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Os registros paroquiais de terras na história e na historiografia – estudo da apropriação fundiária

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Academic year: 2021

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RESUMO

Este trabalho apresenta descrição detalhada dos Registros Paroquiais de Terras (RPT) de Minas Gerais e analisa a relação entre espaço, população, estrutura fundiária e dinamismo econômico em Minas. Afi rma-se o potencial desta documentação e constata-se que não foi objeto de estudo pormenorizado. Procura-se situar os RPTs na História e na Historiogra-fi a, descrevendo-se sua estrutura, notadamen-te os dados arrolados e sua frequência. Em seguida, por meio de dados agregados dos RPTs e das fontes populacionais, é analisada a relação entre a propriedade da terra e sua concentração e a distribuição da população. As conclusões apontam forte correlação entre concentração fundiária e dinamismo econômico.

Palavras-chave: estrutura fundiária, Regis-tros Paroquiais de Terras, Lei de Terras, Brasil Império, Minas Gerais

ABSTRACT

This paper aims at providing a detailed de scription of the Registros Paroquiais de Terras of Minas Gerais, and, based on their data, analyses the aggregate relation between space, population, land structure and economic growth in Minas Gerais. The potential of these documents for being used in Agrarian His-tory research projects is herein demonstrated, and their place in History and Historiography is re-evaluated. The documentation structure and its information is described after having reviewed the context in which they were produced, as well as their connection to the Lei de Terras. Thereafter, an analysis is made of the relationship between land property and its concentration, population and the space, based on aggregate data from all of the province books, demographic sources and a regionalisation of the province. Employing econometric calculations, the conclusions indicate a strong linkage between land con-centration and a booming economy.

Key-words: land structure, Registros Paro-quiais de Terras, Lei de Terras, 19th century Brazil, Minas Gerais

os registros paroquiais de terras na

história e na historiografia – estudo

da apropriação fundiária na província

de minas gerais segundo uma outra

metodologia para o tratamento do primeiro

cadastro geral de terras do brasil

*

Marcelo Magalhães Godoy

Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – Face/UFMG

Pedro Mendes Loureiro

Faculdade de Ciências Econômicas – UFMG

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Introdução

O presente texto está integrado a projeto de pesquisa referente à modernização das formas de apropriação fundiária no Brasil, em geral, e em Minas Gerais, em particular. Objetiva-se a avaliação dos Registros Paroquiais de Terras, produzidos na década de 1850, que contemple o contexto histórico em que foram elaborados e sua inserção na política de terras do Império, bem como o estudo das relações entre espaço, população e estrutura fundiária na província de Minas Gerais. Os Re-gistros Paroquiais de Terras (doravante RPTs) são uma das poucas fontes extensivas disponíveis para a investigação da propriedade fundiária no Brasil e, a despeito de sua relevância, desconhece-se estudo detalhado dos mesmos1. Com a fi nalidade de contribuir para o preenchimento

dessa lacuna, em primeiro lugar foi realizada avaliação global dos RPTs, por meio do recolhimento de dados sumários de todos os códices re-lativos a Minas Gerais, bem como de amostras de registros de diferentes códices, que depois foram analisados. Avaliou-se a representatividade da fonte segundo diferentes critérios, além de se terem investigado quais dados são encontrados nos RPTs, a homogeneidade das informações entre as paróquias e para um mesmo códice, o processo de produção e demais características dos RPTs. Em segundo lugar, também com base em informações recolhidas nessa documentação, foi realizada análise exploratória da relação entre dados espaciais, populacionais e fundiários. Por meio de tratamento regionalizado, verifi cou-se como diferentes contingentes populacionais interagiam com o número de propriedades registradas e com o grau de dinamismo econômico regional, com o objetivo de revelar alguns aspectos da sociabilidade agrária e das estru-turas produtivas vigentes.

Quanto ao tema mais geral do estudo – a estrutura fundiária e as questões a ela relacionadas, como as formas de apropriação territorial,

1 Três destacados autores que estudaram a apropriação fundiária nos períodos colonial

e imperial atribuíram importância menor aos RPTs, sobretudo por entenderem que os Registros são portadores de problemas e limites intransponíveis (CARVALHO, 2006; SILVA, 1996; SMITH, 1990). Outros autores, como Aguiar (2003), Andrade (2006), Castro (1987), Bergad (2004) e Motta (1998), utilizaram os RPTs segundo procedimentos metodológicos que se acreditam portadores de impropriedades ou limitados quanto às possibilidades das fontes.

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o acesso estratifi cado à propriedade e os fatores determinantes da posse da terra – entende-se relevante, adicionalmente, por sua vigência de longa duração e, por decorrência, peso na conformação do caráter contemporâneo da economia e da sociedade brasileiras. A quase inva-riável importância da grande propriedade nas diversas realidades regio-nais brasileiras e a marginalização da maior parte da população rural, continuamente relegada a terrenos ínfi mos e de baixa produtividade, quando não despossuída de terras, conforma quadro simultaneamente antigo e moderno. Estudar a estrutura fundiária é fundamental à com-preensão da conformação de importante face da hierarquia social no Brasil e a inércia que lhe é inerente. Não se pode apreender o pro cesso constitutivo e de reprodução do padrão de distribuição fundiária bra-sileira sem o recurso a dilatada visão histórica. Especifi camente, o es-tudo da transformação dos meios de apropriação fundiária no trans-curso do século XIX é importante para se entender diversos fenômenos estruturantes da modernidade brasileira: a formação do Estado, a mo-dernização econômica e social, a transição do trabalho e, em geral, a transição para o capitalismo (SILVA, 1996; SMITH, 1990; CARVALHO,

2006) e para uma “sociedade competitiva de classes”, para usar a ex-pressão de Fernandes (1975).

Quanto ao estudo específi co dos Registros Paroquiais de Terras, três justifi cativas se destacam: i. constituem corpo documental quase único em termos das informações que o compõem; ii. são largamente desa-creditados pela historiografi a – sem que se tenha estabelecido demons-tração consistente da irrelevância ou do comprometimento dos dados consignados nos RPTs; iii. inexiste estudo que tenha sufi cientemente contemplado as especifi cidades dos Registros, portanto, efetivamente avaliado seu potencial e seus limites.

Como ressaltaram Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva (1981: 93), anteriormente aos dados do INCRA, de princípios da década de 1970, o único cadastro fundiário nacional são os RPTs coletados em meados da década de 1850, ou seja, para mais de quatro séculos, são únicos os dados consignados nos Registros. E, dada a importância da questão agrária no Brasil, os RPTs são, possivelmente, fontes fundamen-tais para a historiografi a brasileira referente ao período imperial. No entanto, a despeito do potencial dos RPTs que se buscará demonstrar, parte substantiva dos autores que a eles se referiram os consideraram

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destituídos de informações utilizáveis. Pelo fato de tais atribuições não se basearem em estudo sistemático e exame aprofundado, entende-se necessário realizar investigação em que os RPTs sejam, provavelmente pela primeira vez, submetidos à avaliação que verifi que seu real poten-cial, bem como busque demarcar os termos necessários à utilização criteriosa por aqueles que se debruçarem sobre os Registros. Para tanto, procedeu-se a estudo dos RPTs referentes a Minas Gerais. Coletou-se dados de todos os códices com registros para Minas, descreveu-se as informações incidentes nos mesmos, ressaltarou-se quantos códices re-manesceram, a sua estrutura e a dos registros que contêm, refl etiu-se sobre como foram elaborados, sobre a homogeneidade ou não interna aos códices e entre eles, a distribuição espacial das localidades com có-dices remanescentes e a representatividade dos mesmos em termos provinciais e regionais. Também se estimou quais informações (e com qual frequência) podem ser encontradas nos RPTs.

Com base em dados agregados dos códices, também se objetivou a determinação das relações que vigoravam entre espaço, distribuição populacional, estrutura fundiária e nível de desenvolvimento econômi-co, ressaltando as determinantes da posse de terras e da estrutura fun diária para as diversas regiões mineiras. Intentou-se, nestes termos, lançar luz sobre o lócus socioeconômico que a propriedade da terra ocupava na província de Minas Gerais. Por fi m, avaliou-se o potencial da fonte para pesquisas futuras. Procurar-se-á demonstrar que os RPTs são material valioso para pesquisas no campo da História Agrária e sugere-se meto-dologia para tratamento dos mesmos.

