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EUGENIA E SUA INFLUÊNCIA NA POSIÇÃO SOCIAL DO DEFICIENTE NA CONTEMPORANEIDADE

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EUGENIA E SUA INFLUÊNCIA NA POSIÇÃO SOCIAL

DO DEFICIENTE NA CONTEMPORANEIDADE

Eugenics and their influence on the status of disabled

people in modern days

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Pedagoga Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação Universidade Estadual de Campinas morenadolores81@gmail.com

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Docente do Departamento de Educação Universidade Estadual de Londrina Pós-Doutoranda do Instituto de Psicologia

da Universidade de São Paulo

simonemoura@uel.br Resumo O presente artigo é fruto de um estudo que se agrega às pesquisas desenvolvidas

pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Deficiências e Tecnologias (Gepedtec) da Universidade Estadual de Londrina, mais diretamente ao projeto de pesquisa intitulado

Concepções de deficiência emergente do entrelaçamento dos discursos da educação especial e da engenharia genética, coordenado pela Profa. Dra. Simone Moreira de Moura. Será

apre-sentada, inicialmente, uma compreensão histórica acerca da concepção de ciência e natureza, eugenia, seus pressupostos e influências nas concepções de homem e educação do início do século XX. Consideramos necessária a realização deste percurso na medida em que o discur-so eugênico, na atualidade, tem ganhado espaço e novos contornos. A atualmente nomeada

eugenia liberal possui os princípios da antiga eugenia, mas com a defesa de melhor qualidade

de vida para as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência. Nesta perspectiva, ponde-ramos sobre as projeções, que embora sinalizem melhorias, também projetam o desapareci-mento das deficiências, o que sugere a eterna busca pela construção do humano ideal.

Palavras-chave eDucação, Deficiência, eugenia.

AbstRAct The present article is based on a study that adds to the researches developed

by the Group of Studies and Researches in Education, Disabilities and Technologies (GE-PEDTEC), from the State University of Londrina, more directly to the research project entitled Conceptions of disability emerging from the interlacing of discourses from Special

Education and Genetic Engineering, coordinated by Professor Doctor Simone Moreira de

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nature, eugenics, and its assumptions and influences on the conceptions of human being and education in early twentieth century. This course is necessary because the discourse on eugenics is gaining space and new shapes nowadays. Liberal eugenics, as it is being called, shares the same principles as that of old eugenics, but advocating a better quality of life for people who present some sort of disability. From this perspective, we ponder about the projections that, although providing signs of improvement, also project the disappearing of disabilities, which indicates the eternal seek for the construction of the ideal human being.

Keywords: eDucation, Disabilities, eugenics.

I

ntRodução

“A natureza humana seria um ‘bem disponível’”? (FEIO, 2010).

A eugenia nasceu com a pretensão de ser uma ciência que promoveria o melho-ramento da raça humana em nome do desenvolvimento e da constante busca por uma perfeição concretizada na construção de uma sociedade de homens ideais. Esta aspiração acabou por transformar-se em ferramenta ideológica, atraindo intelectuais das mais variadas atividades (cf. DIWAN, 2007).

Logo, almejando a regeneração da raça, estudiosos apoiaram-se na tese de inferiori-dade racial, passando a defender, em nome do alcance de um suposto progresso, o fim da miscigenação e a não reprodução dos indivíduos considerados geneticamente inferiores (sendo incluídos nesta classificação os deficientes), baseando-se, para tanto, na política eugênica (cf. STANCIK, 2006).

Essa eugenia1 moderna advém do darwinismo social de Galton, que acreditava que, por meio da seleção natural e da sobrevivência dos mais adaptados, ocorreria o fortaleci-mento de uma raça superior, solucionando, assim, gradativamente, os problemas sociais.

