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DANIEL PIRES E A NOVA BIOGRAFIA DE BOCAGE,«UM DOS TRÊS GRANDES POETAS DA POESIA PORTUGUESA».

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Academic year: 2021

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SUPLEMENTO LITERÁRIO | DIRECTOR RICARDO PINTO | EDITORA SARA FIGUEIREDO COST

A

#55

Sexta-feira 26 de Junho, 2020

DANIEL PIRES E A NOVA BIOGRAFIA

DE BOCAGE,«UM DOS TRÊS GRANDES POETAS

DA POESIA PORTUGUESA».

Pg.4/5

Em estreia:

Vírgula, a

nova crónica

de José Luís

Peixoto

PG. 11

R T IN S

(2)

ADMINISTRADOR /DIRECTOR: Ricardo Pinto EDITORA: Sara Figueiredo Costa COLABORADORES: Danilo Conceição dos Santos, Hélder Beja, José Luís Peixoto, Stacey Qiao,

Yao Feng ILUSTRAÇÃO: Rui Rasquinho DESIGN /PAGINAÇÃO: Catarina Lopes Alves

Propriedade, administração e distribuição: PraiaGrande Edições, Lda IMPRESSÃO: Tipografia Welfare Ltd.

• O Parágrafo é um suplemento do jornal Ponto Final e não pode ser vendido separadamente.

B R E V E S

E D I T O R I A L

C

om várias fronteiras fechadas em diferentes continentes, companhias aéreas a meio (ou nenhum) gás e tanta gente com medo de avançar pelos caminhos do mundo, sobram os livros para fintar a pandemia e viver as viagens que neles se guardam. E quando tudo isto passar, independentemente do tempo que leve (e nos roube), será interessante olhar para as vendas de livros e descobrir quantos relatos de viagem se venderam durante estes meses de suspensão forçada das deslocações. Sem a verve épica de Camões ou o heroísmo pícaro de Fernão Mendes Pinto, também Bocage partiu de Ocidente para Oriente, atracando na Índia e na China, e passando por Macau. As suas deambulações mais ou menos atribuladas por terras orientais são apenas um dos temas referidos na nova biografia deste poeta, um compêndio amplamente documentado da vida de Manuel Maria Barbosa du Bocage, assinado por Daniel Pires, com quem conversamos nesta edição. Muito para lá das anedotas com que o imaginário popular o preservou na memória colectiva, Bocage é um dos grandes poetas da língua portuguesa e este

Bocage ou o Elogio da Inquietude (edição

INCM) virá, certamente, devolver-lhe alguma justiça literária.

Regressa às livrarias um dos livros míticos de Herberto Helder, o autor que desapareceu da cena literária portuguesa durante décadas, remetendo-se a um silêncio que só se quebrava com os livros.

Apresentação do Rosto foi publicado

em 1968 e logo apreendido pela PIDE, voltando agora numa nova edição com chancela da Porto Editora.

Na China, Yan Lianke publicou um livro que promete debate. Depois de um volume focado na geração do seu pai, o escritor dedicou-se agora a recolher histórias das mulheres da sua família e da sua aldeia natal, transformando-as em ponto de partida para uma reflexão sobre papéis de género e feminismo. Numa longa retractação pessoal, mas sempre com ecos que se percebem ser colectivos, por anos de ignorância perante a discriminação de género, o autor faz de 她們 (Elas) uma homenagem e simultaneamente um gesto que pretende convocar mudanças no país. Resta saber se apenas a literatura terá fôlego para tamanha revolução.

A partir deste número, contamos com mais uma presença regular. José Luís Peixoto junta-se a Yao Feng nas páginas de crónica, inaugurando o espaço “Vírgula”.

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Trav. do Bispo, n1-6 andar, Macau

%

pontofinalmacau@gmail.com

!

2833 9566 / 28338583

<

2833 9563 P O R S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

Prémio Golden

Pinwheel

Young

Illustrators

2020

Até ao próximo dia 30 de junho estão abertas as candidaturas para o concurso internacional de ilustração Golden Pinwheel Young Illustrators Competition 2020, promovido pela Feira Internacional do Livro Infantil de Xangai. Podem concorrer ilustradores de todas as nacionalidades com idade entre os 16 e os 39 anos (nascidos entre 1 de janeiro 1981 e 31 de dezembro 2004). A feira de Xangai produz todos os anos um catálogo e uma exposição que inclui trabalhos dos 50 finalistas, selecionados por um júri internacional.Regulamento disponível: http://www. ccbfgoldenpinwheel.com.cn/en

Prémios A.P.E

.

A Associação Portuguesa de Escritores já atribuiu dois dos seus prémios anuais. Mário de Carvalho foi o vencedor do Grande Prémio de Crónica e Dispersos Literários, com o livro O que eu ouvi na barrica

das maçãs, publicado pela

Porto Editora. O Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho foi atribuído a Fernando Guimarães, pelo livro Junto à Pedra, publicado no ano passado pela Afrontamento. Nos próximos dias, aguardam-se os anúncios do Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga e do Grande Prémio

de Romance e Novela.

Durante o mês de Julho, a editora Gradiva estará em destaque nos escaparates da Livraria Portuguesa, inaugurando a iniciativa Editora do Mês, que trará a Macau livros portugueses com os mesmos preços praticados em Portugal. De acordo com Filipa Didier, gerente da livraria, há várias razões para os livros chegarem a Macau mais caros: «Em Portugal, as livrarias têm um desconto. A livraria encomenda dez exemplares mas, caso não os venda, pode devolvê-los. Aqui, os livros têm de ser pagos a firme e o desconto é igual ao que seria em Portugal, mas temos de pagar o transporte e a taxa de exportação. Os livros vêm de avião. Seria muito mais barato se viessem de barco, mas aí demorariam muito tempo a chegar e nunca conseguiríamos ter novidades como temos. Não podemos fugir a esses custos e não podemos devolver, claro. Assim, cada compra que fazemos tem de ser muito ponderada. É uma aposta naquele livro e nos clientes.» Negociando um acordo especial com as editoras, nomeadamente através da promoção do seu catálogo durante um mês, a Livraria Portuguesa conseguiu avançar para este projecto da Editora do Mês,

que começa com a Gradiva, mas será repetido com outras editoras portuguesas. Com esta iniciativa, a livraria espera contribuir para um maior acesso dos leitores de língua portuguesa de Macau a uma série de livros sem o custo extra habitual, como explicou a sua gerente: «A iniciativa foi pensada também por estarmos neste contexto de crise. Muitos dos produtos vendidos não são livros e são comprados pelos turistas chineses: objectos de Portugal, recordações que evocam a calçada portuguesa em Macau... Agora, não há turistas. Uma das razões é tentar combater a crise, dando espaço para que mais pessoas venham comprar à livraria. Por outro lado, as pessoas também sofreram com isto e o facto de poderem adquirir livros a este preço, ajuda. Muitas pessoas esperam pelo Verão, quando vão a Portugal, para comprarem livros e este ano isso será mais difícil. É uma maneira de permitir que as pessoas comprem os livros ao mesmo preço que comprariam em Portugal, mas é também um modo de incentivar a leitura. As pessoas lêem pouco e talvez uma iniciativa como esta possa estimular a leitura e ajudá-las a chegar aos livros.»

Editora do Mês

na Livraria Portuguesa

E D U A RDO MA R T IN S

Apresentação

do Rosto

:

o regresso

de um livro

mitológico

E M F O C O

P O R SA R A F I G U E I R E D O CO S TA

Mais de meio século

depois da sua

primeira edição,

e da destruição

de grande parte

dos exemplares

da tiragem pelas

mãos da PIDE,

regressa às livrarias

um dos livros

de culto

de Herberto Helder.

