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DIÁLOGOS INTERCULTURAIS: A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E AS TRADIÇÕES GUARANI MBYA

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Trabalho apresentado no III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado entre os dias 23 a 25 de maio de 2007, na Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.

DIÁLOGOS INTERCULTURAIS: A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E AS TRADIÇÕES GUARANI MBYA

Marília G. Ghizzi Godoy*

Resumo: A presença de políticas públicas indígenas nas aldeias Guarani Mbya de São Paulo projeta-se pela formação de um espaço de interculturalidade. Retrata-se um ambiente de influências civilizatórias que se impõe diante de uma definição tradicional dos valores e saberes nativos. O letramento e os projetos sociais tornam-se significativos para uma recriação e auto-afirmação da identidade indígena.

Palavras-chave: interculturalidade – educação indígena – guarani mbya – letramento.

Introdução

A polêmica científica na pós-modernidade tem situado discursos e narrativas diante de uma arena onde o conhecimento retrata-se como um jogo de linguagens, expressivo de instabilidades e de dissensões que deslocam o cenário racionalista das certezas acadêmicas.

Tendo como certo os diferentes ritmos com que a ruptura da modernidade faz sentido, criam-se realismos que refletem situações de hibridação que mesclam as verdades e as ilusões.

No universo científico, a construção descentralizada de saberes indica uma nova epistemologia. O saber deixa de ser apenas formal ou lógico. O caráter de universalidade do conhecimento progride na forma de conhecimentos vivenciados e apropriados na vida cotidiana. Um novo senso comum origina-se com a desdogmatização da ciência; projeta-se uma realidade onde conhecimento–ação estão

* Mestre em Antropologia Social (USP). Doutora em Psicologia Social (PUC-SP). Professora do Mestrado Multidisciplinar em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos (SP). E-mail: mgggodoy@yahoo.com.br.

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comprometidos na nova ordem científica. Uma nova esfera na compreensão da humanidade supõe como central a construção do hibridismo na criação de saberes e definição de sujeitos.

Aponta-se nesse sentido o conceito de interculturalidade pela sua condição de articular fronteiras culturais e sujeitos coletivos. Conforme Garcia Canclini (2006) esse conceito possibilita uma compreensão da desigualdade social e de formação de sujeitos diante de uma lógica diversificada de pertencimentos.

A comunicação encaminha-se para uma discussão sobre saberes que emergem nas Aldeias Indígenas Guarani, situadas na cidade de São Paulo. Trata-se de quatro núcleos que foram ocupados pelos indígenas, desde inícios - meados do século XX. Atualmente, nesses locais, a presença de políticas públicas ligadas a educação, saúde, família tornam-se um meio de recriação da identidade cultural. Através da designação nhandereko yma guare (o modo de ser tradicional), projeta-se um universo próprio de conhecimentos que se impõe como uma estratégia cultural e política, para os índios mbya.

Com o objetivo de entender uma dinâmica de contactos e de conhecimentos, suas condições de expressão, a comunicação focaliza em primeiro lugar o universo tradicional guarani e a presença de políticas públicas com os indígenas. Em seguida, retratamos as políticas públicas de educação e a presença das escolas nas aldeias. Em terceiro lugar destacamos propostas e projetos inseridos na dinâmica cultural. Fazemos referências às falas dos guarani com relação as suas concepções culturais nativas e ao atual meio de interculturalidade que os vêm pressionando diante de uma globalização e inserção cultural civilizatória.

1. A concepção cultural nhandereko e a presença de aldeias guarani mbya na cidade de São Paulo

As aldeias indígenas guarani mbya compreendem 18 núcleos no Estado de São Paulo e uma concentração de aproximadamente 2.500 pessoas, situados nas encostas da Serra do Mar. O povoamento diz respeito às migrações provenientes do Sul, Paraguai, nos inícios do século XX. Tinham como motivo fundamental situarem-se em um meio natural concebido nas proximidades da terra sem males.

