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Pois é, Fica o dito e o redito por não dito E é difícil dizer que foi bonito É inútil cantar o que perdi.

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Academic year: 2021

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Depois do famoso concerto da bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, Tom e João deixam o Brasil para começar uma longa e difícil carreira nos Estados Unidos. Sem os dois principais nomes do movimento, a bossa nova dura pouco tempo nas mãos da segunda geração – Carlos Lyra, Nara Leão, Roberto Menescal, entre outros. Com as mudanças políticas e sociais, a canção de protesto assumiu o lugar preferencial entre os jovens universitários. As mudanças ocorrem numa velocidade aterradora e menos de cinco anos depois se configuraria um cenário musical baseado nos festivais de canção, nos quais sobraria pouquíssimo espaço para a serenidade bossanovística. Nesse período, houve uma grande mudança no consumo e difusão da música popular no Brasil, onde a televisão ocupa o lugar que antes era do rádio.

Enquanto as coisas ferviam por aqui, lá fora Tom e João lutavam para consolidar suas carreiras, gravando discos com importantes figuras da música americana como Frank Sinatra e Stan Getz. Com o passar do tempo, João Gilberto iria se afastar dos acompanhamentos e ficaria cada vez mais só. Cada vez mais seus discos dispensariam outros instrumentos além de sua voz e violão. O músico baiano manteria a mesma conduta estética, em sua eterna busca pela essência pura, pelo mínimo do mínimo, pela “canção absoluta”. A radicalidade do seu gesto desemboca numa tendência, percebida em seus últimos shows, a fazer a voz desaparecer, deixando apenas a intenção. É o que nota Luiz Tatit:

“Algumas sílabas já são inaudíveis nos shows e, como ele mantém o mesmo comportamento vocal nas gravações, não duvido que ele tenha um projeto de extinguir o som do canto e atingir, assim, a canção absoluta, aquela que nem precisa soar. Digo isso sem qualquer ironia, pois, em se tratando dele, acredito piamente nessa proposta” (Tatit, 2007, p.433).

Por outro lado, Jobim liquidaria sua fase bossa nova retomando o uso de melodias mais expandidas no campo da tessitura, com amplas curvas, que marcaram o início de sua carreira. Com isso, Jobim também retoma as inflexões passionais em canções que se distanciavam da positividade bossanovista (Tema de

Amor Para Gabriela, Luiza, Falando de Amor). É curioso notar que é no fim dos

anos 1960, quando finalmente retorna ao Brasil, que Tom começa a compor com

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um novo parceiro: Chico Buarque. Nesse momento, o Brasil reencontrado por Tom, com suas enormes tensões políticas e sociais, é um país bem diferente daquele que ensejara a bossa nova. Ao ideal de uma modernidade leve, contrapôs-se a realidade de uma modernidade autoritária e do enfraquecimento paulatino dos laços sociais. As músicas que marcam sua produção dessa época são talvez as mais tristes de sua carreira: Sabiá, Retrato em Branco e Preto e Pois é. Também as letras de Chico se distanciam da afetividade pura e algo ingênua da bossa nova.

Pois é é uma canção de amor desfeito, narrada por um amante inconformado,

cheio de ressentimento, atravessado pelo pungente sentimento de perda:

Pois é,

Fica o dito e o redito por não dito E é difícil dizer que foi bonito É inútil cantar o que perdi. Taí

Nosso mais-que-perfeito está desfeito E o que me parecia tão direito

Caiu desse jeito sem perdão...

“Chico Buarque introduz no cancioneiro de Tom Jobim o gosto pela frase cortante, pela palavra dita entre os dentes. A adjetivação de Vinicius é generosa, barroca; Chico quase não usa adjetivo. Aos sentimentos freqüentados pela bossa nova, acrescenta algo que a bossa nova não expressara até então: o ressentimento, a raiva, a angústia” (Mammì, 2004, p.20).

