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A perspectiva mbyá-guarani pelo audiovisual: uma análise do filme Bicicletas de Nhanderú

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Academic year: 2021

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Texto

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audiovisual: uma análise do filme

Bicicletas de Nhanderú

Resumo

Neste texto, realizo a análise do filme Bicicletas de Nhanderú, produzido por cineastas indígenas na Tekoá Ko’enjú (Aldeia Alvorecer) no município de São Miguel das Missões/RS. A partir de cenas e narrativas produzidas na aldeia, o audiovisual propõe uma relativa imersão na cosmologia e modo de viver dos Mbyá-Guarani, intensificando formas de conhecimento e discussões sobre questões indígenas no sul do Brasil.

Palavras-chave

Bicicletas de Nhanderú; Tekoá Ko’enjú; Mbyá-Guarani; Sul do Brasil.

Bruno Guilhermano Fernandes

Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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Abstract

In this text, I make the analysis of the movie “Bicicletas de Nhanderú”, produced by indigenous filmmakers of the Tekoá Ko’enjú (Village Dawn) in the municipality of São Miguel das Missões/RS. From the scenes and narratives produced in the village, the audiovisual proposes a relative immersion in the cosmology and lifestyle of the Mbyá-Guarani, intensifying knowledge forms and discussions on indigenous issues in the South of Brazil.

Palavras-chave

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“Pode parecer que fizeram isso só para o filme, mas não é bem assim, no final deu tudo certo. Eles não fizeram sozinhos, Nhanderú ajudou”. (mulher mbyá-guarani, 43 min., Bicicletas de Nhanderú)

O filme documentário Bicicletas de Nhanderú (2011), produzido através do projeto Vídeo nas Aldeias1

e pelo seu Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema, promove uma amostra considerável de como as práticas, os sentidos e as expressões da pessoa guarani estão cosmologicamente articuladas, ao serem representados pelo equipamento audiovisual e sua elaboração técnica e conceitual. O vídeo, realizado na Tekoá Ko’enjú (Aldeia Alvorecer)2 em São Miguel das Missões, no Rio Grande

do Sul, foi dirigido pelos cineastas indígenas Ariel Duarte Ortega (na época, cacique da aldeia) e Patrícia Ferreira (Keretxu), contando com a fotografia de Jorge Ramos Morinico. Estes três se dedicaram a captar elementos existenciais da vida na aldeia, formulando uma narrativa e forma de conhecimento sobre os Mbyá-Guarani e produzindo uma obra que explicita questões de povos indígenas no sul do Brasil.

Lançado em 2011, Bicicletas de Nhanderú apresenta diferentes abordagens em torno da divinização, individuação e da vida mbyá-guarani, enfatizando as relações do modo de ser guarani na aldeia (tekoa) e em suas territorialidades. Expõe, com

1 O projeto Vídeo nas Aldeias (VNA) surgiu como atividade da ONG Centro de Trabalho Indigenista, em 1986. Trata-se de um projeto precur-sor na realização de produção audiovisual indígena no Brasil. Por meio de recursos audiovisuais, busca apoiar a luta dos povos indígenas para fortal-ecer suas identidades e territórios originários. Informações sobre o projeto podem ser analisadas em: <http://www.videonasaldeias.org.br/2009/vna. php?p=1>.

2 Recentemente, visitei a Aldeia Koenju (traduzida, comumente, como Alvorecer) em São Miguel das Missões. A aldeia, localizada na zona rural do município, é uma das maiores da região. Agradeço, singelamente, a receptividade e a atenção dos Mbyás-Guarani’s da aldeia, que acolheram a mim e a outros colegas, no dia 29 de outubro de 2016. Naquela ocasião, realizávamos uma expedição a sítios arqueológicos nos municípios de São Miguel das Missões, São João Batista e São Luiz Gonzaga, no Rio Grande do Sul. Após o contato com a aldeia, retomei a análise do filme mencio-nado, como forma de restituição acadêmica e proposta analítica, após o encontro com os indígenas naquele contexto.

isso, fundamentos cosmológicos, ecológicos e morais - fundantes de uma específica organização social -, bem como a sua relativa autonomia política interna, a qual permite a formulação de decisões que afetam a comunidade e suas territorialidades. Todo o áudio do filme está gravado na língua Guarani, por decisão dos cineastas, com edições legendadas no português, inglês, francês e espanhol. Emerge, singularmente, enquanto um material etnográfico para a análise etnológica, antropológica e de experimentação documental, que se aproxima dialógica e audiovisualmente com os saberes, representações e práticas indígenas de contextos locais. No início do filme, a figura do xamã guarani é apresentada, de modo a expor o efeito da inter-relação entre a divinização e o corpo da pessoa guarani, instrumentalizado (ou melhor, subjetivado) para manifestar comunicações com entidades espirituais específicas. Se referindo à divindade Tupã e ao grande deus Nhanderú, o xamã mitologicamente explica: “Quando os deuses falam você não vê e nem escuta. O que Tupã fala, o que acontece na meditação é inexplicável. Sem perceber as palavras chegam e são ditas por você. Nós somos uma bicicleta de Nhanderú” (Bicicletas de Nhanderú, 2’min 3”, 2011).