Metodologia

A presente pesquisa dividiu-se em cinco etapas: recolhimento dos dados dos RPTs; compatibilização com informações de outras fontes primárias e secundárias; regionalização e mapeamento das informações; avaliação da representatividade dos RPTs; estimações econométricas da relação entre espaço, população, estrutura fundiária e dinamismo econô-mico. Em primeiro lugar, foram recolhidas informações referentes aos

RPTs para Minas Gerais. Compulsados todos os códices remanescentes, levantou-se o número de páginas de cada um (com e sem registros), o

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número de registros, o número de escrivães por códice e o período em que foram realizados os registros. Também foram recolhidos registros detalhados de códices selecionados, identifi cando-se os dados encontra-dos, bem como a variação da qualidade e da modalidade das informações que se podem observar em um mesmo códice e entre todos eles.

O próximo passo foi compatibilizar os RPTs com duas outras fon-tes, que apresentam substanciais variações em seus métodos de coleta dos dados e período de produção, e uma proposta de regionalização. Portanto, para a sua utilização, faziam-se necessárias algumas adaptações. As fontes são o Censo de 1831-32 para Minas Gerais e o Censo Impe-rial de 1872. A principal compatibilização se refere à toponímia das paróquias. Como está exaustivamente documentado em Barbosa (1971), os núcleos urbanos de Minas Gerais sofreram constantes mudanças de nomencla tura e status administrativo. Além disso, as listas nominativas foram coletadas segundo os distritos de paz da província, ao contrário dos RPTs e do Censo Imperial, que foram recolhidos segundo as paró-quias. Assim, identifi cou-se quais das paróquias com registros de terra já existiam no Censo de 1831-32 e quais permaneceram assim até a data de coleta do Censo Imperial. Realizada essa identifi cação, o pró-ximo passo foi rastrear as mudanças na denominação das paróquias, com base fundamentalmente no Dicionário histórico-geográfi co de Minas

Gerais (BARBOSA, 1971). Dada a diferença de tempo entre as fontes e por não estarem disponíveis as listas nominativas para todos os distritos, constatou-se a inexistência de informação para algumas localidades. Esses casos foram tratados como dados missing, quando da estimativa das regressões, ou seja, quando não houvesse dados para os três períodos, a paróquia em questão não seria utilizada nos cálculos estatísticos.

Em seguida, realizou-se o mapeamento das paróquias, por meio do enquadramento na regionalização adotada (GODOY, 1996). Foram mapeados todos os distritos do Censo de 1831-32, assinalando-se os nú-cleos para os quais há registros disponíveis. A regionalização dos dados e seu mapeamento justifi cam-se pela consideração da existência de im-portantes contrastes regionais internos a Minas Gerais e, por conse quên-cia, da hipótese da vigência de distintas estruturas fundiárias. Assim sendo, acredita-se que a regionalização dos dados servirá para evidenciar outras diferenças entre as regiões que compõem a proposta adotada. Além disso, com o mapeamento também é possível observar a cobertura espacial

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dos códices remanescentes, outra forma de representatividade impor-tante de ser analisada.

O terceiro passo compreendeu a análise da representatividade dos

RPTs para o território mineiro. Entende-se que tal procedimento é in-dispensável à utilização da documentação para o conjunto da província, para análises regionais ou mesmo para estudos locais. A representativi-dade foi calculada em relação a quatro critérios e para o conjunto da província e respectivas regiões: o número de distritos em 1831/32, o núme-ro de paróquias em 1872, a população em 1831/32 e em 1872. O cálculo foi realizado com relação às duas datas, alternativamente à década de produção dos Registros, por não haver fontes demográfi cas para Minas Gerais coevas aos RPTs. Como o Censo Imperial e o Censo de 1831-32

estão quase equidistantes no tempo dos RPTs, e por resultarem de dis-tintos procedimentos de recolhimento e sistematização dos dados, op-tou-se por duas avaliações de representatividade, excluída alguma me-dida de tendência central. Quanto à representatividade, avaliada segundo a população e as unidades administrativas, entende-se que estas sejam critérios complementares.

Por fi m, rodaram-se regressões para estudar a relação entre espaço, população e estrutura fundiária. Todos os modelos foram avaliados por meio de regressões lineares, utilizando o método dos Mínimos Quadra-dos Ordinários (MQO). Esse procedimento permite verifi car a relação estatisticamente observável entre determinadas variáveis, evidenciando qual a infl uência que um grupo delas (as independentes) tem sobre ou tra (a dependente). Investigou-se como os contingentes populacionais (e sua divisão por sexo e condição social – livres e escravos), a estrutura da pos-se de escravos, a localização das paróquias (inpos-serção regional) e sua den-sidade demográfi ca determinavam a quantidade de registros de terras de cada categoria espacial de análise, buscando a relação agregada (a relação média para o conjunto dos dados utilizados) entre essas variá veis. Con-siderou-se que a Econometria seja a melhor forma de analisar as relações gerais entre as variáveis escolhidas, para, a partir dos dados obtidos, com-preender e explicar as relações sociais que suportavam os fatos encon-trados. Para tanto, defi niu-se como variável dependente para todos os modelos a quantidade de registros de cada paróquia (ou melhor, o loga-ritmo desse valor, posto que tal procedimento apresentou nos modelos testados melhores resultados), com diferentes variáveis independentes.

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No primeiro modelo, regrediu-se o logaritmo do número de registros por paróquia pelo logaritmo da população em 1831-32, da população em 1872 e a razão de sexo2 para esta data, bem como uma estimativa da

proporção de escravos prevalecente na década de 1850. Também foram incluídas variáveis relativas à estrutura da posse de escravos e à densidade demográfi ca. Baseado em dados de Mello Filho et al. (2006a; 2006b), que, adotando a mesma regionalização utilizada neste trabalho (GODOY,

1996), calcularam a área de cada região de Minas Gerais e suas densidades demográfi cas correspondentes em 1831-32 e 1872, estimou-se a densi-dade demográfi ca regional prevalecente em 1855, supondo-se taxa de crescimento demográfi co constante. Utilizou-se também a proporção regional de fogos com escravos em 1831-32 (PAIVA e GODOY, 2002). Baseados em dados coligidos pelos mesmos autores, relativos à distribui-ção de cativos e proprietários por faixas de plantéis, estimou-se o índice de Gini aproximado da concentração regional da posse de escravos3. Uma

vez indisponíveis os dados do Censo de 1831-32 para elevado número de distritos, o que reduziria sobremaneira o universo a ser analisado, so-mente foi possível utilizar a proporção de fogos com escravos e o índice de Gini da concentração da posse de escravos para cada região, e não para cada paróquia. Conquanto não se disponha de dados consolidados sobre a área das paróquias para o século XIX, impedimento intransponível a outra avaliação de densidade demográfi ca para além da regional.

Nesse primeiro modelo, bem como no seguinte, considerou-se que, para uma população constante, um maior número de registros indica estrutura fundiária menos concentrada, na medida em que evidencia maior difusão da propriedade fundiária. A medida não é ideal, posto não estarem disponíveis os dados referentes ao tamanho de cada proprie-dade registrada, mas, ainda assim, é uma boa aproximação, particu larmente pelo controle que o conhecimento da densidade demográfi ca permite. Desse modo, defi nida a população como controle4, torna-se possível 2 A razão de sexo é defi nida como a proporção de homens na população total. 3 Ressalta-se ser esse índice aproximado, posto ter sido calculado com base em faixas

de plantéis (1 a 3 cativos, 4 a 10, 11 a 49 e 50 ou mais) e não nos microdados de cada plantel.

4 Em uma regressão com múltiplas variáveis independentes, o efeito encontrado para

a variação de cada uma delas é aquele observável quando todas as outras se mantêm constantes.

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verifi car a infl uência das demais variáveis sobre a concentração fundiária, com sinais positivos a indicar propriedade menos concentrada. As cin-co variáveis, além dos cin-contingentes populacionais em 1831-32 e em 1872, são importantes por estarem relacionadas a características econômicas e demográfi cas relevantes, que também estão associadas a diferentes padrões de ocupação do território. Por fi m, dada a estimação por log-log, torna-se possível verifi car torna-se o aumento de população tende a provocar con-centração de terras, na medida em que coefi cientes menores do que 1

para o total das populações indicam que, à medida que as paróquias crescem em população, o total de propriedades registradas cresce menos do que proporcionalmente, aumentando assim a concentração5.

No segundo modelo, buscou-se evidenciar a relação entre dinamis-mo econômico regional e concentração fundiária. Para tanto, utilizou-se classifi cação defi nida por Paiva (1996), que agrupou as regiões pro-postas por Godoy (1996) em três níveis distintos de desenvolvimento econômico.