Os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos cam-pos da biologia, da saúde e da vida, de um modo geral, principalmente nos úl-timos trinta anos, têm colocado a humanidade diante de situações até há pouco tempo inimagináveis […] Se, por um lado, todas essas conquistas trazem na es-teira renovadas esperanças de melhoria da qualidade de vida para as sociedades humanas, por outro, criam uma série de contradições que necessitam ser anali-sadas responsavelmente, visando não só ao equilíbrio e ao bem-estar futuro da espécie como à própria sobrevivência do planeta. (GARRAFA, 2003, p. 213). Consideramos necessária a realização deste percurso na medida em que o discurso eugênico, na atualidade, tem ganhado espaço e novos contornos. A atualmente nomeada

eugenia liberal possui os princípios da antiga eugenia, mas com a defesa de melhor

quali-dade de vida para as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência. Nesta perspectiva, ponderamos sobre as projeções que, embora sinalizem melhorias, também projetam o desa-parecimento das deficiências, o que sugere a eterna busca pela construção do humano ideal. 1 O termo eugenia vem do grego e significa “bem nascido” (cf. DIWAN, 2007).

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d

esenvolvImento

Nos séculos XVI e XVII, as descobertas da modernidade levaram a mudanças de concepções e de visão de mundo e natureza marcadas por uma ciência mecânica, racional e utilitarista, a partir da qual se via o mundo como uma máquina que deveria servir aos homens (SANTOS, 2008).

Neste contexto, os eugenistas consideravam que a solução para os problemas sociais seria eliminar todos os que afastavam a sociedade de seu ideal de homem, seja por degene-ração física ou moral. Para tanto, impedia-os de procriar e desaconselhava o auxílio assisten-cial do governo. Medições de crânios e corpos, testes de QI e esterilizações obrigatórias em vários países, como Estados Unidos e Suécia, foram algumas das consequências visíveis da prática eugenista, que culminou no genocídio de Hitler na Segunda Guerra Mundial.

[…] os milhões de mortos pelos regimes totalitários do século XX eram vistos como indignos à luz das doutrinas racistas ou revolucionárias de seus algozes para suspeitar que exista algum tipo de incompatibilidade entre dignidade huma-na e manipulação genética, quer autoritária, quer liberal. (HECK, 2006, p. 44). No início do século XX, a América Latina era marcada pelo discurso de defesa da igualdade e cidadania, abolição da escravatura, rápido crescimento urbano, agravamento da miséria e intolerância em relação às diferenças étnicas, com isso aumentando a preo-cupação com o futuro das nações e o apoio à tese de inferioridade racial que condenava a miscigenação (justificando a situação latino-americana da época) e considerando a eugenia a ferramenta para alcançar o progresso (cf. STANCIK, 2006). Contudo, a América Latina aderiu à eugenia adequando-a à sua realidade e anseios, não sendo tão radical quanto as demais regiões: ao invés de utilizar as esterilizações compulsórias, incentivou o controle matrimonial, “restringindo ‘uniões inadequadas’ como entre indivíduos portadores de do-enças consideradas hereditárias e ‘vícios sociais’” (STEPAN, 2007, p. 517).

Renato Kehl, um dos maiores representantes do movimento eugênico brasileiro do início do século XX, afirmava que, para salvar o País, seria necessário adotar alguns pro-cedimentos, tais como: esterilização compulsória e permanente, controle de casamentos e educação eugênica, considerando hereditárias características como inteligência, vocação, talentos e outras (cf. BOARINI, 2003). “O ensino, a educação e a instrução higiênica so-mente teriam pleno êxito se dirigidos a indivíduos superiores em termos eugênicos” (VI-LHENA apud STANCIK, 2006, p. 28).

Entendida deste modo, a educação não teria a capacidade de superar uma genética considerada fraca, não sendo eficiente ante os corpos biologicamente inferiores, cabendo ao Estado, desta forma, zelar pelos mais aptos e não desperdiçar seu tempo com os demais (cf. STANCIK, 2006), pois a educação e as influências do meio não seriam suficientes para superar a genética. A influência da educação e do meio serve tão somente para despertar características genéticas existentes, “não fazem o milagre de criar ‘bons caracteres’, apenas revelam ‘bons caracteres’, quando estes existem” (KEHL apud STANCIK, 2006, p. 27).