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Essa ocupação criou um cenário próprio de significados e de ordenação do mundo. O ponto central que representa esse universo de valores diz respeito a forma como a Mata Atlântica constituiu um ambiente de identificação dos mbya.

Pudemos observar durante muitos anos de pesquisa que “viver no meio do mato” (ka’aguy re mbyte pe) exprime uma realidade e uma condição de continuar a levar avante o modo de ser designado nhandereko. No discurso nativo ouve-se com freqüência palavras do idioma nativo que são convincentes desta dinâmica e as quais colocam para as pessoas o seu comprometimento e veracidade no caminho das realizações pessoais e coletivas.

Compreender o meio tradicional exige entender o próprio pensamento indígena onde o mito tem o poder de fundamentar um modelo de saberes e de condutas. Entende-se a preEntende-sença da floresta como uma forma de deEntende-senvolver a personalidade e obter meios de prestígio. É só no contato com a natureza que a vida espiritual expressa comunicação e convicção. As sagradas palavras ordenam-se no tekoa (aldeia), nos rituais religiosos realizados diariamente na casa de rezas, na comunicação simbólica fundada na troca e reciprocidade.

O mundo de significados exige uma adesão e participação humana. O motor central da sociedade compreende um meio de compartilhamento de valores que são acreditáveis como próprios da vida indígena. Eles se projetam destacando uma disposição e um desembaraço dos guarani em serem verdadeiros guarani (guarani ete) (Godoy, 2003).

Desta forma, seguir o nhandereko, o modo de vida, implica compromissos que se expressam nas parentelas, na vida familiar, religiosa, na subsistência ligada ao plantio e à confecção de artesanato, na língua guarani mbya.

As aldeias Krucutu, Tenonde Porã e Pico do Jaraguá (2 núcleos), em São Paulo, desde meados do século XX vêm construindo seu modo de vida seguindo normas tradicionais embora sofrendo pressões e influências pela presença do jurua (branco).

Na atualidade essas aldeias foram destacadas pelas políticas públicas ligadas a educação, saúde, subsistência, moradia e meio ambiente. Considerou-se o caráter qualitativo e de interculturalidade da presença indígena na metrópole. Tal destaque foi também acentuado com a formação da Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos (2001) e dos trajetos do Rodoanel que vem sendo construído na periferia da metrópole.

As escolas municipais de educação infantil (0-6 anos), estaduais de 1º grau, a presença de enfermaria, o recente plano de construção de casas próprias, iniciativas da

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Secretaria do Meio Ambiente e outros projetos dirigidos pelos civilizados mobilizaram o público local e vêm tornando a vida na aldeia muito diferente daquela que vigorava há alguns anos.

Os novos cargos ocupados pelos indígenas (professor, agente de saúde, lideranças de projetos específicos) os quais permitem o acesso a salários, marcam o ambiente social com uma dinâmica específica.

Para os mais velhos, os novos valores representam um teste diante do universo simbólico “morar no meio do mato”. Falam com freqüência de revigorar a mata, não abandonar os plantios, os artesanatos. As pessoas inseridas nas novas situações, com novos cargos, tendem a demonstrar aceitação e compartilhamento com as influências civilizadas.

Desde então, televisão, vídeo-cassete, rádios, bicicletas tornaram-se freqüentes e desejáveis.

O xamanismo, práticas xâmanicas, não só permitem a continuidade de antigos valores como também marcam os significados sociais com uma grande ênfase nas aldeias.

Projetos que permitem uma maior compreensão dessas tendências como reflorestamento, ampliação das terras, estão sendo avaliados na conjuntura de influências.

Para vários líderes indígenas as novas conquistas públicas representam direitos de cidadania e de progresso cultural. A introdução de valores ligados ao letramento tornou-se onipresente entre os guarani diante de uma definição política da educação indígena.

2. As políticas públicas educacionais com os indígenas e a presença das escolas nas aldeias de São Paulo

Desde o século XVI um processo educativo ligado ao letramento, a imposição da escrita e de valores do mundo ocidental atinge os indígenas.

