• Nenhum resultado encontrado

O projeto da esquerda para o Brasil: uma análise do processo da constituinte 1988

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O projeto da esquerda para o Brasil: uma análise do processo da constituinte 1988"

Copied!
245
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC CENTRO SOCIOECONÔMICO

CAMPUS DE FLORIANÓPOLIS – SC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

ANE BÁRBARA VOIDELO

O PROJETO DA ESQUERDA PARA O BRASIL: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DA CONSTITUINTE 1988

Tese de Doutorado

Florianópolis, 31 de Agosto de 2018 SC – Brasil

(2)
(3)

ANE BÁRBARA VOIDELO

O PROJETO DA ESQUERDA PARA O BRASIL: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DA CONSTITUINTE 1988

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), área de concentração em Serviço Social, Questão Social e Direitos Humanos, requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Serviço Social.

Orientadora: Profa. Dra. Maria del Carmen Cortizo

Florianópolis 2018

(4)

Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,

através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC

Voidelo, Ane Bárbara

O PROJETO DA ESQUERDA PARA O BRASIL: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DA CONSTITUINTE 1988 / Ane Bárbara Voidelo ; orientadora, Maria del Carmen Cortizo , 2018.

243 p.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Socioeconômico, Programa de Pós Graduação em Serviço Social, Florianópolis, 2018.

Inclui referências.

1. Serviço Social. 2. Democracia . 3. Brasil. 4. Constituinte. 5. Movimento de Esquerda. I. Cortizo, Maria del Carmen . II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. III. Título.

(5)

ANE BÁRBARA VOIDELO

O PROJETO DA ESQUERDA PARA O BRASIL: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DA CONSTITUINTE 1988 Esta tese foi julgada adequada para a obtenção do título de Doutor em Serviço Social e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Serviço Social, Nível de Doutorado, área de concentração em Serviço Social, Questão Social e Direitos Humanos, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

Florianópolis, 31 de Agosto de 2018. ______________________________ Profa. Dra. Beatriz Augusto de Paiva

Coordenadora do PPGSS

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Profa. Dra. Maria del Carmen Cortizo (Orientadora)

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

_________________________________________________ Prof. Dra. Ivete Simionatto

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

_________________________________________________ Prof. Dra. Helenara Silveira Fagundes

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

_________________________________________________ Prof. Dr. Hélder Boska de Moraes Sarmento Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (Suplente)

(6)
(7)

Dedico este estudo:

a José Maria Voidelo (in memoriam), pai querido; à Leonil de Souza Barreto, grande responsável por minhas vitórias; à Kamile e à Yasmin, filhas que amo muito; ao João Marcos, meu marido, por todo apoio.

(8)
(9)

AGRADECIMENTOS

Às minhas filhas, Kamile e Yasmin, que souberam compreender e ter paciência nos momentos em que me desprendi para escrever esta tese, inclusive quando alterava a rotina de suas vidas.

À minha mãe, Leonil, que colaborou comigo em todo o processo do doutorado, se deslocando da sua cidade para me ajudar com as tarefas cotidianas, cuidando das minhas filhas e da casa, ainda me incentivando com palavras de apoio e superação.

Ao meu marido, João Marcos, que me apoiou de todas as formas para concluir esta pesquisa, mostrando-se compreensivo e parceiro em todos os afazeres cotidianos para que eu pudesse me dedicar à pesquisa e às leituras do Programa de Doutorado.

À minha orientadora, profa. Maria del Carmen Cortizo, que me apresentou uma nova perspectiva da pesquisa por intermédio da teoria gramsciana, com a qual compactuo a cada nova leitura. Pela sua paciência, compreensão, apoio e orientação, ensinamentos fundamentais nesta minha caminhada e no desempenho da minha profissão.

À Universidade Estadual do Oeste do Paraná, especialmente ao curso de Serviço Social, campus de Toledo – docentes, discentes e funcionários, pela compreensão e apoio, aceitando inúmeras dispensas funcionais para minhas viagens a Santa Catarina e atividades letivas necessárias à construção desta tese.

(10)

Ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina, em especial aos seus docentes, discentes e funcionários. Agradeço a todos pelos ensinamentos e pela oportunidade. Aos velhos e novos amigos, especialmente àqueles com quem compartilhei jornadas de viagens e incansáveis debates sobre objetos de pesquisa na Caverna do Ursão (apartamento que ocupamos) e ao grupo de whatsapp – Antonio Sandro Schuartz, Adriele Andréia Inácio e Isabela Nadal.

Se esqueci alguém, desculpe-me, mas, ainda em tempo, muito obrigada!

(11)

RESUMO

Esta tese tem como tema o projeto da esquerda democrática brasileira do período constituinte. Analisa a existência de um projeto para o Brasil concebido pela esquerda no período Constituinte. O estudo tem como objetivo específico esclarecer questões acerca da luta da classe trabalhadora no Brasil, discorrendo sobre o surgimento de movimentos de esquerda situados historicamente, e apresenta as contradições e os limites para a disputa da hegemonia. Os resultados obtidos foram os desdobramentos da democracia no Brasil a forma como ela acontece e se desenvolve, a construção dos processos decisórios nas disputas ocorridas no país, bem como os posicionamentos de lideranças da esquerda sobre a existência de um projeto unificado. As categorias escolhidas foram: Democracia, Direito e Estado de Direito, até o período de transição democrática, bem como compreender os esforços do movimento de esquerda no período Constituinte, de 1979 a 1988. Esta análise aborda os desafios que foram enfrentados para avançar no ideal de uma hegemonia popular, com vistas à construção de processos democráticos e estratégicos na resistência e luta pelos direitos sociais.

Palavras-chave: Democracia. Estado de Direito. Direito. Constituinte. Esquerda.

(12)
(13)

ABSTRACT

This thesis has as its theme the project of the Brazilian democratic left of the constituent period. It analyzes the existence of a project for Brazil conceived by the left in the Constituent period. The purpose of this study is to clarify questions about the struggle of the working class in Brazil, discussing the emergence of historically situated left movements, and presents the contradictions and limits for the struggle for hegemony. The results obtained were the unfolding of democracy in Brazil the way it happens and develops, the construction of decision-making processes in the disputes that occurred in the country, as well as the positions of leaders of the left about the existence of a unified project. The categories chosen were: Democracy, Law and Rule of Law, until the period of democratic transition, as well as to understand the efforts of the left movement in the Constitutional period, from 1979 to 1988. This analysis addresses the challenges that were faced to advance the ideal of a popular hegemony, with a view to the construction of democratic and strategic processes in the resistance and struggle for social rights.