F

oi nesse indelével mês de Maio de 1968 que Apre-sentação do Rosto chegou às livra-rias portuguesas, com chancela da Editora Ulisseia. E talvez não tenha chegado a todas as livrarias que o aguardavam, porque em menos de dois meses a PIDE entrou em campo, apreendendo a edição e eliminan-do toeliminan-dos os livros a que conseguiu deitar a mão. A tiragem era de 1500 exemplares e poucos terão sobrevi-vido à destruição. O relatório da cen-sura, assinado por Joaquim Palhares, explica os motivos da sanha: «Auto-biografia do autor, que é de índole esquerdista, escrito em linguagem surreal e hermética que como obra li-terária não mereceria qualquer repa-ro se não apresentasse passagens de

grande obscenidade como por exem-plo, as que se verificam nas págs. 71, 111, 120, 162, 163, 186, etc. Nestas condições entendo que é de propor a proibição de Circular no País para este livro.»

A «obscenidade» que perturbou o relator censório foi a alusão directa ao sexo, ou a partes do corpo expli-citamente referidas e com ele cono-tadas. Como era apanágio de muitos censores, sempre lestos no bramir do lápis azul e tão pouco dados às subtilezas metafóricas da linguagem, outras referências do mesmo teor fo-ram olimpicamente ignoradas nesta denúncia, deixando-se aquele “e etc” para salvar a honra da literacia de quem a escreveu. Já a «linguagem surreal e hermética» pouco diz sobre o abismo que este livro cava a cada página, dizendo tanto sobre o nada que tal censor percebia de literatu-ra... Tantos anos passados, importa afinal registar que Apresentação do Rosto voltou a estar disponível para os leitores. E também aí há mais do que um sentido a registar.

Depois da apreensão de grande parte da edição pela PIDE, Herberto Helder decidiu não voltar a editar o livro, como aliás foi aconteceu com outros livros ao longo do seu percur-so. A especificidade deste foi o facto de ter sido, de certo modo, apagado pelo autor da sua lista bibliográfica, deixando de lá constar. E como

acon-teceu com os outros livros da sua autoria, a procura deste título nos alfarrabistas tornou-se intensa, ain-da por cima porque existiam poucos exemplares, favorecendo os preços astronómicos sempre que um de-les aparecia disponível para venda. Herberto Helder incorporou alguns fragmentos desta obra noutros livros seus, nomeadamente em Os Passos em Volta (a partir da 3.ª edição, de 1970), Vocação Animal (1971), Retra-to em MovimenRetra-to (versões incluídas nas edições de 1973 e 1981 de Poesia Toda), Photomaton & Vox (1979) e Do Mundo(1994). Para muitos leitores, foi esse o único contacto, e sempre fragmentado, com esta Apresentação do Rosto, algo que agora pode ser corrigido.

A edição que a Porto Editora colocou nas livrarias foi feita por ini-ciativa de Olga Lima, viúva do autor (que morreu em 2015), seguindo o texto original e corrigindo alguns detalhes, nomeadamente erros ti-pográficos, a partir de um exemplar de trabalho devidamente assinalado pelo próprio Herberto Helder. A de-cisão é discutível: pode um autor ga-rantir que a sua vontade continua a cumprir-se mesmo depois da morte? Ou seria a decisão de não reeditar de Herberto Helder muito menos férrea do que o culto em torno da sua obra foi fazendo crer ao longo dos anos? Não haverá resposta, mas importa

fazer as perguntas. E ler a Apresen-tação do Rosto agora, em 2020, co-nhecendo a intransigência do autor perante estas e outras decisões, da não reedição à ausência que assumiu como modo de estar naquilo a que podemos chamar espaço literário, é tarefa difícil de empreender sem a sombra dessas perguntas.

À maneira das cosmogonias, mas com o verbo sempre rente aos decli-ves apocalípticos, Apresentação do Rosto é uma angústia bela e total, um texto cuja exegese abrirá tantos cami-nhos, dúvidas e indecisões como os livros sagrados, aqui sem a intenção normativa, apenas o corpo, o sangue e o medo a construírem o mundo à medida que se escrevem. Nas páginas iniciais, lê-se: «O autobiógrafo é a ví-tima do seu crime./ Melhor verdade, porém, é que a única graça concedida ao criminoso é o seu próprio crime.» Nunca saberemos se o autor teria pre-ferido não voltar a ter esta obra im-pressa e distribuída, mas é inevitável que não a queiramos deixar escapar, agora que voltou a ser realidade pal-pável, saindo do espaço mitológico onde acabou por ganhar existência. Quanto ao censor, um dos poucos privilegiados (ainda que inconsciente de tal privilégio) que pôde ler o livro antes de a história o colocar no pan-teão dos volumes inacessíveis, é de elementar justiça que a sua recomen-dação tenha, enfim, sido contrariada.

(3)

E N T R E V I S T A

P O R H É L D E R

B E J A

o poeta da liberdade, o crítico social, aquele que remou contra a maré, contra a autocracia, que conheceu várias vezes a prisão e a miséria, além da sua genialida-de poética.

O Daniel Pires é também o coordenador das obras comple-tas de Bocage, publicadas pela Imprensa Nacional. Escrever esta biografia ao passo que fazia esse trabalho foi um paralelis-mo importante?

D.P. – Foi muito importan-te para mim, na verdade. A obra completa de Bocage foi agora publicada pela quarta vez. Tive a preocupação de anotar tudo, de estabelecer o “código genético” de todos os poemas. De fazer tra-balho de arquivo para descobrir textos inéditos – e foram cerca de 12 – e ainda para equacionar o verdadeiro Bocage, desmistifi-cando a vulgata que o perspecti-vava como autor de anedotas pri-márias e o vinculava à pornogra-fia, omitindo a sua poesia erótica.

Não bem como Camilo Pes-sanha, mas também de coração apertado pelos amores, assim parte Bocage para a Ásia. Isso reflecte-se e muito em tudo quanto escreve por lá, verdade?

D.P. – Sim, Bocage parte para a Índia contrariado e até fracturado. Desertara e fora am-nistiado. Os oficiais da Marinha tinham de cumprir, ao longo da sua carreira militar, várias comis-sões nas colónias. A poesia com-posta na época por Bocage revela a sua paixão por Gertrúria, uma paixão da adolescência,

prati-camente a única mulher por ele invocada, no primeiro volume das Rimas, publicado em 1791. Abra-se um parêntesis para re-cordar que, chegado a Portugal, Bocage recebeu a notícia de que Gertrúria estava comprometida com o seu irmão Gil, tendo-se inclusivamente realizado o seu casamento pouco depois.

Mas ao contrário de Pessa-nha, ou de Fernão Mendes Pinto, nem a China, nem a Índia pare-cem ter entrado ou tocado o co-ração de Bocage. Porque será?

D.P. – Esta foi uma época de alguma desorientação do poeta, de conflito permanente com ele próprio e com os valores predo-minantes. A carreira militar, para a qual não estava vocacionado, que culminou com duas deser-ções – primeiro como guarda--marinha e depois como tenente, esta em Damão –, os desgostos de amor, uma evidente desadap-tação a uma sociedade construí-da em torno construí-da aristocracia (sen-do ele oriun(sen-do da burguesia), a ausência de liberdade e do direi-to de se assumirem divergências, o triunfo da mediocridade catali-saram a sua revolta.

Se Goa não merece palavras simpáticas de Bocage, tampou-co Macau as recebe. Como des-creveria a impressão que Bo-cage deixa de Macau nos seus escritos?

D.P. – Bocage esteve pouco tempo em Macau. Os baldões da vida conduziram-no a Can-tão, onde passou fome. Joaquim Pereira de Almeida,

responsá-Daniel Pires

Bocage ou o elogio

da inquietude

Imprensa Nacional

cer a sua poesia alternativa clan-destinamente. Só poderia ser as-sim, porque a Censura estava alerta e cortava substancialmente. Mui-tos poemas ficaram, portanto, em manuscrito, ou seja, nunca foram impressos. Nas Obra Completas de

Bocage publiquei 12. Não obstante,

há inúmeros poemas que lhe são atribuídos e não lhe pertencem. É o caso desse[s] que refere.

Bocage sente uma afinida-de visível com Camões, poética e também relacionada com o seu périplo pelo oriente. É justifica-da?

