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HISTÓRIA E CULTURAS S

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Academic year: 2021

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100 | Fortaleza, Vol. VI, Nº 12 – Julho - dezembro, 2018.

OS SANTOS PEREGRINOS:

UMA ANÁLISE DO ESTUDO HAGIOGRÁFICO NA FORMAÇÃO SOCIAL NOS SERTÕES DO CEARÁ COLONIAL – NOTAS INTRODUTÓRIAS DE UMA PESQUISA

Agenor Soares e Silva Júnior

Resumo:

Este artigo tem por objetivo introduzir uma discussão acerca do universo religioso no semiárido cearense a partir das imagens religiosas utilizadas desde o período colonial; analisamos a transposição desses santos como resultado da influência lusitana, o que denominamos de “migração do sagrado”. Procuramos estabelecer um estudo hagiográfico dos padroeiros católicos aqui “adotados” e suas significâncias no processo de construção de uma tradição religiosa que ajudou a produzir uma ideia de identidade sacralizada aos lugares. Compreender os movimentos desses santos errantes pelos sertões, ajuda a estabelecer um olhar cuidadoso sobre a influência religiosa na formação social e territorial cearense a partir da plural criação de formas devocionais, espaços, hoje, povoados de imagens religiosas, consagradas pela cultura urbana que encontra ecos em tempos imemoriais.

Palavras-chave: Hagiografia; Migração; Cultura religiosa. Abstract:

This article aims to introduce a discussion about the religious universe in the semi - arid region of Ceará from the religious images used since the colonial period; we analyze the echoes in times immemorial.

Keywords: Hagiography transposition of these saints as a result of the Lusitanian influence, what we call "migration of the sacred". We seek to establish a hagiographic study of the Catholic patrons here adopted and their significance in the process of building a religious tradition that helped produce an idea of sacralized identity to places. Understanding the movements of these wandering saints in the sertões helps to establish a careful look at religious influence in the social and territorial formation of Ceará from the plural creation of devotional forms, spaces now populated with religious images, consecrated by the urban culture that finds; Migration; Religious culture.

Recebido:30/11/2018 Avaliado:02/02/2019

Pós-doutorando em História Social pela Universidade Federal do Ceará, sob supervisão do Prof. Dr. Francisco Régis Lopes. historiagenor@gmail.com Professor Adjunto do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.

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No ano de 2009, a partir de um artigo publicado na revista Caderno de Antropologia da Imagem, trabalho em que analisamos o crescimento do uso de imagens religiosas de médio e grande porte nas vias públicas de algumas cidades do interior cearense, principalmente as de tamanhos agigantadas, demos início a uma incursão em busca de discutir o papel das imagens religiosas na fisionomia urbana, nas chamadas cidades sertanejas. Com o título: Imagens religiosas, imagens urbanas: Ceará, a terra dos santos gigantes1, buscamos refletir sobre as formas dessas imagens que, exteriorizadas nas vias públicas, parecem transformar essas cidades num grande “altar a céu aberto”. Santas e santos padroeiros tornam-se monumentos, marcos orientadores que se destacam por suas particular e excepcionalidades; as dimensões apresentadas pelas imagens estabelecem importante relação entre o espectador com seu próprio espaço, visto que se tratam de estátuas pensadas numa perspectiva funcional, imbuídas de uma ideologia religiosa intensa, sendo determinantes os locais em que são fixadas, pois possibilitam a visualização de todos, dando a crer um “pensamento homogêneo” sobre a cidade, decorrente de uma memória cristã sobre ela. Dessa forma, devemos pensar tais monumentos não apenas como intencionalidade estética, mas também como elementos que operam significados, elaboram identidades, instauram e perpetuam uma memória2.

Ao transmitir uma aura de cristandade às cidades, essas imagens fazem vasculhar na memória colonial sertaneja uma profunda influência missioneira presente desde tempos pretéritos, quando o erguimento de ermidas servia à veneração de oragos, inicialmente cultuados do outro lado do Atlântico, reforçados pelas primeiras imagens trazidas por colonizadores e religiosos que percorreram a região, construindo nas primeiras povoações – futuras vilas e cidades –, ermidas, capelas e cruzeiros, símbolos sacralizantes dos espaços que anunciavam a palavra de Deus e, consequentemente, ajudaram a estabelecer a Igreja Católica de forma definitiva pelas terras semiáridas, apoio indispensável ao tardio desenvolvimento territorial cearense. Com isso, nota-se clara rememoração da influência do catolicismo tradicional luso-brasileiro – de origem medieva –, ou seja, falamos aqui de uma longa duração que marcou fortemente a religiosidade cearense em todo o período colonial, imperial e republicano, cuja maior característica se deu na devoção aos santos.

1

SILVA JÚNIOR, Agenor Soares. Imagens religiosas, imagens urbanas: Ceará, a terra dos santos gigantes. Cadernos de Antropologia e Imagem. n. 25. Rio de Janeiro: UERJ, 2007.