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Vale estacar que, na perspectiva acima, as pessoas que não se enquadravam no padrão de aprendizagem eram consideradas incompetentes. “Kehl parece reduzir toda a diversidade humana aos fatores biológico-evolutivos, principalmente aqueles que se referem diretamente à hereditariedade” (BOARINI, 2003, p. 171); para tanto, pretendia combater a miscigenação e a imigração que, segundo ele, inviabilizavam a proposta de política de purificação racial.

Na esteira destas proposições, ao longo do tempo, a eugenia científica foi sendo desacre-ditada por conta das atrocidades nazistas, de maneira que tal termo foi tirado de circulação, mas continuou presente com outras nomenclaturas e com caráter liberal (cf. GUERRA, 2006).

Há tempo a biologia não mais é considerada uma ciência do destino, quer dizer, não se entende mais como caudatária da natureza, à revelia do conhecimento e de suas virtualidades tecnológicas. Nossa constituição genética começa a ficar ao alcance da mão. As fatalidades oriundas de tempos imemoriais dão lugar a op-ções; essas não mais necessitam de aceitação, mas exigem que sejam ponderadas. Aquilo que há pouco tempo crescia sem nossa ajuda pode agora ser feito por nós e assume as configurações que lhe concedemos o que pode dar, erroneamente, a impressão de que os humanos terão em breve um genótipo rigorosamente de-terminado pelos pais, mantido inalterável vida afora, ininfluenciável a qualquer ambiente e resistente a toda forma de interação com o meio. (HECK, 2006, p. 43). A ciência tem sido utilizada como base para a seleção artificial, que busca fortalecer a seleção natural. Esta seleção, enquanto restrita ao reino vegetal, não tem causado tantas polêmicas, mas, quando chega ao animal e, em especial, no humano, a situação se modifi-ca; o impacto passa a ser grande diante da recombinação gênica de DNA humano, surgindo questões éticas e morais diante destas pesquisas e atitudes, destacando a possibilidade de que tais ações tornem-se, paulatinamente, práticas eugênicas.

Se retomarmos a história, é possível afirmar que o homem sempre praticou o melho-ramento genético de espécies, seja na seleção das melhores sementes no intuito de me-lhorar o nível de produção de determinada planta, ou na escolha de cruzamento entre os melhores animais para formar descendentes mais desenvolvidos. Entretanto, a apreensão dá-se em relação ao DNA recombinante humano, que instiga questionamentos como os apontados por Habermas (2004).

É compatível com a dignidade humana ser gerado mediante ressalva e, somente após um exame genético, ser considerado digno de uma existência e de um desenvolvimento? Podemos dispor livremente da natureza humana para fins de seleção? (HABERMAS, 2004, p. 29).

Habermas manifestou

oposição à clonagem humana, à eugenia liberal, à pesquisa com células embrio-nárias meramente especulativas, e ao diagnóstico genético de pré-implantação (DGPI)2 […] tanto a técnica genética, quanto a escravidão, são incompatíveis com os direitos humanos e com a dignidade humana. (FELDHAUS, 2007, p. 94-95). 2 “O chamado DGPI (diagnóstico de pré-implantação) é uma técnica capaz de fornecer informações genéticas

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Neste sentido, Habermas concentra sua crítica na instrumentalização e redução da vida humana na qualidade de objeto manipulável (cf. SALVETTI, 2008, p. 86).

Habermas defende que se deve preservar o direito do ser humano, do indivíduo, de deci-dir a respeito de seu próprio corpo e o deci-direito de “poder-ser-si-mesmo”, devendo ser este, um direito inalienável. Logo, “não podemos supor o que seria mais ou menos ‘vantajoso’ para as gerações futuras […], não é possível obter-se um consenso presumido para operar no corpo de outrem em objeto de uma intervenção anterior ao nascimento” (PONTIN, 2007, p. 54).