Com essa afirmação, a origem do nome do filme é evidenciada. O xamã, de início, enquanto a pessoa guarani que se equaciona a um mediador da expressão de divindades, com certa segurança e disposição estimula reflexões em torno de como as práticas e relações de divinização influenciam a vida na comunidade. A conduta e as narrativas do xamã, coletivamente, denominado como Karaí, estão enfatizadas em diversos momentos do audiovisual, sendo representado também como um interlocutor ativo no diálogo transespecífico entre os humanos e não-humanos. Do ponto de vista teórico, o papel do Karaí se aproxima de termos concebidos por

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Eduardo Viveiros de Castro, na definição de xamanismo ameríndio como uma “habilidade, manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades alo-específicas, de modo a administrar as relações entre estas e os humanos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 358). O que é importante nessa definição, no entanto, é sua inspiração para a identificação de que o audiovisual promove o xamanismo, entre os Mbyá-Guarani, como um modo específico de agir. Tal modo implica, antes, certo modo de conhecer, intrinsicamente relacionado à sua cosmologia e as suas práticas de individuação e divinização.

Os cineastas indígenas Ariel Ortega e Patrícia Ferreira também se preocupam em retratar as relações existentes entre as mulheres indígenas. Em uma das cenas iniciais do filme, um raio afeta uma área próxima à aldeia Koenju. Um jovem indígena procura uma árvore atingida e retira parte de sua madeira. A árvore, ou não-humano, acaba sendo exposta por ele como um ser com intencionalidades e revestido pela sua forma vegetal, reiterando certas noções do que teoricamente vem sido chamado de Perspectivismo Ameríndio (VIVEIROS DE CASTRO, 2002; DESCOLA, 1998)3.

Posteriormente, em outra cena, uma das mulheres da aldeia se dedica a produção de um colar com a madeira atingida pelos fenômenos físicos mencionados, agregando-lhe também um crucifixo, um indicador que,

3 O Perspectivismo Ameríndio vem sendo analisado como concepção, localizada em povos do continente americano, “segundo a qual o mun-do é habitamun-do por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos” (VI-VEIROS DE CASTRO, 2002, p. 347). Esta espécie de ontologia, em cer-tos casos, vem traduzindo analiticamente o hiper-relativismo perceptivo de cosmologias ameríndias, afirmando que múltiplas visões de mundo podem conviver sem expressarem contradições. Philipe Descola desdobra a ideia, também, a partir de pesquisas etnográficas, considerando que “o pensam-ento ameríndio encara o cosmos inteiro como animado por um mesmo regime cultural, diversificado não tanto por naturezas heterogêneas quanto por modos diferentes de se apreender uns aos outros” (DESCOLA, 1998, p. 28). Contudo, ressalto que estas são formas parciais de objetivar uma concepção tão largamente trabalhada por esses autores.

possivelmente, refere-se a inserção de elementos cristãos na cultura guarani. Neste momento, observamos como a atuação indígena ocorre sobre fenômenos específicos, mas a partir deles, simultaneamente.

Em outro momento do filme, dois meninos irmãos dialogam com a mãe, que produz artesanatos. Em seguida, ambos saem a buscar lenha para uma fogueira a pedido dela. A partir de falas e expressões de um deles, acompanhando o irmão em deslocamentos pelos territórios próximos a aldeia, problemas nas relações interétnicas podem ser identificados, principalmente em torno da ação de brancos, proprietários de terras próximas, à comunidade. A discursividade do menino mbyá complexifica a visibilidade de subjetividades e práticas vinculadas a diferentes modos de resistência a forças dominantes, que coproduzem reações específicas a um atrito entre sistemas culturais distintos e que se influenciam mutuamente. O filme, porém, explora o ponto de vista indígena sobre esta relação desigual, ampliando o espaço de enunciação dos Mbyá-Guarani em relação a certos conflitos e operando, também, como um multiplicador das vozes indígenas em torno de suas reivindicações por direitos e na luta pela garantia de seus territórios.