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Ao passo que em tempos remotos Portugal e Espanha costumavam disputar entre si qual dos reinos ostentavam o maior número de santos e beatos reconhecidos por Roma3, na contemporaneidade, veem-se algumas cidades do Ceará numa acirrada disputa para abrigar a maior imagem religiosa. Perceber os sentidos que essas imagens instauram hoje é um desafio para os pesquisadores, suas construções podem ser pensadas como parte de uma atualização da tradição religiosa, ou seja, como busca de uma identidade comum que aproxime e caracterize os habitantes de um determinado lugar. Trata-se da perpetuação da uma tradição que institui sentidos e confere significados às memórias de resistência e sobrevivência nos sertões. Os Santos, ao mesmo tempo, anunciam as cidades, parecem “passear” por elas, instauram sentidos de organicidade, delineiam as vias públicas e produzem uma morfologia urbana em sintonia com seu caráter sagrado; instituem projetos e movimentos que redesenham o espaço urbano, imprimindo dinamismo bastante peculiar e fazendo desses ícones religiosos, representação de identidade da própria cidade.

Tais questões serviram de mote para adensar ainda mais as análises. Em pesquisa de pós-doutoramento4, resolvemos “seguir os passos” desses santos e santas a partir de uma tentativa de (re)construção cultural transatlântica, ou seja, perceber como os santos, dos caminhos portugueses, continuaram suas “peregrinações” pela América, no caso mais específico, nos tabuleiros cearenses. Buscamos entender como se estabeleceram em tempos coloniais as escolhas desses oragos como patronos das terras semiáridas, assim como suas (re)significações e influências na própria formação social através da cultura devocional.

Evocar esses santos pelos sertões é restabelecer a cultura religiosa ibérica com as experiências votivas a partir das sensações do homem do século XVI; segundo Célia Borges:

Quando os colonos migraram para o Novo Mundo transportaram os seus valores com um repertório de conhecimentos, técnicas, hábitos e crenças, reconstruindo, assim, uma nova condição existencial. Plasmaram no novo lugar suas representações simbólicas com tudo o que valorizavam do passado5.

3

MOTT, Luís. Santos e Santas no Brasil colonial. Revista Varia História, n. 13, 1994. p. 45

4

Esse artigo apresenta questões problematizadas no projeto pós-doutoral em História Social pela Universidade Federal do Ceará, iniciada em março de 2018, com o título: A migração do sagrado: os Santos peregrinos, uma incursão hagiológica pelos sertões cearenses, sob supervisão do Professor Dr. Francisco Régis Lopes.

5

BORGES, Célia Maia. A memória e o espaço sagrado: os colonos e as apropriações simbólicas dos lugares. In: Locus: Revista de História. Juiz de Fora-MG, vol. 16, n. 2, 2010.

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Pretendemos, desta forma, compreender melhor os valores e sentidos, assim como as apropriações feitas pelo homem colonizador dos sertões, sobrepondo seu universo cultural, carregado de tradições as quais deveriam adequar-se ao processo civilizatório do tempo moderno. Tais questões influenciaram de forma significativa as imagens construídas sobre o espaço sertanejo com expressões simbólicas de amplo valor, estabelecendo o sentimento religioso como elemento nuclear na interpretação desses personagens que por aqui se estabeleceram com seus santos nômades, protetores divinos que tinham como uma de suas funções, interceder pela própria sobrevivência nas novas terras.

As formas de olhar, sentir e viver o sertão estabelecia no universo cultural dos primeiros habitantes, representações as mais variadas. O nível mental das populações sertanejas encontrava nas práticas religiosas o estabelecimento com o “real”, assimilando, a sua maneira, respostas às agruras, instituindo a religião como lugar central na função ordenadora da vida. Para Cândido da Costa e Silva, a gente que ali nasce, vive, cria, ama, luta e morre, está plasmada pelo sertão onde a natureza, expressão de Deus, estabelece em suas leis uma cultura preservativa do sertanejo que elabora soluções místicas enraizadas no universo religioso, onde grande parte de sua vivência deriva dessa motivação: Deus, santos, almas, como instâncias últimas nas soluções dos impasses e ameaças oriundas das forças cósmicas e biológicas. Esse homem, ao apresentar soluções para o absconso, elabora uma heteronomia que passou a ser característica fundante dessa sociedade6.

A religião seria o estabelecimento dessas interpretações, a religiosidade uma práxis aos sentidos instaurados pelo que não se compreendia, o ethos, que orientava o cotidiano das comunidades coloniais espalhadas pelas ribeiras. Junto as sensações religiosas, vinha uma estrutura eclesial débil que, embora procurasse dominar soberana a ordem das coisas pelos rituais e sacramentos, moldava-se a uma chamada “cultura rústica”. Segundo Riolando Azzi, a instabilidade da vida levava o português colonizador a desenvolver o sentido mítico da existência, no intuito de fortalecer os vínculos de dependência com o mundo “superior”, do “além”, universo divino dos santos e das almas, enfatizando, assim, o caráter transcendente e metafísico da existência humana do qual decorria seu impulso vital, sua força e a garantia de sua sobrevivência sobre a terra7.

6

SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo na Bahia. São Paulo: Ática, 1982.

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O forte sentimento religioso na formação social cearense foi retratado por muitos estudiosos em fins do século XIX e início do XX com aspectos, hoje, vistos como pejorativos, elegendo as crendices, chamadas de bruxedos e feitiçarias, como resultado de uma miscigenação de raças inferiores que formavam uma religiosidade velada pelo fetichismo, sintetizados nos elementos nativos e negros, na figura do curandeiro8. Na chamada “religião impura”, afeiçoada ao modo de vida do sertanejo, fundava-se uma espécie de “fanatismo católico-fetichista”, em que se misturavam resíduos da cultura africana e indígena, fazendo com que a relação com o divino fosse a motivação e significação as suas vidas; tudo era apropriado ao religioso, engendrando uma cultura sacralizante a qual passava por uma “filtragem” às suas compreensões.