Tais questionamentos colocam-nos diante de situações que nos fazem refletir, por exemplo, sobre a suposição de que um dos embriões analisados em um DGPI seja per-cebido com uma determinada deficiência. O que deve ser feito com ele? Implantado ou eliminado? Se detectada, em exames, a Síndrome de Down no ventre, o que será feito com esse feto? Conservado ou eliminado?

Enquanto com os métodos usuais de inseminação só é possível torcer para que as condições saudáveis e os traços tidos como vantajosos do esperma do doador escolhido sejam transmitidos ao embrião, o diagnóstico genético pré--implantacional (DGPI) oferece a possibilidade de avaliar distintos cromosso-mos com vistas a anomalias, como a trissomia que leva à síndrome de Down e a hemofilia na determinação do sexo, e permite registrar, com um crescente grau de segurança, a presença de alelos gênicos relacionados à atrofia espinhal progressiva, às distrofias musculares e à fibrose cística. Embora as intervenções de caráter eugênico negativo, terapêutico, clínico ou curativo, subseqüentes ao diagnóstico genético pré-implantação, alterem a presumida ordem preestabele-cida do patrimônio genético natural do feto, há um consenso generalizado de que estão a limine justificadas pelo assentimento posterior da prole, uma vez que é sensato admitir que seres humanos desejem não ter disposições patológi-cas monogenétipatológi-cas. Em relação à eugenia negativa não há, assim, controvérsias maiores quanto ao uso das técnicas disponíveis que impedem o nascimento de seres humanos onerados com deficiências graves, ou seja, aqui como alhures não há muita celeuma quando se trata de evitar o pior, o defeituoso, o que causa sofrimento e/ou traz infelicidade. (HECK, 2006, p. 47-48, grifo nosso). Ainda a respeito do diagnóstico de pré-implantação de embriões, surge a questão da pré-seleção das características do indivíduo a ser formado (cf. PONTIN, 2007). Surge, então, a questão dos critérios para esta seleção, de maneira a buscar que a criança esteja dentro dos ideais de homem tidos pela sociedade atual (escolhendo assim características como pele, cabelo, cor de olhos etc.) e consequente eliminação dos embriões, ou fetos, que não correspondam a tais expectativas.

A clonagem e o diagnóstico de pré-implantação de embriões são oferecidos como forma de viabilizar a construção de uma civilização sem doenças, ou livre, pelo menos, de certos males. (PONTIN, 2007, p. 90).

Estes procedimentos acabam por trazer, como consequência, a eliminação dos embri-ões ou fetos que não correspondam a tais expectativas, pois se almeja um ideal de homem

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e o distanciamento possível deste ideal causaria uma diferença significativa que deveria ser evitada. A respeito destas diferenças, Amaral afirma que:

a diferença significativa, o desvio, a anomalia, a anormalidade, e, em conse-qüência, o ser/estar diferente ou desviante, ou anômalo, ou anormal, pressu-põem a eleição de critérios, sejam eles estatísticos (moda e média), de caráter estrutural/funcional (integridade de forma/funcionamento), ou de cunho psicos-social, como do “tipo ideal”. (1998, p. 13).

O caráter estatístico divide-se em dois tipos: a “média” consiste no quociente da di-visão da soma das parcelas pelo número destas. A altura média dos homens, por exemplo, consiste na soma das alturas divididas pelo número de pessoas; as pessoas que se afastarem, tanto para mais quanto para menos, dessa média, são consideradas diferentes. O outro tipo é a “moda”, que se refere à frequência de determinadas características. Amaral exemplifica com a grande frequência de mulheres na profissão de professoras do ensino fundamental em detrimento do número de homens.

O estrutural/funcional diz respeito ao que Amaral define como “[…] integridade da forma quanto à competência da funcionalidade” (AMARAL, 1998, p. 13), ou seja, a pre-sença ou ausência de características, no indivíduo, que causem um não funcionamento, ou mau funcionamento, de determinadas atribuições do organismo (“deficiências”). O psicos-social, que na maioria das vezes abarca os dois primeiros, consiste na construção social de um padrão, um ideal de homem.