É também nesse momento que Tom retoma o contato com a obra de Villa-Lobos e inicia sua fase mateira, que tem no LP Matita Perê, gravado em 1971, um de seus grandes marcos. Ao contrário de João Gilberto, Tom torna-se mais orquestral e em alguns discos dessa fase – Ston Flower, Wave – suas composições instrumentais superam em quantidade suas canções. A fase mateira também marca uma nova abordagem da natureza na obra de Tom e uma idéia cada vez mais nativista do Brasil. O compositor se distancia das paisagens à beira-mar (que aparecem com mais parcimônia), deslocando-se para o interior, sob influência da leitura da obra de Guimarães Rosa e Mário Palmério. Doravante, a natureza que habita suas canções não é mais um silencioso cenário emoldurando emoções

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humanas, mas a protagonista principal da trama. Muitas vezes ela tem voz ativa, figurada através de reproduções de cantos de aves nos arranjos, e até mesmo de versos que trazem um tom fabuloso para sua música, aproximando-a de narrativas folclóricas – um folclore novo que se utiliza de avançados recursos poéticos e musicais pós-bossa nova – como é possível perceber na música Boto (Porpoise):

Na praia de dentro tem areia Na praia de fora tem o mar Um boto casado com sereia Navega no rio pelo mar

O corpo de um bicho deu na praia E a alma perdida quer voltar Caranguejo conversa com arraia Marcando a viagem pelo ar

Longe dos cenários urbanos, contrariando um pouco a pujança que encontra na obra de Villa-Lobos, a natureza jobiniana revela-se mais delicada, frágil, como algo que claudica sob a ameaça da morte. A interação com o homem, quando acontece, é quase sempre conflitiva – a natureza torna-se vítima, como na canção Passarim:

Passarim quis pousar Não deu, voou

Porque o tiro feriu Mas não matou

Na bossa nova tudo se harmoniza: não há espaço para poluição, miséria ou morte. Da modernidade aproveita-se o que ela tem de melhor – e também da natureza, que é amiga do homem, aliada serena do progresso. No tropicalismo de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé, essas mesmas dicotomias serão retomadas de forma tensa. Numa espécie de negativo da bossa nova, a modernidade brasileira irá mostrar suas feridas e contradições.

O verdadeiro Passarim ferido de morte parece ser aquele Brasil sonhado

pela música de Tom e João no fim dos anos 1950. O tom conciliatório da bossa

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nova cede espaço à violência do embate entre progresso e meio ambiente – homem e natureza estão novamente separados. Aos poucos, as contradições provisoriamente harmonizadas voltam a ganhar expressão na música brasileira. Elas serão mais tarde incorporadas na obra de Tom Jobim, minando os alicerces apolíneos de sua fase bossanovista, fazendo aflorar na superfície de sua música os sonidos místicos de Dioniso.

Talvez uma das suas músicas que melhor tenha conseguido reconciliar tudo isso, no período que sucedeu a bossa nova, tenha sido Águas de Março. Nela, o Jobim desencantado de Sabiá, retoma o fôlego e a alegria para equilibrar todos os opostos no mesmo cais afirmativo da canção:

É pau, é pedra, é o fim do caminho É um resto de toco, é um pouco sozinho É um caco de vidro, é a vida, é o sol É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol

Em Águas de Março Jobim torna-se trágico na melhor acepção nietzscheana do termo. O compositor abole as dicotomias, dissipa as contradições e afirma integralmente a vida. Pau, pedra, noite, morte, vida, sol, caco de vidro, fim do caminho, garrafa de cana, estilhaço na estrada, projeto da casa e corpo na cama convergem para as “águas de março fechando o verão”, que apontam para a “promessa de vida no teu coração”. A vida é celebrada em seu eterno prazer de construir e destruir. São os ensinamentos de Dioniso sendo transmitidos na linguagem plástica e equilibrada de Apolo. Penso que as grandes realizações da bossa nova, aquelas que têm vigor e resistem à prova do tempo, também trazem no fundo essa marca dionisíaca, essa aceitação alegre e irrestrita da vida, capaz de justificar o pior dos mundos – Corcovado, Fotografia, Garota de Ipanema, Chega

de Saudade...

Em palestra proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1993, Caetano Veloso fez o seguinte comentário a respeito da música da bossa nova:

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“Espero (...) poder convencer os aqui presentes de que, do ponto de vista dos que fizeram o tropicalismo, a bossa nova de João Gilberto e Antônio Carlos Jobim significava violência, revolução e também olhar em profundidade e largueza, sentir com intensidade e coragem, querer com decisão. E tudo isso implica enfrentar os horrores da nossa condição: ninguém compõe Chega de Saudade, ninguém chega àquela batida de violão sem conhecer não apenas os esplendores, mas também as misérias da alma humana” (Veloso, 2005, p.47).

Uma frase de Nietzsche, escrita antes da publicação de O Nascimento da Tragédia e citada por Roberto Machado parece sintetizar o comentário de Caetano, ao mesmo tempo em que revela o dionisíaco por traz da imagem apolínea da bossa nova: “Não há bela superfície sem uma profundidade aterradora” (Machado, 2006, p.209).

Referências

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