• Nenhum resultado encontrado

SUJEITOS, CORPOS, SEXUALIDADES EM (DIS)CURSO?

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "SUJEITOS, CORPOS, SEXUALIDADES EM (DIS)CURSO?"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

SUJEITOS, CORPOS, SEXUALIDADES EM (DIS)CURSO?

Dantielli Assumpção Garcia (UNIOESTE) Fernanda Luzia Lunkes (UFSB)

Resumo: Neste trabalho, da perspectiva teórica da Análise de Discurso (PÊCHEUX, 1983;

ORLANDI, 2001a, 2001b), articulada às discussões de gênero (BUTLER, 2017; JESUS, 2014; LOURO, 2014, 2000), pretendemos analisar o clipe “Música LGBT+Brasileira” publicado na página do Facebook Kaya de Boca. Intentaremos refletir acerca do modo como dizeres sobre os sujeitos, seus corpos, suas sexualidades e identidades de gênero são colocados em funcionamento por meio da arte.

Palavras-chave: Análise de Discurso, Música, LGBTTQ+, Gênero(s), Sexualidade(s).

Abstract: This work aims to analyse the musical clip “Música LGBT+Brasileira”, avaliable in

the facebook page “Kaya de Boca”. Our teorical base is the Discourse Analysis (PÊCHEUX, 1983; ORLANDI, 2001a, 2001b) in articulation to gender discussions (BUTLER, 2017; JESUS, 2014; LOURO, 2014, 2000). This theoretical suport help us to debate the way the subjects, the bodies, the sexualities and gender identities works by means of the art.

Keywords: Discourse Analysis. Music, LGBTTQ+, Gender(s), Sexuality(ies).

O presente trabalho é uma versão preliminar e, por isso mesmo, se pretende muito mais enquanto abertura a interlocuções do que propriamente uma apresentação de resultados. Almejamos com este nosso ensaio teórico/analítico apontar para alguns dos efeitos de sentido produzidos em um clipe que circulou na página do Facebook Kaya de Boca1, em maio de 2017, e que apresenta artistas LGBT(TQ+) com destaque no ramo musical. Afastando-se da imagem binária comumente traçada em nossa formação social, qual seja, entre masculino e feminino, pretendemos situar os efeitos de sentidos produzidos a partir de um clipe musical que, imaginariamente, contempla artistas LGBT(TQ+), em/com seus corpos e(m) movimentos, no uso das cores, nos gestos de enquadramento na tela.

Inicialmente, este texto tinha como título uma afirmação dizendo tratar o videoclipe de diferentes corpos e sexualidades em discurso. Contudo, após uma primeira análise em que observamos quais são as/os artistas colocados em cena, a afirmação deslizou-se para uma pergunta: “sujeitos, corpos, sexualidades em discursos?”. Isso porque as/os artistas que cantam nesse cenário da música LGBT+Brasileira (como assim se intitula o videoclipe) são, em sua

(2)

maioria, considerados representantes “gays” e “trans”. Desse modo, o clipe estaria apagando dessa nomenclatura, mesmo que na sigla as letras pareçam contemplar, do cenário da música LGBT(TQ+) brasileira, as artistas “lésbicas”, os/as artistas “bissexuais”, “queers”, “intersexos” entre outras identidades de gêneros e orientações sexuais. Esse apagamento marcaria o não pertencimento de alguns corpos, sexualidades, gêneros nesse cenário musical brasileiro? Ou não? O fato de trazer no título do clipe o L, o B já indiciaria um pertencimento que se constitui entremeado pelo gay e pelo/pela trans? O gay na formulação abarcaria também a mulher gay, a homossexual, em síntese, a lésbica? A partir desses questionamos este nosso texto se constitui, objetivando compreender como dizeres sobre os gêneros e as sexualidades são colocados em funcionamento no clipe “Música LGBT+Brasileira”. Para tanto, situemos algumas questões acerca das noções de gênero(s), sexualidade(s) e corpo(s).

Compreendemos, com base em Butler (2017), que é do político as designações e normatizações em torno da sexualidade. A autora afirma que a distinção no gesto de designação entre sexo e gênero coloca em questão, no primeiro, uma relação com o corpo sexuado, enquanto o segundo marca uma tomada de posição segundo a qual se possibilita pensá-lo como uma construção cultural e social.