Segundo Eduardo Campos, a conduta principal ditada pelos portugueses se dava no temor a Deus, único caminho para se atingir os céus, sendo, de acordo com o autor, a pedra de toque das populações sertanejas, “gente inculta, de uma maneira geral, apreende as explicações religiosas pelo lado primário e prático”9. As orações eram moldadas às vivências, santificavam indivíduos muitas vezes não reconhecidos pelo catolicismo oficial, somavam passagens a histórias religiosas nem sempre válidas pelos Evangelhos; crenças que vislumbravam uma aproximação entre o divino e a vida terrena – o culto devocional aos santos representaria esse elo –, um sistema de tradução do cristianismo que possibilitasse um melhor entendimento a vivência com o meio.

Uma religião mestiça, como afirmou Euclides da Cunha no consagrado Os Sertões. Segundo o romancista, tal religião encontrava-se na fase de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, resultando num homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas10. Concordante desse pensamento litorâneo, compreendido como “civilizado”, Abelardo Montenegro afirmara que as populações sertanejas eram profundamente místicas, atraídas pelo maravilhoso, pelo sobrenatural, por tudo aquilo que, inexplicável para elas, significava a manifestação de vontade divina, ou disposição de potência que não a deste mundo11.

Tratava-se, sobretudo, de um catolicismo piedoso, santoral e festivo expresso nos exercícios de piedade individual e de comunicação com Deus, quase sempre intermediada por divindades, além da valorização dos aspectos visíveis da fé, através

8

BARROSO, Gustavo. Terra de Sol: natureza e costumes do norte. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1956. p. 157.

9

CAMPOS, Eduardo. As irmandades religiosas do Ceará provincial: apontamentos para sua história. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1980. p. 49.

10

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 1998.

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das cerimônias públicas dos sacramentos, das novenas, das trezenas, das rezas fortes, das romarias, dos te-déuns, das procissões cheias de alegorias, de que participavam centenas de pessoas, dos santos padroeiros, das devoções especiais às almas do purgatório e muitas outras, conforme a região. Tal perfil sugere que essa religiosidade ibérica trazida pelos colonizadores não era exatamente marcada por profundas introspecções espirituais, uma vez que a maior ênfase recaia nos atos exteriores de culto aos santos, especialmente nos rituais festivos12.

Ainda assim, a demasia fazia parte das interpretações, a fatalidade, do cotidiano. Nos folguedos populares, quase tudo persistia à invocação de santos devido a temores dos castigos do céu. No mês de junho, considerado o mês dos Santos, os sertanejos reuniam versos e orações demonstrando medo a Deus e respeito aos santos e aos céus. De personalidade anímica, produziam interpretações, segundo alguns, folclóricas, as quais evidenciavam uma relação cósmica com o divino e suas ações, transformando a vida num grande ato litúrgico. Universo de sensações plurais, a mentalidade do sertanejo mostrava-se demasiadamente voltada para os santos e objetos sagrados do catolicismo, não deixando de ver, em tudo, interferência divina. Devido a isso, quando as circunstâncias do tempo eram ameaçadoras, faziam-se orações, procissões e promessas pessoais ou coletivas aos santos tutelares com intuito de afastar a perspectiva angustiosa da seca; aos santos era dada a tarefa de interceder pela bonança climática. São Pedro, São João e São José passavam a ser mediadores entre o sertanejo, Deus e a Virgem Maria, depositando nestes patronos celestes esperanças a um inverno farto, crucial a sobrevivência nos sertões.

A esse panorama, os religiosos que aqui chegaram ajudaram a fortalecer tais interpretações. A mensagem dos primeiros missionários era caracterizada pela pobreza e pelas missões ambulantes, essas últimas apresentavam cunho penitencial e milagreiro, já comuns entre os nativos no primeiro período colonial. Perfazendo enormes trajetos a pé, esses religiosos eram reconhecidos por todos pelos símbolos como o breviário e o bordão, identificadores dos missionários sertanejos. A ordem de penitentes, comum nos sertões desde o século XVII, reproduzia as práticas da autoflagelação e dos rituais de penitência tributária do período medieval, trazida por religiosos em missões.

12

JURKEVICS, Vera Irene. Os santos da Igreja e os santos do povo: devoções e manifestações de religiosidade popular. [Tese]. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná. 2004. p. 37.

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Essas práticas ajudaram a preservar uma tipologia da cultura cristã nos sertões; os rituais religiosos atualizavam os sertanejos, muitos deles morando léguas de capelas ou igrejas mais próximas. As celebrações de missas, casamentos, batizados, extrema unções, ritos que tinham por objetivo instituir características de civilidade aos povoados que estavam distantes dos centros desenvolvidos, auxiliavam a manter os povoadores próximos do olhar cristão, sob a égide da Igreja que desejava aumentar sua influência nos rincões, significando, também, próximos ao alcance do Estado. Essas questões apresentavam um problema para a Igreja, pois com sua ausência devido à precária presença dos religiosos, os leigos tomavam para si a iniciativa dos serviços e práticas litúrgicas, reproduzindo muitas vezes um catolicismo laico, no qual eles próprios eram responsáveis pela construção dos templos, sua conservação e limpeza, na construção de cemitérios, na escolha de seus oragos, assim como na organização das festas dos padroeiros.