Registros Paroquiais de Terras

Em três etapas serão discutidos os RPTs. Em primeiro lugar, apre-senta-se breve descrição do contexto de sua produção, relacionando-os à Lei de Terras de 1850 e salientando o objetivo que cumpririam segun-do a proposição original que determinou sua realização. Em seguida, realiza-se revisão de autores que trataram dos RPTs ou os utilizaram, para, por fi m, serem apresentados os dados coletados.

Os RPTs são desdobramento da Lei de Terras de 1850, o primeiro instrumento jurídico a regulamentar o acesso à propriedade fundiária após o fi m da concessão de sesmarias, em 1822 (SILVA, 1996:73). Entre esta data e 1850 não houve nenhum dispositivo legal a presidir a apro-priação fundiária. A referida Lei surgiu como forma de regulamentar o acesso à terra e como parte da estratégia Saquarema de transição do

5 Isso se deve ao fato de que, quando as variáveis dependentes e independentes são

logaritmos, a variação a ser interpretada é a proporcional, e não a absoluta. Assim, um valor de 1 para o coefi ciente de uma variável independente indica que a mesma variação proporcional que ela sofrer será observada na dependente, e. g., dobrar a população dobraria o número de registros.

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trabalho (SILVA, 1996:134), no bojo da modernização conservadora em curso no Brasil desde meados do século XIX. Assim, para se entender a Lei de Terras e, logo, os RPTs, é necessário reportar à legislação de apropriação fundiária, à transição do trabalho e, de modo mais geral, à formação do Estado brasileiro e aos padrões de relacionamento entre o público e o privado, primordialmente na fi gura dos senhores de terras.

Em primeiro lugar, cabe salientar, em termos teóricos, a relação entre a conformação de mercado de terras e a generalização do assalaria-mento. A criação de mercado de terras tende a, progressivamente, restringir o acesso à mesma somente aos meios mercadológicos e as transforma em uma mercadoria como as demais6. Gradualmente, não

mais se tem acesso gratuito a terras públicas ou comunitárias e inexis-tem restrições à comercialização de propriedades fundiárias. O acesso à terra é o principal meio de sobrevivência autônoma, pois se pode produzir para a própria subsistência sem orientação mercadológica da produção. Assim, a proibição do acesso gratuito à terra reduz tenden-cialmente a possibilidade de sobrevivência fora do mercado para os pobres, o que leva à obrigação da venda da força de trabalho. Enquan-to houver a escolha de trabalhar para si (sendo necessário ter acesso aos meios de produção, entre os quais a terra é de especial pertinência) não ocorrerá venda da força de trabalho em grande escala, como ar-gumentou Marx na seção “A assim chamada acumulação primitiva de capital” (1990, sec. 8:871-940). Para o capital, é necessário criar as con-dições, sobretudo por meio da expropriação do trabalhador, que levem ao surgimento e à generalização do assalariado (POLANYI, 1980). Tam-bém se deve notar que a mercantilização da terra a liberta para a possi-bilidade de emprego produtivo (em termos mercadológicos), posto que sua apropriação, alienação e emprego passam a ser regidos hegemo-nicamente pelas leis de mercado, e não por favores pessoais ou políti-cos, como vigorava no Brasil Colônia (NOZOE, 2005; PAULA, 2002).

6 Ao se dizer “uma mercadoria como as demais”, quer-se dizer simplesmente que a

alienação da propriedade fundiária passa a ser idealmente regida por leis de mercado, e não por outras relações extraeconômicas que, em sociedades tradicionais, tendem a envolver a propriedade e o uso da terra. Não se quer dizer que não haja diferenças substantivas entre a terra e as demais mercadorias, como é especialmente o caso de a terra não poder ser reproduzida pelo trabalho humano.

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Para que se possa compreender o contexto em que se discutiu e promulgou a Lei de Terras, é necessário reportar às práticas então cor-rentes de apropriação fundiária e, retrospectivamente, à legislação que vigorou até 1822. Durante a vigência da primeira legislação fundiária do Brasil, o Estatuto Sesmarial, a propriedade era condicional, entre outros, ao cultivo – nunca se tornou propriedade privada juridicamen-te absoluta (SMITH, 1990:118; NOZOE, 2005:4). As terras pertenciam à Coroa e seriam doadas por sesmarias aos homens de cabedal (PAULA,

2002:20), cabendo a grande parte da população simplesmente se apossar de terras (NOZOE, 2005:3). A legislação aplicada era contraditória e des-conexa, muitas vezes desrespeitada (LIMA, 1990:46). Como argumenta Nozoe (2005:3), “o acompanhamento da legislação fundiária vigente [...] deixa à mostra a precariedade da situação jurídica da propriedade fundiária, mesmo daquelas legalmente recebidas por mercê da Coroa”. O não cumprimento das condicionalidades jurídicas colocava a maioria dos sesmeiros em comisso, virtualmente equiparando-os àqueles que não tivessem títulos de terra. Assim, não havia, em termos práticos, laços extraeconômicos sobre a terra, o que a fazia equivaler, em larga medida, à propriedade privada (CARDOSO, 1979:18; NOZOE, 2005:8).

Mesmo vigorando o descumprimento das leis, resultando em proprie-dade fundiária praticamente alodial, a legislação vigente era apenas par-cialmente usada em processos judiciais (MOTTA, 1998). Ademais, sem a demarcação e sem que ela legalmente prescindisse de condicionalidades, a propriedade da terra não era moderna, posto que a modernização da apropriação fundiária pressupõe clareza na determinação de direitos e leis de aplicação homogênea.

Nesse conturbado cenário da propriedade fundiária, a questão da terra naturalmente requeria algum encaminhamento mais amplo, que não poderia ser tratado como fora no Alvará de 1795, que, ao revigorar as condicionalidades para manutenção e obtenção de sesmarias, não foi efetivamente aplicado (NOZOE, 2005:8). A concessão de sesmarias é abolida em 17 de julho de 1822, em uma nota lacônica (SILVA, 1996:73), um ato com visibilidade menor do que se esperaria de uma operação de tão largo alcance (SMITH, 1990:284). O período que se inaugura, sem regulamentação sobre a apropriação fundiária, será marcado por extenso apossamento de terras. Os processos judiciais em torno da terra se acu-mularam, especialmente perto do fi m desse período (STEIN, 1961:14-15).

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A despeito disso, a situação é tolerada, posto que, de certa forma, a continuidade do apossamento era do interesse tanto de pequenos pos-seiros quanto de fazendeiros, e o confl ito fundamental estava no âmbi-to das relações do senhoriaâmbi-to rural com a Metrópole e, depois, com o Governo Imperial (SILVA, 1996:74; GRAHAM, 1970).

Apenas a partir de 1843 aparecem propostas para regular o acesso à terra, juntamente com o encaminhamento da transição do trabalho (SILVA, 1996:124-125; CARVALHO, 2006:340). Na década de 1840, a in-corporação das terras fl uminenses à produção cafeeira e sua consequen te valorização desdobram-se em confl itos quanto à legitimidade da ocpação. Em quadro de maior interesse pelas terras, cresce a pressão fl u-minense pela regulamentação da propriedade fundiária, enquanto para o resto do país a regulamentação parecia “socialização de custos” ( CAR-VALHO, 2006:338). O projeto de lei tinha clara inspiração em Edward Gibbon Wakefi eld, cuja teoria foi estudada por Smith (1990:240-284). Wakefi eld buscou transformar as colônias britânicas em um espaço para o capital, ao proibir o apossamento e colocar o preço das terras do Es-tado em patamar que obrigasse os despossuídos a se assalariarem por algum tempo, antes de conseguirem adquirir terras próprias (SMITH,

1990). Determinações semelhantes são identifi cáveis no projeto de lei brasileiro (CARVALHO, 2006:332; SILVA, 2004:20; MARTINS, 1987:29), conquanto não se buscasse de imediato acabar com a escravidão e ins-taurar um mercado de trabalho livre, mas sim um sistema híbrido e intervencionista.

