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Primo Levi não perdoa os nazistas

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Academic year: 2021

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Primo Levi não perdoa os nazistas, por Aislan Camargo Maciera

Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363 ​AISLAN CAMARGO MACIERANAZISMOPRIMO LEVI em ​agosto 25, 2020

Em suas obras, declarações e entrevistas, o autor italiano afirmou que jamais perdoou os nazistas. Neste artigo, a tradução de duas declarações do autor, ainda inéditas no Brasil.

Survivor - Larry Rivers (1987)

Desde a volta para casa, em outubro de 1945, cerca de nove meses após ser libertado pelo Exército Vermelho de um dos campos do complexo de Auschwitz-Birkenau, Primo Levi assumiu o papel de testemunha. Diferentemente de outros ex deportados e prisioneiros dos campos de concentração e extermínio que preferiram o silêncio, o jovem químico de Turim escolheu outro caminho. Fez do testemunho e da reflexão sobre a experiência vivida um dos objetivos centrais de sua vida, transformando-se em um dos maiores nome da literatura do século XX.

A literatura de Primo Levi, desde o princípio, edificou-se sobre a necessidade de narrar e a necessidade de ser ouvido: “Mas era tanta a necessidade de transmitir a experiência que eu estava vivendo, de dividi-la com outros, de contá-la, enfim, que comecei a fazer isso já lá” [1]. Levi destacou, em muitas de suas entrevistas e em alguns de seus escritos que, ainda no campo, dois sonhos faziam parte da

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realidade dos prisioneiros. Um deles era com uma comida “gorda, suculenta, cheirosa”; o outro, era o de contar, geralmente a uma pessoa próxima, aquilo que viviam e que estavam presenciando. Em ambos os casos, as ações não se completavam: nos sonhos, não conseguiam nem se alimentar, nem serem ouvidos.

Levi aproxima a necessidade de contar à necessidade de comer, expondo que a “simbologia dos dois sonhos era muito simples”, isto é, “o querer comer e o querer contar estavam no mesmo plano de necessidade básica”[2]. Ele conseguiu contar. Apesar de uma primeira recepção que apresentou diversos obstáculos, em 1947 a editora De Silva publicava a primeira obra do autor, ​É isto um homem?​. O livro havia sido recusado por outras editoras, entre elas a Einaudi, que iria republicá-lo somente em 1958 [3]. Evidentemente que a publicação por uma grande e renomada editora como a Einaudi fez com que mais pessoas conhecessem a experiência, o testemunho e as reflexões do autor. Levi foi, definitivamente, ouvido e, a partir daí, ao longo dos anos, foi conseguindo suprir aquelas necessidades que deram origem à sua literatura.

Praticamente até meados da década de 70, a imagem de Primo Levi no ambiente cultural e intelectual italiano era a de um químico, ex ​partigiano e ex deportado, sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz, que escrevia o seu testemunho e as suas reflexões, presentes em seu primeiro livro e na obra seguinte, ​A trégua​, publicado em 1963. Mesmo após escrever dois volumes de contos fantásticos e de ficção científica – ​Histórias naturais​(1966) e ​Vício de forma (1971) – a imagem que prevalecia diante do público ainda não era a de um escritor de ofício. Contribuía para isso as próprias declarações do autor. Em entrevista concedida ao periódico ​Il Giorno​, publicada em 7 de agosto de 1963, perguntado sobre como se sentia, “um químico que escrevia, ou um escritor que era químico”, ele responde: “Ah, um químico, que fique bem claro, não me entenda mal. Os dois livros que escrevi, escrevi por acaso”[4].

Nas entrevistas que concede durante a década de 60 e o início da década de 70, faz questão de ressaltar sua identidade “​centauresca​”. A dualidade evocada pela figura mitológica é a metáfora perfeita para as suas duas metades que ele assume: químico e escritor. Mas é importante ressaltar que, naquele momento, Levi já era reconhecido como uma relevante testemunha da ​Shoá​, e seus dois primeiros livros já tinham atingido sucesso de público e chamado a atenção da crítica. Em 1965, por exemplo, é lançada a edição escolar de ​A trégua​, que passava a fazer parte do ambiente educacional italiano. O mesmo aconteceria com ​É isto um homem?​, em 1973. O contato com os jovens estudantes, a partir daí, ia muito além das palestras e conversas das quais participava nas várias escolas de Turim. Os seus escritos passavam a ser leitura obrigatória para aquele público que tanto o autor desejava atingir[5].

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A aposentaria de Levi da indústria química na qual trabalhava ocorre somente em 1975. O autor passa a se dedicar, então, exclusivamente ao ofício de escritor, no mesmo ano em que publica o livro que, até hoje, é considerado por muitos críticos e leitores aquele que mais representa a união entre as chamadas “duas culturas”, entre as duas metades do centauro: ​A tabela periódica​, tida como a melhor obra de divulgação científica do século XX pela Royal Institution, renomada organização britânica que se dedica à educação, investigação e difusão científicas.