A Análise de Discurso compreende o político como disputa de sentidos, administração para a hegemonização de uma dada direção de significados, a luta histórico-ideológica a partir da qual se confrontam diferentes formações ideológicas cujo palco é o discurso (ORLANDI, 2001a). Sendo assim, retomando os estudos de Butler (ibidem), um conflito que se coloca proeminente é a disputa em designar sexo e gênero. Se aquela designação coloca o sujeito numa relação fortemente marcada pelo fisiológico, a segunda produz tensões sobre um não fechamento, busca trazer à tona também o que não se diz quando se fala em sexo, romper questões limítrofes acerca do corpo e fazer recair – também – sobre o social a constituição dos sujeitos.

De acordo com Louro (2014), o conceito de gênero, em seu gesto de formulação, implica em uma luta na qual ele comparece “como uma ferramenta analítica que é, ao mesmo tempo, uma ferramenta política” (LOURO, 2014, p. 25). Vale lembrar que, de acordo com a Análise de Discurso, a produção de sentidos também é feita levando-se em conta o equívoco, daí o fato de haver tensões e disputas mesmo no interior de grupos militantes, apontando para aquilo que desregula, que fissura o ritual de produção de consensualidade acerca dos gêneros.

(3)

O discurso novamente coloca-se como o palco no qual os sujeitos dizem e mostram suas sexualidades e identificações.

De acordo com Jesus (2014, p. 245), a partir da retomada de Louro (2000), Oliveira (1998) e Scott (1998), o conceito de gênero é relacional e político, “independe das bases biológicas, como o sexo, e determina, entre os seres humanos, papéis que eles exercem na sociedade – o que de forma alguma se restringe à sexualidade”. Como veremos no videoclipe, as diversas músicas cantadas pelas/pelos artistas LGBT(TQ+) colocam em funcionamento dizeres sobre os desejos e os corpos desses sujeitos LGBT(TQ+), dizeres estes que intentam romper/resistir com/a sentidos que circulam na sociedade sobre esses sujeitos que não se identificam com a cisgeneridade e a heterossexualidade.

Nosso objeto de análise apresenta, em cerca de 2 minutos e meio de duração, diferentes cantoras e cantores, cujo funcionamento pode ser depreendido como um recorte do que pode e deve ser destacado de cada uma/um. Durante todo o clipe, as bordas da tela têm em seu enquadramento a retomada das cores da bandeira LGBT:

(4)

Vale frisar que a noção de enquadramento neste trabalho coloca em cena nosso gesto de leitura do que é possível e necessário de ser dito no clipe sobre gênero e sujeitos e(m) sexualidades. Podemos dizer que um primeiro efeito inscreve as cores na retomada da luta pelas questões de gêneros e sexualidades e cujos sentidos, retomando a cromatografia política (ORLANDI, 2001a), apontam para uma diversidade e para uma não homogeneização de sentidos sobre gênero e sexualidade. No entanto, a escolha pelas cores de uma bandeira, que coloca em causa uma luta, opera silenciando as bandeiras e lutas de outros grupos, como as lésbicas, os/as transexuais etc. Retomando Orlandi (2002) ao colocar o dito em relação àquilo que é excluído em todo processo discursivo, atentamos, neste caso, para as diferentes bandeiras que são silenciadas no clipe musical, o que produz um efeito de homogeneização dos grupos e das lutas de gênero em uma única bandeira.

O clipe nos apresenta fragmentos de músicas, respectivamente, de Pabllo Vittar, MC Queer, Lia Clark, Aretuza Lovi, Linn da Quebrada, Banda Uó, Jaloo, Mulher Pepita, Johnny Hooker, Gloria Groove, Liniker e os Caramelows, Kaique Theodoro. Algumas perguntas que nos movem: O que se coloca a ver destes sujeitos e(m) suas sexualidades e identidades de gêneros? Como os corpos desses sujeitos se sustentam nessas identidades? Que inscrições de memória (PÊCHEUX, 1983) perduram e são rompidas nesse cantar, dançar, mostrar do clipe musical? Estariam no clipe artistas lésbicas, gays, trans, bi, queers ou haveria um recorte de quais artistas são consideradas/considerados representantes do “universo” LGBT(TQ+) referente ao cenário da música brasileira?

De maneira preliminar, estabelecemos um recorte de três passagens do clipe: a música de MC Queer, Linn da Quebrada e Jaloo. No primeiro fragmento, a seguinte letra: “Me chama de viado, invertido e baitola/Bichinha, boiolinha, bambi e chupa rola/Quero muita atenção pro que eu vou falar pra tu/ Tem que ser macho pra caralho pra poder dar o próprio [...]” Antes da finalização do verso, uma edição sonora impede que ouçamos o que será dito/cantado, embora não seja difícil supor o que está em jogo nessa complementação. De Jaloo nos é apresentado o seguinte recorte: “Você vem para o meu mundo e eu te conto como acontece a chuva [2x]/Molha, molha/Cai chuva, chove, chove, sai/Chuva, molha, molha, vem/Chuva, chuva”. Em Linn da Quebrada: “Ela tem cara de mulher, corpo de mulher, jeito, tem bunda, tem peito, tem pau de mulher”.