A escolha do santo protetor foi vital nesse processo; o movimento pelos tabuleiros cearenses era acompanhado por uma migração do sagrado, uma “diáspora santoral”, aportado por uma cultura votiva secular que deram início ao processo devocional, ainda sentido na contemporaneidade.

O século XVI foi marcado pelas devoções aos santos e suas espiritualidades ganharam espaço na vida do povo, tendo nas Ordens Terceiras e Congregações religiosas como responsáveis por essa expansão. Segundo José Rogério Lopes, a vinda para o Brasil de vários missionários de ordens religiosas diversas deu um tom distinto ao desenvolvimento das relações aqui estudadas, uma vez que algumas delas aplicaram estratégias diferenciadas entre si de utilização de imagens acompanhadas de uma forte cultura hagiográfica nos processos de evangelização que desenvolveram. Os santos passaram a ser festejados pelas comunidades, momento em que o silêncio da vida cotidiana, a escuridão da noite e a hostilidade davam lugar a alegria, a luz e a solidariedade entre as pessoas. O santo era o mediador entre Deus e a comunidade que celebrava e festejava sua presença milagrosa13.

Além das imagens, as festas dos santos e santas padroeiros revigoravam as formas de sociabilidade, produzindo significados do festejar para os distintos grupos sociais. O fato religioso seria um observatório privilegiado da totalidade social que nele teria expressão elevada; segundo Durval Miniz, as festas são frestas por onde se pode

13

LOPES, José Rogério. A imagética da devoção: a iconografia popular como mediação entre a consciência da realidade e o ethos religioso. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. p. 61.

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ver, observar, enxergar, o universo da cultura popular, a vida das camadas populares, seus rituais e ritmos de vida, suas práticas e os significados que elas teriam para eles. Condizentes com a proposta metodológica da história vista de baixo ou do paradigma indiciário, as festas são frestas na dominação14.

A historiografia cearense tem essa história para ser contada, numa narrativa em que a cultura religiosa, aqui especificamente, a utilização santoral, dá-nos a compreender melhor como a cultura votiva estabeleceu outras linguagens e outras significâncias ao homem do sertão colonial. Imagens de santos ainda hoje povoam as entradas e saídas de muitas cidades, umas em escalas gigantescas – como já dissemos –, como é o caso da estátua de São Francisco, em Canindé; de São Sebastião, em Mulungú; de Menino Jesus de Praga, em Chorozinho; de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte; a de Nossa Senhora de Fátima, em Fortaleza; outras em tamanhos menores, mas que exercem o mesmo poder e significado, demarcadoras de um “chão sagrado”, resultantes de uma identidade devota construída em tempos remotos.

Trajetos Teóricos.

Tomamos como análise as questões propostas, um suporte teórico alicerçado na chamada Nova História Religiosa, que se fez inteiramente sob o signo da interdisciplinaridade ao tomar como modelo e parceiras as ciências sociais. Para Benatte, a história religiosa, desde o final do século XIX, foi tradicionalmente uma das áreas de pesquisa mais predispostas a romper com as compartimentações disciplinares e abrir-se às trocas entre os diferentes domínios do saber. A diversidade das linguagens e práticas religiosas, a multiforme presença do sagrado na história das sociedades e civilizações, a própria natureza complexa do objeto demandava um tratamento mais ou menos ecumênico dos fenômenos religiosos pelas várias disciplinas laicas que se formavam no contexto de secularização dos saberes. Esse diálogo ecumênico das ciências e o desejo de religação dos saberes é um projeto que reside na História Cultural, nesse sentido, é providencial que a História Religiosa e a História Cultural se confundam tanto quanto possível15.

14

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Festas para que te quero: por uma historiografia do festejar. Revista Patrimônio e Memória. UNESP – FCLAS – CEDAP, v.7, n.1, 2011. p. 134-150.

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Nesse processo de (re)ligação, busca-se permitir o acoplamento de bens simbólicos que desembocam em conflitos de valores. A partir de tais questões, compreendemos que a esperança religiosa que move os indivíduos, os fazem criar representações de uma origem que compõe um imaginário carregado de fundamentalismos. O imaginário – um dos campos teóricos mais instigantes de análise à historiografia na contemporaneidade –, apresenta-se como um deslocamento no olhar dos historiadores que passaram a dar ênfase ao aspecto cultural, ao estudar as imagens visuais, verbais e mentais, ensejando novos percursos metodológicos. Na década de 1980, a chamada nova história cultural, vista como uma nova realidade teórica que passava a influenciar novos olhares e abordagens para a pesquisa, fez com que o historiador buscasse o cotidiano, as crenças, o mágico, os mitos, as representações coletivas traduzidas nas artes, literatura e formas institucionais.

Dessa forma, buscamos desenvolver as análises a partir de um arranjo teórico interdisciplinar triádico a partir da história, teologia e antropologia, que formam um campo discursivo não-equilibrado e, por vezes, em latente tensão dialética. Essas questões fazem ver que a apreensão das matrizes teológicas dos movimentos sócio-religiosos é de fundamental importância para a compreensão da formação histórica das identidades religiosas. Nessa mutação epistêmica, o banimento da teologia e a emergência das ciências da religião aparecem como produtos históricos da secularização e “descristianização” da cultura ocidental nos últimos dois séculos. No bojo desse processo, a religião, transformada em objeto de conhecimento laico, perdeu, por assim dizer, a aura do sagrado. A história pode ter um sentido teológico? Podemos utilizar da teologia enquanto ciência auxiliar às respostas as problematizações que estabelecemos? Dessas questões, lançamos mão do trabalho de Rogério Sávio Link, no qual afirma ser a teologia uma das áreas do conhecimento mais interdisciplinares; seu objeto de estudo – a humanidade e sua relação com o transcendente – exige essa abordagem. Não se poderia imaginar o estudo teológico sem o conhecimento das outras áreas, assim, desde cedo, a teologia cristã sentiu a necessidade de afirmar o caráter histórico de sua revelação16.