A obra, que seria responsável na década de 80 pelo sucesso internacional de Primo Levi – a partir da

recepção nos Estados Unidos – marca também a inserção definitiva do autor no rol dos grandes escritores italianos da segunda metade do século passado. Sua presença nos veículos de imprensa passa a ser muito mais frequente, seja como articulista, seja como entrevistado. Levi assume definitivamente o último papel que lhe coube em vida, o do intelectual engajado, que se colocava ao lado de todos os outros que constituíam a sua identidade. Aumenta significativamente a difusão de suas opiniões e reflexões sobre assuntos ligados não somente à literatura e à Segunda Guerra, mas também à cultura geral, sociedade e política.

É exatamente nesse contexto que, em 1979, um fato curioso ocorre. Na ​Gazzetta del Popolo​, jornal de Turim que circulou até 1983, é publicada a carta de uma leitora. A leitora em questão era uma mãe, cujo filho estava matriculado e frequentava o liceu científico. O filho deveria produzir uma resenha crítica sobre o primeiro livro de Levi, ​É isto um homem?​, e a mãe aconselha o estudante a telefonar para o autor do livro, procurando o número no catálogo telefônico da cidade. O rapaz não acata a sugestão da mãe que, então, escreve para a seção de cartas dos leitores do jornal, solicitando o auxílio do autor. A pergunta foi vista por Levi, que a respondeu por escrito, demonstrando a costumeira disponibilidade que sempre teve com os jovens.

A tradução apresentada abaixo, inédita para os leitores brasileiros, está disponível em sua versão original no terceiro volume das obras completas de Primo Levi, organizado pelo crítico Marco Belpoliti, e publicado na Itália em 2018[6]:

“Eu não perdoo os nazistas”, ​de Michele Florio, 21 de janeiro de 1979.

“Senhor jornalista –, diz Maria Vinciguerra, – meu filho Massimiliano, que frequenta a primeira série do liceu científico, deve resenhar ​É isto um homem?​. Sugeri, depois da leitura desse terrificante testemunho, que telefonasse diretamente a Primo Levi, mas nem ele e nem eu tivemos

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coragem. Queremos saber do escritor o que ele sente, mesmo após tantos anos de distância, quando de repente ouve falar – em torno de si – a dura língua alemã. Conseguiu perdoar? Sei que é um assunto tremendamente difícil, tenho até vergonha de fazer uma pergunta tão dolorosa. O senhor pode me ajudar?

PS: Parabéns pelo seu último livro, ​A chave estrela​”.

Responde Primo Levi: “Não, ouvindo falar alemão não sinto nem repulsa, nem angústia: aconteceu comigo, logo depois da Liberação, mas me esforcei para sufocar em mim esses sentimentos, e consegui. Sei que outros ex deportados sentem isso; os compreendo, mas não os aprovo. A meu ver, são ‘reflexos condicionados’: acredito que seja injusto enxergar o alemão somente como a língua do nazismo. Era também a língua de Goethe e de Heine, e (por que não?) de Freud, Marx, Kafka e Einstein. Eu a aprendi no ​Lager​: E daí? Porque deveria esquecê-la, privando-me assim de uma riqueza duramente adquirida, e de um instrumento de cultura e conhecimento?

A questão do perdão é difícil. Não perdoei nenhum dos verdadeiros culpados, nem estou disposto agora, ou no futuro, a perdoar alguém, a menos que tenha demonstrado (com fatos: não com palavras, e não tarde demais) de ter tomado consciência das culpas e dos erros do fascismo, nosso e estrangeiro, de tê-los repudiado, ao invés de negá-los, exatamente como muitos fazem atualmente. Neste caso, sim, eu, não cristão, estou disposto a seguir o preceito judeu e cristão de perdoar o meu inimigo: mas um inimigo que se arrepende deixou de ser um inimigo”.

A questão do perdão foi, muitas vezes, suscitada pelos interlocutores de Levi, mas o autor jamais foi condescendente com os horrores praticados pelos nazistas. Em entrevista ao jornalista, crítico e escritor Giorgio Calcagno, publicada no suplemento literário “Tuttolibri” do jornal ​La Stampa​, em 26 de julho de 1986, Levi afirma que “entender não é perdoar”[7]:

Perdoar não é um verbo meu. É imposto a mim, porque todas as cartas que recebo, especialmente de leitores jovens e, sobretudo, católicos, trazem esse tema. Perguntam-me se perdoei. Eu acredito que sou, a meu modo, um homem justo. Posso perdoar um homem e não

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outro; sinto-me capaz de julgar apenas caso a caso. Se tivesse diante de mim Eichman, o teria condenado à morte. (...) Eu não sou um crente, para mim não há um sentido preciso o “te absolvo”. Acredito que ninguém, nem mesmo um sacerdote, tenha o poder de condenar ou absolver. Quem comete um crime deve pagá-lo, a não ser que se arrependa. Mas não com palavras. Não me contento com o arrependimento verbal. Sou disposto a absolver quem tenha demonstrado através de fatos que não é mais o homem de antes. E não muito tarde.

