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QUE(M) ME FEZ LEITOR? MEMÓRIAS PARA PENSAR O LETRAMENTO LITERÁRIO OLIVEIRA, E. R. (UFSC-Florianópolis). 1. Introdução

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QUE(M) ME FEZ LEITOR?

MEMÓRIAS PARA PENSAR O LETRAMENTO LITERÁRIO

OLIVEIRA, E. R. (UFSC-Florianópolis).

1. Introdução

Há um conhecido conto de Clarice Lispector, chamado Felicidade Clandestina que fala sobre o amor e desejo pelo objeto de leitura: o livro. Nele, uma menina deseja muito “As reinações de Narizinho” de Monteiro Lobato. Por não ter condições de ter o livro, ela o pede emprestado para uma amiga, cujo pai era dono de livraria. A colega percebendo a ansiedade da menina e por crueldade, criava obstáculos para este empréstimo. Um dia, a mãe da dona do objeto de desejo flagra o comportamento maldoso da filha e por conta própria entrega o livro à menina, que em êxtase caminhou a passos lentos para casa com ele apertado contra o peito:

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardava o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as minhas falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. (LISPECTOR, 1998, p.37)

Todo leitor literário já viveu essa experiência de felicidade clandestina. Aquele momento de admiração, curiosidade, prazer pelo que se lê, vontade de que a leitura não se acabe logo. Pensando a educação e o letramento, surgiu a reflexão sobre essa relação entre leitor e livro, além, é claro, do conhecido desafio e preocupação dos educadores do mundo moderno: incentivar o gosto pela leitura. Em virtude dos avanços tecnológicos e da epistemologia social do século XXI, algumas preocupações no tocante ao letramento literário foram lançadas em forma de questionamentos: Por que muitos alunos não gostam de ler? Como motivá-los a sentir esta “felicidade-admiração-curiosidade” pelo texto literário? Como formá-los leitores literários?

Ao pensar em possíveis respostas, acionei um botão da memória, assim como Proust (1948), no livro Em busca do tempo perdido, que mergulha um pedaço de bolo no chá e, ao

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fazê-lo, reaviva todo seu universo de memórias da infância, como se estivesse voltando a tal lugar do passado. Então outros questionamentos foram lançados: Afinal, como foi que esse processo ocorreu comigo? Como me tornei leitor literário? Quem ou o que me incentivou a gostar de ler? Mais tarde, amadurecendo essa ideia, essas perguntas foram feitas a outros 28 professores de Língua Portuguesa em um curso de formação continuada, realizado na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), em novembro de 2011. A partir deste material (28 relatos de memória) é que discutiu-se aqui sobre o letramento literário, na pretensão de sugerir caminhos significativos para as práticas em sala de aula e reflexões sobre o tema. O objetivo é que a análise dessas memórias, juntamente com a discussão de textos teóricos, ajude a perceber como o processo de incentivo à leitura se dá na formação dos sujeitos.

2. Letramento literário na escola

O conceito de letramento é uma proposta relativamente recente no Brasil. Em meados dos anos 80 este termo foi adotado para se discutir algo que iria além da alfabetização. Como define Magda Soares (1999), letramento supera a simples decodificação de letras. Enquanto a alfabetização trata-se de um processo de desmonte de estruturas linguísticas, o letramento explora também o significado desse código e sua relevância dentro de uma determinada estrutura social.

Tal conceito também pode e deve ser pensado em relação a outras áreas. No contexto da literatura, por exemplo, Paulino (2004) fala sobre o letramento literário:

A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor tem de saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o pacto ficcional proposto, com reconhecimento de marcas linguísticas de subjetividade, intertextualidade, interdiscursividade, recuperando a criação de linguagem realizada, em aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos e situando adequadamente o texto em seu momento histórico de produção. (PAULINO, 2004, p.56)

O letramento literário não diz respeito apenas ao contexto escolar, embora ele passe por esse espaço. Todavia, se, para Platão, a arte poética deveria ser banida da cidade por ser subversiva, isto é, por apresentar uma potência encantatória, “o perigo que hoje ronda a literatura é o oposto: o de não ter poder algum, o de não mais participar da formação cultural do indivíduo, do cidadão” (MEIRA apud TODOROV, 2009, p. 8). Em grande parte dos casos:

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O contato maior que qualquer aluno do ensino médio tem com o texto literário de fato se dá seja nas abonações e exemplos que auxiliam na compreensão das regras e formações da língua portuguesa, seja nas próprias aulas de literatura, que se resumem principalmente ao ensino da história e dos gêneros literários. (MEIRA apud TODOROV, 2009, p. 9).