O projeto de lei de 1843, de interesse particular dos proprietários do Rio de Janeiro, foi aprovado na Câmara. Como Silva (1996:109) salien-ta, nenhum deputado poderia apresentar-se contrário à regulamentação, sobretudo pela crescente e generalizada preocupação com a falta de braços. Parece, contudo, que a razão fundamental é diversa. Demarcar terras implicava em abster-se de incorporá-las livremente, o que signi-fi cava para os grandes potentados locais se curvarem perante a determi-nação central, além de se tratar de uma ação economicamente desinteres-sante. Adicionalmente, muitos não teriam condições de pagar o im posto associado à demarcação, e não havia forte burocracia central em nível local para fazer valer a nova disposição legal. Tendo em vista esses inte-resses contrários e avaliada, retrospectivamente, a distorcida aplicação da Lei, pode-se considerar, como hipótese, que prevaleciam a percepção e

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a projeção de que o projeto não teria aplicação tal qual previam suas disposições. Também enquanto hipótese, afi rma-se que o objetivo do projeto era prover uma base legal a ser adotada nas regiões interessadas, e não prover as bases para a coerção legal e imparcial de todos os proprie-tários aos desígnios estatais.

Somente quando se constitui outro gabinete conservador é que se aprova a Lei, em versão consideravelmente modifi cada. Isso ocorre em

1850, no mesmo ano e em data próxima da abolição do tráfi co, que defi ne a inevitabilidade da transição defi nitiva do trabalho no país( SIL-VA, 1996:111-112). Nesse contexto, será promulgada e discutida a Lei de Terras, que condensava a visão Saquarema do processo de transição do trabalho(SILVA, 1996:134), baseada na sua transição gradual e na imigra-ção, complementando a mão de obra. No centro de todo esse processo está a demarcação das terras devolutas.

A versão fi nal da Lei de Terras determinou que se impedissem as posses; legitimou as posses em área até o dobro da cultivada, não exce-dendo a da última sesmaria na região; quando de demarcações nas quais houvesse disputa entre sesmeiros e cultivadores sem título legítimo, a prioridade seria dada a estes; obrigou os posseiros a delimitarem suas terras, aplicando multa aos que não o fi zessem; instituiu um direito de chancelaria para a legitimação; concedeu um crédito inicial para os fundos de atração de imigrantes; suprimiu o imposto territorial, pre-sente no projeto de 1843; determinou que o lote mínimo a ser posto à venda seria de 500 braças (121 ha); marcou o prazo máximo para me-dição do terreno; estabeleceu que o Governo criaria os órgãos neces-sários à aplicação da lei; e determinou que o Governo poderia importar colonos, usando em parte o dinheiro da chancelaria e da venda de ter-ras (SMITH, 1990:323-325).

Os pontos que mais feriam os interesses dos proprietários foram re-tirados. O tamanho máximo das posses foi aumentado, o imposto terri-torial foi abolido e, no caso de não cumprimento das determinações da Lei, a posse fi cava em comisso, mas não havia expulsão. Para a compre-ensão da Lei de Terras é fundamental levar em conta suas ambiguidades, que faziam da força a chave para dirimir os confl itos. Em primeiro lugar, há um duradouro e confuso debate a respeito da possibilidade ou não de se praticar usucapião nas terras devolutas, bem como sobre o concei-to de terras devolutas (SILVA, 1996:150-162). Estas foram defi nidas na

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negativa, como as terras que não fossem aplicadas a algum uso público,

não estivessem no domínio particular, por título legítimo, ou não

estives-sem no domínio particular através de apossamento e fosestives-sem revalidadas pelos mecanismos da Lei – isto é, posses que fossem regularizadas (SILVA, 1996:157) – o que colocava o Governo à mercê dos particulares, uma vez que só poderia saber quais eram as suas terras depois de saber quais não eram de particular algum. Tais ambiguidades não comprometiam a aparência de legalidade quanto à propriedade fundiária e asseguravam a resolução dos confl itos em benefício dos proprietários. Warren Dean reproduz uma elucidativa fala do Barão de Cotegipe, em que des ponta a ideia de que a Lei não conheceria aplicação rigorosa:

Com despreocupação beirando a ironia, João Mauricio Wanderley, fu-turo Barão de Cotegipe, sugeriu que o propósito da lei era menos do que sincero. Ele considerava interessante demonstrar unanimidade em aprovar o projeto rapidamente, para mostrar à Europa, dizer ‘Vejam, o Brasil já tomou alguns passos, e de agora em diante se ocupará da colonização etc.’ Mas considerava menos importante aplicar as determinações da lei: ‘Bem, no estado em que nos encontramos hoje creio que possamos suportar algum atraso (ouçam, ouçam); as inconveniências que alguns temem devido ao fi m do tráfi co não são imediatas, talvez não venham a se passar por outros dez anos’ (DEAN, 1971:15) (Tradução nossa).

Entende-se que o Regulamento da Lei de Terras é fundamental para se compreender a linha interpretativa lançada, ou da arbitrariedade presu-mida, assim como se trata de disposição que prescreveu a realização dos

RPTs. O mais importante é a defi nição da medição das terras particu-lares: os juízes deveriam informar se nos distritos havia posses e ses marias requerendo revalidação, nomeando-se para cada município, pelo presi-dente de província, um juiz comissário de medição. Portanto, não foram empregados funcionários estabelecidos, como os juízes de direito e mu-nicipais7, mas sim função nova e muito mais sujeita a infl uências (SILVA, 1996:168). Para se obter o título de propriedade, seria necessário demarcar as terras e pagar direitos de chancelaria (o cultivo deixava de ser o

deter-7 Silva (1996:168) considera que a magistratura, um dos pilares do Regresso, era vista

pelos conservadores como a única instituição efetivamente capaz de agir sobre a sociedade imperial.

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minante). Outros aspectos importantes são a demarcação só ocorrer depois de pedido dos particulares e a não demarcação não implicar em perda do terreno. Na prática, isso signifi cava que não haveria pressão para o cumprimento da Lei. O dispositivo que particularmente interessa ao estudo em tela é o Registro Paroquial de Terras, que cumpriria a fun-ção de cadastro das propriedades possuídas por particulares em meados do século XIX e não garantia títulos de propriedade (SILVA, 1996:174). Portanto, não era este o instrumento que resolveria a “questão fundiária”, para o que era imprescindível a demarcação das terras de particulares.

Assim, a primeira reestruturação da propriedade da terra é empreen-dida com a Lei de Terras, fundamental para a compreensão do processo de formação do Estado nacional e de uma moderna sociedade de clas-ses (SILVA, 1996:338). Ao delimitar novo espaço de sociabilidade para os indivíduos do ambiente rural e entre estes e o Estado, a Lei possibilitou e obrigou a adoção de novos padrões de comportamento. Em vários aspectos ela não foi cumprida, sofrendo diversas distorções: não se lega-lizaram as propriedades, a posse não foi estancada, as contendas no campo continuaram. Apesar de haver razões técnicas para tanto ( CAR-VALHO, 2006:348), a maior parte das distorções decorreu do espaço de manobra concedido pela Lei, que permitia arbitrariedades dos particu-lares e conivência com a sua ilegalidade. No entanto, muito da essência da Lei foi cumprida (COSTA, 1985), ainda que sua história se caracte-rize pelas “‘distorções’ sofridas” (SILVA, 1996:343). Como seu principal objetivo era garantir mão de obra para as fazendas, a Lei foi cumprida em partes. As indeterminações da Lei de Terras não podem ser descon-sideradas: o texto confuso, ambíguo e apoiado em um regulamento permissivo não é só uma vitória “obtida” pelos proprietários, mas tam-bém uma deliberação não declarada dos legisladores. A Lei nesse aspec-to foi cumprida, uma vez que concedeu instrumenaspec-tos para os grandes potentados fazerem seus interesses prevalecerem sobre os das camadas mais baixas: tanto vetar o acesso à terra para estas como continuar a garantir o acesso gratuito para si mesmos. Esse marcante traço da Lei de Terras não pode ser perdido de vista. Nos termos propostos por José de Souza Martins (1987:32), “num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cati-va”. Da perspectiva do projeto das elites, ou a terra ou o trabalho teriam de ser cativos. No entanto, o cativeiro do trabalho não era apenas a

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escravidão; com a transição do trabalho e da abolição do regime servil, o mandonismo local criou e recriou sistemas de trabalho que de modo algum eram livres.