Seja com a catequização, com a posterior criação de órgãos de proteção indígena, o Serviço de Proteção Indígena (SPI) em 1910 e sua substituição pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967, o processo educativo foi marcado pelo caráter integracionista e monocultural da educação.

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A FUNAI desenvolveu interesses no bilingüismo mas não havia nos seus propósitos uma concepção plurietnica. Os estágios da aculturação por ela defendidos regiam a ordenação dos espaços escolares com uma nítida representação da civilização escrita e de controle da autonomia e auto determinação indígenas. (ib: p.87-88)

Em conflito com essas políticas, teve início nos anos de 1970 uma prática indigenista paralela que se destaca pela ação de entidades comprometidas com a causa indígena (Comissões Pró-Índio, Associações Nacionais de Apoio ao Índio – ANAI, Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI, Centro de Trabalho Indigenista – CTI). Origina-se uma nova fase de redefinição dos direitos indígenas e de sua inclusão na sociedade e poder hegemônico.

Nos anos de 1980 esse movimento se expande e atinge áreas oficiais através dos Encontros de Educação Indígenas e Formação dos NEI (núcleos de educação indígenas). As análises relativas a esse período retratam um crescente envolvimento nas iniciativas educacionais que se dirigiam a criar a escola indígena como um espaço de organização do grupo e comunidade. Assumiam que o debate com relação à educação indígena não poderia ter neutralidade e consideravam criticamente o caráter homogeinizador do mundo globalizado.

Esse esforço repercute na Constituição de 1988 (artigos 210, 215, 231) que insere e fixa as bases de um novo modelo político afirmando-se na autonomia dos povos indígenas, garantia de suas tradições e uso da língua materna.

Tendo-se instalado o reconhecimento da diversidade sócio-cultural e da viabilidade de novas práticas pedagógicas interculturais no âmbito das manifestações indígenas, novos decretos serão introduzidos na orientação da política indigenista.

Através do decreto Presidencial nº 26 de fevereiro de 1991 o Ministério de Educação passa a reger as ações referentes à educação escolar indígena e sua execução pela Secretaria de Educação. A FUNAI e as sociedades indígenas mantêm-se vinculadas, abrindo-se um espaço para negociações.

As demandas constitucionais que dão sustentação à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), em seus artigos 78 e 79 garantem aos povos indígenas a oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural. Essa lei prevê a criação de um Plano Nacional de Educação.

Este, realizado em janeiro de 2001 estabelece objetivos e metas no sentido de operacionalizar a nova política pública e seu compromisso de transformação das antigas concepções. Criaram-se as bases de um sistema educacional próprio ordenando-se

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dados sobre escola indígena, professor indígena, seqüencialidade, instituição e regulamentação nos sistemas estaduais de ensino.

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena aprovadas pelo CNE em 1999 (Parecer 14) foram regulamentadas pela Resolução 03/CNE/99. Reafirmaram-se os aspectos de autonomia e diversidade e ordenaram-se pontos sobre a escola indígena nos sistemas de ensino com o estabelecimento de normas e ordenamento jurídico próprios, autonomia pedagógica e curricular, propostas curriculares específicas para o magistério indígena, gestão e participação comunitária nas escolas, formulação do projeto pedagógico, áreas de apoio e desenvolvimento escolar indígena. Sob a orientação do MEC esta resolução indica que as escolas indígenas devem pertencer preferencialmente ao sistema estadual de ensino e aos municípios participantes; é acatada colaboração de grupos engajados na situação (ONGs, universidades).

A implementação da nova política indigenista e sua base de âmbito federal se projetam para que as secretarias estaduais e municipais possam investir seus novos empenhos na dinâmica das políticas públicas educacionais indígenas. Os Conselhos Estaduais de Educação planejaram os dados da Resolução 03/CNE/99.