(14)
(15)

LISTA DE ABREVIATURAS

ABESC Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas ABI Associação Brasileira de Imprensa

ABRA Associação Brasileira de Reforma Agrária AEC Associação de Educação Católica do Brasil AI Ato Institucional

AIB Ação Integralista Brasileira

AMASA Associação Mundial de Assistência e Amizade AMMCE Associação Mundial de Meios de Comunicação ANAMPOS Articulação Nacional de Movimentos Populares e

Sindicais

ANC Assembleia Nacional Constituinte ANL Aliança Nacional Libertadora ARENA Aliança Renovadora Nacional

AUSP Associação do Movimento para a Salvação da Pátria BNH Banco Nacional de Habitação

CAUSA Confederação de Assistência para a Unidade das Sociedades Americanas

CEBs Comunidades Eclesiais de Base

CEEES Centro Empresarial de Estudos Econômicos e Sociais CGT Confederação Geral dos Trabalhadores

CIMI Conselho Indigenista Missionário

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNI Confederação Nacional da Indústria

CNTC Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio

CONAM Confederação Nacional de Associações de Moradores CONCLAT Conferência Nacional da Classe Trabalhadora

CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

COOPERINCA Cooperativa dos Trabalhadores do instituto Cajamar CPT Comissão Pastoral da Terra

CUT Central Única dos Trabalhadores

DOI-CODI Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna

ESG Escola Superior de Guerra

FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo FMI Fundo Monetário Internacional

(16)

IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INCA Instituto Cajamar

INPS Instituto Nacional de Previdência Social IPES Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros JEC Juventude Estudantil Católica

JOC Juventude Operária Católica JUC Juventude Estudantil Universitária MCD Movimento de Luta Contra o Desemprego

MNMMR Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua MOM Movimento de Moradia

MOS Movimento de Saúde MST Movimento Sem Terra

MTC Movimento de Transporte Coletivo OAB Ordem dos Advogados do Brasil OBs Organismos de Base

ONGs Organizações Não Governamentais

OPEP Organização dos Países Exportadores de Petróleo PAN Partido de Ação Nacionalista

PCB Partido Comunista Brasileiro

PCBR Partido Comunista Brasileiro Revolucionário PCdoB Partido Comunista do Brasil

PCR Partido Comunista Revolucionário PCUS Partido Comunista da União Soviética PDS Partido Democrático Social

PDT Partido Democrático Trabalhista PFL Partido da Frente Liberal PI Partido Institucional

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PP Partido Popular

PCR Partido Comunista Revolucionário PRN Partido da Reconstrução Nacional PSB Partido Socialista Brasileiro

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PT Partido dos Trabalhadores

PTB Partido Trabalhista Brasileiro

PV Partido Verde

SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SESC Serviço Social do Comércio

(17)

SNI Serviço Nacional de Informações TL Teologia da Libertação

UDN União Democrática Nacional UDR União Democrática Ruralista UNE União Nacional dos Estudantes

(18)
(19)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: O TEMA ... 19

1 FORMAÇÃO SOCIAL DO BRASIL: FORMULAÇÕES DO ESTADO DE DIREITO ... 33

1.1 SÉCULO XX: O MODELO DE ESTADO DE DIREITO NA CONCEPÇÃO DA ESQUERDA ... 45

1.1.1 O peso do coronelismo para a formação de uma sociedade democrática... 57

1.1.2 A Era Vargas e as disputas políticas no Estado Brasileiro. ... 61

1.2 MOMENTOS DA PRÉ-DITADURA E DITADURA. ... 65

1.2.1 Repressão dos principais focos de oposição ... 68

1.2.2 O Estado e a Ditadura Militar no Brasil ... 71

1.3 PRÉ-CONSTITUINTE E A CONVOCAÇÃO DO CONGRESSO: OS DEBATES E A CONCEPÇÃO DA ESQUERDA SOBRE O ESTADO DE DIREITO ... 76

1.3.1 O Estado de Direito brasileiro e a Convocação do Congresso Constituinte ... 79

1.3.2 As eleições de 1986: aspectos históricos e políticos para a democracia no país ... 87

2 A COMPOSIÇÃO DA ESQUERDA E A DEFESA DOS SEUS PROJETOS NO PROCESSO DA CONSTITUINTE .. 91

2.1 SINDICATOS ... 93

2.2 MOVIMENTOS SOCIAIS NO PERÍODO PRÉ- CONSTITUINTE ... 97

2.3 A PARTICIPAÇÃO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL NO PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO ... 101

2.4 A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA E DAS PASTORAIS SOCIAIS PARA O DEBATE PRÉ-CONSTITUINTE ... 104

2.4.1 As CEBs e o poder ... 110

2.4.2 Pastorais sociais ... 116

2.5 A ORGANIZAÇÃO DOS PARTIDOS DE ESQUERDA NO PERÍODO PRÉ-CONSTITUINTE ... 118

(20)

2.5.1 O legado do marxismo para a concepção dos partidos

de esquerda no Brasil ... 127

2.5.2 Partido Comunista Revolucionário (PCR) ... 133

2.5.3 Partido dos Trabalhadores (PT) ... 135

2.5.4 Partido Democrático Trabalhista (PDT)... 140

2.5.5 Partido Comunista Brasileiro (PCB) ... 146

2.5.6 Partido Comunista do Brasil (PCdoB) ... 153

2.5.7 Partido Socialista Brasileiro (PSB) ... 158

3 A DISPUTA POR PROJETOS DE CLASSE NO PROCESSO DA CONSTITUINTE ... 163

3.1 A CORRELAÇÃO DE FORÇAS DENTRO DAS COMISSÕES PARA A ELABORAÇÃO DO TEXTO DA CONSTITUINTE ... 172

3.2 APROVAÇÃO DO TEXTO DA CONSTITUINTE PELOS PARTIDOS DE ESQUERDA ... 178

4 O PROJETO DA ESQUERDA PARA O BRASIL ... 189

4.1 A EXISTÊNCIA DE UM PROJETO UNIFICADO DA ESQUERDA PARA O BRASIL ... 202

4.2 REVISÃO DO PROCESSO: INFLUÊNCIA DA CONCEPÇÃO DE ESTADO, DIREITO E DEMOCRACIA CONSTRUÍDA NO BRASIL E OS IMPACTOS NA ESQUERDA ... 222

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 233

(21)

INTRODUÇÃO: O TEMA

Esta tese tem como tema O PROJETO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA BRASILEIRA DO PERÍODO CONSTITUINTE, analisa a existência de um projeto para o Brasil concebido pela esquerda no período Constituinte. O estudo também esclarece questões acerca da luta da classe trabalhadora no Brasil, discorre sobre o surgimento de movimentos sociais, situados historicamente, e apresenta as contradições e os limites para a disputa da hegemonia. Outros elementos indispensáveis a esta análise são os desafios que foram enfrentados para avançar no ideal de uma hegemonia popular, com vistas à construção de processos democráticos e estratégicos na resistência e luta pelos direitos sociais.

Analisar a democracia no Brasil, a forma como ela acontece e se desenvolve, implica pensar historicamente na construção dos processos decisórios e nas disputas ocorridas no país. Torna-se necessário, portanto, contextualizar historicamente os conceitos de Democracia, Direito e Estado, até o período de transição democrática, bem como compreender os esforços do movimento de esquerda no período pré-Constituinte e Constituinte, de 1979 a 1988.

No contexto da democracia moderna ou democracia de massas, segundo Coutinho (1979), a luta política se configura basicamente como uma autêntica batalha pela hegemonia. Assim, no modo de produção capitalista, encontra-se aberta a possibilidade de realização de uma hegemonia popular ou operária.

Para atender a esses propósitos, elencou-se a seguinte questão: o movimento de esquerda no período Constituinte tinha um projeto para o Brasil? Caso afirmativo, qual era esse projeto?

A escolha desse período histórico se justifica por constituir o marco formal desse processo, engendrado desde os debates pré-Constituinte até a formulação da Constituição de 1988, que timidamente consagrou o princípio de participação da sociedade civil, democracia e a configuração de Estado e Direito no Brasil. As forças envolvidas nesse processo, mesmo que a minoria delas compartilhe de um projeto democratizante e participativo, surgiram nos anos 1980 em torno da expansão da cidadania e do aprofundamento da democracia. Esse projeto emergiu da luta contra o regime militar empreendida por setores da sociedade civil, entre os quais os movimentos sociais desempenharam um papel fundamental.

