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Editora Penalux Guaratinguetá, 2020

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Academic year: 2021

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Editora Penalux

Guaratinguetá, 2020

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Polifonia em Voz mulher,

de Letícia Palmeira

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Voz Mulher • 15

— Siga a linha vermelha, senhora.

Novos tempos exigem novas regras. Quando me dizem que estamos vivendo um novo normal, consequência da pandemia da covid-19, sinto-me ultrajada e confusa pois, se não sou capaz de me adequar ao antigo normal, que dirá a um novo! Sempre considerei esquisita toda varieda-de varieda-de padrões. E muito embora eu tenha reagido contra as diretrizes do bom comportamento social, não escapei. No fim das contas, sou tão comum quanto uma samambaia.

Tão comum quanto todo mundo. Acredita que tenho até medo de morrer?

Mas é um medo diferente. Meu temor é regrado e co-berto pelo esoterismo que me guia e pelos incensos que perfumam a sala.

De volta à pandemia, desde o momento em que al-gumas medidas de distanciamento social foram flexibili-zadas, decidi ir ao médico e fazer uns exames de rotina.

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Um contrassenso. Para a segurança da população, as auto-ridades, que mais provocam caos do que ordem, tomaram providências para a diminuição de contágio do vírus. A primeira delas, que ninguém menciona, foi dar sumiço nas estatísticas para que lojas, shoppings e bares retornas-sem ao funcionamento.

Uma bebedeira só. Tudo é festa.

Só que as medidas de segurança permanecem: distan-ciamento, higienização e máscara. Autoridades não que-rem ser culpadas pela mortandade que assola ao meio-dia. Mas ainda assim, pessoas quebram as leis, passam por cima das ordens e que se dane o próximo. Diria que a peste trou-xe o pior e o péssimo de cada um de nós, em alguns casos. Dos poucos lugares em que estive desde o alerta da OMS, eu sigo as regras. Feito uma criminosa paranoica, ando na ponta dos pés, borrifo álcool por tudo quanto é canto, desinfeto sapatos e maçanetas. Admito que me sen-ti infratora por ter ido ao cartório, à farmácia, à padaria e a uma loja de presentes. Ponderei muito se deveria ou não sair de casa. E mesmo tomando todas as precauções, ainda carrego em mim a culpa que, assim como o vírus, é patológica. Culpa por estar viva e respirando enquanto outros não tiveram a chance de se despedir. Sempre que vou à manicure, retorno esgotada e me sinto falha por ter me deixado levar pelas mãos da vaidade.

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A vida continua, vibram os conselhos que eu recebo por telefone.

Eu sei que continua. Mas para quem? E para onde? No prédio onde funciona a clínica de diagnóstico por imagem, linhas adesivas no piso indicam o caminho de ir e vir.

Vejo poucas pessoas ao redor. Nas poltronas, placas sinalizam a necessidade de distanciamento. Nas paredes, outros sinais de atenção.

O uso de máscara é obrigatório.

Ao entrar, fui inspecionada por um homem de uni-forme, munido de um borrifador de álcool e um ter-mômetro.

Temperatura: 36,4°

Caso eu apresentasse febre, o que fariam comigo? Será que me obrigariam a sair ou cairia uma jaula sobre mim e surgiriam homens vestidos de branco como nos filmes?

Já chega!

Eu preciso dar um tempo nos filmes de ficção cien-tífica.

É setembro. Agosto passou tão rápido que quase não vimos. Justo ele, que costumava ser o mês mais longo do ano, voou sobre nós. Eu tinha a impressão de que tudo passava. Dor de cabeça, dor de cotovelo, mágoa ou ale-gria. Mas agosto, não. Era infinito. Do primeiro ao últi-mo dia do mês, uma eternidade desfilava diante de nós.

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Dois mil e vinte, porém, trouxe feitiço. Encurtou agosto, distanciou quem era próximo e fez da gente um mar de vozes aprisionadas na tecnologia dos aplicativos.