D.P. – Justificadíssima: ambos foram marinheiros, sofreram a prisão, conheceram a miséria, ti-veram uma vida afectiva infeliz e a sua poesia é genial.

É apenas depois de regressar desta aventura pela Índia e pela China que Bocage se torna no-tável em Portugal, correcto? Há alguma relação entre uma coisa e outra? Que impacto teve esta viagem no jovem Bocage?

D.P. – Sim, nada tinha publica-do antes publica-do seu regresso a Lisboa, em 1790. O jovem Bocage, quando estava no Oriente, depois de de-sertar, vivia de forma atribulada, no limiar da pobreza, sendo muito precário o seu quotidiano. Nestas condições dificilmente se pode fruir a sociedade e ponderar todas os seus atributos.

O poeta morreu jovem mas deixou um vasto legado. Que lu-gar ocupa nas letras portuguesas?

D.P. – Foi um dos três grandes poetas da poesia portuguesa, om-breando com Camões e com Fer-nando Pessoa. Tradutor de primei-ra água, estabelecendo, de forma original, uma teoria da tradução. Autor de um manifesto iluminis-ta, que deu brado em Portugal e foi amplamente perseguido pela Inquisição, pois a sua leitura, na época, registou-se em todo o país, incluindo o Brasil. Sim, morreu jo-vem, tinha 40 anos. «Para cúmulo, sem túmulo», intitula-se último capítulo da minha biografia de Bo-cage, porque os seus restos mor-tais foram lançados para a vala comum. Uma vergonha, pois as autoridades foram avisadas de que tal iria acontecer.

Foi, entre outras coisas, um espírito livre e um feminista à sua época. Era um homem à frente do seu tempo?

D.P. – Os seus hinos à liberda-de são paradigmáticos e só foram publicados depois da sua morte.

“Bocage foi

um dos três

grandes poetas

da poesia

portuguesa”

Daniel Pires, investigador bocageano,

terminou recentemente a ampla biografia

do poeta setubalense Bocage ou o Elogio

da Inquietude. A vida do poeta setubalense

passou de raspão pela Ásia e por Macau,

período com direito a um capítulo neste

trabalho, que quase pode ser lido como um

livro de aventuras.

O

trabalho bio-gráfico e pós-tumo à volta de certos au-tores serve por vezes para redefinir o seu lugar nas letras de um país ou de uma cultura. Bocage ou o Elogio da

Inquietude, de Daniel Pires,

pu-blicado este ano em Portugal pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, terá porventura esse condão, sem precisar para isso de hastear qualquer bandeira que o anuncie. Pires, investigador bo-cageano por excelência, mas com diversos trabalhos publicados so-bre outros escritores, entre eles Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes, não tem dúvidas em co-locar o vate de Setúbal ao lado de Luís Vaz de Camões e Fernando Pessoa como nomes maiores da poesia portuguesa. Em entrevista ao Parágrafo, explica porquê.

Bocage ou Elogio da Inquie-tude não é uma biografia literária

num tempo em que as biogra-fias literárias de grandes vultos da cultura ganham novo fôlego em Portugal – pensemos, por exemplo, em O Poço e Estrada, de Isabel Rio Novo, sobre Agustina Bessa-Luís; ou em A Morte Não É

Prioritária, de Paulo José

Miran-da, que regista a vida de Manoel de Oliveira. Esta biografia de Ma-nuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) é antes um grande e detalhado compêndio da vida livre e transgressora do autor de

Rimas, que apesar da sua

ampli-tude e extensão (tem mais de 500 páginas) não deixa de poder ser lida de forma escorreita, num es-tilo despretensioso e directo.

Bocage andou pela Índia (Goa e Damão) e pela China (Cantão e Macau), ainda que fu-gazmente, e essas viagens orien-tais, fruto da sua carreira militar e não sem vários percalços, me-recem a atenção de Daniel Pires. Nas páginas da biografia ficamos a saber mais sobre a passagem do autor setubalense por estes luga-res e pela Macau do seu tempo, cidade decadente sob adminis-tração portuguesa, que se pres-tava e muito à pena satírica do poeta, mas onde foi bem recebi-do e apreciarecebi-do, até pelo próprio governador.

O lançamento de Bocage ou o

Elogio da Inquietude esteve

pre-visto para Março deste ano, na Biblioteca Nacional de Portugal, mas foi adiado devido à pande-mia da covid-19, para data ainda por anunciar. Daniel Pires, que

depois de uma breve conver-sa telefónica preferiu respon-der por escrito às perguntas do Parágrafo, descreve a obra por si cunhada como “sucu-lenta”, destaca o enfrenta-mento de Bocage com Pina Manique – que acabou por mandá-lo prender e enviá-lo para as masmorras da céle-bre cadeia do Limoeiro – e o modo como foram certas esferas de poder a interceder em favor de Bocage, para que pudesse ser libertado.

Quando os dias voltarem a ser o que eram antes da pan-demia, ou mesmo que nunca voltem a ser o que já foram, Daniel Pires deixa um desejo: “Gostava muito que o livro fosse apresentado em Macau”.

A biografia agora publi-cada é um trabalho de mais de 30 anos. Como foi fazer esta longa caminhada com Bocage?

Daniel Pires (D.P.) – A minha admiração por Bo-cage data da adolescência. Tem todo o sentido: no liceu circulava, com sigilo, claro, a poesia erótica. Mais tarde, com o 25 de Abril, impôs-se

A Censura, uma vez mais, impe-diria a sua publicação, se Boca-ge a tentasse. Liberdade era, na época, uma miragem: quem a reivindicasse era detido e posto a ferros, ou seja, enviado para a ca-deia do Limoeiro, para a Ilha do Fogo ou para as Pedras Negras, em Angola.

Bocage escreveu, em verso, o primeiro manifesto feminista português. Intitulava-se “Cartas de Olinda e Alzira” e denunciava o casamento enquanto contra-to social, à revelia dos afeccontra-tos, a educação preconceituosa, a hi-pocrisia clerical neste domínio, além de reivindicar o prazer por parte da mulher. Isto na época era extremamente progressista e revolucionário. Claro que este hino à mulher só foi publicado 50 anos depois da morte do poe-ta, numa edição clandestina, de 1854, na obra Poesias Eróticas,

Burlescas e Satíricas de Bocage.

Como olharia Bocage para o Portugal e, já agora, para a Macau dos nossos dias?

D.P. – Bocage era uma pessoa extremamente crítica e possuía muita sensibilidade. Utilizá-la-ia certamente em sonetos farpados e em outros géneros poéticos. vel pela aquisição da carga

do navio Marquês de Anjeja, ofereceu-lhe guarida e frater-nidade. Levou-o para Macau, onde, tendo em consideração as monções, era necessário es-perar pela melhor altura para regressar a Portugal. Apesar de ser desertor e de ainda não ter publicado qualquer livro, foi bem acolhido pela sociedade e protegido pelo próprio gover-nador, rendido à forma como ele dizia poesia e ao seu humor peculiar. Lázaro da Silva Ferrei-ra eFerrei-ra, com efeito, um gFerrei-rande bibliófilo, tendo oferecido mui-tas obras à Biblioteca Nacional, então recém-fundada.

Bocage chega a Macau em 1789 depois de desertar na Ín-dia. Ali foi encontrar uma so-ciedade que se prestava muito à sua sátira?

D.P. – Sim, é verdade. A de-cadência era profunda: longe estavam os tempos em que os contactos com o Japão tinham conduzido a um progresso substancial. Mas o Japão encer-rou as suas fronteiras a todos os europeus, à excepção dos holandeses, que estavam auto-rizados a permanecer na ilha de Dejima e aí efectuar os seus ne-gócios. Tal encerramento durou cerca de dois séculos, até ao dia em que o almirante americano Perry, corria o ano de 1854, en-trou com a sua poderosa fro-ta de guerra no país e exigiu a abertura. Tão profunda era a crise em Macau que Bocage escreveu um soneto arrasador para o clero local: “Um governo sem mando, um bispo tal”.