A disputa entre projetos políticos distintos assume, então, o caráter de uma concorrência de significados para referências aparentemente

(22)

comuns: Democracia, Direito e Estado, os quais serão conceituados e situados ao longo deste estudo.

Importante situar que a Democracia no Brasil ora referida possui concepção burguesa e liberal. Desta forma, Coutinho (1979) explica que a teoria liberal clássica parte do reconhecimento de uma pluralidade de sujeitos individuais autônomos e supõe – sobre a base de uma idealização dos mecanismos reguladores do mercado capitalista – que os interesses plurais de tais sujeitos serão automaticamente harmonizados e coordenados: a mítica “mão Invisível”, de Adam Smith, se encarregaria de fazer com que a máxima explicitação dos interesses egoístas individuais desembocasse num aumento do bem-estar geral.

Como tal teoria se apoiava numa falsidade de base ao pressupor uma inexistente igualdade real (e não apenas formal) dos sujeitos econômicos, ou seja, ao abstrair-se do fato de que uns são donos dos meios de produção e outros apenas de sua força de trabalho – o modo prático pelo qual se dava aquela “harmonização” era a subtração do poder executivo de qualquer controle público, mesmo perante o parlamento burguês (uma tendência que só iria se acentuar na época do capital monopolista, quando o desaparecimento da taxa média única de lucro passou a aguçar as contradições intercapitalistas entre setores monopolistas e não monopolistas; e quando a classe operária começou a ganhar uma representação parlamentar própria).

O poder executivo passou, assim, a ser interiorizado por um grupo de burocratas que se subtraiu ao controle público e, com isso, transformou o Estado num corpo separado e posto “acima” da sociedade. Para Coutinho (1979), o caráter aparente dessa separação e desse isolamento do Estado leva concluir que, o que a burocracia ligada ao Executivo faz, na realidade, é “harmonizar” os interesses do capital em seu conjunto, pondo-se acima das “paixões” individuais dos capitalistas singulares, e operar ao mesmo tempo no sentido de que tais interesses se imponham “automaticamente” sobre o conjunto da sociedade.

No caso do Brasil, o valor da democracia política para as correntes de esquerda ganha uma dimensão ainda mais concreta pois está ligado aos problemas atuais no amplo quadro histórico da formação nacional.

Não me refiro apenas ao fato de que o povo brasileiro está hoje colocado diante de uma tarefa democrática urgente e prioritária: a de derrotar o regime de exceção implantado em nosso País depois de 64 e, com isso, construir um regime político que assegure as liberdades fundamentais.

(23)

A questão da democracia, inclusive em seus limites puramente formal-liberais, é assim a questão decisiva da vida brasileira de hoje. Mas o valor da democracia adquire para nós outra dimensão (e já aqui superando dialeticamente, no sentido acima indicado, a democracia puramente liberal) quando elevamos à consciência o fato de que o regime de exceção vigente é “apenas” a expressão atual — uma expressão extrema e radicalizada — de uma tendência dominante na história brasileira. Refiro-me ao caráter elitista e autoritário que assinalou toda a evolução política, econômica e cultural do Brasil, mesmo em seus breves períodos “democráticos”. (COUTINHO, 1979, p. 4).

Segundo Coutinho (1979), as transformações políticas e a modernização econômico-social no Brasil sempre foram efetuadas no quadro de uma “via prussiana”, ou seja, por meio da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas “de cima para baixo”, com a conservação essencial das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução ampliada da dependência ao capitalismo internacional. Essas transformações “pelo alto” tiveram como causa e efeito principais a permanente tentativa de marginalizar as massas populares não só da vida social em geral, mas, sobretudo, do processo de formação das grandes decisões políticas nacionais. Os exemplos são inúmeros: quem proclamou a Independência política brasileira foi um príncipe português, numa típica manobra “pelo alto”; a classe dominante do Império foi a mesma da época Colonial; quem terminou capitalizando os resultados da Proclamação da República (também proclamada “pelo alto”) foi a velha oligarquia agrária; a Revolução de 1930, apesar de tudo, não passou de uma “rearrumação” do velho bloco de poder, que cooptou – e, desse modo, neutralizou e subordinou — alguns setores mais radicais das camadas médias urbanas; a burguesia industrial floresceu sob a proteção de um regime bonapartista, o Estado Novo, que assegurou pela repressão e pela demagogia a neutralização da classe operária, ao mesmo tempo em que conservava quase intocado o poder do latifúndio, etc.

Essa modalidade de “via prussiana” (Lênin, Lukács) ou de “revolução-restauração” (Gramsci) encontrou seu ponto mais alto no regime militar, que criou as condições políticas para a implantação, no Brasil, de uma modalidade dependente (e conciliada com o latifúndio) de capitalismo monopolista de Estado. Em consequência, radicalizou ao extremo a velha tendência a excluir tanto dos frutos do progresso quanto

(24)

das decisões políticas, as grandes massas da população nacional, e a concepção de Estado de Direito que ora está em análise.

Desta forma, ao situar o caso brasileiro, cabe situar a concepção de Estado de Direito que está sendo referida nesta tese. Diferentemente da perspectiva analítica de Coutinho, para Bobbio (1992, p. 9), é preciso cuidar para não confundir Estado de Direito e Democracia, embora um juízo sobre a segunda deva levar em conta a existência ou não do primeiro. O Estado de Direito define qual o melhor modo de governo – o das leis ou o dos homens. Já a Democracia questiona sobre a melhor forma de governo. O “critério de avaliação e de escolha”, na esteira de Aristóteles, é o número de governantes: se for um, temos a monarquia; se forem poucos, a aristocracia; e se forem muitos, a democracia. Por outro lado, a cada uma das três formas opõe-se uma forma má: a monarquia pode transformar-se em tirania; a aristocracia, na oligarquia; e a democracia leva a compreender que, “para formular um juízo sobre a melhor forma de governo é preciso considerar não só quais e quantos são os governantes, mas também qual é o seu modo de governar”, isto é, como os governantes governam.

O Estado de Direito considera que o governo da lei compreende duas situações com significados diferentes, embora implicadas reciprocamente, cada uma com seus defensores. O primado da lei como instrumento principal de dominação, prerrogativa máxima do poder soberano, opõe Hobbes, Rousseau e Hegel aos “fatores do governo da lei”. Um governo poderá exercer o poder “segundo leis preestabelecidas” (governo sub lege) e/ou o governo poderá exercê-lo “mediante leis, ou melhor, através da emanação (se não exclusiva, ao menos predominante) de normas gerais e abstratas” (governo per leges) (BOBBIO, 1992, p. 9). Na obra Liberalismo e Democracia, Bobbio (1988, p. 12) pondera que é preciso levar conta duas situações para definir Estado de Direito dentro do âmbito da doutrina liberal do Estado. Primeiramente, trata-se da velha doutrina da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens, de um Estado em que as normas gerais, isto é, as leis fundamentais ou constitucionais regulam o exercício dos poderes públicos, “salvo o direito do cidadão de recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso ou excesso de poder”.

Em segundo lugar, é preciso considerar o impacto causado a este conceito pela constitucionalização dos direitos naturais. Na doutrina liberal, Estado de Direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do

(25)

reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente e, portanto, em linha de princípio “invioláveis” (esse adjetivo se encontra no art. 2º da Constituição italiana).