O perigo, portanto, não está, como continua Meira, no esgotamento da produção ou da criação poética, mas na forma como a literatura tem sido oferecida aos jovens desde a escola primária até a faculdade, ou seja: “o perigo está no fato de que, por uma estranha inversão, o estudante não entra em contato com a literatura mediante a leitura dos textos literários propriamente ditos, mas com alguma forma de crítica, de teoria ou de história literária” (Meira apud TODOROV, 2009, p. 10). Se, estamos falando em gosto pela leitura, é importante pensar que ele só será desenvolvido a partir do contato direto com o texto literário:

O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um. O caminho tomado atualmente pelo ensino literário, que dá as costas a esse horizonte („nesta semana estudamos metonímia, semana que vem passaremos à personificação‟), arrisca-se a nos conduzir a um impasse – sem falar que dificilmente poderá ter como consequência o amor pela literatura (TODOROV, 2009, p. 33).

O que se reivindica, portanto, “[...] é que o texto literário volte a ocupar o centro e não a periferia do processo educacional (e, por conseguinte, da nossa formação como cidadãos), em especial nos cursos de literatura” (Meira apud TODOROV, 2009, p. 11). Este é apenas um dos motivos pelos quais a literatura tem estado mais afastada da realidade do aluno. Pois, mais do que pensar sobre a aproximação entre o aluno e o texto literário, está ainda a preocupação com o possível envolvimento entre esse aluno e o texto que lê. Para Regina Zilberman:

Um bom livro é aquele que agrada, não importando se foi escrito para crianças ou adultos, homens ou mulheres, brasileiros ou estrangeiros. E ao livro que agrada se costuma voltar, lendo-o de novo, no todo ou em parte, retornando de preferência àqueles trechos que provocaram prazer particular. Com a literatura para crianças não é diferente: livros lidos na infância permanecem na memória do adolescente e do adulto, responsáveis que foram por bons momentos aos quais as pessoas não cansam de regressar (ZILBERMAN, 2004, p. 9).

Mesmo garantindo essa aproximação do texto literário à realidade do aluno, não há como garantir que a experiência de leitura seja prazerosa ou que todos considerem um texto dado em aula, como sendo um bom texto. Sabendo dessa impossibilidade, é importante, ao menos, criar oportunidades, aumentar o repertório de leitura desses alunos, para que eles possam fazer suas próprias escolhas e desenvolvam suas próprias preferências. Dessa forma, a aula de Língua Portuguesa, Literatura, ou até mesmo a conversa entre aluno e professor no

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corredor da escola podem propiciar oportunidades de experiências literárias positivas que ajudem na formação desse sujeito.

Como apontou Zilberman (2004), a leitura na infância tem forte influência na memória do adulto. Em concordância com tal ideia, propôs-se a análise das memórias de alguns professores a fim de perceber o quanto suas experiências foram positivas e que pessoas ou quais fatores influenciaram essa formação. Nos relatos de memória, foi pedido para que os professores contassem se existiu alguém em especial que havia lhes incentivado a ler ou até mesmo lhes inspirado de alguma forma nesse processo de fruição. Em seguida, foram questionados sobre como essa pessoa havia realizado esse incentivo.

3. Memórias do passado: caminhos para um futuro

Entendido o contexto do letramento literário e o breve diagnóstico do (não) lugar do texto literário em sala de aula, buscou-se olhar para os relatos de memória produzidos pelos professores de Língua Portuguesa deste recorte. O objetivo foi o de perceber pistas na formação deles no passado, que pudessem auxiliar na reflexão sobre a formação de leitores no presente e no futuro.

Sobre o uso da memória como fonte de qualquer estudo, Todorov (apud RICCEUR, 2007, p.99) diz:

Como todo trabalho sobre o passado, o trabalho do historiador jamais consiste apenas em estabelecer os fatos, mas também em escolher alguns deles como sendo mais destacados e mais significativos que outros para, em seguida, relacioná-los entre si; ora, esse trabalho de seleção e de combinação é necessariamente orientado pela busca, não pela verdade, mas do bem.

Tomando emprestada a função do historiador, tentou-se aqui analisar alguns aspectos nas memórias dos professores para pensarmos a formação do leitor literário. Sabendo da interferência da figura do professor na vida escolar da criança, por exemplo, foi possível notar que entre os 29 relatos, menos da metade (10) mencionaram a lembrança de professores como influenciadores diretos no gosto pela leitura. A maioria deles (17) registrou a influência de familiares próximos, que lhes deram os primeiros livros ou lhes leram as primeiras histórias. Três (3) dos professores relataram não ter recebido nenhum tipo de incentivo para a leitura e outros três (3) disseram que só foram gostar de textos literários na graduação.

Estas respostas refletem o que vimos anteriormente sobre o letramento. Considerando que até os anos 80, a escola era um espaço específico para a alfabetização, é

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comum que a preocupação com a leitura e fruição não fosse prioridade para os professores da época. Sendo assim, é compreensível que nem todas as memórias de leitura desse corpus estejam ligadas diretamente ao ambiente escolar, o que ratifica essa ausência do texto literário na escola comentada anteriormente.