Nas ruas, um verdadeiro baile. Vejo pessoas usando máscara e fico besta quando vejo alguém de cara nua. Haja coragem. Ou estupidez.

Máscaras coloridas, estampadas ou até mesmo neu-tras. Os sorrisos estão escondidos, por hora. E assim será até que surja uma vacina ou antídoto.

Como eu disse, nem todos usam máscara de proteção. São negacionistas. Para eles não há vírus, pois tudo não passa de invenção comunista. E a terra é plana como uma folha de papel.

Evito o riso ao lembrar dos comentários que contra-riam médicos e cientistas.

Sigo a linha indicativa de quem irá fazer exames por imagem. Não estou nervosa. Meu nervosismo diante do check-up diminuiu desde que completei 40 anos.

Viva!

Quarentona, como dizem. Ou, de acordo com um ra-paz que se aproximou de mim certo dia, sou uma mãe que ele pegaria. Rótulo asqueroso. Desde a primeira vez que ouvi esse termo sexista de mau gosto, senti raiva. Um amigo me falou que eu deveria me sentir lisonjeada.

— Ele está te elogiando, maluca.

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Bem, mas isso faz tempo. Hoje não ouço mais co-mentários porque, além de ser uma mulher vivendo em tempos de clausura, evitando aglomerações, também não frequento os mesmos lugares de antes. Nada de barzinho, showzinho, cafezinho. Diminutivo já era. Eu me atenho à realidade de ser um tipo de eremita socialmente conhe-cida, com a agenda de contatos lotada, mas apenas duas pessoas em quem confio de verdade.

Fato é que eu não tenho mais paciência para festinhas ou reuniõezinhas de se embriagar de cerveja e tequila. Será velhice ou sensatez, por fim?

A clínica me parece um local organizado. A cada por-ta, um totem de álcool 70 para higienizar as mãos. Dois balcões dividem as atendentes em guichês. Para o atendi-mento, retiro a senha de uma máquina que fica entre as filas de cadeiras da entrada.

Aperto o botão que indica o exame de ultrassonografia e um papel salta com os dígitos 76. Esquecida da distân-cia que devo manter, ajudo uma senhora a retirar a senha para o atendimento preferencial. Através da máscara flori-da, percebo que ela sorri e me agradece. Os olhos cheios de algo que aparenta ser medo. Somente mulheres enten-dem a sensação que precede os exames aos quais somos sujeitas.

Próximo passo, responder perguntas. — Motivo do exame?

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— O endereço é o mesmo?

— Está tomando algum medicamento?

Eu poderia conversar com a atendente e ter um papo filosófico explicando que, tanto eu quanto ela somos mais que números e endereços. Somos mulheres e trazemos co-nosco a leveza dos lírios e a força sútil das divindades. Seria um abrir de olhos para mim, pois é dessa forma que vejo todas as conversas que travo. Minha aprendizagem é ouvir.

Antes de me perder em devaneios, respondo às per-guntas e penso nos lírios que mencionei. Preciso anotá-los em minha agenda. Não posso esquecê-los.

Ao me levantar, observo a sala de espera e percebo que há mulheres de todas as idades. Todas como eu, no início da tarde, a enfrentar o receio diante dos médicos que nos examinam minuciosamente para, ao fim, diagnosticarem o que quer que surja no caminho.

Vida de mulher é complicada desde o primeiro grito. Corpo, tabus, iniciações, frustações. Na verdade, a vida é complicada para todo mundo. Mulheres, contudo, precisam aprender a derrubar muros.

Quanto às frustrações, creio que sejam necessárias. Uma escada em espiral me leva ao segundo andar onde sou encaminhada ao vestiário para me despir do tra-je comum e vestir uma bata azul escuro.

— Tire tudo, mas fique de calcinha. — Diz a recep-cionista de forma robótica.

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Este livro foi composto em Electra LT Std pela Editora Penalux e impresso em papel off-white 80 g/m², em outubro de 2020.

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