Um novo cenário de produções ligadas a essas leis e novas tendências pedagógicas emergem como demandas desta nova era e de seu caráter emancipatório.

Projetos de viabilização encaminhados por Secretarias Estaduais de Educação e seus núcleos de educação indígena, com apoio de organizações não governamentais e universidades se implantaram por todo o país e passaram a sediar a execução da lei.

No estado de São Paulo, o Núcleo de Educação Indígena (NEI/SP) foi criado em 97 (Resolução SE-44 de 18.4.97) e conforme a Resolução nº 40, de 18 de abril de 2000, aprova o seu regimento interno. Integrando-se à política do MEC propõe viabilizações de demandas educacionais com estímulo à contratação de professores e funcionários indígenas, indicados pelas comunidades, e proposta de formação do professor índio. Mais recentemente, em 07/04/2005 foi aprovado um novo regimento interno do NEI (Resolução SE 27, de 07/04/2005)1.

1 Esse regimento revoga a Resolução SE 40/00, à p. 92 do vol. XLIII; Constituição Federal, à p. 25 do vol. 15; Lei nº 9394, à p. 52 do vol. 22/23; Resolução CNE/CEB nº 03/99, à p. 117 do vol. 26; Resolução SE nº 147, à p. 187 do vol. LVI; Portaria Interministerial MJ/MEC nº 559/91, à p. 133 do vol. 18/19; Parecer CNE nº 14/99, à p. 181 do vol. 26; Del. CEE nº 35/03, à p. 195 do vol. LV. Em 2003 a Resolução SE nº 147 dispõe sobre a organização e o funcionamento das Escolas Indígenas no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo.

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Os processos educacionais ligados aos indígenas tornaram-se intrínsecos às iniciativas do NEI/SP.

Conforme o Decreto Estadual nº 48.779 de 22 de abril de 2003 foi identificada a tipologia “Escola Estadual Indígena - EEI”. Definiram-se os princípios de autonomia e os objetivos da escola indígena, reafirmando-se as propostas de interculturalidade e de diversidade dessas escolas.

A Secretaria de Estado de Educação de São Paulo ofereceu em 2001 o Curso de Formação Especial de Professores Indígenas – MAGIND. O curso realizou-se em parceria com a Faculdade de Educação da USP – Universidade de São Paulo que seguiu uma metodologia interdisciplinar de trabalhos científicos. Abrangeu alunos das etnias Guarani (Nhandeva e Mbya), os Krenak, os Kaigang e os Terena. No ano 2003 um total de 61 alunos recebeu o título em cerimônia no Palácio dos Bandeirantes, sede do Governo do Estado de São Paulo.

A preocupação de uma formação continuada do magistério conforme é exigida pela Resolução CNE/CEB nº 3/99 foi se desenvolvendo nos anos seguintes com várias atividades envolvendo orientações técnicas, curso básico de informática e curso de formação superior.

A Secretaria de Educação de São Paulo autorizou em 2005, o curso de Magistério Intercultural Superior Indígena – MISI. Deverá ser realizado em 36 meses sendo em parte presencial e em parte não presencial. Segue as metodologias do MAGIND e amplia as dinâmicas metodológicas. Os 81 professores que estão sendo capacitados correspondem a um público que envolve as quatro etnias e os quais já estão engajados nos quadros funcionais das escolas.

No Estado de São Paulo vigoram 25 escolas indígenas. Em São Paulo estão elas presentes nas três aldeias: Morro da Saudade (Tenonde Porã), Krucutu e Pico do Jaraguá.

Em 2002-2003 a Secretaria Municipal de Educação (SP) criou um plano de atuação junto a essas três aldeias para atendimento da população de 0 a 6 anos.

Criaram-se os CECI (Centro de Educação e Cultura Indígena) nas três aldeias. Os CECI(s) abrangem prédios com uma arquitetura inspirada na tradição indígena (desenhos, cobertura de sapé, formato circular). São 4 prédios em cada aldeia. Um deles mobiliza sala de aula, cozinha, salas de trabalhos e refeitório. O outro compreende uma arquitetura circular que se divide em um palco e uma platéia. É um

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local para representações e para reuniões. Duas pequenas construções que seguem o mesmo modelo das anteriores compreendem um espaço de higiene pessoal.