O exemplo destacado por Amaral é um ser: “jovem, do gênero masculino, branco, cristão, heterossexual, física e mentalmente perfeito, belo e produtivo” (1998, p. 14). De acordo com o pensamento da Escola de Frankfurt, a sociedade busca uma homogeneiza-ção. Neste sentido,

Adorno e Horkheimer afirmam que a civilização atual a tudo confere um ar de dessemelhança, eles definem o traço característico da indústria cultural: a padronização. Produto do Iluminismo, a indústria cultural elimina as dife-renças, uniformizando a vida segundo os padrões da racionalidade técnica. (ORTIZ, s/d, p. 14).

Nos escritos de Habermas encontramos a preocupação com os investimentos em pes-quisas tecnológicas, visando utilizá-las como um instrumento, “ou seja, de uma técnica que se coloca, não como meio para o avanço, mas como fim” (PONTIN, 2007, p. 43). Deste modo, “até onde a tecnologia não está causando uma mudança de perspectiva na forma de vida do ser humano, de forma que a própria concepção de liberdade, ou de ação política, é colocada em jogo por uma espécie de razão instrumental?” (PONTIN, 2007, p. 43). Surge daí a necessidade de uma legislação que oriente os limites para essa manipulação genética.

O recurso à chamada ética material implica, segundo W. Kersting, que seja de-cretado “um direito ao crescimento natural, à inviolabilidade das características

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naturais, à identidade não-planejada, à imperfeição”. As conseqüências de um recuo àquilo que é indisponível por natureza faz com que “[o] direito humano transforma-se novamente em direito natural; e ações da medicina reprodutiva e da tecnologia genética adquirem a qualidade de peccata contra naturam”.3 (HECK, 2006, p. 44-45).

Outra situação a se destacar é em relação ao conceito de “responsabilidade”, tratado por Hans Jonas (apud PONTIN, 2007), que questiona as consequências e problemas de im-plicações geracionais que a intervenção genética pode causar, podendo ser visíveis apenas nas próximas gerações.

Um atleta poderia argumentar que um dos competidores de uma determinada modalidade esportiva teve seu genoma alterado e, por isso, está em franca van-tagem. Um filho poderia culpar os pais por não terem alterado o seu genoma de forma que ele pudesse aprender matemática com mais facilidade. Uma con-quista pessoal já não seria tão “pessoal” assim, seria uma concon-quista da pessoa e de seu “programador”. A pessoa geneticamente modificada poderá sofrer com a consciência de ter de partilhar com outrem a autoria do destino de sua própria vida. (FEIO, 2010, p. 762).

Muitas outras questões podem surgir em relação a essas modificações genéticas: su-pondo que uma mulher seja mãe de aluguel de seu neto, a criança é filha de quem? Da por-tadora dos genes que ela recebeu ou da avó que a carregou no ventre? Ou, ainda, digamos que um casal realize uma fertilização in vitro e congele os embriões não utilizados (óvulos fecundados, que já possuem seu próprio DNA e estão vivos) e depois decidem não mais ter filhos: o que será feito desses seres em formação? Serão descartados? São questões éticas que circulam nas discussões acerca da engenharia genética.

O racismo, que aparece enquanto dispositivo desta tecnologia de poder, tem seu aspecto ampliado na forma de uma eugenia, de uma intervenção direta no material genético que dá forma ao humano. A assunção desta idéia de um for-talecimento biológico, seja no evitar o surgimento do indesejável ou na repro-dução do desejado, atinge, no estágio atual, com a clonagem e o diagnóstico de pré-implementação [sic], um ápice. Não é preciso sequer correr o risco que surja alguém com uma condição indesejável podemos escolher características determinadas para indivíduos futuros, de acordo com critérios científicos – a utilização estratégica do biológico, assim, fica clara, já que a seleção do sexo pode ser determinada, bem como as doenças mentais podem ser evitadas na constituição biológica, na seleção de um embrião que tem mais potencial para uma vida mais adequada em sociedade. O quadro de uma constituição de uma pureza de raça, portanto, permanece bastante presente no discurso que pretende a objetividade dos critérios que validam a utilização dos diagnósticos de pré--implementação [sic], ou mesmo da clonagem reprodutiva […] Aquilo que não 3 (Jürgen Habermas über die VergangenheitdesNationalstaatesund die Zukunft der Natur, p.