Desde o século XVIII deu-se início a uma nova era no fazer teológico, o qual os próprios fundamentos da fé são criticados através do método histórico, questionados quanto à veracidade, fazendo com que a disciplina de história seja indispensável aos

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acessos daquilo que aconteceu. A história, enquanto ciência, é a condição do fazer teológico, assim como o movimento experienciado pela História ciência, a partir do século XIX, de certa forma, fez-se sentir, pelo conhecimento teológico, os novos questionamentos para a história da Igreja que advêm da história social e da história cultural, postuladas pela História Nova e História Marxista. Esses questionamentos ajudaram a teologia a olhar criticamente seu passado, presente e futuro a partir de uma história que demonstre a ambiguidade das relações humanas e de suas estruturas. Segundo Virgínia Castro Buarque, há uma retomada do teológico pela historiografia a partir de um movimento retrospectivo efetivado no oitocentos. Segundo a historiadora, desde então, história e teologia fundamentam sua diferença epistêmica em um duplo fator: o critério de interpretação do real (a fé, acompanhada de um pertencimento eclesial, para o teólogo; o referencial teórico, para o historiador) e as operações da narrativa, promovidas por associações analógicas, sendo que a metodologia histórica postula uma autonomia da representação, uma “invenção” da realidade, com base no entrecruzamento de critérios científicos, da subjetividade humana e de pressões político-sociais17.

Neste sentido, continua a autora, reflexões contemporâneas apontam para possíveis contribuições dos estudos teológicos que favoreceriam uma maior clareza das terminologias utilizadas pelas diferentes tradições religiosas, possibilitando a explicitação de pressupostos religiosos implícitos aos discursos analisados pelos pesquisadores desse universo e, mais ainda, suscitariam reflexões sobre o sentido da descrença, ocorrente mesmo dentro de espaços eclesiais. Tais questões nos tornam caras visto estabelecermos, a priori, enquanto processo investigativo, não tão somente a adoção desses santos católicos nos sertões cearenses, mas também suas significações teológicas e as formas como foram ressignificadas no universo social colonial.

A chamada história cultural do religioso não abandona os ensinamentos da história social devido à experiência ter comprovado que separar história social e cultural é um gesto pueril, em nome de modismos e novidades, conduz não raro ao empobrecimento da análise historiográfica18. Essas questões evidenciam a busca por um referencial historiográfico mais específico, que sem abandonar o social não se limitasse a ele.

17

BUARQUE, Virgínia A. Castro. A especificidade do religioso: um diálogo entre historiografia e teologia. In: Projeto História, São Paulo, 2008, n. 37, p. 53-64.

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Uma história antropológica ou uma antropologia histórica das religiões e religiosidades torna-se possível na medida em que o historiador consegue se situar na interseção do discurso e do gesto, das escrituras e das práticas. Como é sabido, uma das mutações essenciais do nosso tempo diz respeito ao reconhecimento da centralidade da cultura na história e na experiência humana. Com isso, a antropologia, os estudos culturais, as ciências do simbólico e do imaginário ganham um novo impulso. Os estudos da religião ocupam um lugar proeminente nesse processo de “culturalização” dos saberes do social, o que contribui sobremaneira para a (re)elaboração de seus objetos e a renovação do seu campo de pesquisa. Entre religião e cultura, as afinidades parecem ser eletivas. Não é de estranhar que a nova história religiosa tenha sido uma das primeiras a estimular e nutrir-se do chamado cultural turn19.

A História Cultural, por combinar frequentemente as abordagens da antropologia e da história, que problematiza as tradições da cultura popular e interpretações culturais da experiência histórica e humana, faz do religioso um importante caminho para decifrarmos questões antigas consagradas pela historiografia. As práticas e representações, além do simbólico, são campos conceituais importantes que nortearão esta pesquisa, pois contribuem para compreendermos o poder simbólico das imagens no desenvolvimento espacial, portador de uma cultura preservativa de identidade muito forte, entendida aqui como resultado de uma residualidade1. Tomamos a ideia/conceito de Raymond Williams, ao considerar como resíduo tudo aquilo que remanesce do passado, independentemente de ter sido retomado de forma consciente ou inconsciente por parte de um indivíduo ou de um grupo ou camada social20.

Tratamos a religião aqui tanto como linguagem, como sistema simbólico de comunicação e pensamento que forjam as experiências vividas num processo de longa duração, como um sistema cultural que produz simbologias que permitem interpretar uma dada realidade, que articula e veicula redes de significados. Enquanto sistema simbólico, a religião é estruturada na medida em que seus elementos internos se relacionam entre si, formando uma totalidade coerente, capaz de construir as experiências vividas. A religião e a religiosidade são forças reguladoras da vida coletiva no espaço, designando identidades, elaborando determinadas representações de si, estabelecendo e distribuindo papéis e posições sociais, exprimindo e impondo crenças

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BENATTE, Antônio Paulo. A nova história religiosa. op. cit. p. 7.

