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Resenha de Solfieri 1 (Álvares de Azevedo)

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Academic year: 2021

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Resenha de “Solfieri”

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(Álvares de Azevedo)

Ana Paula A. Santos

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“Solfieri” é a primeira das histórias contadas, como terríveis lembranças do passado, pelos seis convivas de Noite na Taverna. Em comum, todas elas apresentam acontecimentos impactantes, que fogem aos limites do que se entende por “normalidade”. Como anunciado em “Uma noite no século” – abertura do livro –, a narrativa de Solfieri possui características oníricas: a oscilação entre o real e o insólito, entre o racional e o sobrenatural, instiga a curiosidade do leitor, ao mesmo tempo que é capaz de produzir medo.

O conto é ambientado na Itália, mais especificamente em Roma, um cenário comum aos romances góticos – principalmente aos romances canônicos de Ann Radcliffe. Roma possui certo prestígio, por estar ligada tanto à Antiguidade Clássica quanto ao cristianismo, conferindo um clima de mistério e misticismo à história de Solfieri. Mas, ao invés de um lugar religioso, o narrador apresenta Roma como “a cidade do fanatismo e da perdição” (AZEVEDO, 2000, p. 568). Em tom crítico, ele anuncia que Roma é uma cidade blasfema, onde a religiosidade convive com o sacrilégio, onde pureza e fé não resistem a libertinagens, e a santidade mescla-se à hipocrisia humana – um tipo de crítica muito comum no romance gótico tradicional.

A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de... As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca — A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

Eu me encostei à aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento à noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte. (IBID.)

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AZEVEDO, Álvares de. A noite na taverna. In:___. Obra completa. Organização de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. (pp. 568-571)

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Graduanda do Curso de Letras da UERJ, bolsista de Iniciação científica e membro do Grupo de Pesquisa “O Medo como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).

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A ambientação da narrativa é imprecisa: Solfieri estava só e vagava por ruas desconhecidas e escuras, até que se depara com uma figura curiosa, a sombra de uma mulher pálida como um fantasma, que desaparece tão logo ele se aproxima – é possível apenas ouvir o som de sua voz, cantando uma melodia triste, sôfrega e sombria. O encontro é descrito de modo a sugerir um evento sobrenatural. O leitor é levado, em um primeiro momento, a pensar que a sombra vista por Solfieri é, pois, um fantasma, um ser que não pertence ao mundo real.

Tanto Solfieri quanto o leitor são atraídos pela estranha figura. Jeffrey Cohen (2000, p. 31)3

afirma que o monstruoso, nesse caso entendido como o caráter sobrenatural da fantasmagórica moça de Solfieri, é um “convite a explorar novas espirais, novos e interconectados métodos de perceber o mundo. Diante do monstro, a análise científica e sua ordenada racionalidade se desintegram”. Por isso, nós, os leitores, não nos surpreendemos quando Solfieri segue a moça, sem pensar em qualquer consequência ou perigo. Em seu lugar, possivelmente, faríamos o mesmo e seguiríamos o vulto branco, até comprovarmos sua verdadeira natureza, apenas para satisfazer nossa curiosidade.

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.

Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.

Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão — as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz. (AZEVEDO, 2000, p. 568)

A narrativa continua deixando em aberto a identidade da estranha criatura. Solfieri segue a suposta assombração até um cemitério, onde ela se ajoelha, parecendo chorar. Em seguida, o protagonista adormece misteriosamente, como por encanto ou como se dominado por uma força maior. Tanto o cemitério quanto o impreciso desfecho desse encontro nos dão impressão de que tudo não passou de um sonho, e estaríamos certos disso se o protagonista não encontrasse, ao acordar, uma

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COHEN, Jeffrey Jerome et al. A cultura dos monstros: sete teses. In: Pedagogia dos monstros; os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

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pequena evidência material que vem se contrapor ao caráter sobrenatural do acontecimento: as urzes e cicutas quebradas, como se por sobre elas houvesse ajoelhado um ser humano de carne e osso. Tais evidências vão de encontro às nossas suspeitas e não podemos desconsiderá-las no nosso processo de “descobrimento”, pois elas podem acabar revelando-se essenciais para a compreensão do “monstro” em questão.