A partir de tais considerações é possível distinguir três tipos de Estado de Direito: em sentido fraco, em sentido fraquíssimo e em sentido forte. No primeiro caso, trata-se do Estado não despótico, dirigido pelas leis. Já o Estado de Direito em sentido fraquíssimo considera que as noções de Estado e de Direito estão isentas de “toda força qualificadora”, como é o caso do Estado kelseniano, em que todos são Estados de Direito desde que resolvidos em seu ordenamento jurídico. Um Estado de Direito em sentido forte, finalmente, designa os Estados constituídos por todos os mecanismos constitucionais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder, a saber:

[...] o controle do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe o Poder Executivo, por parte do parlamento, a quem cabe em última instância o Poder Legislativo e a orientação política; [...] o eventual controle do parlamento no exercício do Poder Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; [...] uma relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder político. (BOBBIO, 1988, p. 15).

A partir dessa definição é possível distinguir, nos Estados de Direito, força legítima da ilegítima e a legal da ilegal, e constatar que a força é, tradicionalmente, o meio mais eficaz para a resolução dos conflitos sociais, não bastando regular o seu uso para eliminá-la.

Exatamente por essa razão Bobbio (1992) afirma que um dos maiores problemas de toda convivência civil envolve a criação de instituições (Estado de Direito e Estado Democrático) e que a maior parte dos conflitos da sociedade pode ser resolvida sem que seja preciso recorrer ao uso da força. Destarte, para o autor, a natureza da relação Estado de Direito e Democracia (que emprega a força da persuasão) é, na atualidade, tão íntima, que o primeiro “celebra” o triunfo da democracia. Para Bobbio (1988, p. 18), a única maneira de se compreender a democracia enquanto contraposta a outras formas autoritárias de governo, é aquela que a considera “um conjunto de regras (primárias ou

(26)

fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos.” Para que a decisão seja considerada coletiva é preciso que seja tomada com base em regras que estabelecem quais os indivíduos estão autorizados a tomar as decisões que irão vincular todos os membros do grupo, bem como os respectivos procedimentos.

Com a sua definição formal de democracia, Bobbio (1988, p. 18) enuncia seis universais procedimentos característicos de tal forma de governo:

1) todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele; 2) o voto de todos os cidadãos deve ter igual peso; 3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em uma livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser livres também no sentido em que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos; 5) seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos; 6) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições.

Desta forma, Bobbio (1988) esclarece que tais regras não estabelecem o que se deve decidir (conteúdos), mas apenas quem (competências) e como se deve decidir (procedimentos). Admite, ainda, que a regra da maioria não necessariamente define o governo democrático, pois pode haver regimes autocráticos que eventualmente lancem mão dela, ao passo que nem todas as decisões tomadas numa democracia exigem o cumprimento da condição majoritária. Por via de consequência, o que importa num regime democrático é a universalidade

(27)

do sufrágio, ou seja, o princípio da maioria aplicado a votações conduzidas com o sufrágio universal. Resumindo, a democracia é “um conjunto de regras [...] para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue”, sendo “o bom governo democrático” aquele que respeita rigorosamente as regras, donde se conclui, “tranquilamente, que a democracia é o governo das leis por excelência” (BOBBIO, 1988, p. 18). Este conceito está inter-relacionado com a concepção de Direito adotada pelo Estado burguês e, dessa forma, torna-se relevante situar o conceito de Direito utilizado e aplicado pelo Estado.

A concepção de Direito descrita nesta tese é entendida a partir de Bobbio (1995) e visa compreender a forma do direito burguês. Para o autor, a sociedade medieval era uma sociedade pluralista, posto ser constituída por uma pluralidade de agrupamentos sociais, cada um dos quais dispondo de um ordenamento jurídico próprio: o Direito aí se apresentava como um fenômeno social, produzido não pelo Estado, mas pela sociedade civil.

Com a formação do Estado moderno, ao contrário, a sociedade assume uma estrutura monista, no sentido de que o Estado concentra em si todos os poderes, em primeiro lugar aquele de criar o direito: não se contenta em concorrer para esta criação, mas quer ser o único, ou diretamente através da lei, ou indiretamente, através do reconhecimento e controle das normas de formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que em outro curso chamamos de processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado. (BOBBIO, 1995, p. 16).

Se, portanto, o homem é um ser social e natural, ora o Direito imposto pela sociedade será apto a resolver questões da vida, e ora o será o Direito natural. A prevalência de cada qual dependerá de análise individualizada do caso concreto. A esta passagem, no modo de formação do Direito, corresponde uma mudança no modo de conceber as categorias do próprio Direito. O indivíduo encontra-se, atualmente, tão habituado a considerar Direito e Estado como a mesma coisa que tem certa dificuldade em conceber o Direito posto não pelo Estado mas pela sociedade civil.

O período histórico escolhido se justifica a partir do entendimento de que o marco formal desse processo é engendrado desde os debates pré-Constituintes até a formulação da Constituição de 1988 que, timidamente,

(28)

consagrou o princípio de participação da sociedade civil, a democracia e a configuração de Estado e Direito no Brasil. As forças envolvidas nesse processo, mesmo sendo minoria, compartilham um projeto democratizante e participativo, construído desde os anos 80 em torno da expansão da cidadania e do aprofundamento da democracia. Esse projeto emerge da luta contra o regime militar empreendida por setores da sociedade civil, entre os quais encontram-se os movimentos sociais, que desempenharam papel fundamental.

No percurso desse projeto, dois marcos importantes devem ser mencionados. Primeiro, o reestabelecimento da democracia formal, com eleições livres e, depois, a reorganização partidária, que abriu a possibilidade desse projeto, configurado no interior da sociedade e que orientou a prática de vários dos seus setores, fosse levado para o âmbito do poder do Estado, no nível dos executivos municipais e estaduais e dos parlamentos (DAGNINO, 2004, p. 4).

Essa aposta deve ser entendida em um contexto em que o princípio de participação da sociedade tenha se tornado central, como característica distintiva desse projeto, subjacente ao próprio esforço de criação de espaços públicos, em que o poder do Estado possa ser compartilhado com a sociedade. Em consequência, a disputa entre projetos políticos distintos assume o caráter de uma disputa de significados para referências aparentemente comuns: Democracia, Direito e Estado (DAGNINO, 2004).

O termo “projetos políticos”, em um sentido marcado por uma visão gramsciana, é usado para designar os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo e representações do que deve ser a vida em sociedade, pois orientam a ação política dos diferentes sujeitos. A virtude específica dessa abordagem está no vínculo indissolúvel estabelecido entre a cultura e a política. Para Dagnino (2004, p. 4),

A investigação dos distintos projetos de construção democrática e dos significados que os constituem se põe como tarefa analítica no Brasil pelo menos desde os anos oitenta, com a ruptura da momentânea “unidade” da sociedade civil que havia se construído em torno do restabelecimento do Estado de Direito e das instituições democráticas. O debate entre as várias concepções de democracia que se inicia naqueles anos, expressando a diversidade que sucedeu àquela ‘unidade’, catalisou boa parte das energias intelectuais e políticas do país.

(29)

Para a elaboração desta pesquisa foram recuperadas produções teóricas que possibilitaram a análise do período Constituinte, e documentos elaborados pelo movimento de esquerda brasileira. Também, produções teóricas de lideranças sindicais e do movimento popular, artigos, revistas e bibliografias de autores brasileiros, e alguns documentos, como: Resoluções de Encontros e Congressos do Partido dos Trabalhadores (PT), disponíveis no sítio eletrônico da Fundação Perseu Ábramo; O Dossiê Constituinte, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI); e os Diários da Assembleia Nacional Constituinte, números 1-308 e 53-132, disponíveis no site do Senado Federal.