Ainda assim, houve em Macau quem o ajudasse e essas pessoas receberam do poeta palavras de agradeci-mento. Quem destacaria de entre elas?

D.P. – O governador Lázaro da Silva Ferreira, obviamente, a quem o poeta dedicou o poema “A Gratidão”. João Pereira de Al-meida, influente mercador, que ali residia, e Maria de Saldanha Noronha e Meneses, homena-geada no soneto “Musa choro-sa que por terra estranha” e nas odes “A Esperança” e “O Adeus”.

O Daniel diz que se atri-buem a Bocage vários poemas, também sobre esta romagem oriental, que não são seus. Isto é algo que procura corrigir nas obras completas do autor?

D.P. – Bocage deu a

conhe-E D U A RDO MA R T IN S

(4)

P O R S TAC E Y QI AO

C R Í T I C A

Um tributo

às mulheres

E

m 2017, num co-mentário sobre

Broken Wings, o

ro-mance de Jia Pin-gwa que motivou enorme con-trovérsia pela sua posição sobre o tráfico de mulheres, o sinólogo e tradutor alemão Wolfgang Ku-bin desabafou: «Sempre me pa-receu que os escritores chineses, homens, não sabem nada sobre mulheres.»

Entre os livros escritos nas últimas décadas, a crítica de Ku-bin encontraria algum sentido perante a obra de Yan Lianke, com as suas personagens femi-ninas tantas vezes apresentadas como estereótipos da mulher compreensiva ou da mãe dedi-cada. E talvez por isso o autor tenha sentido como um imenso desafio o gesto de escrever so-bre as mulheres que marcaram a sua vida. Quando o volume de ensaios 她們 (Elas) chegou às livrarias, em Maio deste ano, tinham passado 11 anos sobre a publicação do muito popular 我 與父輩 (vThree Brothers:

Memo-ries of My Family, traduzido em

inglês por Carlos Rojas para a Chatto & Windus), livro auto-biográfico dedicado às histórias dos homens da geração do seu pai. «A razão pela qual esperei tanto tempo antes de escrever

sobre mulheres foi por não que-rer escrever sobre elas como a geração do meu pai”, escreve o autor no prefácio de 我我. Yan Lianke sentiu que ainda não tinha en-contrado a abordagem correta e estava ciente das suas limita-ções, pelo que decidiu recorrer a vários livros sobre feminismo. Em entrevista ao site The Paper, o escritor disse: “Esse tipo de lei-tura e compreensão compensa a minha ignorância anterior sobre o feminismo. E ajuda a afastar e cortar o ‘machismo’ e o ‘domínio patriarcal’ dos meus textos, para que possa ter total compreensão e respeito pelas mulheres. O peito é tudo. Somente com res-peito pude começar a trabalhar neste livro sem problemas.»

Ao longo de 7 capítulos e quase 300 páginas, Yan Lianke narra as histórias de 25 mulhe-res, desde a geração da sua mãe até à da sua neta. «Escrevo sobre as suas lágrimas e risos, o seu silêncio e loucura, a sua tolerân-cia e despertar», afirma o autor no prefácio.

O livro começa com a lem-brança enternecedora de Yan da sua experiência nos encontros combinados – arranjados pelos familiares que tentavam casar os seus filhos – e uma cuidado-sa análise da sua própria

covar-Yan Lianke

她們 (Elas)

Henan Literature and Art Publishing House

dia. Sendo filho de um agricul-tor sem grandes recursos, na província pobre de Henan, não podia recusar aproximar-se de uma rapariga tão virtuosa como a que lhe apresentaram, tão vir-tuosa que, no primeiro encon-tro, começou imediatamente a tratar da casa onde Yan vivia e a cuidar do seu pai doente. «A co-bardia é uma doença crónica na minha vida. Fez sempre parte de mim, tal como o meu nariz ou os meus olhos. Muito além das palavras, a cobardia fez-me ser o que sou hoje, foi-me levando como uma cobra, serpenteando em volta da minha caneta, dos meus membros, do meu desti-no.», confessa o autor.

Yan Lianke ficou noivo des-sa rapariga. Sendo um escritor de propaganda e estando no exército, desesperado para es-capar da dureza da vida rural, acabou por decidir cancelar o noivado quando a carta da sua prometida, mal escrita e com quase um quarto dos caracteres substituídos por pinyin, foi en-contrada acidentalmente pelos seus camaradas. Yan conven-ceu-se de que a rapariga, que apenas frequentara o ensino bá-sico, acabaria por ser a fonte da sua humilhação e escreveu-lhe uma carta terminando a relação.

A rapariga, embora furiosa, não pensou em denunciá-lo ao exér-cito, o que poderia ter tido sérias consequências para a sua car-reira. Olhando agora para trás, Yan não consegue evitar arre-pender-se da maldade presente na sua alma e lamenta o custo da sempre esperada bondade nas mulheres: «Por que motivo, na nossa sociedade, a bondade de um homem geralmente é vis-ta como incapacidade, enquan-to a bondade de uma mulher acaba por provocar infortúnio e tragédia?»

Ciente da desigualdade de género na China, o autor regis-ta as suas impressões sobre o tema: «Ser o filho mais novo de uma família é um pouco como ser uma maçã rodeada de ga-lhos e folhas. Apoiada pelos galhos e pelas folhas, a maçã recebe toda a atenção, todo o calor.» Como nota neste livro, as mulheres são sempre quem tem de fazer os maiores sacrifícios – a sua irmã mais velha vendeu os cabelos que tinha deixado crescer até à cintura em troca de algumas garrafas de refrigeran-te para a família; a sua segunda irmã, com melhores resultados escolares, cedeu a sua oportuni-dade de frequentar o ensino mé-dio a Yan. A subordinação das mulheres é um dado adquirido e o autor vê agora a crueldade dessa norma social, que persis-te há milhares de anos. Embora a maioria das personagens re-presentadas neste livro corres-ponda a membros da família do autor, esse núcleo torna-se mais vasto no último capítulo, onde se contam histórias extraordi-nárias de algumas mulheres que viviam na cidade natal do autor: a mulher que, depois de anos de abuso e violência, matou o marido e o enterrou debaixo do chão da cozinha, a vizinha que pôs fim à própria vida porque não vislumbrava nenhum fim à vista para a sua labuta quoti-diana, a mulher que se tornou amante do governante de uma cidade e, ao mesmo tempo, secretária do partido, influen-ciando de tal forma as políticas municipais que a cidade acabou por ficar conhecida pela sua go-vernação solidária... Yan retrata todas estas personagens como gente que se recusou a ceder e a cumprir aquilo que era espera-do, e fá-lo com grande empatia e compreensão.

Importa destacar que, além das narrativas de vida de vá-rias mulheres, o livro inclui de

modo claro as reflexões do au-tor sobre as desigualdades de género, nomeadamente num capítulo dedicado às teorias fe-ministas intitulado “O terceiro sexo: alteridade das mulheres”, que Yan Lianke insiste para que seja lido como reflexão pessoal, não como leitura académica. Baseando-se no famoso livro de Simone de Beauvoir, O Segundo

Sexo, o autor define “terceiro

sexo” como esse espaço de al-teridade em que as mulheres são fortemente condicionadas por factores culturais e circuns-tâncias sociais. E nessa linha de pensamento, defende que a ideia da promoção da igualdade de género na China, ilustrada pela proclamação de Mao Ze-dong de que “as mulheres sus-tentam metade do céu”, foi ape-nas uma tentativa de diminuir a falta de mão-de-obra naquele momento. Fora do campo labo-ral, não existe um respeito ge-nuíno pelos direitos e pela dig-nidade das mulheres, principal-mente das mulheres do campo. Mesmo agora, as campanhas fe-ministas na China ignoram am-plamente a parte rural do país e a vasta população feminina nas aldeias continua a existir numa espécie de ângulo morto. Neste livro, Yan Lianke tenta lançar al-guma luz sobre essas mulheres invisíveis, contar as histórias não contadas das suas vidas e, como diz o próprio autor, «fazer com que os leitores mudem um pouco de atitude em relação às mulheres e aprendam a vê-las antes de tudo como pessoas». Parece uma exigência antiga, mas continua a não estar con-cretizada.