87.Ibi-dem. “Das MenschenrechtwirdwiederzumNaturrecht; und reproduktionsmedizinische undgen-technischeHandlungengewinnen die Qualität von peccata contra naturam”).

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se encaixa para a vida em sociedade, ou em uma homogenia de uma população, pode ser facilmente descartado, pois não encontra a proteção de um determina-do conceito de vida – que é reguladetermina-do normativamente. (PONTIN, 2007, p. 70). Historicamente, pautado por uma invenção científica da raça, aquele que é consi-derado diferente, ou desconhecido, é conceituado como inferior, consiconsi-derado indigno de viver em dada sociedade por não corresponder à padronização idealizada por ela. Esse fato reflete os tipos de indivíduos que a sociedade deseja, pois a estrutura social requisita pes-soas saudáveis e eficientes para o mercado de trabalho, e a ausência destas características causaria redução da produção. Segundo esta lógica, a pessoa com deficiência passa a ser considerada um

corpo fora de ordem, a sensibilidade dos fracos, é um obstáculo para a produ-ção. Os considerados fortes sentem-se ameaçados pela lembrança da fragilida-de, factível, conquanto se é humano. As pessoas com deficiência causam estra-nheza num primeiro contato, que pode manter-se ao longo do tempo a depender do tipo de interação e dos componentes dessa relação. (SILVA, 2006, p. 426). Isso é preconceito e “o preconceituoso afasta esse ‘outro’, porque ele põe em peri-go sua estabilidade psíquica. Assim, o preconceito cumpre também uma função social: construir o diferente como culpado pelos males e inseguranças daqueles que são iguais” (SILVA, 2006, p. 426).

Diante desta situação, presente em nossa sociedade e recorrente em outros períodos da história,4 surge o questionamento sobre as implicações que essas novas possibilidades

genéticas trariam para a posição social dos deficientes e a possível estigmatização e isola-mento dos indivíduos deficientes como uma das consequências da aplicação em massa da seleção genética. Fica o medo do retorno do horror visto na eugenia estadunidense e, em especial, na nazista (cf. NUSSBAUM, 2004).

É possível diferenciar a antiga eugenia do melhoramento genético, uma vez que na antiga eugenia a liberdade reprodutiva não era respeitada. Ao mesmo tempo, na época ain-da não se tinha como intervir na genética humana, a não ser pela restrição de casamentos. Já o movimento moderno é marcado pelo melhoramento genético e baseia-se na liberdade de escolha individual.

Inevitavelmente, discussões sobre a escolha dos pais em relação a filhos ge-neticamente deficientes são muito ameaçadoras às pessoas com deficiências. Mesmo que elas não envolvam o aborto de crianças deficientes já existentes – e, como no cenário principal desses autores, sejam consertadas basicamente as deficiências no útero ou após o nascimento –, há ainda algo alarmante na idéia de que a Síndrome de Down, a surdez e a cegueira deixem gradualmente de existir. Pessoas nessas condições não temem apenas a estigmatização cres-4 Para um estudo mais aprofundado indicamos JANNUZZI, G. R. de. A educação do deficiente no Brasil: dos

primórdios ao início do século XXI. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006 e MAZZOTTA, M. J. S. Educação especial no Brasil: história e políticas públicas. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

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cente e a falta de apoio social. Também sustentam vigorosamente (sobretudo os surdos) possuir uma cultura valiosa, que será obliterada se uma única norma de capacidades humanas básicas for aplicada completamente. (NUSSBAUM, 2004, p. 32).