Os RPTs resultaram de determinação que obrigava, em tese, os possuidores de terras a declararem seus domínios junto aos vigários de cada freguesia, indicando o nome do possuidor, a extensão (se conhe-cida), os confrontantes da propriedade e o nome do particular das si-tuações, caso houvesse alguma. Os vigários eram obrigados a aceitar as declarações da maneira que fossem prestadas, mesmo que faltassem in-formações requeridas (MOTTA, 1998:161; SMITH, 1990:325). Como diz Motta (1998:179):

Os vigários terão livros abertos, numerados, rubricados e encerrados. Nesses livros lançarão por si e por seus escreventes, textualmente, as rações, que lhe forem apresentadas, e por esse registro cobrarão do decla-rante o emolumento correspondente ao número de letras, que contiver um exemplar, à razão de dois reais por letra, e dos que receberem farão notar em ambos os exemplares.

O registro, conquanto fosse obrigatório, não estabelecia nenhuma penalidade para aqueles que não o realizassem8, e, como já foi

mencio-nado, não concedia título de propriedade (SILVA, 1996:174). Ao contrá-rio do que entende Martins (1987:29), não era ele que “validava ou revalidava a ocupação da terra até esta data”. O objetivo dos RPTs era realizar um cadastro das terras ocupadas, ser um levantamento geral para que se conhecesse a situação da ocupação fundiária. Esse ponto é fonte de frequentes incompreensões e deve ser observado com clareza para que se compreenda os RPTs. Assim sendo, nos termos da Lei, possuir um registro de terras de fato não “conferia legitimidade pública às ter-ras privadas” (SMITH, 1990:336), e não era esse o seu objetivo. Por mais que seja correto afi rmar que o Registro do Vigário, identifi cação coeva dos RPTs, não foi “capaz de reorganizar a estrutura fundiária nem de discriminar as terras públicas das privadas em todo o território nacional”

8 Isto é, uma propriedade, ao não ser registrada, não era revertida para o domínio

público e nem tampouco entrava em comisso, sua condição jurídica não era alterada. Havia, contudo, uma multa de 200$000 réis para quem não registrasse suas terras, cuja cobrança era, no entanto, pouco plausível.

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(MOTTA, 1998:167), a afi rmativa imputaria aos Registros uma respon-sabilidade que lhes é indevida. Se, naturalmente, não seria possível de-limitar a propriedade da terra por meio de declarações isentas de qual-quer comprovação ou mensuração, tentar desqualifi car a validade dos Registros com tal argumento, de que não resolveram as contendas em torno da propriedade da terra, seria uma extrapolação imprópria.

Não obstante, os RPTs foram utilizados, em determinados momen-tos, na intenção de que fi zessem as vezes de um título de propriedade (SILVA, 1996:174). Numa realidade em que a propriedade legítima, de-marcada e registrada era a exceção, em que a infl uência pessoal, o po-derio local e a arbitrariedade predominavam (CASTRO, 1987:137-147;

MOTTA, 1998:189-196), todos os recursos que pudessem ser utilizados para se manter na propriedade da terra ou dela se apoderar seriam mo-bilizados, por mais que não fossem aqueles que, dada a (ambígua) legis-lação vigente, garantiriam o direito à terra. É nesse quadro que os RPTs foram empregados como um título de propriedade, não de todo dife-rente de outros expedientes, como a mobilização de “padife-rentela” para depor a favor dos indivíduos disputando terras. E, dado que na maioria das disputas a propriedade de fato9 da terra não existia, a posse de um

re-gistro paroquial de terras não deixava de ser uma evidência plausível para o ocupante de determinado terreno, evidência essa que seria uti-lizada junto a tantas outras nas disputas territoriais10.

Deve-se notar que a declaração de propriedade, junto ao vigário, no que tange à afi rmação de sua área e, especialmente, de seus confrontan-tes, não constrangia o poder ou as possibilidades daquele que a regis-trava. Ao contrário de uma demarcação, que impediria a incorporação ilegal de terras contíguas, o registro paroquial reconhecia os

confron-9 Por propriedade de fato compreende-se a posse de título de direito sobre a terra,

es-tritamente segundo os procedimentos legalmente previstos. Era necessário que se procedesse à medição e à demarcação das terras e, não havendo contenciosos a esse respeito (ou uma vez que tivessem sido resolvidos em última instância pelo presidente de província), seria expedido o título de propriedade após serem pagos os direitos de chancelaria (SILVA, 1996:170).

10 Nas disputas pela propriedade da terra, vários expedientes à beira da legalidade, como

a mobilização de títulos, legais ou não (a exemplo dos RPTs), a infl uência direta junto a juízes, a execução de dívidas processuais, entre outros, eram empregados, a defi nição fi nal era dada, na grande maioria das vezes, pela força dos contendores (CASTRO, 1987:137-147; MOTTA, 1998:189-196; SILVA, 1996:187-207).

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tantes sem mencionar o local da confrontação (ou, quando o fazia, era de modo extremamente vago), não impedindo que grande dose de arbitrariedade fosse utilizada em eventual defi nição do local da confron-tação e da parcela de terra que caberia a cada interessado. Mesmo a declaração da extensão das terras, embora em grau menor, não seria restritiva, posto que se poderia alegar que o valor informado era apenas uma estimativa ou que outras extensões foram adquiridas posterior-mente, bem como seria bastante plausível encontrar declarações de ta-manho muito distantes da realidade. E também se deve ter em vista que a possibilidade de se declarar no registro haver situações11 ou

arrenda-tários na propriedade era uma maneira de se obter um possível trunfo em negociações futuras, caso o suposto arrendatário ou situacionista fosse, na verdade, o possuidor do terreno que ocupava.

Em síntese, são três as implicações ou dimensões referentes aos re-gistros de terra. Primeiro, o entendimento do que efetivamente era o registro, como poderia ou não ser usado e quais os custos e os benefícios de se registrar a terra; enfi m, qual o estatuto jurídico e social dos RPTs? Em segundo lugar, a demonstração da importância da compreensão de que o registro não era um ato que “feria a soberania” dos senhores, não tendo nenhum efeito vinculativo explícito, mas era, do ponto de vista de quem registrava, um documento que poderia ser empregado em seu favor, e não a imobilização defi nitiva da propriedade. Assim, concorda-se que “ele [o RPT] serviu como instrumento de poder, na decisão acerca do domínio sobre as terras em cada localidade” (MOTTA,

1998:167), permitindo aos proprietários de terras defi nir o conteúdo dos Registros, inclusive por meio do exercício da infl uência pessoal,

media-da pelo zelo dos párocos12. O que leva à terceira implicação, manifesta na 11 Uma “situação” é uma relação jurídica para com a terra largamente reconhecida no

período imperial, caracterizada pela posse de lavouras ou benfeitorias em terras alheias. Castro (1987:94) encontra que em Capivary as situações eram a tal ponto reconhecidas que ocorriam transações envolvendo-as, registradas em cartórios locais, à revelia dos supostos proprietários legais dos terrenos nos quais elas se encontravam.

12 Afi rma-se que a infl uência pessoal seria mediada pelo zelo dos párocos, baseado em

dados apurados pela pesquisa, que serão mostrados a seguir (a relativa uniformida-de das informações presentes nos registros uniformida-de uniformida-determinada localidauniformida-de e a granuniformida-de heterogeneidade das declarações de diferentes paróquias), e em dados de Andrade (2006:7-8), que encontra em uma freguesia, cujo reverendo era ele próprio possuidor de terras, maior quantidade de informações nos RPTs.

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seguinte formulação: se juridicamente o instrumento não legitimava a propriedade da terra, se não havia cláusulas punitivas para os que não registrassem e se ainda havia uma cobrança pelo mesmo13, por que

tantos registros foram realizados?Embora a resposta a essa pergunta já esteja delineada ao longo do texto, ressalta-se que o registro de terras, em um contexto de quase ausência da propriedade juridicamente lega-lizada, era um instrumento em potencial para os ocupantes dos terrenos se manterem na posse dos mesmos, era um documento a ser mobiliza-do na luta pela terra.

Há outra fonte de incompreensões sobre os RPTs, a equiparação dos resultados da Lei de Terras àqueles dos Registros. Como salientado acima, a Lei de Terras, nos termos estritamente formais ou jurídicos em que foi proposta, não foi cumprida, e alguns autores acabaram por atri-buir aos RPTs os mesmos problemas, considerando-os, por decorrência, um conjunto documental impreciso, contraditório, produzido sem mé-todo (quando produzido) e que, portanto, se apresentaria destituído de credibilidade enquanto fonte primária. É, por exemplo, o que diz José Murilo de Carvalho:

A história da Lei de Terras foi, até o fi nal do Império, a história dessa resistência [dos proprietários] e da incapacidade do governo em vencê-la (Carvalho, 2006:341). Em 1877 reconhecia-se que a lei era ‘letra morta’ [...] grande número de sesmarias e posses permanecia sem revalidar e sem le-gitimar, e as terras públicas continuavam a ser invadidas (p. 342). O registro ou cadastro de terras teve mais êxito, mas fi cou longe de atingir todas as propriedades, além de ser pouquíssimo confi ável [...] A separação e a demar-cação de terras devolutas também fi caram em grande parte sem execução [...] Sem sombra de dúvidas, a Lei de Terras não pegou (p. 346).