P O R

H É L D E R B E JA

C R Í T I C A

Um jogo pouco literário

A

literatura enquanto jogo pode ser entendida de muitas maneiras. Aquela que mais me interessa será porventura a de Jorge Luís Borges e Italo Calvino, ou a de Julio Cortázar. Todos estes autores, de modos diferentes, me oferecem esse prazer do jogo literário – mas um jogo reflexivo, em que o leitor não é sujeito passivo e muito menos pacificado, em que a sua inteligência e imaginação e referências são postas ao serviço do texto que o desafia a cada página: anda, vem jogar comigo.

Outro tipo de jogo literário, para mim ultrapassado por tan-tas outras formas narrativas que hoje se nos insinuam, é aquele em que o leitor atravessa cen-tenas de páginas apenas para perceber quem matou, quem traiu, quem passou a mensagem secreta, quem decifrou o código, quem isto, quem aquilo, como estivesse enredado numa espé-cie de episódio interminável de

Crime Sob Investigação ou numa

daquelas simpáticas mas limita-díssimas aventuras (perdoem--me os aficionados) de Poirot ou Sherlock Holmes. Claro que, depois, há o engenho literário e, com ele, quem consiga fazer des-ta segunda e obsoledes-ta fórmula lúdica qualquer coisa que valha a pena ler, mas dificilmente. Em

A Mensagem, Mai Jia, fenómeno

recente da literatura chinesa tra-duzida, não consegue.

A Mensagem, agora editado

em Portugal, começa então por ser um desses romances de intri-ga e espionagem, com a ocupa-ção japonesa da China durante a II Guerra Mundial em pano de fundo; com um lago e sua bela

cidade, Hangzhou, como cená-rio; com agentes comunistas e agentes republicanos do KMT infiltrados no regime fantoche criado pelo Japão para governar a China; com umas raparigas bo-nitas e inteligentes e uns homens maus e outros misteriosos e ou-tros astutos e cruéis; com uma reunião que está prestes a acon-tecer e que é uma oportunidade de apanhar peixe comunista e graúdo; e, claro, como o título indica, tudo por conta de uma mensagem que foi interceptada.

Durante mais de 200 páginas, a que dá o título de “O Vento Les-te”, o autor encerra-nos na Pro-priedade Qiu, o lugar onde tudo se passa e onde conhecemos as personagens sobre as quais pai-ram as suspeitas de afiliação vermelha: Wu Zhiguo, Jin Shen-ghuo, Li Ningyu, Bai Xiaonian, Gu Xiaomeng; e aquelas que estão ali para descobrir quem é o comu-nista encapotado, nome de códi-go Fantasma. Do lado dos man-dantes, destaca-se Hihara, um japonês ali enviado propositada-mente para arrancar a verdade daqueles colaboracionistas que, tendo traído o seu país, teriam agora traído também os seus no-vos senhores nipónicos. Os mais benevolentes dirão que esta pri-meira posta do livro de Mai Jia, ele próprio um ex-operacional de agências de espionagem chi-nesas, se lê de uma penada, des-tacarão o o seu ritmo e vivacida-de. E de facto assim é, as páginas atravessam-se sem esforço, com um remador a cortar por águas brandas, como um futebolista a atirar a uma baliza vazia, sem agi-tação nem desafio. É quase tudo superficial e previsível neste jogo, e na forma literária nada há digno de apontamento.

A Mensagem é uma teia de

conspiradores, carrascos e dela-tores, e há quem veja aqui uma crítica velada à Revolução Cul-tural; e é também a história de um escritor em crise pessoal à procura de um caminho. Mai Jia põe-se ao lado dos leitores quan-do afirma querer que “aprendam a ser desconfiados”, porque “o olhar incrédulo vai aproximar-se muito mais da verdade”; e salta para o lado das personagens, ao afirmar que “a vida pode ser mui-to difícil” mas “temos a incum-bência de lutar para sobreviver”. O leitor que sobreviva a estas 500 páginas tirará as suas próprias conclusões.

nhamos alguma simpatia pela trama, apesar de Mai Jia insistir em referir o “enigma que tinha acontecido há mais de meio século” como se fosse sempre muito maior e muito mais in-teressante do que na realidade nos consegue transmitir. Mai Jia parece obcecado pela história e, de cada vez que reflecte sobre os factos, surgem novas perguntas – para si, para o leitor e para a senhora Gu. Até que ela se reme-te ao silêncio e o narrador aco-lhe: “Desta vez também me vou manter em silêncio. Não há nada a lamentar. Afinal, neste mundo, há sempre muito mais coisas mantidas em segredo do que nos é permitido saber” (pp. 393).

A Mensagem conclui com

“Calmaria”, onde Mai Jia relata o processo de escrita do livro e a necessidade de desacelerar, e onde revela o muito previsível segredo que justifica a animosi-dade entre o senhor Pan e a se-nhora Gu, os dois testemunhos para as duas versões da mesma história. Aqui encontramos al-gumas das melhores passagens da obra: “As minhas energias e estados de espírito são consu-midas no processo lento que é a memória e a espera. Esperar é também um desejo de velocida-de (pp. 402).

No verdadeiro posfácio do livro, Mai Jia parece querer justi-ficar-se ao escrever que “A

Men-sagem é sobre o que acontece às

coisas”, que “começa como uma espécie de mistério de quarto fechado; isto é bom, pois os lei-tores gostam sempre de uma história misteriosa”. Mas que, na verdade, “um mistério de quarto fechado acaba por ser uma in-vestigação sobre a condição hu-mana” (pp. 491). Não colhe. Só à página 251 A Mensagem

ganha algum sabor que o afaste da total vulgaridade. O narrador, que percebemos ser o próprio Mai Jia, anuncia numa espécie de posfácio desta primeira par-te, entre divagações metaliterá-rias sobre a sua vida de escritor famoso, que tudo quanto lemos anteriormente lhe fora contado por um professor de Química de nome Pan. Mai não estava “interessado em histórias verda-deiras”, mas acaba fascinado por esta. O professor é filho de um homem directamente envolvido na história da Propriedade Qiu e Mai Jia escreve a primeira versão da trama através do relato do ve-lho Pan.

A partir daqui, A Mensagem transforma-se num livro menos comum. Na segunda parte, “O Vento do Oeste”, acompanhamos o autor na sua busca por Gu Xiao-meng, a única suspeita de comu-nismo ainda viva, em Taiwan. Mai Jia consegue chegar à octogenária mulher, outrora uma jovem ape-titosa e arrogante, e é através de uma série de entrevistas com Gu Xiaomeng que vamos ficando a saber mais e esclarecemos as la-cunas existentes na primeira ver-são da história. A senhora Gu, dé-bil fisicamente mas muito capaz das ideias, corrige com os seus monólogos a narrativa de Mai Jia, insurge-se contra as alegadas ca-lúnias do velho Pan, que parece odiar, e aponta os erros joviais do autor, advertindo-o de que não deve acreditar em tudo o que lhe dizem. Gu Xiaomeng está em luta interior: teme expor-se ao falar com o escritor, mas exige repor a verdade.

Agora mais enleados nos pensamentos e dúvidas do au-tor, e na voz da senhora Gu,

ga-Mai Jia

A Mensagem

(5)

O que sobrou

para contar

aos piratas

P O R DA N I L O CON C E I Ç Ã O D O S SA N TO S I L U S T R A Ç Ã O RUI R A S QUI N HO

C O N T O

E

ra um dia como outro qualquer desses de trabalho no café da livraria. Eu esperava passar ali manhã e tarde até a hora de volta para o apar-tamento. Nada de impressionante, assim como em minha vida ou num expresso simples, preto e sem açúcar.