Algumas produções teóricas analisadas no primeiro, segundo e terceiro capítulos auxiliaram na interpretação crítica da história do Brasil e da construção dos conceitos de Estado, direito e democracia no país, como: Cidadania no Brasil, o longo caminho, de José Murilo de Carvalho; A Revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes; A

esquerda militar no Brasil: da conspiração republicana à guerrilha dos tenentes, de João Quartim de Moraes; Os anos 30 e a nova forma do Estado, de Marco Aurélio Nogueira; Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior; A ideia de Brasil moderno, de

Octávio Ianni.

Outras produções teóricas que permitiram analisar criticamente o momento pré-Constituinte merecem destaque no quarto capítulo, em que o objetivo proposto visa apresentar os projetos em disputa dos partidos de esquerda e direita no Brasil. Alguns textos utilizados foram: O Brasil a

caminho da Constituinte, de Antônio Brito; Muda Brasil: uma constituição para o desenvolvimento democrático, de Fábio Konder

Comparato; Constituição e Constituinte, de Dalmo de Abreu Dallari; O

jogo da direita na Nova República, de René Armand de Dreifuss; Para uma tática revolucionária sob a Nova República, de Ozéas Duarte,

disposto num exemplar da Revista Teoria & Política; A república

inacabada, de Raimundo de Faoro; A Constituição inacabada: vias históricas e significado político, de Florestan Fernandes; Cidadão constituinte: a saga das emendas populares, de Carlos Michiles; A nova Constituição e os rumos da esquerda, uma entrevista com José Genoíno

à Revista Teoria e Política, em 1988; Quem é quem na Constituinte, uma análise sociopolítica dos partidos e deputados, e CUT: os militantes e a

ideologia, de Leôncio Martins Rodrigues; O processo político brasileiro, da abertura à Nova República: uma transição para a democracia (burguesa?), da Revista Teoria & Política, de Décio Saes; Movimentos sociais na transição democrática, de Emir Sader, além de outras obras,

(30)

como: A formação do Estado burguês no Brasil, O poder, cadê o poder?

Ensaios para uma nova esquerda, e Democracia.

Para análise dos capítulos foram utilizados autores e obras como:

Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política; e Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política, de Norberto

Bobbio; Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político; e A

democracia como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho; A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução? e 1964: o golpe contra as reformas e a democracia, de Caio Navarro de Toledo; Formação do pensamento político brasileiro: ideias e personagens, de

Francisco Weffort; Sociedade civil, participação e cidadania: de que

estamos falando?, de Evelina Dagnino; e, por fim, publicado pela

Fundação Perseu Ábramo, A atuação da esquerda no processo

Constituinte 1986 – 1988, de Luziano Pereira Mendes de Lima, além de

outras que foram necessárias para analisar a temática.

Ao explorar essas entrevistas, documentos, artigos e livros publicados na década de 1980 foi possível identificar três relações causais para o pensamento de esquerda no país. Primeiro, a saída do período ditatorial; segundo, a necessidade de organização em torno da politização do movimento sindical e movimento popular; e, por fim o movimento de esquerda no Brasil.

Esta pesquisa possui caráter qualitativo pois incorpora a questão do significado e da intencionalidade como inerente aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto nas suas transformações, como construções humanas significativas. Assim, a abordagem qualitativa é aplicada ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produto das interpretações que os seres humanos fazem da forma como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam.

Esse tipo de abordagem permitiu desvelar processos sociais, referentes a grupos particulares e períodos históricos específicos. Ademais, propiciou a criação de conceitos e categorias durante a investigação que, neste caso, são identificadas como Estado de Direito, Direito e Democracia. Desta forma, a pesquisa qualitativa proporciona um modelo de entendimento profundo de ligações entre elementos, direcionado à compreensão da manifestação do objeto de estudo.

Para a sua realização, este estudo propôs um problema de pesquisa e um objetivo que estivessem em consonância, cuja resposta foi buscada nos livros, artigos, teses, dissertações e na internet. A pesquisa buscou discutir ideologias, conhecer e analisar as contribuições culturais ou

(31)

científicas do passado, o que permitiu formular uma nova tese e sobre o assunto.

Neste estudo foi realizada uma análise bibliográfica com base em material já elaborado, constituído, principalmente, de livros e de artigos científicos. A discussão segue a compreensão do autor. Inicialmente foi necessário realizar uma ampla revisão bibliográfica, um levantamento do estado da arte do conteúdo que expressa os elementos que constituem os fundamentos da análise a partir dos conceitos de Estado de Direito, Direito e Democracia.

Durante a etapa da exploração do material buscou-se definir as categorias cujos conceitos delimitam o conteúdo bibliográfico. O objetivo da metodologia foi confrontar autores que tratam do mesmo tema, demonstrando em suas análises as posições e ideologias sobre o projeto da esquerda na Constituinte de 1988, e tecer comentários a partir dos dados extraídos da pesquisa literária.

A pesquisa também pode ser caracterizada como uma análise documental, desenvolvida com base na utilização de documentos dos

Diários da Constituinte e em propostas dos partidos no período de

discussão da Constituição de 1988, disponíveis online na internet. Outro aspecto priorizado foi a capacidade e a própria necessidade de o pesquisador extrapolar o que está além do texto.

O método de análise utilizado foi o Dialético, que é precisamente a lógica da contradição, e que proporcionou o entendimento do movimento da História. Para tanto, foi necessário encontrar na bibliografia, fatos e acontecimentos que mudaram o Brasil com o processo da Constituinte, ou seja, no próprio devir, composto de momentos contraditórios: o que não é passa a ser, o que é deixa de ser. Compreendendo a relação entre os momentos contraditórios do real e numa relação dialética entre dois termos contraditórios – o universal e o particular, a unidade e a variedade, a permanência e a mudança, esta permitiu uma nova tese formada a partir das análises dessas bibliografias. O método dialético serviu para fazer uma recuperação na perspectiva histórica, isto é, com uma distância temporal que permitiu o julgamento do conjunto desse movimento.

Analisar historicamente os conceitos de Estado, Direito e Democracia e identificar a sua construção no Brasil, exige o que Bobbio (2006, p. 87) já identificou nas obras de Marx, ou seja: 1) a ideia de que o motor da História é a negatividade; 2) que a História é um processo; 3) que este processo tem um ritmo que leva à passagem da alienação à supressão da alienação.

(32)

Para Bobbio (2006, p. 87), a dialética encobre um sentido plurissêmico sob um mesmo significante. O autor cita Engels, que definiu em seu livro Dialética da Natureza, três leis dialéticas: 1) a transformação da quantidade em qualidade; 2) a ação recíproca ou interpenetração dos opostos; 3) a negação da negação.

Para compreender a construção dos conceitos de Estado, Direito e Democracia ao longo da história do país, foi usado o método da ação recíproca que mantêm unidos os opostos, condicionando-os mutuamente. Aplica-se, portanto, a eventos simultâneos e contrapõe-se a uma concepção mecanicista da natureza na qual o universo é formado por uma cadeia de causas e efeitos. Estes levaram à interpretação da construção dos conceitos e logo, à atuação da esquerda no processo da Constituinte. No geral, a dialética, nesse caso, serve de adjetivo, unindo-se aos termos “relação” e “nexo”.