O mesmo pode ser dito de Smith (1990:336), que afi rma que “o propósito inicial do Estado em guiar o processo de demarcação de terras é perdido em um terreno amorfo de indefi nições. O Registro do Vigá-rio foi algo sem muito efeito, e não garantia legitimação da proprieda-de privada junto ao Estado”. Ambos os autores não parecem diferenciar o signifi cado e os resultados da Lei de Terras e dos RPTs.

Provavelmen-13 Quanto ao pagamento, acredita-se que, se foi levado a cabo, vigorou em poucas

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te sem terem consultado sistematicamente os Registros, posto que não se encontra nenhuma menção direta ao seu conteúdo, Carvalho (2006) e Smith (1990) parecem julgar que, se a Lei não foi cumprida, seu De-creto também não o seria. Desconsideram importantes aspectos que distinguiam os RPTs da Lei de Terras, quanto à concepção, ao método e aos resultados. Não admitem aplicação específi ca dos RPTs, condicio-nada pela realidade do regime de apropriação fundiária vigente e pelas conveniências daqueles que se submeteram, voluntariamente, à decla-ração de suas posses. Lígia Silva (1996), que trata longamente da Lei de Terras, também não se debruça sobre os dados arrolados nos RPTs, embora discuta a criação dos mesmos e suas principais interpretações jurídicas. A autora relata as imprecisões da Lei e do Regulamento que instituiu o Registro do Vigário, reduzindo a importância deste. Silva compulsa diversas fontes, como Relatórios de Presidentes de Província, discussões parlamentares, Relatórios das Comissões de Terras e outras, mas não os RPTs14.

Quanto aos estudos que se basearam nos RPTs, afi rma-se que, para além das contribuições que representam, preponderou tratamento mar-cado por dois problemas, às vezes superpostos: generalizações indevidas e utilização destituída da necessária análise da fonte em seu conjunto. Por ultrapassar o escopo deste escrito, não cabe discutir pormenoriza-damente cada uma das análises, que serão apenas descritas sucintamen-te e indicados os procedimentos que poderiam ser refi nados.

A quantidade de informações coletadas nos RPTs é variável, desde casos de número bastante reduzido de variáveis, como em Bergad (2004) e Aguiar (2003), que apenas recolhem nomes dos declarantes, áreas das propriedades e forma de aquisição15, até casos de coletas mais extensas, 14 Resta considerar que os RPTs não foram utilizados pela autora por seu conteúdo não

estar diretamente relacionado ao estudo em tela, posto seu objetivo ser “o espaço de relacionamento entre os proprietários de terra e o Estado” (SILVA, 1996:14, grifo nosso). Em outro artigo, Silva e Secreto (1999:132-133) mostram como o Registro foi instrumentalizado por particulares para a grilagem de terras e a constituição, por apossamento, da grande propriedade fundiária, tecendo considerações sobre o papel dos RPTs nas disputas fundiárias, ainda que não se dediquem a uma análise pormenorizada da produção e dos limites dos Registros como fonte histórica e como instrumento na luta pela terra.

15 A forma de aquisição da propriedade indica a maneira de apropriação praticada,

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como em Andrade (2006), que também compulsa a tipifi cação16 e a

forma de tenência17 das propriedades e a alfabetização dos proprietários.

Também se observa variação na cobertura espacial das análises, desde a totalidade da Província de Goiás (AGUIAR, 2004) até quatro paróquias de Minas Gerais (ANDRADE, 2006), passando por alguns municípios (CASTRO, 1987; BERGAD, 2006). O cruzamento com outras fontes é outra importante diferença, sobressaindo-se Castro (1987), que compul-sa, entre outras, inventários, escrituras de compra e venda de terras e o

Almanack Laemmert.

Em linhas gerais, afi rma-se que as análises seriam enriquecidas por três procedimentos. Em primeiro lugar, pela coleta de maior número de informações dos registros; mesmo Andrade (2006) não utiliza todo o potencial da documentação, na medida em que não se debruça, por exemplo, sobre o número e o tipo de confrontações das propriedades e a dependência das mesmas (isto é, se eram terras próprias ou inseridas em outras propriedades). É perceptível como a diferença na quantidade de informações coletadas se refl ete nos resultados; Bergad (2004:128), com base em apenas poucas variáveis, conclui por uma concentração indiscriminada de terras na província, enquanto Andrade (2006:5) en-contra que

[...] a concentração de terras era uma constante, aliada, todavia, a variáveis como desmembramento/pulverização de terras por herdeiros, ao lado do esforço de viúvas para preservação do patrimônio deixado pelo ‘fi nado seu marido’, absorção de pequenas propriedades pelos latifúndios [...].

troca e doação. Em vários casos, o signifi cado é coincidente com aquele da forma de tenência da propriedade, explicada na nota 17.

16 Por tipifi cação da propriedade entende-se a maneira pela qual os declarantes se

referem a seus terrenos, como fazendas, sítios, “sortes de terras”, chácaras, etc. Não é categoria jurídica, mas o uso de determinado termo pode signifi car propriedades diferentes quanto a tamanho, importância econômica e outros, como encontra Andrade (2006:10).

17 A forma de tenência indica a relação jurídica de propriedade do ocupante do

terreno para com o mesmo. As formas mais usuais para o período estudado são: posse, arrendamento/aluguel, tenência por recebimento de sesmaria e propriedade, legalizada segundo as determinações da Lei de Terras.

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Em segundo lugar, pelo maior entrecruzamento das informações dos registros e destas com outras fontes, o que possibilitaria tanto verifi car a consistência do conteúdo da documentação quanto vislumbrar outras dimensões. Despontam especialmente as oportunidades informadas pela rica gama de fontes compulsada por Castro (1987): seria possível, por exemplo, identifi car os indivíduos listados no Almanack que efetuaram o RPT e, por decorrência, avaliar a cobertura dos Registros e a hierar-quia associada à posse de terras, ou a partir das terras listadas em inven-tários coetâneos aos RPTs, seria possível investigar se havia alguma re-lação entre o valor atribuído nos inventários, a forma de tenência da terra e a probabilidade de registro. Bem como poderia Andrade (2006), a partir dos dados que coletou dos registros, ter investigado a existência de relação entre o tamanho das propriedades e sua forma de aquisição, analisando se havia alguma hierarquia da apropriação fundiária (e.g., pequenos terrenos sendo principalmente herdados e grandes terrenos, comprados). Por fi m, acredita-se que a análise mais ampla do conjunto dos registros permitiria aos autores melhor apreciação dos limites e do potencial dos RPTs, possivelmente alterando algumas conclusões, a exem-plo da que afi rma relação entre a qualidade da informação e a necessida-de necessida-de pagamento por letra do registro (ANDRADE, 2006:12).

Em síntese, é inegável a importância dos estudos em tela, não só pelas contribuições que agregaram à construção do conhecimento histórico, em geral, mas também pelos resultados relacionados à utiliza-ção dos RPTs, em particular. Entretanto, como afi rmado anteriormen-te, parece fora de dúvida a necessidade de se ampliar o conhecimento sobre os RPTs, buscar estabelecer o potencial e os limites que lhes são inerentes. Na sequência, privilegia-se a descrição e a análise dos dados recolhidos nos RPTs, começando pelo exame da estrutura dos registros e dos códices.