Com certa objetividade, outra parte do documentário que merece destaque é o momento de decisão do Karaí em construir uma nova casa cerimonial (Opy) para a comunidade. Depois de relatar alguns de seus anseios e certas privações atreladas a sua posição, o xamã escuta a narrativa do sonho de um jovem guarani, o qual afirma ter visualizado imagens com efeitos catastróficos das festas e jogos que, em períodos últimos, ocorriam na aldeia. Eram cerimônias influenciadas por tradições não indígenas, como o fato de jogar cartas com apostas em dinheiro e a presença excessiva de bebidas alcoólicas. Posteriormente, o xamã também expõe que,

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em um dos seus sonhos mais recentes, também recebeu a mensagem de uma divindade, interpretada como um aviso extra-humano para a construção de uma nova Opy. Neste espaço, todos poderiam se encontrar e refletir sobre suas práticas de sociabilidade. Assim, diferentes indícios são traduzidos na necessidade da comunidade reunir-se para a construção de uma nova casa cerimonial.

Desta forma, Ariel Ortega e Patrícia Ferreira revelam a forte influência do sonho na tomada de decisões das lideranças e xamãs Mbyá-Guarani. Complementarmente, o audiovisual é construído e projetado com cenas que mesclam o foco na ação humana pela aldeia e outras onde o interesse está no discurso e nas narrativas mitológicas, direcionando muitos momentos para a escuta de pessoas mais velhas e com saberes consolidados da cultura e historicidade Mbyá-Guarani. Os cineastas são guiados por narrativas audiovisuais que, em suma, buscam refletir o espectro cosmo-político da comunidade.

Após a construção da casa cerimonial, o Karaí intencionalmente delibera: “Temos que deixar de lado o jogo, a bebida, vamos falar isso pra todo mundo. Pra ouvir realmente o Nhanderú, temos que parar com essas coisas. Só meditando todos juntos saberemos como agir. Se poucos meditarem, não ouviremos nada” (Bicicletas de Nhanderú, 41 min, 2011). A casa cerimonial nova, assim, simboliza outra forma de integração da comunidade, direcionada à prática de rituais e de cerimoniais coletivos, reafirmando as práticas de divinização e a garantia de orientações extra-humanas para as situações cotidianas entre os Mbyá-Guarani. Com efeito, esta projeção associa-se a valorização da palavra profética do Karaí, concebida como palavra virulenta, eminentemente subversiva (CLASTRES, 1998, p. 149).

No seu término, o filme acaba dedicado à mulher indígena chamada Pauliciana, que faleceu durante o período das gravações do filme, e que contribuí, em uma das cenas, benzendo frutas de guabiroba coletadas para as crianças comerem e compartilharem entre si. Neste sentido, o filme documentário destaca-se pela não elaboração de cenários fictícios para a gravação, captando as ações e os discursos em ato, porém pela seletividade da própria perspectiva indígena e de sua racionalidade narrativa. A produção audiovisual é finalizada após exibir cortejos à nova Opy por crianças, adultos e pessoas mais velhas.

Assim, Bicicletas de Nhanderú pode ser cortejado como referência fílmica exemplar, promotora de uma relativa imersão perceptiva na cosmologia, nos artefatos culturais e na divinização mbyá-guarani. Do ponto de vista antropológico, o filme contribui para uma reflexão dual: incita a pensar não somente acerca das respostas que os Mbyá-Guarani lançam para determinadas questões, mas também sobre as perguntas que produzem diante de certos dilemas, desafios e escolhas, como no modo que se autorretrataram pelo uso da tecnologia ocidental, revelando abordagens em torno de suas formas de subjetivar o mundo e das intencionalidades humanas e não-humanas.

Referências bibliográficas

BICICLETAS de Nhanderú. 2011. Direção: Ariel Duarte Ortega e Patrícia Ferreira (Keretxu). Fotografia: Jorge Ramos Morinico. Produção: Projeto Vídeo nas Aldeias (Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema). 45’min49”. Disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=7UEWibtKt70> Acesso em novembro de 2015.

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CLASTRES, Pierre. “A sociedade contra o estado”. In: A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, p. 132-152. DESCOLA, Philipe - “Estrutura ou sentimento: a

relação com o animal na Amazônia”. Revista Mana, vol.4, n.1, p. 23-45, 1998. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002.

Perspectivismo e Multiculturalismo na América Indígena”. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify. p. 347-399.

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