De acordo com Bobbio (2006, p. 89), o método da negação da negação leva a considerar, num momento inicial, o primeiro termo negado por um segundo e, num momento posterior, o segundo termo negado por um terceiro – a “negação da negação”. Esse método aplica-se a eventos que se desenrolam no tempo, servindo para compreender a história (do homem e da natureza) e contrapondo-se a uma visão linear de história. A palavra “dialética”, neste caso, está relacionada aos termos “movimento”, “processo”, “desenvolvimento”. Para tanto, a forma de construção do Capítulo I sustenta essa lógica e, dessa forma, os conceitos são desenvolvidos juntos e correlacionados na dialética da história. Para Cortizo (2015, p. 2), a dialética é construção e reconstrução, mas não deve haver preocupação em garantir que uma parte da tese seja conservada na antítese. A antítese é a negação da tese, pois cria a síntese à negação desta primeira negação.

A análise dialética torna-se essencial quando o pesquisador se depara com categorias eminentemente históricas, que denotam tempos históricos, como no caso desta tese: Colonialismo, República, Era Vargas, Ditadura e Constituinte. Estes momentos históricos também revelam tipos de ação: políticos, movimentos sociais, partidos, sindicatos, entre outros.

Nesta perspectiva, foram analisados os processos históricos e, em seguida, as suas conexões. A partir disso, percebeu-se que a categoria unitária do desenvolvimento histórico é o devir e a categoria unitária explicativa da sociedade é a totalidade orgânica. O devir é resultado de sucessivas negações; a totalidade, de diferentes relações. Diante disso, os capítulos foram construídos a partir dos conceitos de Estado de Direito, Direito e Democracia, numa perspectiva histórica e dialética de análise.

(33)

A abordagem da tese e leitura da realidade sob a ótica do pesquisador é feita a partir de uma compreensão do Estado ampliado, sendo Estado e sociedade civil conceituados diferentemente da concepção de Marx. Marx trabalha com um Estado que é principalmente coerção, força mantenedora da estrutura econômica capitalista, e identifica a sociedade civil como infraestrutura econômica. A gênese do Estado reside na divisão da sociedade em classes, razão porque ele só existe quando e enquanto existir essa divisão (que decorre, por sua vez, das relações sociais de produção). A função do Estado, por sua vez, é precisamente a de conservar e reproduzir tal divisão, garantindo que os interesses comuns de uma classe particular se imponham como o interesse geral da sociedade (COUTINHO, 1999).

O Estado, portanto, nesta compreensão, é disputado por um grupo que busca a hegemonia e perpassa a conquista da sociedade política, do aparelho estatal, em primeiro lugar, enquanto a batalha se dá no mais das vezes no plano da coerção. Para Simionatto (2011), quando Gramsci fala de hegemonia como direção intelectual e moral, refere-se à direção no campo das ideias e da cultura, manifestando a capacidade de conquistar o consenso e de formar uma base social. Diante destes pressupostos introdutórios e alinhamento teórico para identificar do que será tratado o trabalho, inicia-se ao primeiro capítulo dessa tese.

(34)
(35)

1 FORMAÇÃO SOCIAL DO BRASIL: FORMULAÇÕES DO ESTADO DE DIREITO

A história brasileira contém uma série de rupturas, desde o fim do estatuto colonial, rumo à constituição de uma nação diversa e forjada no interior de uma cultura comum. Mas esse processo é inconcluso, razão pela qual esta nação ainda está por ser inteiramente formada.

Analisar a formação do Estado requer a retomada do histórico ligado ainda ao Império. De acordo com Ianni (1992, p. 22), a persistência do escravismo e os artifícios do poder monárquico compunham uma administração distante, estranha aos interesses populares. A legitimidade alcançada pelos construtores do Estado nacional era imposta pelo alto, indiferente aos movimentos mais gerais da sociedade.

Ao final do Império, a memória brasileira foi acelerada com a escolha da República e o trabalho liberto. Isso ampliou as forças econômicas e políticas para a cultura, indústria e negócio, bem como proporcionou a exaltação de ideias e movimentos sociais, principalmente nos centros urbanos maiores e nas zonas agrícolas mais articuladas com os mercados externos. Ao longo da Primeira República, no entanto,

Predominou a economia primária exportadora, a política de governadores manejados pelo Governo Federal e o patrimonialismo em assuntos privados e públicos. O liberalismo econômico prevalecia nas relações econômicas externas, nas quais sobressaía a Inglaterra. Nas relações internas, entre setores dominantes e assalariados, predominava o patrimonialismo. (IANNI, 1992, p. 22).

Este patrimonialismo que abrangia tanto o patriarcalismo da casa-grande e do sobrado era tido como a mais brutal violência contra os movimentos populares no campo e na cidade, afinal: “a repressão posta em prática em Canudos, na Revolta da Vacina, no Contestado e em outros movimentos sociais revelava algumas das possibilidades mais extremas de uma república simultaneamente liberal e patrimonial.” (IANNI, 1992, p. 22).

Estava, portanto, em marcha, uma revolução pelo alto na qual os diferentes setores populares não encontravam lugar. Alteravam-se um pouco os arranjos do poder e as relações dos setores dominantes com os populares, do poder estatal com a sociedade, para que nada se transformasse substancialmente. Esta realidade foi confrontada com as

(36)

mudanças diversas provocadas pelo ciclo da cafeicultura, a industrialização incipiente e o desenvolvimento das maiores cidades, que criavam novos horizontes para o debate político e cultural, mas a realidade no país continuava anacrônica (IANNI, 1992).

Segundo Carvalho (2002, p. 12), a evolução da cidadania foi a alteração fundamental que ocorreu no período da revogação da servidão, em 1888, incorporando os ex-escravos aos direitos civis. A passagem de um regime político para outro, em 1889, trouxe pouca modificação. Foi considerável, ao menos do ponto de vista político, o movimento que pôs fim à Primeira República, em 1930. Antes de começar o trajeto, entretanto, é necessário realizar uma ágil jornada à fase colonial. Algumas especificidades da colonização portuguesa no Brasil deixaram marcas duradouras, necessárias ao problema que interessa a este estudo.

A revolução burguesa no Brasil, da maneira como é compreendida por Fernandes (1987, p. 205), possui início no mesmo período, e compreende a Revogação da Servidão e a Escolha da República. Essa fase marca historicamente o início da Modernidade brasileira, e o fim da dominação de uma economia colonial e manufatureira. A oscilação do sistema econômico foi o primeiro aspecto revoltoso dessa fase de transformações pelo qual o Brasil atravessaria, haja vista que a partir dela foram se engendrando novas necessidades que tornaram inviável a estrutura até então em vigor.

Para Fernandes (1987), a Proclamação da República marcou uma grande ruptura que esboçou a possibilidade de desenvolvimento nacional. Com o fim do Império, o poder passaria a ser organizado, ao menos em tese, internamente, constituindo maior poder de decisão e autonomia à nação, tal como havia ocorrido nos países capitalistas centrais, a exemplo da França e da Inglaterra. Para o autor, o modelo econômico implantado no Brasil, bem como as condições estruturais do capitalismo, impediu o desenvolvimento interno independente do país.

