevistados, pelo menos até agora.

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Retrato de uma cultura banLo/ameríridia/catálica/juremeira (umbandista?) nos sertões nordestinos

S. Como é recebida e interpretada a herança cultural católica? Esta herança caminha onipresente nas práticas médico-religiosas e nas entidades invocadas por negros, mestiços e indígenas, como vimos, nas quais os santos - alguns denominados de caboclos - são invocados no mesmo pé de igualdade que Janaína, lemanjáe

outros, tal qual acontece em alguns tipos de Umbanda.

Temos vários depoimentos sobre esta realidade. Deles, esco-lhemos os seguintes:

A religião de Joaninha qual é? A católica? (pergunta feita

a Maria, na casa de João Preto)

Maria: Aqui, a maioria do pessoal são católicos. Não tem outra religião. Se tem, eu não sei informar.

Seu Serafim, falando do carisma de dona Afonsina, ilustra o seguinte:

minha esposa mesmo tem essa mediunidade. O trabalho dessa é mais quando acontece de uma pessoa lá possuída pelo demônio. ... Ela trabalha com caboco da Jurema, com somente uma vela branca e um copo com água.

Ela lá querendo deixar, mas quando chega uma pessoa muito doente ela tem dó daquilo. .... Afonsina procurou um médium lá de Floresta, aí ele disse que ela tinha que trabalhar; mas ela num queria não, mas sete anos de doente

né? Ela teve que ir. Até padre ela procurou. (grifo meu) Ela reza antes de receber, mas acho que é dela mesmo, ela faz uma oração em silêncio.

Ocaso de Afonsina... é que ela gosta muito de religião e o padre fala de encontro (fala contra) a ele. Mas ela diz que o que o padre fala é de encontro àquele trabalho da linha da magia negra, que é de fazer o mal, e eu num sei se o padre entende que existe a magia negra e a magia branca, eu num sei.

Dona Afonsina trabalha também com o caboclo Sete Flechas,

confirmou seu marido,

quando o negócio é difícil mesmo.

Sobre a mesa dos "trabalhos" de dona Afonsina encontram-se as imagens de lemanjá e de São Jorge, além de outros santos não 94 Cad. Est. Soc. Recife. v, 15, n. 1, p. 87-100, jan./jun., 1999

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Bartolomeu Figueirôa de Medeiros (Frei 'Fito)

identificados pelo pesquisador, que esqueceu alguns dos nomes. O marido repete que hoje ela "se desligou" dos trabalhos pesados, só faz quando tem precisão mesmo. Arrematou dizendo que

nós morou dez ano com um médico, e ele nunca soube que ela era médium (!)

Na mesa de dona Joaninha, encontrei quadros de Santa Rita, São Jorge, Santa Clara, de Nossa Senhora, imagem do Crucificado. Ela referiu que

incorpora Santa Joana Guerreira (Santa Joana D'Arc), Santa Clara, para clarear os movimento, Cosmin, Damião e Nhangozin (o Doún da Umbanda).

Tais santos caboclos/santos católicos são companheiros de

"trabalho" de

lemanjá e de Janaína, que pega na mão, encosta no pulso e diz o que a pessoa tem e em que está pensando. lemanjá é uma e Janaína é outra. A diferença é que lemanjá é das água e Janaína é das mata.lemanjá é do mar, e a Sereia também.... lemanjá é uma, a Sereia é outra. A cor do femanjá é morena; uma morena bonita. A Sereia, eu não sei não, acho que é mais clara do que lemanjá. Não é mais clara, não é,menina?

arremata dona Joaninha, tirando sua dúvida com uma filha de uns 11 anos.

Completo este item relembrando o que escrevi acima sobre os escrúpulos de dona Bebé, catequista, em assumir sua mediunidade: só se dispôs a "desenvolvê-la" após ter recebido orientação positiva de um padre católico conhecido.

O caráter predominantemente católico da população, proveni-ente de uma cultura católica hegemônica num meio rural de pequenas dimensões e de pouca diferenciação ocupacional, apesar da riqueza

étnica que ostenta, produz um quadro religioso de um catolicismo de tradição que é mais patrimônio da coletividade do que dos indivíduos, ao qual se incorporam entidades, crenças, ritos e elementos outros afro-brasileiros, kardecistas e ameríndios, os quais se expressam so-bretudo através da dança ritual do toré e das invocações e incor-porações de santos e orixás, reinterpretados como caboclos das

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Retraio de uma cultura banto/ameríndialcatóiica/juremeira (umbandista?) nos sertões nordestinos

matas e até do mar. Tais fatores fundamentam a existência de um catolicismo misturado, totalizante e totalizador, no qual santos, caboclos e orixás cobrem um universo de mediações e mediadores multiplicados, todos se predispondo a incorporar em seus médiuns,

sob as ordens do Deus Todo-poderoso dos cristãos, para beneficiar o povo excluído das instâncias oficiais religiosas, médicas, sanitárias e de transporte coletivo, mas que continuam amparados por um tipo de organização social e religiosa tradicional que vem se mantendo através das décadas deste século, nos dando a impressão, às vezes, de que fizemos uma viagem ao nosso passado imperial, em época anterior ao processo de individuação e segmentação do campo religioso brasileiro.

6. Uma cultura de solidariedade nas relações internas de ajuda

E aqui devo falar de um aspecto da pesquisa que constituiu para mim uma surpresa interessante e um certo embevecimento, quando de minhas estadas na área, no trabalho de campo, e ao orientar e acompanhar os alunos, na parte de investigação

antropológica: foi a descoberta do número grande de benzedeiros e

curandeiros/as. De acordo com minha impressão inicial, a quantidade pareceu-me excessiva em relação à população. Em segundo lugar, a distribuição deste contingente pelas três etnias e a população mestiça, formando uma impressionante e comovedora organização informal de relação de ajuda para curar os males psicossomáticos que acometem os moradores do distrito e adjacências. Formam um entrecruzamento de serviços entre as etnias: negros libertam de

espíritos e encostos a indígenas, a mestiços, a brancos e vice-versa,

a relação de ajuda se distribuindo de acordo com as competências e poderes curativos de cada "médium".