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comuns, construindo modelos de convivência. Segundo M. Raminhos , a identidade decorre da fonte de significado e experiência de um povo, isto é, modo como uma sociedade estabelece significados a realidade. A sociedade através dos símbolos e representações se identifica com dado território, com dado aglomerado cultural. Além do sentimento de pertencer, ele se identifica com o território, pela sua herança cultural. Dessa forma, abordaremos tais experiências como elementos que dão a interpretar uma realidade, suscita a adesão à determinados sistemas de valores sagrados, ao mesmo tempo em que motiva a ação e reação dos sujeitos e imagens envolvidas.

Trajetos Metodológicos

Como afirmamos anteriormente, ao buscarmos desenvolver as análises a partir de um arranjo teórico interdisciplinar triádico, trazemos a hagiografia para compor, num primeiro momento, como a principal proposta metodológica. Michel de Certeau afirma que a hagiografia se caracteriza por uma predominância das particularizações de lugar sobre as particularizações de tempo, que obedece à lei da manifestação, caracterizando este gênero como essencialmente "teofânico", as descontinuidades do tempo são esmagadas pela permanência daquilo que é o início, o fim e o fundamento. A história do santo se traduz, segundo o estudioso, em percursos de lugares e em mudanças de cenário que determinam o espaço de uma "constância". Segundo Certeau:

Primitivamente ela nasce num lugar fundador (túmulo de mártir, peregrinação, mosteiro, congregação, etc.) transformado em lugar litúrgico e não cessa de reconduzir para ele (através de uma série de viagens ou de deslocamentos do santo) como para aquilo que é finalmente a prova. O percurso visa o retorno a este ponto de partida. O próprio itinerário da escrita conduz à visão do lugar: ler é ir ver22.

Perseguimos suas ideias por possibilitar compreender os significados do que chamamos de migração do sagrado. Ao problematizarmos sobre o translado das imagens dos “lugares fundadores” - os chamados lugares litúrgicos –, à composição de lugares não originais (os sertões cearenses), entendemos que esse itinerário passa também a determinar o espaço de uma “constância”, que auxilia na percepção de transposição de sociabilidades. Para o autor, a vida do santo é uma composição de lugares.

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RAMINHOS, M. Fronteiras da Identidade. In: O “outro” na construção de um lugar na serra de Grandola. Oeiras: Celta Editora, 2004. 22

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A organização do espaço que o santo percorre, se desdobra e torna a dobrar a fim de mostrar uma verdade que é um lugar. Num grande número de hagiografias, antigas ou modernas, a vida do herói se divide, como o relato da viagem, entre uma partida e um retorno, mas não comporta a descrição de uma sociedade outra. Vai e volta. Existe inicialmente a vocação do santo que o exila da cidade para conduzi-lo ao deserto, campos ou terras longínquas, – tempo de ascese que contém a sua iluminação. Depois vem o itinerário que o leva outra vez à cidade ou que conduz a ele a multidão das cidades, – tempos de epifania, de milagres e de conversões23.

Ao instituir a imagem do santo ao lugar, “inaugura-se”, a partir de então, a ideia de espaço sagrado no sertão colonial. Uma nova dinâmica espacial ganha corpo, instituindo uma territorialidade do sagrado, provavelmente com outras especificidades, pois, segundo Benedetti, suas diferenças só eram percebidas na análise das relações sociais24. Segundo análise, a representatividade religiosa não se operava por acaso, ou seja, a escolha do orago preconizava o assentamento do indivíduo no lugar. O trânsito provocado pelo comércio da carne de charque, norteando as ribeiras, foi dando lugar a paragens, espaços onde se inaugurariam as fazendas de criar. Ali, o santo evocaria a proteção e mesmo uma identidade familiar ligada à cultura devocional que instaura pistas sobre a sociabilidade do lugar.

Segundo Ana Paula Lopes Pereira, a literatura hagiográfica forma um corpus documental, polimórfico e multilinguístico, cuja produção não se interrompe durante quase mil anos. Novas questões sobre os santos, função na sociedade, as manifestações espirituais e as atitudes mentais que concernem à construção de uma vida santa foram colocadas, demandando novas abordagens das fontes hagiográficas25. Tais questões são importantes, visto buscarmos estabelecer uma análise dos santos para além da formação devocional e social do Ceará, ou seja, a utilização santoral compreendida como forma de representação de um universo social peculiar, como estratégia de poder da Igreja Católica na apropriação simbólica do novo território. O termo hagiógrafo, como especialista dos santos e como aquele que escreve sobre os santos, é uma invenção do início do século XVIII, uma designação necessária quando a crítica hagiográfica empreendida pelos bolandistas26 tornava-se nova ao se aproximar da ciência. No século XX, com a evolução da História e sua relação interdisciplinar crescente com a antropologia e a sociologia, as vidas de santos se tornaram um documento de excepcional riqueza para o conhecimento.

23

Idem, p. 252.

24

BENEDETTI, Luiz Roberto. Os santos nômades e o Deus estabelecido. São Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p. 13.

25

PEREIRA, Ana Paula Lopes. O relato hagiográfico como fonte histórica. In: Revista do Mestrado de História. Vassouras, 1998. Vol.9, n°10, 2007. p. 167.