Solfieri fica obcecado pela moça e volta a Roma. Atraído pelas condições misteriosas do estranho encontro, o próprio personagem admite: “Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me vinha aquela visão...” (Ibid.). Essa obsessão será fundamental para a compreensão da monstruosidade que surgirá em Solfieri, visto que o profundo desejo e atração que ele sente pela branca criatura motivarão o ato perverso que cometerá.

Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: nos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota o vinho do deleite...

Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta!... e aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida. . – Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo... (Ibid.)

Novamente Álvares de Azevedo se vale de elementos que deixam a narrativa com um tom de incerteza – nada é muito preciso ou claro. Solfieri está embriagado pelos efeitos do vinho, vaga sem rumo por ruas sem nome, encontra um templo escuro que, não se sabe por qual motivo, está de portas abertas. Dentro do templo, o narrador encontra um caixão e uma defunta que o lembra da “aparição” anterior, de “uma ideia perdida” – ao que tudo indica, a mesma moça que ele encontrara em Roma anteriormente. O protagonista então tem uma “ideia singular”: sequestrar o cadáver.

É possível perceber, na narrativa, a atração física de Solfieri pelo cadáver da moça, um comportamento incomum, transgressor e inadmissível de acordo com os

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tabus estabelecidos em nossa sociedade. Solfieri viola normas sociais ao ter relações sexuais com o que então supunha ser um cadáver:

Foi uma idéia singular a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. (...) O gozo foi fervoroso – cevei em perdição aquela vigília. (Ibid.)

Para o leitor, o ato de Solfieri pode causar indignação e mesmo repugnância. Sua perversidade excederia os limites do aceitável no convívio social, tornando-se algo imoral. Cohen acredita que o monstro, como “constructo cultural”, tem a função de regular a sociedade, indicando quais atitudes devem ou não ser seguidas, quais fronteiras não devem ser ultrapassadas. O conto de Álvares de Azevedo torna-se moralizante porque indica fronteiras da sexualidade que não devem ser desrespeitadas. Nas palavras do teórico:

O monstro corporifica aquelas práticas sexuais que não devem ser exercidas ou que devem ser exercidas apenas por meio do corpo do monstro. (...) O monstro impõe os códigos culturais que regulam o desejo sexual (COHEN, 2000, p. 44)

Ao nos chocar com a atrocidade cometida por Solfieri, Álvares de Azevedo acaba reforçando as práticas sexuais admitidas em nossa sociedade. A monstruosidade, através de sua diferença, revela o que há de pior no nosso sistema, o que há de impuro e incorreto e que nem sempre é dito às claras – como a prática da necrofilia.

Para a nossa maior surpresa, o cadáver da moça reanima-se, e então temos um momento que inspira forte terror na narrativa, pois, até então, acreditávamos que a moça estivesse morta. Até o momento, a narrativa não deixava claro que espécie de criatura é a estranha e pálida moça com quem Solfieri se envolve. Essa é uma estratégia que mantém presa a nossa curiosidade, bem como inspira-nos certo terror. Afinal, a moça é um fantasma? Uma defunta? Ou ainda vive? Não temos certeza de sua condição e isso nos aterroriza; temos a certeza apenas que o ato cometido por Solfieri foi uma atrocidade em qualquer dos casos.

Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado

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em que sentem-se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias sem poder revelara vida! (AZEVEDO, 2000, p. 569) No trecho acima nos é dada uma explicação científica desse terrível mistério: a catalepsia – uma saída racional, em contraposição às suspeitas sobrenaturais que foram levantadas até o momento.

O final vem reafirmar o lado verídico da história de Solfieri: – Solfieri, não é um conto isso tudo?

– Pelo inferno que não!(...) — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Hei-la!

Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.

– Vede-la murcha e seca como o crânio dela! (AZEVEDO, 2000, p. 571)

O manto da defunta nos serve de prova material do conto de Solfieri. Uma prova, certamente, terrível de ser apresentada e que nos causa impacto não apenas por ser uma capela fúnebre, de uma defunta, não apenas por estar “murcha e seca como um crânio”, mas também porque revela o que pode haver de mal e obscuro no mundo em que vivemos. É aterrador vislumbrar a possibilidade de que uma história como a de Solfieri tenha realmente acontecido e que os limites instaurados para uma boa convivência em nossa sociedade possam ser transgredidos tão facilmente pela monstruosidade. E é essa constatação que nos causa terror, repulsa e medo.

Referências

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