Como mencionado anteriormente, cada pároco respondia pelo re-colhimento dos registros de sua paróquia, cobrando uma taxa pelo número de letras do registro, e, em seguida, remeteria o(s) códice(s) ao governo. Também como salientado antes, as determinações quanto às informações necessárias eram imprecisas, isto é, não havia orientações centrais claras ou um modelo de formulário a ser preenchido que re-sultasse em homogeneidade dos registros entre as paróquias. Cada pa-róquia teria um único escrivão (o próprio pároco). Com isso, pode-se

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prever, como de fato os resultados a seguir demonstrarão, grande varia-bilidade interparoquial e pequena variavaria-bilidade intraparoquial, ou seja, a qualidade dos documentos é em grande medida dependente do zelo de cada pároco. Todos os códices iniciam com a declaração de seu propó-sito (explicitação de que o livro se destina a receber registros das terras particulares, conforme o Decreto de 1854) e informam o nome do pá-roco responsável, que assina termo de abertura. Em seguida, encontram-se as entradas referentes às propriedades registradas. A linguagem na qual os registros são escritos, bem como o seu conteúdo, variam bastante. Os registros de algumas paróquias são diretos e objetivos, listando somente as informações diretamente relacionadas à propriedade (como a exten-são, os confrontantes, a forma de aquisição, etc.), enquanto em outras localidades o escrivão recorre a linguagem mais rebuscada e incorpora listagem das disposições legais que animam a produção do documento em questão, repetindo certo cabeçalho para cada registro. Há os que indicam o valor cobrado, mas, dado que em apenas 21,0% dos casos isso ocorreu, e, como mesmo nos casos em que a cobrança é listada, rara-mente se menciona se o valor devido foi pago ou não, parece pouco provável que ela se tenha realmente efetivado.

Como aludido anteriormente, a variabilidade intraparoquial é bem pequena. Praticamente todos os registros de determinada paróquia repe-tem sisrepe-tematicamente o mesmo formato. Quanto à quantidade de có-dices por paróquia, a maioria só apresenta um. Os livros de continuação invariavelmente começam por se defi nir como tais; no entanto, não há nenhuma indicação de tal fato nos livros que serão continuados. Isso poderia representar um problema, posto ser possível que, para algumas paróquias, só estivesse disponível parte dos registros, no caso de os livros secundários não terem permanecido. No entanto, dado que 32 paróquias têm dois ou mais códices, e não foi encontrado nenhum que declaras-se declaras-ser continuação de outro que não estivesdeclaras-se disponível, parece pouco provável que apenas parte da documentação de uma paróquia tenha remanescido.

Posto que a elaboração de quadro que resumisse as principais carac-terísticas de cada um dos códices dos RPTs seria incompatível com o escopo deste texto, segue tabela que resume informações agregadas sobre a documentação.

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Tabela 1 – Informações agregadas dos Registros Paroquiais de Terras – Minas Gerais, 1854-61

INFORMAÇÕES TOTAL MÍNIMOPORCÓDICE MÁXIMOPORCÓDICE

Paróquias 197 --

--Registros 73.899 11 1.234

Páginas com registros 39.437 44 844

Fonte: Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861.

Quanto às informações de maior interesse, destacam-se as que se seguem. Para além da data e do local, o nome do proprietário e os limites das propriedades estão em virtualmente todas as declarações, sendo o nome da fazenda ou da propriedade também bastante comum. Com menor frequência, mas sem confi gurar exceção, encontram-se a forma de aquisição da propriedade (incluindo menção de o declaran-te ser o único dono ou arrendatário do declaran-terreno em questão) e sua extensão. Raramente relaciona-se o valor da propriedade. É incomum, mas não de todo raro, encontrarem-se informações quanto ao apro-veitamento das terras, como é o caso de relacionar separadamente a extensão dedicada às culturas e aquela que permanece como “campos” ou “matas”. Há menções ao tipo de cultivo de cada propriedade, mas elas são escassas e provavelmente são uma maneira simplifi cada de se referir à pecuária, à agricultura ou mesmo à extensão, e não à indica-ção do gênero produzido – por exemplo, a referência a terras com “plantas de milho” é tamanha que, provavelmente não indica haver cultivo do cereal em todas elas. Outra informação, utilizada por An-drade (2006), e que pode ser encontrada em todas as declarações, é o fato de ela ter sido assinada pelo proprietário ou a rogo, ou seja, a indicação de o proprietário ser ou não alfabetizado. Em alguns casos, é possível verifi car se havia situações na terra. Por fi m, uma informa-ção que parece apresentar grande variabilidade, mas que pode ser de interesse e que foi utilizada por Andrade (2006) e Castro (1987), é a tipifi cação da propriedade e a forma como se designam perante a mesma (ser senhor, possuir, ser “senhor e possuidor”, etc.), dados que fi guram na grande maioria das declarações – considera-se não haver nenhuma tipifi cação quando o registro foi realizado mencionando-se diretamente o tamanho, como, por exemplo, “Antonio Justiniano Monteiro de Godoy, como procurador de João Caetano do

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Nasci-mento, apresenta desse registrador cem alqueires de terras, mais ou menos, no lugar [...]” (APM, SP, RPTs códice 1, reg. no857).

Como indicação preliminar das informações disponíveis, foram calculados os índices a seguir. Foram computados a partir da seleção de

542 registros relativos a 121 paróquias; foram compulsados mais de um registro do mesmo códice, com o objetivo de analisar as diferenças in-ternas a cada paróquia. Os índices são médias simples das informações encontradas.

Tabela 2 – Frequência das informações encontradas nos Registros Paroquiais de Terras – Minas Gerais, 1854-61

VARIÁVEL FREQUÊNCIAPERCENTUAL

NOSREGISTROSANALISADOS

Nome do proprietário 100,00

Confrontantes 81,34

Forma de Aquisição 48,61

Extensão 64,48

Valor 4,25

Aproveitamento das terras* 60,46

Aproveitamento detalhado das terras** 6,54

Benfeitorias e imóveis presentes 1,29

Tipifi cação da propriedade***† 95,45

Custo da declaração@ 21,08

Assinatura (a rogo ou não)† 100,00

Fonte: Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. *Por aproveitamento das terras entende-se a menção vaga à sua utilização, como “terra de campos e cultura”, sem a extensão concernente a cada tipo. **Por aproveitamento detalhado entende-se a menção à utilização das terras que defi na a extensão dedicada a cada tipo, como, por exemplo: “oito alqueires de terras de cultura e dez alqueires de campos”. ***Por tipifi cação da propriedade entende-se a forma de se referir às terras declaradas (e.g., fazenda, sítio, sorte de terras, etc.) e à relação para com as terras (e.g., possuir, ser senhor, etc.). † Dados coletados de 44 registros. @ Dados coletados de todos os 236 códices.

Espaço, população, estrutura fundiária e desenvolvimento econômico

Esta seção se divide em três partes. Em primeiro lugar, realizou-se mapeamento e regionalização dos RPTs, para em seguida avaliar a sua representatividade, de acordo com diferentes critérios. Por fi m, será

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in-vestigada a relação entre espaço, população, estrutura fundiária e dina-mismo econômico, utilizando-se os RPTs, o Censo de 1831-32, o Censo Imperial de 1872 e a regionalização de Godoy (1996).

Godoy propôs, em 1996, regionalização para Minas Gerais, válida para a primeira metade dos Oitocentos, baseando-se em relatos de via-jantes estrangeiros que percorreram a província. Desde sua proposição, a regionalização – que resultou da sobreposição de características físicas, demográfi cas, econômicas, administrativas e históricas a defi nir a identi-dade dos espaços regionais – foi adotada e testada em diversos estudos18,

apresentando-se como recurso instrumental a refl etir os pronunciados contrastes internos a Minas. Foram propostas 18 regiões, cujas carac terís-ticas estão descritas em Godoy (1996). Com base em evidências demo-gráfi cas e econômicas, Paiva (1996) classifi cou as regiões segundo o nível de desenvolvimento econômico, em três faixas: baixo, médio e alto.

Em anexo, segue mapa com a indicação de todos os distritos do Censo de 1831-32, em que se distinguem os casos com ou sem RPTs remanescentes, bem como os que não existiam na década de 1830, mas para os quais foram produzidos RPTs. Uma primeira análise do mapea mento revela a satisfatória cobertura espacial dos códices re-manescentes.

Avalia-se, na sequência, a representatividade regional dos RPTs, se-gundo dois critérios (distritos/paróquias e população total) e em dois períodos distintos (1831-32 e 1872).

Deve-se ressaltar tendência à sub-representação para 1831-32, especial-mente no que diz respeito ao número de paróquias, posto que os dados utilizados para o Censo foram coletados por distritos de paz, uma subdi-visão administrativa igual ou menor do que paróquias. Assim, mesmo que remanescessem códices para todas as paróquias existentes em 1831

-32, a representatividade não seria total. Analogamente, há tendência à sub-representação em 1872, ainda que menor do que a da década de

1830 – nesse caso, por não existirem, na década de 1850, todas as paróquias constantes no Censo de 1872, posto que alguns distritos foram elevados de categoria e outros, criados nesse intervalo de tempo.