26

Com base nas suas notas, o padre Jean Bollandle levou à aprovação dos seus superiores o plano de uma publicação de vidas de santos e documentos hagiográficos, apresentados pela ordem do calendário. Assim nasceu um grupo de jesuítas especializados em hagiografia a que se deu o nome de Bolandistas e que publicaram, em 1643, os dois primeiros volumes do mês de janeiro das "Acta Sanctorum". Sobre isso ver: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: São Paulo: Editora UNICAMP, 1990. p. 92

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O valor historiográfico do texto hagiográfico não é mais discutido, há alguns anos vemos uma relativa quantidade de estudos utilizando as fontes hagiográficas como principal material de análise, passíveis de responder problemáticas de ordens distintas. Dentro da perspectiva da história cultural, vemos uma preocupação com o hagiógrafo, testemunha de seu meio, de sua comunidade, de seu público, testemunha e relator de representações mentais de um determinado momento.

Guy Phillipart propõe distinção de um corpus propriamente literário, uma vez que a documentação hagiográfica, composta de litanias, calendários, relíquias, dizeres populares etc., é mais abrangente do que a “literatura hagiográfica”. A partir daí, pode ser tratada de diversas formas, pelos literatos e pelos historiadores, como objeto documentário, literário, cultural. A literatura hagiográfica, como objeto específico da história, faz-se necessário que se emancipe da história dos santos, do culto, que se articule aos métodos de análise literária e a história das literaturas e que se nutra de trabalhos de sociologia e de antropologia históricas27. Finalmente, a hagiografia ganha o estatuto de literatura e, como tal, é um objeto passível de ser analisado em especificidade. O santo é um modelo de comportamento para os fiéis, o laicado, e, por outro lado, seu culto e sua eficácia aparecem como um meio de expressar as “estruturas mentais de base”. Nessa nova perspectiva, as vidas de santos aparecem como a “cristalização literária das percepções coletivas”28

.

Os historiadores analisam os textos hagiográficos como modelos discursivos observando seu contexto histórico. Para Cristina Sobral, tais estudos têm mantido em aberto uma discussão sobre a especificidade da hagiografia enquanto gênero literário ou histórico e sobre sua validade documental. A ideia de construção social da santidade condiciona a análise, mostram a transformação do ideal de santidade como consequência das relações de forças sociais e do conflito de ideologias e de percepções. Afirma que hoje o conjunto de textos a que chamamos hagiografia se oferece a multiplicidade de perspectivas de análise que se cruzam e se completam para a compreensão do fenômeno da santidade: a história das instituições eclesiásticas, das mentalidades, da espiritualidade, da literatura e da cultura procuram nestes textos elementos para o entendimento da complexa rede de relações histórico-culturais em que intervieram29.

27

PHILIPPART, Guy. “L’hagiographie comme littérature: concept récent et nouveaux programmes?”. In: L’hagiographie. Textes réunis par Elisabeth Gaucher et Jean Dufournet. Revue des Sciences Humaines, n. 251 (Juillet-Septembre 1998).

28

Idem.

29

SOBRAL, Cristina. Hagiografia em Portugal: Balanços e Perspectivas. Revista Medievalista On Line. Ano 3, nº. 3, 2007. IEM - Instituto de Estudos Medievais. p. 2.

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André Luiz Miatello enriquece a discussão quando advoga a ideia de a hagiografia ser tratada como retórica, uma vez que, assim, leva-nos a interpretá-la como parte de um conjunto maior de práticas letradas que, por sua vez, obedecem a cânones precisos de composição, elaborados ao longo dos séculos por autoridades consagradas pela arte e pela erudição.

A vida, portanto, não pode ser entendida apenas como repositório de informações biográficas de um santo, mas, sobretudo, como fonte de exemplos tão bem articulados que são capazes de abrasar os corações arrefecidos, tirando-os da letargia30.

Tais questões nos levam a problematizar a escolha e utilização dos oragos no semiárido cearense a partir das premissas, visto que a (re)apropriação dos colonizadores aos oragos de origem deviam agora “dialogar” com outra realidade.

O culto aos santos remete a outro aspecto, a devoção, que sempre tem aparecido como uma dimensão secundária do religioso, fincada no sentimental e no privado e dotada, assim, de um rendimento sociológico inferior ao que poderia se obter das doutrinas ou do ritual público. Poderíamos escapar desse viés se substituíssemos os termos devocional, sentimental ou privado por um outro mais abstrato e abrangente: relacional. O culto aos santos é uma relação com formas semelhantes àquelas que regem a sociabilidade comum, estabelecida entre sujeitos.

Consideramos também relevante a importância das imagens na concepção do imaginário religioso visto que a memória histórica retorna lembranças que representam imagens vivenciadas no passado, o que chamamos anteriormente de residualidades. Dessa forma, o campo do imaginário religioso, ao se ancorar em narrativas sagradas, abre possibilidades para compreendê-lo através de categorias míticas e utópicas. Como afirma o filósofo Vilém Flusser, estão muito próximas as definições de imagem e representação, visto que a primeira tem a pretensão de representar algo que tem origem na nossa capacidade de abstração, que também chamamos imaginação. Para ele, imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens31.