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3. Práticas pedagógicas e a projeção do letramento

Diante da crescente institucionalização de um espaço formal de educação e de letramento nas aldeias indígenas da capital é notável um ambiente de mobilização da rotina e de envolvimento dos indígenas.

Nas escolas estaduais, o regime de seriação impõe-se por um conjunto de influências regidas pelas secretarias de ensino, formação de propostas pedagógicas, ciclo de escolaridade. Nota-se que demandas absorvem os professores e os alunos situando uma questão de seguir o costume dos brancos. Nota-se também que o valor da escola assume um domínio em termos de possibilitar a formação educativa como forma de poder melhor compreender e ser aceito na cultura civilizada.

Tornou-se muito importante nesta aceitação da escola a forma como os indígenas precisam de conhecimentos para ocuparem posições nas próprias aldeias.

Um sentido de interculturalidade que está presente nas várias iniciativas públicas torna visível uma exigência de formação do próprio indígena que vai assumir posições. Cargos como agente de saúde, agente sanitário, guardas das escolas, serventes, cozinheiros, auxiliares diversos, criam um caráter de competitividade. O contexto da tradição e a atualidade enfatizam uma crescente tendência para o predomínio do letramento.

Os professores indígenas passaram a representar uma camada privilegiada pelos benefícios que têm acesso: salários, rotina com vários expedientes, definição pessoal no meio tradicional e também moderno.

O contexto de educação bilíngüe e de formação diversificada dos programas pedagógicos vêm sendo o alvo dos desafios, ao ver dos próprios professores indígenas.

Nos CECI(s) é visível a criação de um ambiente atraente para as famílias, indica uma crescente absorção dos moradores das aldeias. As três refeições aí oferecidas e as quais são acessíveis aos moradores tornou-se um ponto chave para atrair a população local.

Diferente da Escola Estadual os “oficineiros” do CECI compreendem os pais dos alunos que programam e promovem atividades inseridas no contexto local. Os seus planos de trabalho abrangem passeios exploratórios na própria aldeia, grupos de canto e visitas específicas com temas tradicionais.

Oficineiros mais velhos estão engajados no quadro dos empregados; eles são responsáveis por transmitir de forma oral e prática a cultura tradicional. Nas três aldeias

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eles dirigem reuniões com o público infantil para explicar a vida na mata, fazer excursões com práticas culturais, contam histórias antigas, dão conselhos e organizam discursos com um compromisso de moralidade, kyringue pe (para as crianças).

4. Projetos indígenas e tradição cultural

Em todas as aldeias o discurso dos indígenas sobre os projetos culturais inseridos na tradição ocupa um lugar de destaque.

Trata-se de um universo de iniciativas onde a dimensão cultural valoriza o aconselhamento (nhemongeta), a auto-estima guarani em torno de concepções herdadas, do nhandereko.

Na aldeia Krucutu e Morro da Saudade vigoram projetos ligados ao reflorestamento, ao turismo, a apresentações do grupo de dança. No ano 2006 a aldeia Krucutu foi contemplada com a aprovação do projeto Arandu Porã, a sabedoria das águas, pelo programa Petrobrás Ambiental.