18 Ver, sobretudo, os seguintes estudos, que compreenderam todo o espaço provincial:

Paiva (1996); Rodarte(1999); Paivae Godoy(2002); Godoy; Rodartee Paiva(2003); Godoy(2004), Rodartee Godoy(2006); Rodarte(2008).

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Tabela 3 – Representatividade percentual dos Registros Paroquiais de Terras – Minas Gerais, 1854-61 CRITÉRIO REGIÃO POPULAÇÃO TOTAL 1831-32 POPULAÇÃO TOTAL 1872 DISTRITOS 1831-32 PARÓQUIAS 1872 Araxá 42.46 36.54 38.46 31.25 Diamantina 70.24 62.38 38.46 83.33 Intermediária de Pitangui-Tamanduá 55.46 59.71 41.30 61.29 Mata 52.39 49.86 48.28 38.00 Minas Novas 59.35 66.01 50.00 68.42

Mineradora Central Leste 56.13 57.65 52.94 52.17

Mineradora Central Oeste 51.20 65.63 36.72 64.00

Paracatu 70.04 70.62 57.14 80.00

Sertão 100.00 100.00 100.00 100.00

Sertão do Alto São Francisco 69.95 34.94 44.44 30.77

Sertão do Rio Doce 100.00 3.32 100.00 25.00

Sudeste 56.06 79.16 36.96 65.38

Sudoeste 55.60 43.30 41.67 40.00

Sul Central 76.62 65.34 62.16 60.47

Triângulo 84.20 52.48 66.67 40.00

Vale do Alto-Médio Rio São Francisco

36.35 45.85 25.00 50.00

Vale do Médio-Baixo Rio das Velhas

38.54 50.76 37.50 60.00

Médias Ponderadas 60.18 61.19 45.88 58.03

Fontes: Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. Arquivo Público Mineiro, Censo de 1831-32, SPPP1/10 e MP, diversas caixas. Recenseamento da população do Império de 1872. Observações: Só foram incluídas 17 regiões, posto não haver núcleos populacionais para o Extremo Noroeste.

Como a tabela demonstra, a representatividade foi bastante signifi -cativa para o conjunto da província e, se calculada quanto à população, praticamente não mudou de 1831-32 para 1872. Acredita-se que apro-ximadamente 60% de cobertura para uma fonte histórica produzida há mais de um século e meio é valor bastante satisfatório. Considerando cada região em particular, a proporção de códices remanescentes varia sensivelmente. Excetuadas as regiões do Sertão e do Sertão do Rio Doce, com representatividades extremas, elas variam entre 35 e 79%, concen-trando-se em torno da média de 61% para 1872. Para 1831-32, a repre-sentatividade regional medida quanto à população é mais variável, fl utuando entre 36 a 84%, sem se concentrar tanto em torno da média de 60%. De todo modo, a maioria das regiões, para ambos os períodos,

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apresenta boa cobertura dos RPTs, sem descurar de atenção adicional no caso do estudo de determinadas regiões.

Gráfi co 1 –Representatividade dos RPTs de acordo com a população (eixo esquerdo) e o número de núcleos populacionais para 1831-32 e 1872 (eixo direito)

Fonte: Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. Arquivo Público Mineiro, Cen-so de 1831-32, SPPP1/10 e MP, diversas caixas. Recenseamento da população do Império de 1872.

Os resultados encontrados para a representatividade, calculada quan-to à população, são similares àqueles quando a base de referência é o número de paróquias, conquanto sejam notáveis algumas diferenças entre os períodos. Para 1872, a representatividade é, em geral, ligeira-mente menor para a quantidade de paróquias, e, como se pode ver no Gráfi co 1, não há uma tendência clara de as regiões terem maior ou menor representatividade de acordo com um dos dois critérios, isto é, para seis regiões a representatividade é maior em termos de paróquias e para onze é maior em termos de população, sendo pequenas, em ge-ral, as diferenças. Já para 1831-32, a representatividade cai considera-velmente, se avaliada quanto aos distritos. Pelo Gráfi co 1 pode-se ver que ela é regularmente menor nessa medida, pois, como os dados de

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seleção” das unidades espaciais de análise com RPTs, dado que as paró-quias, em geral, podem ser mais populosas dos que os distritos.

Como último movimento, busca-se agora demonstrar, ainda que de forma preliminar e geral, e adicionalmente à avaliação de representati-vidade acima apresentada, que os RPTs guardam grande potencial como documentação primária indispensável à pesquisa histórica em torno de múltiplos temas. Também se procede à análise de algumas questões re-lativas à propriedade da terra em Minas Gerais no século XIX, notada-mente certas determinantes do acesso à propriedade e da estrutura fundiária. Dessa forma, pretende-se revelar alguns traços gerais que marcavam a sociabilidade em torno da terra em meados do século XIX. Como descrito na seção de metodologia, a análise será realizada por meio do estudo de regressões.

Apresenta-se, primeiramente, as duas “regressões gerais”, nas quais se podem observar algumas das principais questões de interesse. As equações dos modelos são:

(1) lreg = ß0 + ß1lpop30 + ß2lpop72 + ß3rmt + ß4retm + ß5ddr55 + ß6pfce + ß7gini

(2) lreg = ß0 + ß1lpop30 + ß2lpop72 + ß3rmt + ß4retm + ß5pfce + ß6gini + ß7id2 + ß8id3

onde:

lreg: logaritmo do número de registros da paróquia;

lpop30: logaritmo da população total da paróquia em 1831-32; lpop72: logaritmo da população total da paróquia em 1872; rmt: razão de sexo da paróquia em 1872;

retm: proporção de escravos estimada para a população na década de 185019;

19 Esta variável é a média simples da proporção de escravos de cada paróquia, em

1872 e em 1831-32, para os 159 casos nos quais estavam disponíveis dados para ambos os períodos. Para 13 observações foi usada a média simples da proporção de escravos da paróquia em 1872 e da proporção regional de escravos para 1831-32, quando indisponíveis os microdados para esta data. Optou-se por não utilizar a proporção de escravos para 1831-32 e para 1872 por duas razões. Em primeiro lugar, considerou-se mais apropriado buscar estimar a proporção de escravos vigente na época da coleta dos registros, por relacionar-se mais diretamente com a quantidade de terras registradas em cada paróquia. Em segundo lugar, uma vez indisponível a proporção de escravos para 13 distritos, em 1831-32, utilizar

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ddr55: densidade demográfi ca regional estimada para 1855; pfce: proporção regional de fogos com escravos em 1831-32;

gini: Índice de Gini aproximado da concentração regional dos plantéis de es-cravos em 1831-32;

id2: nível de desenvolvimento econômico regional médio; id3: nível de desenvolvimento econômico regional alto.

Tabela 4 – Regressão do número de RPT pela população em 1831-32 e em 1872, carac-terísticas da estrutura da posse de escravos e densidade demográfi ca (var. dep.: logaritmo do número de RPT)

MODELOGERAL MODELOCOMÍNDICEDEDINAMISMO

b p b p

lpop30 .2207368** 0.0216298 .218361** 0.0269881

lpop72 .6333286*** 4.18E-09 .6491637*** 5.77E-09

rmt -1.364828** 0.020632 -1.493262** 0.0163666 retm -1.51033** 0.0265579 -1.443205** 0.0413516 ddr55 -.0803055*** 0.0001302 pfce 2.375132** 0.0345822 2.265757* 0.0594578 gini -5.150354 0.2367629 -8.052365* 0.0706043 id2 -.3398574* 0.0610186 id3 -.541089*** 0.005655 _cons 4.191971 0.2562627 6.60679* 0.0801513 R2 0.456 0.433 R2 ajustado 0.432 0.405 N 172 172

Fonte: Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. Arquivo Público Mineiro, Censo de 1831-32, SPPP1/10 e MP, diversas caixas. Recenseamento da população do Império de 1872. Observações:as paróquias de nível baixo de desenvolvimento econômico são a referência para as variáveis de desenvolvimento regional. O asterisco ao lado dos coefi cientes indica a signifi cância das variáveis, correspondendo um asterisco a signifi cância a 10% dois a 5% e três a 1%. O p-valor indica o grau de signifi cância da variável em questão, i.e., a probabilidade de não haver relação estatística observável entre a variável dependente e a independente.

Essa primeira regressão (modelo geral) é reveladora de diversos as-pectos da sociabilidade agrária. Dado o fato de que a estimação é log-log,

a variável para esta década implicaria em substancial redução do universo, re-duzindo a amplitude do estudo.

Referências

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