Quanto às obras que marcaram a formação dos professores, muitos lembraram os clássicos infantis. Dez (10) professores citaram as histórias dos clássicos universais como “Chapeuzinho Vermelho”, “O gato de botas”, entre outros. Quatro (4) professores citaram também as leituras de Monteiro Lobato. Dois (2) deles mencionaram a leitura de gibis em geral e outros quatro (4) registraram leituras marcantes que fizeram já na idade adulta, como “A moreninha” de Joaquim Manuel de Macedo, “Senhora” de José de Alencar, “O alquimista” de Paulo Coelho, entre outros. Apenas dois (2) professores comentaram que aprenderam a gostar de ler por que ouviam histórias em casa.

Considerando os relatos sobre as leituras que marcaram a infância e juventude dos professores, foi possível notar que nem todos tiveram uma formação, enquanto leitores literários, paralela à alfabetização, pois alguns só tiveram essa experiência de fruição já na idade adulta. Isso denota uma lacuna em aberto na formação desses profissionais em suas respectivas infâncias. É importante lembrar que o professor, por ser o mediador de leituras e formador de leitores deve ser também leitor especializado, por isso pensar sua formação desde a infância torna-se relevante para sugerir alternativas de práticas de ensino que ajudem esses professores a melhorarem suas técnicas de mediação.

Salvo os três professores que mencionaram não ter recebido nenhum tipo de incentivo, todos os outros 26 relatos citaram a figura de alguém que os inspirou no prazer pela leitura, apresentando de alguma forma aquela “felicidade clandestina” citada no início do texto. Ou seja, ao perguntarmos aos professores quem ou o que os formou como leitores, logo apareceram as lembranças de alguém inspirador, alguém que gostava de ler e sentia esse prazer.

Roland Barthes (2010) no livro O prazer do texto diz que só podemos nos apaixonar por um texto na medida em que ele foi escrito com paixão. Para ele, o afeto do escritor pelo seu próprio texto, cria no leitor esse mesmo sentimento. Se, pensarmos nas práticas de incentivo à leitura, e também baseados no que vimos nos relatos de memórias analisados aqui, poderíamos dizer, assim como Barthes fala da escrita, que só podemos formar um leitor apaixonado por textos literários na medida em que nós mesmos tenhamos em nós essa paixão pela leitura. Esta é uma das pistas exploradas neste trabalho.

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4. Resultados e Conclusões

Antes de apontar algumas considerações finais, cabe dizer, no tocante à metodologia, que esta foi uma pesquisa de caráter qualitativo e quantitativo. Além do referencial teórico, usamos como objeto de análise os 29 relatos de memória produzidos por professores de Língua Portuguesa de uma determinada rede de ensino no município de Criciúma.

No início deste texto, foram apontados alguns questionamentos: por que muitos alunos não gostam de ler? Como motivá-los a sentir esta “felicidade-admiração-curiosidade” pelo texto literário? Como formá-los leitores literários? Tais perguntas são pretensiosas e já vêm sendo discutidas em diversas pesquisas, o que não impede que se continue buscando por respostas ou alternativas que possam contribuir para questões como essas.

De acordo com a revisão teórica, a presença dos textos literários em sala de aula seria um primeiro passo para que letramento literário aconteça no ambiente escolar. Todavia, esta aproximação entre aluno e texto não garante o sentimento de prazer pela leitura. Tal motivação, como apontam os próprios relatos dos professores, tem mais a ver com experiências em que alguém promoveu esse interesse por meio do exemplo de leitura.

Ou seja, o verdadeiro mediador de leitura não é necessariamente o professor, mas sim aquele que contagia, muitas vezes sem intenção, por meio de seu próprio gosto de ler. Não se trata de ensinar alguém a apreciar o mesmo texto que se está lendo, mas mostrar ao outro o quanto a leitura pode fazer bem. Ao fim do estudo, continuamos sem receitas para formar leitores literários, porém pelo viés da memória, foi possível observar que essa formação pode ser dada por meio de duas medidas: o contato direto com o texto literário e o professor como figura de leitor exemplar, que gosta daquilo que está lendo e é capaz de promover experiências de contágio desse “amor clandestino” pela leitura.

Palavras-chave: Letramento Literário; Memória; Formação do Leitor.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2010.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006.

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RICCEUR, Paul. A memória, da história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2007.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. São Paulo: Autêntica 1999. TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. 2. ed. Rio de Janeiro DIFEL, 2009.

ZILBERMAN, Regina. Como e Por que Ler a Literatura Infantil Brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

PAULINO, Graça; PINHEIRO, Marta Passos. Ler e entender: entre a alfabetização e o letramento. Revista Estudos, v. 2, n. 2. Belo Horizonte: Uni-BH, 2004.

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