Nesta direção, Nussbaum (2004) afirma que existe, por parte de alguns intelectuais, a defesa de que não há motivo para permitir a continuidade das deficiências, na medida em que as tecnologias poderiam superá-las. Nesta perspectiva, a autora questiona:

Certamente não ambiciono um mundo em que pais consertem seus filhos para que ninguém se sinta deslocado, ainda que todos saibamos que as vidas dos des-locados não são fáceis […] “Eles desejam que eu nunca tivesse nascido”, disse minha filha, ao ouvir que autores […] eram a favor de tratamentos genéticos de defeitos que se desviam do funcionamento humano normal. Sim, realmente eles o desejam. Mas quem, dada a opção de poder poupar o sofrimento de um filho, poderia seguramente discordar deles? É que só o fato de ter tal escolha já parece ameaçador e, de algum modo, trágico. (2004, p. 33).

Tal reflexão nos inquieta, na medida em que vivemos em uma sociedade marcadamen-te marcadamen-tecnológica que invade, não apenas as instâncias públicas, mas, sobretudo, as privadas, inscrevendo-se no corpo e nas concepções que há muito buscam construir o humano ideal.

c

onsIdeRAçõesfInAIs

Nos séculos XVI e XVII, as descobertas da modernidade levaram a uma mudança de concepção e de visão de mundo e natureza, aderindo a uma ciência mecânica, racional e utilitarista, a partir da qual via-se o mundo como uma máquina que deveria servir aos homens. Apoiado no cientificismo e na busca por uma homogeneização e purificação da humanidade, surge a eugenia, que esteve presente em diversos países por todo o mundo, variando suas características de acordo com a especificidade de cada país e suas demandas.

Nos países que a abraçaram com mais radicalidade foi possível perceber a presença de práticas abortivas, esterilizações, controle de casamentos, dentre outras ações visando ao desenvolvimento da raça.

A eugenia científica foi desacreditada no decorrer do tempo em virtude das atrocida-des nazistas, de maneira que tal termo foi retirado de circulação. Mas, apesar de o termo ter entrado em desuso pela ciência e pela ética, as concepções que abrangem tal conceito ainda estão presentes em nossa sociedade. Tentou-se implantar as proposições eugênicas de várias formas, tanto em melhoramentos raciais, por meio da seleção de casamentos, es-terilizações, abortos terapêuticos e ferrenha oposição ao assistencialismo, quanto hoje, em discursos camuflados numa visão liberal.

Ressaltamos que, embora este estudo discuta criticamente o uso, ou mau uso, das tecnologias, no caso específico da engenharia genética, diante das pessoas que apresentam algum tipo de deficiência, não há a intenção de negar os avanços das tecnologias atuais,

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frutos do desenvolvimento científico, mas seria contraproducente não refletirmos sobre sua utilização, concepções e posturas éticas que sinalizam grupos históricos e políticos, e não o contrário. Deste modo, inferimos que a questão da eugenia e sua inter-relação com sujeitos com deficiências, bem como os preconceitos em relação a esses sujeitos é decorrente de grupos históricos e sociais, como também da história desses sujeitos ao longo dos séculos.

E se nossas concepções acerca do homem modificam-se em sociedades concretas e historicamente determinadas, o que faremos dessa relação deficiência-possibilidade de me-lhoria anunciada como progresso técnico-científico?

São questionamentos complexos que carregam inescapáveis contradições, num qua-dro em que se mesclam o reconhecimento dos direitos e lutas conquistadas, organizações de grupos desfavorecidos, tensões e conflitos e a urgência de políticas públicas que ga-rantam a igualdade sem a perda da pluralidade. Não podemos negar a força da tecnologia e do mercado, que nos assalta e busca, a cada dia e de variadas formas, moldar nossas vidas e nossos corpos.

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dAdosdAs AutoRAs:

Morena Dolores PatriotaDa silva

Pedagoga Aluna especial do mestrado em Educação da

Universidade Estadual de Londrina

siMone MoreiraDe Moura

Doutora em Educação Universidade Estadual de Londrina Submetido em: 11/4/2012 Aprovado em: 30/9/2012

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