Na aldeia Pico do Jaraguá, nesses últimos 8 anos, alguns índios envolveram-se em programações culturais em sítios e fazendas das proximidades. Além de marcarem a sua presença, esses encontros mobilizam uma finalidade que se expressa por “explicar a cultura indígena”. Sendo esses programas esporádicos e temporários, oferecem soluções que indicam dinâmicas para enfrentar problemas imediatos. Sobretudo, nessas reuniões são estimuladas a venda e fabricação de artesanatos. Esse trabalho possibilitou a reafirmação de valores da autoconsciência indígena e criou dinâmicas próprias que reativaram antigas concepções. Alguns “professores” tiveram que dispor de uma intensa agenda de tarefas nos seus desempenhos tradicionais. E também notável como alguns indígenas que não falavam suas línguas tiveram que re-aprender palavras como expressão de seu desempenho cultural. Nos anos 2004-5, nesse local aconteceu um conjunto de atividades ligadas à confecção de artesanato, horta conforme a tradição guarani desenvolveram-se técnicas de registro da experiência mediante o uso de filmadora, vídeos, máquina fotográfica digital. Essa programação compreendeu o Projeto Kurimgue Maity e foi financiado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. O projeto foi renovado em 2006-7, direcionou-se para ensinar as crianças a viverem nas aldeias mais distantes e terem contato com a natureza e os costumes antigos guarani.

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Programas de apresentação dos indígenas com repertório de músicas e danças tradicionais têm sido recurso de trabalho e de desempenho, em quase todas as aldeias. A produção e venda do compact disk ñande reko arandu (lançado em setembro de 98) criou uma fonte de renda que teve uma regularidade e caráter de pioneirismo para os núcleos que participaram do empreendimento (Bracuí, Boa Vista, Ribeirão Silveira, Barragem). Esta iniciativa foi fortalecida e ampliada com a produção do segundo compact disk nande arandu pygua que foi lançado em 2005-6. Estas iniciativas repercutiram nos meios tradicionais com a formação dos “Grupos de Canto”. Foram implantados em cada aldeia recursos no sentido de ordenar uma formação e desempenho ligado ao canto que se projeta com certa formalidade.

No final do ano 2002 antigos líderes religiosos, muitos deles xamãs famosos, foram mobilizados para reuniões com um público indígena representante da área yvy apyre. Lembremos dessa designação nativa para representar o litoral. Literalmente, significa extremidade da terra. Esses encontros ocorreram no sentido de serem resgatados valores da cultura que estão sendo esquecidos pelas gerações jovens atuais. As reuniões foram realizadas em quatro núcleos (S.P. e Ribeirão Silveira). Sob a forma de aconselhamentos e de propostas executivas definiram-se medidas políticas capazes de dar incentivos aos interesses tradicionais. As lideranças religiosas demonstraram os temas de importância da tradição e o empenho da coletividade. A partir desse encontro os participantes acentuaram a importância das relações de amizade entre as aldeias, para reforçar a educação tradicional.

Os lideres da Aldeia Boa Vista (Ubatuba), em parceria com representantes da Comissão Pró-Índio de São Paulo, têm demonstrado grande interesse com o Projeto Novos Rumos no Horizonte dos Guarani da Aldeia Boa Vista. Entre iniciativas deste projeto foram realizadas roças com mudas de milho nativo (avati ete) e o curso Tingimento Vegetal. Iniciou-se a construção da casa de cultura neste ano (2006), e diante dela o engajamento e expectativas das lideranças tradicionais está evidente.2

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5. Considerações Finais

Sabendo-se da existência de um meio de letramento, da presença da educação escolar formal nas aldeias refletimos aqui como poderão os guarani mbya cultivar seu isolamento étnico e suas tradições.

Os dados retratam que o universo cultural tradicional vem se tornando um meio estratégico de projeção dos valores pelos programas sociais desenvolvidos.

O caráter de interculturalidade que é predominante no ambiente torna a realidade flexível e permite que situações de valorização dos indígenas ganhem significados.

Os saberes culturais tradicionais surgem como representações do passado e indicam um meio de convicção para a introdução do letramento. Assim, os projetos sociais ligados a cultura mediatizam situações onde a identidade indígena recria-se para dar sentido às novas gerações.

Uma lógica diversificada de pertencimentos impõe-se por uma linguagem intercultural que se apóia no passado mítico guarani mbya.

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- Diretrizes Curriculares Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas. Conselho Nacional de Educação – Câmara de Educação Básica.

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