Meu maior motivo de embevecimento, no entanto, foi a ampla cultura de solidariedade destes curandeiros e curandeiras para com o povo, ao interno do grupo, e a ausência de competição entre si, neste nível de relacionamento, bem entendido: pois, nossos pesqui-sadores detectaram e escreveram sobre conflitos significativos na área da posse das terras, das facções político-partidárias do muni-cípio, que se refletem na vida da população de Conceição.

A cultura da solidariedade em questão flui do reconhecimento tranqüilo, explicado nos relatos do campo, sobre a respectiva compe-tência específica e os limites do próprio poder curativo desses

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Bartolomeu Figueirôa de Medeiros (Frei 'Fito)

carismáticos, ou das entidades que recebem. Ao reconhecimento, segue-se o cuidado em mandar - ou até conduzir - o doente para outro colega de ministério. Além de não estipular preço para os ser-viços - o doente aliviado ou seus familiares doam presentes espontaneamente - não retêm os clientes consigo, ao descobrir que

ocaso deve ser mandado para as entidades de Dona Bebé resolver.

Um depoimento de dona Afonsina ilustra a forma de solida-riedade de não cobrar pelos serviços:

ói, uma vez uma mulher chegou aqui muito ruim, aí eu rezei nela e ela ficou boa. Aí ela chamou outra, mas essa num veio pensando que eu ia cobrá, mas eu num cobro não. De primeiro, quando eu num era aposentada, eu pedia e aceitava um agrado, mas agora eu num cobro não. Eu rezo no povo, mas num vou viver disso. É por isso que eu num cobro, mas se alguém chegá precisando, nós reza.

Esta cultura de solidariedade inter-étnica e intersocial se afigura mais importante na medida em que o observador vai verificando - e adivinhando! - a precariedade de serviços de assistência médico-hospitalar, ambulatorial e farmacêutica, acrescida da dificuldade de locomoção do distrito para Salgueiro: um caminhão que sai para a cidade às 05:00 hs da manhã e regressa para Conceição teoricamente às 14 hs, em estrada não-asfaltada, que em época de chuvas fortes se toma de trânsito difícil.

A atividade dos curandeiros e benzedeiros se impõe como a alternativa mais importante e viável para o tratamento dos casos psíquicos e somáticos que envolvam o desaparecimento de dores, inchações, etc. Deve-se acrescentar que os médiuns mais requisitados também são raizeiros; entre eles, a dona Joaninha, que também é parteira tradicional cadastrada, participante dos encontros da ONG

O Cais do Parto. Dona Bebé entende de remédio de farmácia,

igualmente, como já foi citado.

Outros dados importantes, que a meu ver, justificam a proliferação desses médiuns, são a precariedade dos serviços religiosos católicos, e a quase ausência de trabalho missionário evangélico/protestante na área. O padre da paróquia vai regularmente celebrar missa e batizar apenas uma vez por mês. A população relativamente pequena e muito dispersa pelos sítios, comparada com

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Retrato de uma cultura banto/ameríndiaJcatólicaljuremeira (umbandista?) nos sertões nordestinos

outros distritos justifica, ao que parece, a assistência insuficiente, no entender dos ministros religiosos.

Um último aspecto etnográfico, de grande importância para a população, é a conotação religiosa e hierárquica dessas práticas e desses saberes. Observo uma paridade entre a competência de cada médium e a ordem de precedência e de excelência de suas entidades, medida pela competência em resolver casos mais difíceis e complicados. O poder simbólico ratifica e fundamenta o reconhecimento social do poder do médium, o qual é avaliado pelo nível de qualidade dos serviços.

7. Concluindo

Ficou patente por esta apresentação como muito ainda resta por pesquisar. Mas, o que já foi levantado demonstra, primeiramente,

a enorme riqueza de vivências, saberes, cruzamentos e entrecruzamentos étnicos e culturais, numa população ainda pouco estudada, como é a das pequenas comunidades sertanejas, sejam ou não remanescentes de quilombos.

Em segundo lugar, a questão da identidade da cultura negra - incluindo aí a vivência religiosa - nas microcomunidades do interior do país e a sua rede de relações ao nível simbólico com as culturas sertanejas ou caboclas e as populações indígenas, muitas vezes vizinhas por necessidade de defesa e proteção mútua em relação ao homem branco, constitui um acervo de conhecimentos ainda pouco explorado por estudiosos. Daí não ser fácil, dada a carência de trabalhos nesta área, discernir e identificar, aos primeiros contatos, o que procede desta ou daquela matriz cultural, o que seria atribuído à contribuição negra, à indígena/cabocla, à branca católica; e, a partir destas identificações, penetrar no mecanismo dos sincretismos, através dos quais as identidades se cruzam e intercruzam, e se apresentam refratadas, tantas vezes. A Ciência Histórica já deu passos importantes no desvendamento destes processos, em sua sincronia. Cabe agora à Antropologia aprofundar as trajetórias aculturativas e simbólicas, os meandros das aproximações e afastamentos das distintas matrizes culturais, seus cruzamentos e simbioses, as relações que presidem os mecanismos acima referidos, os quais, no caso da população de Conceição das Crioulas, foram apenas vislumbrados.

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Bartolomeu Figueirôa de Medeiros (Frei Tito)

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Referências

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