Assim, para Carvalho (2002, p. 12), ao proclamar a emancipação de Portugal, em 1822, o Brasil herdou uma tradição cívica pouco encorajadora. Em três séculos de colonização (1500-1822), os portugueses tinham construído um amplo país com identidade territorial, linguística, cultural e religiosa. Tinha, porém, deixado uma população analfabeta, uma comunidade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista.

À época da emancipação não havia sequer uma nação brasileira. Carvalho (2002) resgata que a principal atividade era a produção de açúcar, cujo principal mercado estava na Europa, mas que demandava grandes capitais e extensa mão de obra. E foi essa atividade que,

(37)

[...] foi responsável pela grande desigualdade que logo se estabeleceu entre os senhores de engenho e os outros habitantes e pela escravização dos africanos. Outros produtos tropicais, como o tabaco, juntaram-se depois ao açúcar. Consolidou-se, por esse modo, um traço que marcou durante séculos a economia e a sociedade brasileiras: o latifúndio monocultor e exportador de base escravista. Formaram-se, ao longo da costa, núcleos populacionais baseados nesse tipo de atividade que constituíram os principais polos de desenvolvimento da colônia e lhe deram viabilidade econômica até o final do século XVII, quando a exploração do ouro passou a ter importância. A mineração, sobretudo de aluvião, requeria menor volume de capital e de mão de obra. Além disso, era atividade de natureza volátil, cheia de incertezas. As fortunas podiam surgir e desaparecer rapidamente. (CARVALHO, 2012, p. 12).

O autor reforça que o ambiente urbano também contribuía para afrouxar os controles sociais, inclusive sobre os escravos.

O Estado de Direito se constitui quando o poder do Estado, enquanto nação, é limitado pelo seu conjunto de leis – o Direito. Assim como os indivíduos estão submetidos às leis para viver em sociedade, também o Estado está submetido ao Direito. E o Estado de Direito no Brasil se construiu a partir de uma análise histórica e dialética que levou à concepção de Estado, tema que é resgatado e analisado a seguir.

Para Ianni (1992), o sentido da colonização, o peso do regime de trabalho escravo e a peculiaridade do desenvolvimento desigual e combinado dão conta de épocas e situações que levaram à concepção de Direito no país. Durante o Brasil-Colônia estiveram presentes movimentos nativistas, revoltas de escravos, formação de quilombos, lutas contra invasões, anseios de independência e inconfidências. Por outro lado, no Império influenciaram a forma da independência, a estruturação do poder monárquico, a continuidade do escravismo e a transição difícil e lenta para o trabalho livre, assim como os projetos que deram origem à República. Também, ao longo das várias repúblicas inauguradas em 1889, recriaram-se as relações externas, subsistindo heranças das formas culturais e da sociabilidade produzidas com o escravismo, tudo isto atravessado por um desenvolvimento desigual e combinado no tempo e no espaço. Ianni (1992) aborda que foi a partir da segunda metade do século XVI que os escravos começaram a ser importados. Segundo o autor:

(38)

[...] a importação continuou ininterrupta até 1850, 28 anos após a independência. Calcula-se que até 1822 tenham sido introduzidos na colônia cerca de 3 milhões de escravos. Na época da independência, numa população de cerca de 5 milhões, incluindo uns 800 mil índios, havia mais de 1 milhão de escravos. Embora concentrados nas áreas de grande agricultura exportadora e de mineração, havia escravos em todas as atividades, inclusive urbanas. (IANNI, 1992, p. 10).

Nessa perspectiva, a reflexão sobre o Direito no Brasil inicia com a compreensão do período da escravidão no Brasil que influenciou as primeiras concepções de trabalho no país, bem como as concepções do Direito, que estavam presentes no processo da Constituinte.

Carvalho (2002, p. 15) inicia as suas análises a partir do trabalho escravo nas casas, em que as escravas faziam o serviço doméstico, amamentavam os filhos das sinhás, satisfaziam a concupiscência dos senhores. Os filhos dos escravos faziam pequenos afazeres e serviam de montaria nos brinquedos dos sinhozinhos. Na rua, trabalhavam para os senhores ou eram por eles alugados. Em vários casos eram a única fonte de renda de viúvas. Trabalhavam de carregadores, vendedores, artesãos, barbeiros, prostitutas. Alguns eram alugados para mendigar. Além disso, todo indivíduo que possuísse alguns recursos tinha um ou mais escravos. O Estado, os funcionários públicos, as ordens religiosas e os padres eram proprietários de escravos. Era tão desmedida a força da servidão que os próprios libertos, uma vez livres, adquiriam escravos. A servidão penetrava em todas as classes, em todos os lugares, em todos os desvãos da sociedade: a colônia era escravista de alto a baixo.

Saes (2001, p. 391) reforça que:

Os escravos eram considerados como “coisas” pelo direito escravista: e portanto estavam excluídos, por definição, da categoria dos sujeitos individuais de direitos. [...] a forma universalista e igualitária dos direitos individuais jamais poderia se impor numa sociedade escravista. Tinham razão, portanto os abolicionistas e os republicanos radicais, quando sustentavam que, no Brasil imperial, não havia direitos; apenas privilégios (vale dizer, prerrogativas enunciadas em termos particularistas, pois formalmente reservadas aos integrantes da ordem dos homens livres).

(39)

Torna-se fundamental enfatizar que o tempo da colonização contribuiu na formação da sociedade brasileira, e que o passado influencia no presente e nas decisões do país, bem como no comportamento dos indivíduos.

A escravidão estava tão enraizada na sociedade brasileira que não foi colocada em discussão até o final do confronto com o Paraguai. A Inglaterra exigiu, como parte do valor do reconhecimento da independência do Brasil, a assinatura de uma aliança que incluía a inibição do mercado de escravos, a qual foi ratificada em 1827. Em acordo entre as partes foi votada, em 1831, uma lei que considerava o mercado escravagista como furto, entretanto, este princípio não teve resultado prático. Antes de ser votado houve um expressivo aumento da importação de escravos e, na sequência, certa diminuição do movimento escravagista, contudo, não demorou para que as importações de escravos crescessem outra vez.

Segundo Carvalho (2002), a abolição só começou a ser debatida no Parlamento brasileiro em 1884, quando também surgiu o movimento popular abolicionista, que culminou em 1888. O Brasil foi o último país cristão e ocidental a libertar os escravos, só o fazendo quando seu número já era pouco representativo. Para o autor:

[...] na época da independência, os escravos representavam 30% da população. Em 1873, havia 1,5 milhão de escravos, 15% dos brasileiros. Às vésperas da abolição, em 1887, os escravos não passavam de 723 mil, apenas 5% da população do país. Se considerarmos que nos Estados Unidos, às vésperas da guerra civil, havia quase 4 milhões de escravos, mais que o dobro dos existentes no Brasil, pode-se perguntar se a influência da escravidão não foi maior lá e se não seria exagerada a importância que se dá a ela no Brasil como obstáculo à expansão dos direitos civis. (CARVALHO, 2002, p. 64).

Para compreender a situação da servidão brasileira, Carvalho (2002, p. 18) relata que a escravização de índios foi praticada no início do tempo Colonial, porém, foi proibida legalmente e teve a objeção decidida dos jesuítas. Os índios brasileiros foram rapidamente dizimados. Calcula-se que havia na época da exploração por volta de 4 milhões de índios, e em 1823 restavam pouco mais de um milhão. Os que escaparam ou se miscigenaram foram empurrados para o interior do país, sendo a

(40)

miscigenação causada pela classe da colonização portuguesa, comercial e masculina. Enquanto isso, Portugal, na época da conquista, tinha aproximadamente uma população de um milhão de pessoas, insuficiente para colonizar o amplo reinado que conquistara, acima de tudo de países poucos habitados, como o Brasil. Também não havia mulheres para acompanhar os homens.