Mal saindo de sua sala, deixan-do só metade deixan-do corpo para fora, se-gurando a porta com uma das mãos, meu chefe me chamou com uma voz baixa reforçada por um aceno. Avisei a minha colega de trabalho que me ausentaria. Obviamente, era para fa-lar de alguma queixa de algum cliente sobre o serviço. Depois de cumpri-mentos costumeiros, saiu de sua boca uma frase lenta e engasgada, entre uma baixada de cabeça e um olhar envergonhado. O som enfrentava seu percurso, serrilhando o ar pesado e dificultoso, como o de qualquer sala de chefe, até chegar no seu alvo, eu. Ao ouvir aquela frase, me despedacei.

Anos de dedicação jogados as-sim, no lixo, como um filtro de café. Estou a mais tempo aqui do que qual-quer outra pessoa, mas isso, além de ser uma qualidade curricular, passa a ser um bom motivo de dispensa, quando se quer cortar gastos. Meu serviço pode ser executado por qual-quer jovenzinho pela metade do salá-rio. Ninguém nunca se dedicara com eu, tolerara chefe insuportável e o mal gosto dos clientes, mal humorados, frios e indigestos. Tolerei o intolerável e me costumei a isso tudo. Não vivi ali nada de emocionante, mas tinha me apegado aos cafés, aos livros, as pol-tronas macias, as janelas, a vista de fora, ao entrar e sair, ao balançar da porta.

Nunca fui despedida na vida. Es-tava acostumada a eu abandonar as coisas, os planos, algumas pessoas e as histórias que lia, exceto as de aven-tura, que eram as que eu gostava, mas nunca vivi. Talvez por isso, gostasse tanto. Estava abalada.

Retirei o avental e sai. Não sa-bia o que fazer. Nunca sai durante as manhãs de um dia de semana. Não sabia para onde iria, se voltava ao apartamento, se voltava a livraria. Se voltasse, o que faria? Não tinha mais nada com aquele lugar. E lá não tinha nada que me agradasse, apenas a aco-modação da borra de um ex-emprego assentada no fundo do copo. O som de xicrinhas batendo nos pires já es-tava a me irritar. Tudo era mais do que conhecido. Já não suportava o cheiro de café misturado ao de livros desin-teressantes nas prateleiras de uma li-vrarias de decoração banal, em meio a dias entediantes. Na verdade, estava

cansada e acho que essa demissão foi a melhor coisa que poderia ter acon-tecido. Me sentia sufocada com os aromas dos enfados diários. Talvez, o destino me agraciara com algo. Quem sabe uma aventura doce com adrena-lina. Eu precisava viver longe de livros e mais livros. Dos livros era tudo que eu sabia. Viverei na pele agora. De hoje em diante, viverei. Decidi: irei ao aeroporto e embarcarei no primei-ro voo que encontrar, de preferência sem saber muito sobre o local a qual irei.

Aeroporto. Entrei. Procurei o voo mais próximo. Vi Macau, China. China! Dei uma lida rapidamente nesses sites de turismo sobre o local. Li histórias de português, chineses e piratas. Fiquei curiosa, insegura. Seria Macau meu destino?Entre a espera do voo, mil coisas passavam em minha cabeça. Não conhecia a língua, não conhecia ninguém, não sabia nada. Como uma pessoa que é demitida de-cide viajar? Deveria conter despesas. Nunca se sabe sobre o futuro. E um futuro sem mala, sem nada, só corpo e desejo quente borbulhante. O que esperar dele? Em meio a uma amarga crise mundial financeira, que nun-ca termina, eu viajarei! Sou lounun-ca?! Eu não posso deixar tudo para trás, assim. Entre pensamentos rápidos e cortantes, se sobrepondo uns aos ou-tros, parei o frenesi e pensei em outra direção. Deixar tudo para trás? Mas tudo o quê? Não tinha nada! Minha vida se resumia a fazer cafés. Máqui-nas de expresso, modos de preparo, grãos, processos de torra, moagem… Estava enjoada.

Verdadeiramente, não do cheiro diário do café, mas do cheiro diário, inodoro e insípido de minha vida. Serei louca, sim! Se der certo, minha loucura, descobrirei meu destino: viajar, por aí sem destino. Vai ser uma aventura, desastrosa ou não, mas sem remoço. Não avisarei a amigos e fa-mília. Poderia muito bem dizer sim-plesmente: a barista saiu pelo mundo. Não me cairia a língua. Mas, não. Será um segredo. Nosso. Meu e de Macau.

Quando cheguei, era início de tarde. Descobri que a região é forma-da por uma península e duas ilhas. Macau foi pintada a um tom marí-timo, mas por dentro era um arqui-pélago de prédios dos mais exóticos gostos. Uma mistura entre charme e o esquisito, esse foi o primeiro impacto que tive ao desembarcar na região.

Não sabia muito bem o que fazer. Comprei um mapa. Consegui dicas com meu péssimo inglês, através de um grupo de chineses que visitavam a região. Me contaram também uma história, dessas que têm um pouco

ou muito de verdade. Macau foi doa-da pela China aos portugueses, para que estes lidasse com os piratas que ameaçavam a região e estava sendo um pesadelo para os orientais. Sem-pre fui atraída por histórias de piratas. Inacreditável o que me levou justa-mente a estar ali.

Segui as dicas que me deram, do meu jeito. Entre prédios modernos e uma arquitetura de épocas distintas preservadas, não sabia onde estava. Uma mistura de tempos, de línguas. Os nomes em português, em meio a todos aqueles macaenses e chineses, pareciam realmente estarem deslo-cados.

A arquitetura portuguesa e chi-nesa era bem preservada e se desta-cava ao lado de prédios modernos, o que faz deste lugar diferente, um en-contro cultural exótico, como se uma peça de xadrez fosse colocado num quebra-cabeças. Como se cafés tur-cos, solúveis, long black, macchiato, fossem misturados a licores, cremes e bebidasalcoólicas, tornando-se uma única bebida. Foi isso que os piratas tanto queriam? O que eu estou fazen-do aqui? Contarei aos meus amigos e pedirei ajuda para voltar. Se meus amigos soubessem, me desencoraja-riam. É do outro lado do mundo, di-riam. Que bom! Preciso dar a volta na minha vida. Mentira! Eu responderia que sim, que estão certos e desistiria. Sempre fui de desistir. Sempre fui de ficar, estacionada. Como uma flor. Nunca penseique uma flor tivesse um significado ruim. Não poderia recuar agora. É uma questão de dignidade.

Resolvi seguir caminho. Seguin-do as dicas que me deram, Museu de Macau. O lugar preservava canhões, que foram eficientes contra piratas, mas não contra os cassinos ao estilo do Tio Sam. Continuei andando um pouco pelo local. Mais canhões.

Foram isso que expulsaram os piratas? Preciso de um conjunto des-ses em minha vida para expulsar algu-mas coisas fora de alcance das mãos.

Continuei a caminhar. Passei por essas bancas que vendem souvenires. Vi alguns símbolos em cantonês, em forma de pingente, sendo vendidos por um homem idoso.

Perguntei o que significavam os quatro símbolos. Meu mal inglês mais uma vez me salvou. O homem disse que significavam alma, amor e subli-mar. Teve um outro pingente, que pa-recia ser único, mas que ele resolveu esconder. Não me revelou o nome. Fiquei interessada e perguntei mais uma vez sobre esse especificamen-te. Insistiu em não querer responder. Explicou rapidamente que o artesão errou e não deveria ser assim. O que

me deixou mais curiosas. Até que de-pois de muita persistência minha, ele disse: invadir.

Lembrei-me dos piratas. Falei que queria comprá-lo. Justamente este. Com muita dificuldade, como tudo na minha vida, demorei minutos até convencê-lo que sabia o que esta-va fazendo, e sabia o que estaesta-va que-rendo. Levei o pingente e coloquei-o imediatamente no pescoço.

Anoitecera. Luzes de cassinos me atraíram. Nunca entrei num desses. Realmente luxuosos. Mas não quis ficar muito tempo. Com certeza, não seria difícil encontrar um lugar des-se em outros ares. Las Vegas tem dos mais luxuosos. Não viajei aqui para isso. Não sabia exatamente porque viajei para Macau. Mas por esse luxo, não era. Foi o primeiro voo a sair do aeroporto. Viajei por uma aventura. Uma aventura teria. Nunca quis uma vida de luxo, por isso nunca me im-portei com esses artigos que encan-tam tantos.