Para Sandra Jatahy Pesavento, as imagens comportam dois lados: imagem-mímese e imagem-ficção. A primeira – a imaginação como “reprodutora do real”, é o reconhecimento entre coisa retratada (referente e representante); já a segunda, traduz a ideia do racionalismo cartesiano que nega a realidade da imaginação, está

30

MIATELLO, André Luís Pereira. Santos e Pregadores nas cidades medievais italianas: retórica cívica e hagiografia. 1ª ed. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013. p. 29.

31

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relacionada a algo fantasioso, irreal. As imagens produzem trocas de informações, são históricas e correspondem ao imaginário coletivo, a padrões estéticos de determinada época, bem como veiculação de padrões de conduta e ideais de beleza. Tem o poder de despertar para ações, pois são mobilizadoras pelos símbolos que estas representam.

As imagens têm o poder de rememoração, desperta a memória e evocam experiências passadas, o que para historiadores que lidam com o campo visual concebem “as fontes visuais” como objeto de pesquisa, pois imagens traduzem sintomas de uma época, a forma como a dinâmica social era pensada naquele momento do seu fazer32.

Tais questões sugerem estabelecermos problematizações sobre o campo da cultura imagética, já que o contexto da pesquisa pressupõe a identificação dos elementos religiosos e suas significâncias para além da imagem ou das práticas devocionais. Examinar os usos das imagens dos oragos é entender o sentido ontológico de fenômenos religiosos que nos levam a problematizar questões ligadas às migrações religiosas e suas utopias construídas por subjetividades nômades. Percebemos que o estudo hagiográfico, enquanto método explicativo às formas de sociabilidade, apresenta um potencial no campo historiográfico que nos levará a aprofundar questões ainda não resolvidas pela literatura historiográfica brasileira, que nos permita localizar no tempo e no espaço a utilização das imagens dos santos padroeiros, assim como a instituição das festas religiosas na constituição das freguesias no Ceará e a respectiva ligação com as freguesias em Portugal.

Pensar no Ceará hoje, é também evocar imagens, principalmente as de cunho religioso, que num primeiro instante parecem falar por si, num segundo momento passam a estabelecer outras muitas dimensões. Nas rotas das cidades interioranas do Estado, “brotam” imagens as mais variadas. Os santos Antônios, as várias Marias, os São Josés, os São Franciscos, os são Sebastião, são imagens que guarnecem essas cidades, fazem parte do cotidiano de quem passa ou mora, produzem um sentido e um “ar sagrado” aos caminhantes. Ligam a uma experiência que, por vezes, tira-os do espaço racional, ordenando-os numa prática transcendental; instituem outros sentidos, compõem outra espacialidade, selecionam e, ao fazê-lo, dão outras formas ao espaço.

Como anunciado inicialmente, o presente estudo, ainda que introdutório, apresenta perspectivas interessantes na abordagem do religioso que consideramos enriquecedor à historiografia cearense. Ver os santos, além do que anunciam, é um

32

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desafio que nos motiva no aprofundamento das questões aqui postas. Concomitante a ideia de construção de uma territorialidade, enquanto invenção retórica, os caminhos trilhados por homens e mulheres coloniais foram assimilados através de seus cultos, suas devoções que ajudaram a construir uma narrativa sobre os lugares. Nas trilhas abertas pelas ribeiras, os “santos nômades” iam se estabelecendo nos lugares de paragens, nos arraiais, nas vilas e cidades, fazendo com que seus nomes fossem evocados também aos nomes de rios, riachos, montes, fazendas, etc.

A hagiotoponímia, a antroponímia, foram, aos poucos, sendo transplantadas aos rincões coloniais enquanto tentativa de “apagamento” de uma “cultura nativa” para estabelecer uma memória “civilizada” no espaço cearense a partir de uma cultura devocional construída em terras ibéricas. Vê-se uma superposição toponímica que, segundo Cêurio de Oliveira, percebe-se no povo brasileiro uma essência católica, bucólica, otimista e nacionalista33. Para Paul Claval:

A toponímia é uma herança preciosa das culturas passadas. Batizar as costas e as baías das regiões litorâneas foi a primeira tarefa dos descobridores [...]. O batismo do espaço e de todos os pontos importantes não é feito somente para ajudar uns aos outros a se referenciar. Trata-se de uma verdadeira tomada de posse (simbólica ou real) do espaço34.

Seja adaptando ou ressignificando esse universo cultural, o certo é que nos tempos coloniais as práticas votivas foram experiências que marcaram de forma contundente a cultura religiosa, destarte social do povo cearense até os dias atuais, visto que cultos criam identidades e códigos, a cultura fala pelos santos de um local, e a memória (construída pelo hagiógrafo) e o culto são testemunhos vivos da sociedade. A materialidade da imagem tem muitas funções ao fiel:

A primeira é servir de lugar da memória, um corpo concreto que contém algo do santo, seja sua memória, seja a imagem em si, uma relíquia […] Um santo é um documento histórico para um olhar treinado35.

Compreender esse universo é imprimir um novo olhar acerca de nossa historiografia religiosa, visto estabelecermos, a partir dessas experiências votivas seculares, um “fio” capaz de nos conduzir a um universo onde a religiosidade, a experiência com o divino, com os intercessores de Deus e da Virgem Maria, estabelece muito mais significados daqueles que podemos imaginar.

33

OLIVEIRA, Cêurio de. As origens psicossociais dos topônimos brasileiros. In: Boletim Geográfico, n. 215, 1970. p. 71.

34

CLAVAL, Paul. A geografia cultural. 2ª ed. Florianópolis: EdUFSC, 2001. p. 189.

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