A ideia de perdão apresentada na resposta à mãe do estudante em 1979, repete-se na entrevista de 1986. É o claro exemplo de como as palavras de Primo Levi têm força, representam o seu estilo conciso, baseado na clareza, e trazem exatidão. Sua linguagem é clara, a fim de satisfazer as necessidades básicas de sua literatura: a de contar e a de ser ouvido. As palavras do autor cristalizam-se, e expõem, de forma convicta seu posicionamento diante da desumanização e da ofensa sofrida como prisioneiro dos nazistas.

Em seu último livro, ​Os afogados e os sobreviventes​, no capítulo intitulado “Intelectual em

Auschwitz”, Levi fala do filósofo Jean Améry, pseudônimo de Hans Mayer, também ex deportado, sobrevivente, seu companheiro de barraca no ​Lager de Auschwitz. No trecho, ele pondera e reflete sobre o período como prisioneiro dos nazistas – assim como faz em todo o livro – dando destaque ao debate em relação às ideias de Améry. Apesar de não terem mais se visto após a liberação, trocaram algumas cartas, e o filósofo, em correspondência a uma amiga em comum, definiu Levi como “o perdoador”. A esse respeito, o autor italiano escreve[8]:

(...) não considero nem uma ofensa nem um elogio, mas uma imprecisão. Não tenho a tendência a perdoar, jamais perdoei a nenhum de nossos inimigos de então nem tenho vontade de perdoar a seus imitadores na Argélia, no Vietnã, na União Soviética, no Chile, na Argentina, no Camboja, na África do Sul, porque não conheço atos humanos que possam cancelar um crime; exijo justiça, mas não sou capaz, pessoalmente, de brigar nem de dar o troco.

A sua personalidade pacata, a lucidez ao falar de sua experiência e a forma destacada através da qual a expõe talvez tenham trazido à tona a falsa impressão do perdão ou da resignação. Não dão a ideia de uma condenação inapelável. Mas, categoricamente, o autor afirma a impossibilidade de perdoar. E, mais

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do que isso, expõe a dureza da condenação, sobretudo quando se refere àqueles que foram coniventes com o fascismo na Itália e com o nazismo na Alemanha. Levi, definitivamente, não é um “perdoador”, mas um autor que, através de uma linguagem comedida e destacada, condena os crimes cometidos não só durante a Segunda Guerra, mas que continuaram a ser cometidos posteriormente, em diferentes contextos. A voz condenatória de Levi ressoa sempre que, nessas diferentes realidades culturais, sociais e políticas, os horrores do nazifascismo parecem querer despertar.

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Como citar: MACIERA, Aislan Camargo. "Primo Levi não perdoa os nazistas". In "Literatura Italiana Traduzida", v.1., n.8, ago. 2020.

Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/212023

[1]​ LEVI, Primo. ​A assimetria e a vida​. Trad. Ivone Benedetti. São Paulo: Unesp, 2016, p. 169. [2]​ LEVI, Primo. ​Op. cit​, 2016, p. 170.

[3]​ A respeito das recusas enfrentadas pelo autor antes da publicação de seu primeiro livro, indico dois artigos, ambos de minha autoria: “O primeiro testemunho de Primo Levi”, publicado nesta mesma revista (disponível em

https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/10/o-primeiro-testemunho-de-primo-levi.html​ e

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209919); e “A gênese do livro primogênito de Primo Levi”, publicado na Revista de Letras da Unesp, disponível em https://periodicos.fclar.unesp.br/letras/article/view/13438.

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[4]​ LEVI, Primo. ​Opere complete​. Vol. III. Conversazioni, interviste, dichiarazioni. Torino: Einaudi, 2018, p. 10, tradução minha.

[5]​ Em 1976, Levi adiciona à edição escolar de ​É isto um homem?​ um apêndice com as perguntas mais frequentes feitas a ele pelos jovens estudantes com os quais se encontrava, e suas respectivas respostas. A tradução de um trecho desse apêndice, não disponível na edição brasileira da obra e ainda inédito em português, foi feita por Helena Bressan Carminati, e pode ser consultada nesta mesma revista: ​https://literatura-italiana.blogspot.com/2020/05/traducao-de-trechos-do-apendice-e-isto.html​ e

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209820​. [6]​ LEVI, Primo. ​Op. cit.​, 2018, p. 1115, tradução minha. [7]​ LEVI, Primo. ​Op. cit​., 2018, p. 613, tradução minha.

Referências

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