Agora, estou pensando o mes-mo sobre a aventura. Nunca fui dis-so. Nunca fui aventureira. Nunca me arrisquei. Talvez por isso, o risco me atraia tanto. Mas ele nunca me arre-batou. Verdade que minha vida sem-pre foi mais uma poesia. Daquelas melancólicas. Mais uma vez, uma flor. E flores não são aventureiras. Nem saem do lugar.

Vim para Macau, não por causa de uma aventura, mas para encon-trar alguma coisa. Coisa essa que não achei fora de mim. E parece que estou sentindo dentro, agora. Me sin-to deslocada. Sinsin-to que isso é bom. Deslocada da acomodação que vivia, mesmo sendo flor. Até as flores são balançadas pelo vento em certos mo-mentos. E eu não era.

Era isso que vim encontrar: a mim.

O que procurava fora, o que não sabia o que procurar, o que nunca en-contrava. Está claro agora a resposta. Não encontrava a tal coisa, que nesse

instante sei que sou eu, porque sem-pre procurei fora e nunca dentro de mim. E dentro deveria ser o primeiro lugar em que eu deveria procurar al-guma coisa. Vivi esses anos todos me desconhecendo por dentro. Nunca ti-nha me invadido nem tentado.Agora vivo aquele puro sentimento de saber quem sou sem entender muito bem cada parte de mim, mas me reconhe-cer no todo, por ter me apresentado a mim mesma recentemente. Mui-toprazer!

Vejo que minha imagem no es-pelho e afirmo: sou realmente eu.

Precisava fazer um exorcismo nesse exato momento. Uma coisa que qualquer moradora de uma cidade no interior de um estado do interior do país, sempre faz quando chega em um lugar com costa. Apreciar o mar. Nunca tive intimidade com o mar.

Chegada a praia, pus os pés. Frio. Meu dedo tocou com um pincel a água. O mar estava ao tom do preto céu e os barcos, ao longe, o ilumina-va em pontilhismo. A lua agraciailumina-va a noite com um pingo de branco que refletia na água, a marejar com as le-ves

ondas noturnas, como se alguém tivesse embebedado um pincel e, do alto, deixasse cair um pingo de tinta alva ali, no mar, e este não quis se di-luir na água, permanecendo.

Talvez os piratas precisassem saber disso que eu entendi só agora. Que não precisavam invadir Macau. Mas invadirem a si mesmos. Eu es-taria disposta a contar isso a eles en-tre um cappuccino e outro, sentada numa cafeteria qualquer, mas acho que eles não são muito inclinados a conversação. Confesso que não sei exatamente o que me trouxe aqui. Não falo aqui referente a Macau, mas aqui neste estado de consciência do que sou e do que preciso. Mas estou aqui. No lugar que os piratas tanto quiseram, comos pés em águas e res-postas. Era isso. Precisava ser invadi-da por mim mesmo.

(6)

P O R

JO S É L UÍ S P E I X O TO

V Í R G U L A

Contemporâneos

A

o tentar descrever o século XIX na li-teratura francesa, sinto a cabeça in-vadida por adjetivos mas, quan-do os analiso um a um, pare-ce-me que todos ficam aquém, falta-lhes justiça para descrever uma riqueza de tal tamanho. A Revolução Francesa teve o seu início no século XVIII, mas as suas consequências foram bem mais duradouras. Em França, o século XIX nasceu dessa explo-são, dessa sequência extraor-dinária de acontecimentos. A natureza profunda do tempo é a continuidade. Nem mesmo

as revoluções conseguem inter-romper a história. Nesse aspec-to, a história da literatura não diverge da restante cronologia. O século XIX francês, para lá do romantismo, realismo e outras fronteiras artificiais, resulta da-quilo que já se sonhava no sécu-lo XVIII.

1860. De modo relativa-mente aleatório, escolho esta data. O que tento dizer é: em 1860, em França, estavam vi-vos os seguintes autores: Vic-tor Hugo, Flaubert, Alexandre Dumas pai e filho, Zola, Jules Verne, Maupassant, Baudelaire, Verlaine e Rimbaud. É certo que

pose em fotografias, gravuras e estátuas. Os vivos são quotidia-nos, estão mesmo aqui, com to-das as suas misérias, tão perto. Os vivos são como eu e, por isso, falíveis, cheios de defeitos. Os mortos não são como eu.

Voltando ao século XIX da literatura francesa e à corres-pondência de Flaubert, é espe-cialmente interessante a passa-gem de uma carta que dirigiu à sua irmã Caroline, em 1843, na qual descreveu o seu primeiro encontro com Victor Hugo: “É um homem como qualquer ou-tro, com um rosto bastante feio e um exterior bastante comum. Tem dentes magníficos, tem ar de se cuidar e de não deixar nada ao acaso. É muito educa-do e um pouco rígieduca-do. Gosto educa-do som da sua voz. Tive o prazer de contemplá-lo de perto (...), os olhos fixos nos dele, na mão di-reita que escreveu tantas coisas belas. Lá estava, portanto, o ho-mem que mais fez bater o meu coração desde que nasci e, tal-vez, aquele de que mais gostei entre todos os que não conhe-ço.” A admiração é clara, existe um deslumbramento pelo dono daquela “mão direita” e, no en-tanto, é curioso notar a forma como, ao vivo, em presença, não é indiferente à falta de beleza e à dentição. O sublime intelectual não fecha os olhos ao prosaico físico.

Com 28 anos, em 1961, Ruy Belo publicou no seu primeiro livro o breve e eloquente poe-ma Epígrafe para a nossa

soli-dão: “Cruzámos nossos olhos

em alguma esquina/ demos civicamente os bons dias:/ cha-mar-nos-ão vais ver contempo-râneos”. Não há dúvida de que a quantidade de desconhecidos com quem nos cruzamos cons-tantemente é sinal de uma certa solidão, uma certa incomuni-cabilidade. Ainda assim, nestes três versos de Ruy Belo impres-siona-me ainda mais a chama-da de atenção para a incrível circunstância de partilharmos tempo, de estarmos todos aqui, neste preciso momento.

outro tempo é olharmos para o tempo que conhecemos, no-meadamente este em que es-tamos. Refiro-me sobretudo às pequenas marcas da existência, às características que, indepen-dentes de tudo o que localiza historicamente este momento, conferem realidade a estarmos aqui: a temperatura, a luz, a an-siedade, as imperfeições, a ex-periência dos sentidos. Admitir realmente a existência de Flau-bert, por exemplo, implica ima-giná-lo sob uma temperatura como esta, uma luz como esta, ansioso, imperfeito, com senti-dos em funcionamento. Nesse caso, não se trata sequer de uma tarefa que exija um especial es-forço inventivo, uma vez que Flaubert deixou muitíssimas impressões pessoais descritas na sua vasta correspondência.

Ainda assim, é mais fácil mitificar o passado, não resistir à inclinação natural que a pas-sagem do tempo nos propõe. O passado é uma projeção intelec-tual, distorcida pela perspectiva de cada um. Essa margem per-mite polir-lhe as arestas, aper-feiçoá-lo de acordo com os nos-sos interesses ou com a nossa preguiça. Somos benevolentes com o passado, como somos benevolentes com os mortos. É muito mais fácil perdoar-lhes, os mortos já não ameaçam nin-guém. Enquanto isso, o presen-te é muito mais cru. Abrimos os olhos e vemo-lo à nossa fren-te, repleto de imperfeições. O presente é sempre imperfeito, como nós.