(5)

Pêcheux (1983, p. 52) explica que a memória é “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”. Essa passagem, colocada em relação ao fragmento de MC Queer, permite depreender uma retomada do que imaginariamente se diz e se espera do sujeito homossexual, especialmente em uma discursividade homofóbica: um sujeito que inscreve uma feminilidade estranhamente familiar (“invertido”), cuja preferência sexual assenta-se em uma única parte do corpo. Silenciam-se afetos, conflitos, desejos outros. A homossexualidade nessa discursividade é restrita, e são silenciadas questões outras desse sujeito. Vale destacar que Louro (2014), com base em Butler, explica que a homofobia relaciona-se a um pavor dos homossexuais; mais amplamente, esse sujeito, ao assumir sua orientação, pode produzir sobre o outro essa espécie de terror na diluição das divisões imaginárias de sexo/gênero. Por isso, MC Queer não necessariamente desloca sentidos sobre sexo e homossexualidade, mas os retoma em uma FD homofóbica que diz não ser “macho” o homem que deseja e expressa sua sexualidade por meio do sexo anal. Ainda assim, há um movimento outro quando afirma que “Tem que ser macho pra caralho pra poder dar o próprio [...]”. Ocorre que justamente aquilo que poderia ser um gesto de resistência encontra o silenciamento da edição: o gesto de empoderamento de um sujeito que assume sua sexualidade continua na ordem do indizível, cuja retomada pelo leitor se faz justamente nos implícitos, tais como exposto em Pêcheux (ibidem). A música, por meio desse silenciamento do dizer acerca do sexo anal, filia-se a uma memória que indicia para a virilidade do homem homossexual, marcando ser esse homem “macho” e não “viado, invertido, baitola”. Há uma não identificação do sujeito que canta a essas designações dadas aos sujeitos homossexuais, as quais, muitas vezes, apagam sua virilidade, caracterizando-os como afeminados, boiolas. A música inscreve esse homem que deseja outro homem, que “chupa rola” e “dá o próprio ...” à macheza tão defendida pelos homens héteros, desse modo, não rompe com uma FD homofóbica, mas acaba por filiar-se a ela com performances que “parecem” confrontá-la.

O corpo homossexual, materializado linguisticamente na música de MC Queer, já vem significado por uma memória, uma história que funciona na sociedade. Desse modo, o sujeito homossexual relaciona-se com seu corpo atravessado por essa memória, pelo discurso social que o significa (ORLANDI, 2012) como “viado”, “boiolinha”, “baitola”. Todavia, no clipe, um outro dizer emerge, buscando filiar esse corpo homossexual a outros dizeres e sentidos, tais

(6)

como “ser macho”. Esse corpo colocado na música passa textualizar-se de um outro modo, filiando-se a outras regiões de sentidos.

Por sua vez, Jaloo faz uso da metáfora da chuva, da mudança meteorológica para estabelecer relações de sentidos com o envolvimento físico e emocional. No conjunto de cantoras e cantores apresentados no clipe, Jaloo desliza, inscreve o não esperado, ou seja, produz movimentos outros em relação ao vídeo de MC Queer, por exemplo, o qual não escolhe uma gíria LGBT(TQ+) para dizer sobre sua prática sexual. Mesmo essa sendo silenciada pela edição do clipe, por um funcionamento da memória, é possível retomar o implícito e afirmar estar o sujeito do clipe dizendo sobre gostar de sexo anal. Diferentemente da letra de Jaloo, na qual, para que se retome os possíveis sentidos de chuva , é preciso buscar nos dizeres LGBT(TQ+) sentidos para chuva – a qual faz uma retomada de uma prática sexual de urinar no parceiro para se ter prazer2. Em Jaloo, ao silenciar questões mais polêmicas acerca das questões de gênero pelo uso de metáforas, ao não inscrever a discursividade hegemônica, funciona mobilizando um suposto ordinário das relações afetivas e sexuais ao mesmo tempo em que inscreve práticas reconhecidas em/por um determinado grupo social.