Para se apropriar do Brasil foi preciso miscigenar, e essa era uma urgência pessoal e política para a formação da sociedade brasileira. A miscigenação se deu por aceitação das mulheres indígenas ou pelo estupro. No caso das escravas africanas, o estupro era a regra. Servidão e grandes propriedades não constituíam local favorável à formação de futuras pessoas. Os escravos não eram considerados pessoas, não tinham os direitos civis básicos à integridade física (podiam ser espancados), à liberdade e, em casos extremos, à própria vida, já que eram considerados propriedade do senhor, equiparados a animais.

Entre escravos e senhores havia pessoas que não tinham propriedades, mas eram nascidas no Brasil, porém, lhes faltavam todas as condições para o exercício dos direitos civis, especialmente a educação. Essa massa pobre e que iniciava a apropriação do país, nascendo brasileiro, dependia dos grandes proprietários para residir, trabalhar e se defender, principalmente aqueles que eram oposição ao governo e demais proprietários. Os que fugiam para a interior do país viviam isolados de toda a convivência social, transformando-se, eventualmente, eles próprios em pequenos e grandes proprietários.

Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram livres, votavam e eram votados nas eleições municipais. Eram os “homens bons” do Período Colonial, mas lhes carecia o próprio sentido da cidadania, a noção da igualdade de todos perante a lei. Eram simples autoridades que absorviam parte das funções do Estado, sobretudo as funções judiciárias. Detinham a Justiça que, como se viu, é a principal garantia dos direitos civis, tornando-se simples instrumento do poder pessoal. O poder do governo terminava na porteira das grandes fazendas. Segundo Carvalho (2002, p. 16): “A justiça do rei não atingia os locais mais afastados das cidades, ou sofria a oposição da justiça privada dos grandes proprietários, ou não tinha autonomia perante as autoridades executivas, ou, estava sujeita à corrupção dos magistrados”. Além disso, o autor enfatiza que:

Muitas causas tinham que ser decididas em Lisboa, consumindo tempo e recursos fora do alcance da maioria da população. O cidadão comum ou recorria à proteção dos grandes proprietários, ou

(41)

ficava à mercê do arbítrio dos mais fortes. Mulheres e escravos estavam sob a jurisdição privada dos senhores, não tinham acesso à justiça para se defenderem. Aos escravos só restava o recurso da fuga e da formação de quilombos. Recurso precário porque os quilombos eram sistematicamente combatidos e exterminados por tropas do governo ou de particulares contratados pelo governo. (CARVALHO, 2002, p. 16).

Saes (2001, p. 392) reforça que se instaurou neste sentido um forte controle do exercício do direito de voto por parte das classes dominantes. Havia controle de voto da população rural e dos pequenos camponeses dependentes. Num segundo nível, havia o controle do processo eleitoral pelos chefes políticos locais a serviço da aliança entre propriedade fundiária e burguesia comercial-exportadora. E, numa outra instância, o controle do resultado eleitoral pelo processo de qualificação dos eleitos – a chamada “verificação de poderes”.

No Brasil, ao invés de disputas e conflitos entre as autoridades e os grandes proprietários, havia submissão mútua. A potência slogan nas localidades era constituída pelos capitães-mores das milícias. Estes capitães-mores eram de dura realidade, porém, sua escolha era constantemente um ensejo entre os representantes das grandes propriedades. Havia, por isso, confusão e uma espécie de conivência entre a quantidade do Estado e a dos proprietários. Os impostos eram similares e constantemente arrecadados a partir de contratos com particulares.

De acordo com Carvalho (2002, p. 17), outras utilidades públicas, como a repartição de nascimentos, casamentos e óbitos, eram exercidas pela igreja coletiva. O efeito de tudo isto era que não havia de verdade uma quantidade que pudesse ser denominada como público, ou seja, que pudesse ser a garantia da conformidade de todos ante o princípio de garantia dos direitos civis. Para Fernandes (1987), foi a oligarquia quem determinou as condições da dominação burguesa na sociedade brasileira. No processo de evolução da dominação burguesa houve:

[...] entrechoques de conflitos de interesse da mesma natureza ou convergentes e de sucessivas acomodações, e é nele que repousa o que se poderia chamar de consolidação conservadora da dominação burguesa no Brasil. Foi graças a ela que a oligarquia – como e enquanto oligarquia ‘tradicional’ (ou agrária) e como oligarquia

(42)

‘moderna’ (ou dos altos negócios, comerciais-financeiros mas também industriais) – logrou a possibilidade de plasmar a mentalidade burguesa e, mais ainda, de determinar o próprio padrão da dominação burguesa. (FERNANDES, 1987, p. 209).

Apesar de todos os requisitos ideais que permeavam o imaginário da burguesia brasileira (revolucionários, nacionalistas), na prática, quem definiu as roupagens que a dominação burguesa iria adotar foi a classe oligárquica. Esse aspecto ganhou importância na medida em que se observa que nas revoluções europeias a oligarquia foi expurgada da sua condição hegemônica, sendo destituída pela classe burguesa emergente. No caso brasileiro, segundo Fernandes (1987), o aspecto conciliador e pactual da reestruturação do poder fez com que ela, além de não ser destituída, pudesse criar condições que a realocaram numa posição central no controle social, juntamente com a própria classe burguesa.

As implicações geradas pela dominação burguesa foram numerosas e qualitativamente significantes. Num primeiro momento, cabe ressaltar que permitiram à burguesia manter um amplo controle de todos os setores da sociedade brasileira (econômicos, políticos, sociais), pois apesar da grande heterogeneidade social do Brasil, o acordo tácito com a oligarquia permitia-lhe alcançar desde condições de desenvolvimento atrasado, onde o padrão aristocrata ainda era predominante, até as zonas urbanas, que passavam por uma acentuada expansão econômica (e que já haviam assimilado o padrão burguês de desenvolvimento).

De acordo com Fernandes (1987, p. 209), a dimensão mais importante dessa reestruturação de poder foi, sem dúvida, a associação do padrão burguês de dominação com os procedimentos autocráticos e conservadores da oligarquia, que tornou o regime impermeável à instauração de mecanismos democráticos de participação política. Havia um acordo entre as elites para manter essa autocracia, e isso significava a negação de qualquer possibilidade de tornar o Estado uma instituição democrática e nacional, tal qual era pregado pela ideologia burguesa.

Para Carvalho (2002, p. 20), a emancipação não introduziu mudanças profundas no panorama retratado. Por um lado, a riqueza colonial era por demais negativa; por outro, o processo de independência envolveu conflitos bastante limitados. Em colação com os demais países da América Latina, a emancipação do Brasil foi alusiva e pacífica. A luta militar limitou-se às províncias do Rio de Janeiro e à resistência de tropas

Referências

Documentos relacionados

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

(2010), podem servir como casos sentinela para infecções humanas numa área geográfica restrita. Devido ao fenómeno da globalização que ocorre actualmente, é crucial haver

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

Our contributions are: a set of guidelines that provide meaning to the different modelling elements of SysML used during the design of systems; the individual formal semantics for

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

O setor de energia é muito explorado por Rifkin, que desenvolveu o tema numa obra específica de 2004, denominada The Hydrogen Economy (RIFKIN, 2004). Em nenhuma outra área