No que toca ao enganador respeito produzido pela miti-ficação, os escritores vivos não têm outro remédio que não seja conformarem-se com o facto de que perderão sempre com os es-critores mortos. A obra dos mor-tos está acabada, não pode ser corrigida. A obra dos vivos é vo-lúvel, tem de defender-se em re-lação a todas as escolhas feitas. Os mortos são definitivos. Os vivos têm de responder perante todas as alternativas possíveis. Os mortos fazem a sua melhor atravessavam fases muito

dis-tintas das suas vidas: Maupas-sant e Rimbaud eram crianças, Verlaine era um adolescente, Victor Hugo e Alexandre Dumas Pai tinham 58 anos, os restantes andavam pelos trintas. Ainda assim, impressiona-me pensar que num determinado momen-to, em 1860, estes indivíduos es-tavam vivos ao mesmo tempo, todos eles circulavam por este planeta, tinham consciência de si próprios, havia alguma coisa a que cada um deles chamava “eu”.

Um modo prático de ten-tarmos conceber o que terá sido

E S C R I T A

N A B R I S A

T E X T O E F O T O G R A F I A

YAO F E N G

Nunca tive um animal de estimação, embora muito estime os animais. A epidemia tornou-me um prisioneiro em casa por isso apareceu-me na mente a ideia de ter um gato como companheiro. Assim, um gato entrou em casa como um novo membro da família. Inconsciente da timidez e do medo num espaço totalmente estranho, salta, corre e brinca, sentindo-se logo à vontade em casa. Também faz xixi em lados que julga estratégicos para delimitar as terras do seu novo reino. Parece saber do seu estatuto, que é igual ao meu, passeia à noite na minha cama a farejar o que vou sonhar, salta à hora do almoço em cima da mesa para compartilhar um peixe comigo, ou olha longamente para mim a ostentar os seus olhos redondos e cristalinos. “Tenho os olhos mais bonitos do que os teus”, o gato deve pensar assim. Não só olha, também lê, sentado à minha frente, com o nariz a cheirar palavras do livro que estou a folhear. Até rasga, com as patas dianteiras, a página que nada lhe agrada. Dorme muito, mesmo de dia, por vezes deitado rente aos meus pés, de patas para o ar, com um ar completamente seguro e confiante em mim.

O gato tem o seu carácter. É terno, carinhoso, amigável ao homem mas nada lisonjeador. Não tem sentido de se subordinar a ninguém, bem diferente de um cão que pode obedecer cegamente ao dono, sem princípios. O cão não se irrita nem se revolta conta o dono, mesmo que seja maltratado, a não ser que fique enlouquecido. A loucura é a única arma do cão para a revolta. O gato, porém, não é deste género. É autónomo e independente, ignora-nos a ordem e raramente se aproxima de nós a abanar a cauda quando o chamamos. O gato tem uma dignidade que nem muitos homens possuem. Ágil e vigilante, o gato está sempre atento e pronto para atacar inimigos, mas como estão os ratos? Na televisão? Olha inquieto pela janela para o jardim de fora, desejoso de descobrir um rato qualquer, ou salta na tentativa de apanhar uma mosca em voo para praticar o seu jeito natural. Deve achar muito aborrecida esta vida sem nenhum rival.

Comecei a ter um gato que já faz parte indispensável da minha vida. Eu e o gato, somos nós. O poeta americano Charles Bukowski escreve assim:

quando me sinto pra baixo tudo o que quero fazer é observar os meus gatos e a minha coragem retorna

estudo essas criaturas que são meus professores. 19/06/2020

(7)

www.muralsonoro.com/revista

Há dez anos que o Mural Sonoro surgiu no espaço aparentemente infinito da internet. Com vocação mais voltada para as artes musicais, sonoras e visuais, foi abrindo o leque de interesses e acabou por se afirmar como plataforma de divulgação, reflexão e partilha sobre a cultura, as artes e as práticas associadas a estes universos. Textos, imagens, vídeos e podcasts foram-se somando aos conteúdos do site e criando uma teia de conversas, leituras, trocas de ideias que tem marcado a paisagem cultural portuguesa e conseguido alcançar outras geografias com a mesma língua.

Agora, Mural Sonoro é também nome de revista. A ideia surgiu durante o confinamento exigido pela pandemia e foi sendo construída com a colaboração de gente de várias áreas artísticas. O primeiro número está disponível para leitura on-line e o editorial resume-o assim: «Esta revista actua em quatro linhas fundamentais: o género, o racismo, as artes e a cultura. Procura estabelecer uma ligação entre áreas do saber e das práticas culturais e artísticas (história contemporânea, sociologia, antropologia, história da arte, musicologia, jornalismo, pintura e literatura, videoarte, história oral) fomentando sempre a inclusão de perspectivas e reflexões.»

Neste número, com capa da artista plástica Élia Sofia Ramalho, há poemas de Fernando Nobre, Marta Domingos, Leonel Venturim, Pedro Branco, Regina Guimarães, Rui Almeida e Sandra Baptista. Sérgio Godinho conversa com Soraia Simões de Andrade sobre o seu trabalho. O escritor Nuno Camarneiro reflecte sobre o seu processo criativo, cruzando história e ficção a propósito do trabalho em torno da peça teatral

Eu, Salazar. Os efeitos da pandemia

em termos económicos, laborais, sociais e culturais são abordados por vários autores, escrevendo a partir de diversos países e ajudando a traçar uma radiografia possível destes tempos que vivemos. Historiadores de diferentes épocas olham para o passado, nomeadamente para os tempos da gripe pneumónica e para os seus efeitos nos espectáculos culturais, mas também para o presente, perscrutando o tanto que está em causa nas manifestações que têm marcado o quotidiano dos Estados Unidos da América. Há muito para ler neste Mural Sonoro, enquanto se aguarda a chegada do próximo número.

M O N T R A

D E L I V R O S

N A V E G A R É P R E C I S O

6.

Li He

Balada do Mundo

Livros do Meio

Poesia de um dos maiores poetas da dinastia Tang, é um dos sete livros lançados durante a Semana da Cultura Chinesa, que decorreu na Fundação Rui Cunha, trazendo aos leitores de língua portuguesa uma panorâmica muito vasta do pensamento, da história e da cultura chinesas. A tradução para português é de Rui Cascais Parada.

1.

4. 5.

6.

1.

VVAA

Rio das Pérolas

Ipsis Verbis

Volume colectivo de poemas de e sobre Macau escritos por autores de língua portuguesa, entre eles Fernanda Dias, Gisela Casimiro, Fernando Sales Dias, José Drummond, Hirondina Joshua ou Carlos Morais José. O prefácio é de Ana Paula Dias e a organização de António MR Martins.

2.

Steve Alpert

Sharing a House with

the Never-Ending Man:

15 Years at Studio Ghibli

Stone Bridge Press

Steve Alpert, um americano que domina o idioma japonês, trabalhou durante 15 anos nos míticos Estúdios Ghibli, de Hayao Miyazaki, em Tóquio. Neste livro, cruza as suas memórias desse tempo com histórias sobre o trabalho cinematográfico em torno de alguns dos filmes animados produzidos pelos estúdios e com reflexões sobre a sua condição de estrangeiro no Japão.

3.

Adam Kucharski

As Leis do Contágio

Ideias de Ler

Um livro sobre surtos, não necessariamente virológicos. Adam Kucharski escreve sobre a actual pandemia e sobre pandemias recentes, mas igualmente sobre a disseminação de informações falsas, comportamentos e até violências de vários tipos. O modo como nos relacionamos e organizamos, comunitariamente e à escala global, com todos os patamares intermédios, é o ponto de partida para percebermos como os vírus (e outras situações) se espalham.

4.

Maria Alberta Menéres

Poesia Completa

Porto Editora

Pela primeira vez, a poesia édita e inédita de Maria Alberta Menéres surge reunida em livro, corrigindo a injustiça de se associar a autora exclusivamente à sua produção literária destinada à infância (nem por isso menos valiosa). «O que trago de novo, são os olhos/ calmos,/ sem a tragédia das centelhas.»

5.

Paulo Scott

Marrom e Amarelo

Tinta da China

O novo romance de Paulo Scott coloca em cena dois irmãos, um branco e um negro, numa narrativa que reflecte de muitos modos a história do Brasil e os muitos traumas e abismos sociais que a foram definindo ao longo de séculos.

Mural Sonoro 3.

Referências

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