Buscando traçar uma espécie de síntese, podemos afirmar que em MC Queer temos uma memória discursiva retomada para a reafirmação do desejo e das tomadas de posição assumidas, mesmo filiando-se a um discurso homofóbico que inscreve o homossexual em dizeres sobre sua virilidade enquanto homem macho, tentando romper com dizeres sobre “ser viado, boiola, invertido, baitola”; em Jaloo, na metáfora da chuva, o sujeito aponta para a possibilidade de práticas de um determinado grupo, bem como para uma intercambialidade: sob a metáfora, para além das orientações e normatizações, todos estão expostos. Tais retomadas e desconstruções, a nosso ver, não são sem consequências. De acordo com Louro,

Uma das conseqüências mais significativas da desconstrução dessa oposição binária reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam as diferentes formas de masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. A concepção dos gêneros como se produzindo dentro de uma lógica dicotômica implica um pólo que se contrapõe a outro (portanto uma idéia singular de masculinidade e de feminilidade), e isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que não se “enquadram” em uma dessas formas. (LOURO, 2014, p. 38)

2 Disponível em:

(7)

No trecho recortado de uma música de Linn da Quebrada um dizer sobre um corpo é colocado em cena. Explicitamente diz-se na letra da canção da artista sobre uma mulher que “tem pau”, ou seja, uma mulher que traz um órgão sexual masculino, mas que se identifica com mulher, pois tem “cara de mulher, corpo de mulher, jeito, bunda, peito de mulher”, diferentemente da música de Jaloo que faz uso da metáfora e da música de MC Queer que diz sobre o “cu”, mas que sofre processos de silenciamento/censura. A música de Linn da Quebrada aponta para um não-binarismo, como afirma Louro (2014), em que homem possui pênis e mulher, vagina. Fala-se de uma mulher trans (seja essa transgênero, travesti, transexual). Há de certo modo nesse recorte da canção uma discussão sobre a subordinação morfológica do gênero ao sexo, criticando-a como uma prática social que serve para a opressão (JESUS, 2014). Contudo, a música também abre para sentidos que, sustentados em memória binária sobre os gêneros, dizem que essa mulher que tem pau não é mulher. Há um funcionamento implícito da conjunção adversativa “mas”, que preenche com formulações as quais apontam que, apesar de parecer com e identificar-se como mulher, essa mulher trans, “que tem pau”, não é mulher, pois ainda reconhece como mulher aquela que tem o órgão genital vagina, não se considera o “tornar-se mulher”, como já falava Beauvoir (1949). O gênero colocado em funcionamento nessa música, embora haja também implicitamente uma memória que sustenta a cisgeneridade, vai além dos sentidos colocados pela sociedade aos corpos atrelados à genitalização e ao sexo como biológico.

As músicas apresentadas no videoclipe fazem funcionar dizeres que mostram a opacidade dos corpos dos sujeitos. Embora haja uma memória que sustente sentidos a eles, os corpos performáticos das/dos artistas textualizam práticas de resistência. Como afirma Orlandi (2012, p. 87):

Os sujeitos textualizam seu corpo pela maneira mesma como estão nele significados, e se deslocam na sociedade e na história: corpos segregados, corpos legítimos, corpos tatuados. Corpos integrados. Corpos fora de lugar. O comum, o normatizado, o hegemônico. O corpo do rico e o do pobre.

Nas músicas, corpos considerados ilegítimos, segregados, corpos fora de lugar resistem ao comum, ao normatizado, ao hegemônico e intentam furar uma memória que inscreve os corpos dos sujeitos em dizeres sobre a cisgeneridade e a heterossexualidade. Esses corpos dos sujeitos LGBTTQ+ comparecem como “dispositivo de visualização” (LEANDRO-FERREIRA, 2013), como modo de ver os sujeitos, suas condições de produção, sua

(8)

historicidade: “Trata-se do corpo que olha e se expõe ao olhar do outro. O corpo intangível, e o corpo que se deixa manipular. O corpo como lugar do visível e do invisível” (LEANDRO-FERREIRA, 2013, p. 105). Um visível que a sociedade tenta silenciar, tornar, muitas vezes, pela violência cada vez mais invisível. Porém, como já afirmava Pêcheux (1999), a ideologia é um ritual com falhas, dobras, rachaduras e outros dizeres podem surgir, os quais buscam ressignificar esses corpos.

Voltemos à análise do clipe: Essa primeira versão das músicas LGBT+Brasileira recebeu algumas críticas de sujeitos internautas lésbicos e bissexuais por não trazer nenhuma lésbica, bissexual como representante da música LGBT(TQ+).

(9)

Figura 3: Clipe Música LGBT+Brasileira

Figura 4: Clipe Música LGBT+Brasileira

Após essas críticas em torno da não visibilidade da mulher, artista, cantora lésbica (seja as atuais ou anteriores ao século XXI), há uma atualização do vídeo e a cantora e artista Ga31, considerada como feminista sapatona, aparece (a visibilidade aqui é dada somente a uma

(10)

cantora lésbica, como se essa fosse a representante das diversas outras artistas). A música que está no clipe é “Lésbica Futurista”:

Figura 5: Clipe Música LGBT+Brasileira

Nela, por meio da música eletrônica, canta-se: “Lésbica futurista, sapatona convicta. Eu não vou deixar a inveja me abalar para sempre...”. Retomando aqui uma questão da sexualidade, temos uma mulher que se assume como lésbica e também faz uso da palavra “sapatona” como uma forma de identificação (item lexical que, por um funcionamento da memória, sustenta-se como um xingamento às mulheres que assumem um relacionamento homoafetivo). Mais uma vez temos no videoclipe confrontada a heterossexualidade que inscreve a mulher como parceira somente do homem. Aqui, a mulher “convicta” de sua sexualidade, fazendo resistência a discursos que dizem sobre suas incertezas, dúvidas sobre seu desejo por outra mulher.

Embora o clipe se intitulasse “Música LGBT+Brasileira”, antes das críticas recebidas, não havia mulheres lésbicas como representantes desse cenário musical. Desse modo, poderíamos afirmar que houve, de certo modo, uma exclusão de sexualidades em um espaço que se enunciava como inclusivo. Aparentemente, haveria algumas sexualidades e identidades

(11)

de gênero reconhecidas dentre outras. Na primeira versão do clipe, temos somente cantores/cantoras gay e trans, os quais parecem ocupar mais espaço midiático na atualidade do que as cantoras lésbicas. Na segunda versão, uma cantora é trazida à cena e canta ser “sapatona convicta”, “lésbica”. Na primeira versão, um silenciamentos da mulher cisgênera e sua homossexualidade. Na segunda, a materialização desses dizeres por meio do discurso artístico. Buscamos relacionar uma produção artística a sentidos sobre gêneros, sexualidades e corpos. Compreendemos, com base em Leandro-Ferreira (2015), que a arte “[...] é um modo de nos fazer ver. Ver o que há nas telas, nos palcos, nos textos, nas galerias e fora delas.” (p. 264). Nesse movimento de sentidos, acrescentamos: ver o que podem e querem os sujeitos dizer e mostrar sobre seus corpos e suas sexualidades em uma materialidade audiovisual produzida em uma conjuntura social fortemente marcada por uma regulação sexual, com ações atualmente censórias acerca desses corpos não categorizáveis, que resistem ao binarismo que sustenta a vida comezinha. É importante salientar que, ao se colocar em pauta tais dizeres e práticas supostamente à margem de uma normalidade, outros movimentos de sentidos se instauram em regular uma lógica, uma conduta afetiva e sexual. Assim, corroboramos com a afirmação de Louro segundo a qual “admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes dos gêneros” (LOURO, 2014, p. 28-29).

Como efeito de fechamento, retomamos o fragmento que encerra o clipe e que faz um apanhado amplo das/dos artistas apresentados; sob o fundo, a letra da música que funciona imperativamente: “Desce a viadagem!”. E é sob o efeito impositivo de tal grito que nossas pesquisas buscam filiar-se ao postulado por Louro quando afirma que “não custa reafirmar que os grupos dominados são, muitas vezes, capazes de fazer dos espaços e das instâncias de opressão, lugares de resistência e de exercício de poder”. (LOURO, 2014, p. 37). E é pela arte, insistimos, que tais práticas discursivas também podem ser formuladas, postas a circular e a resistir a uma sociedade que violenta cotidianamente os sujeitos que se identificam como LGBTTQ+.

Referências

BEAUVOIR, S. (1949). O segundo sexo: a experiência vivida. 3. ed. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

(12)

BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2017.

JESUS, J. G. de. Gênero sem essencialismo: feminismo transgênero como crítica do sexo.

Universitas Humanística, n. 76, p. 214-258, 2014.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2014.

______. Pedagogias da sexualidade. In: ___. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

FERREIRA, M. C. L. Pensando a arte como discurso. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M.C.L.; MITTMANN, S. (Org.). Análise do discurso: dos fundamentos aos desdobramentos (30 anos de Michel Pêcheux). Campinas, SP: Mercado de Letras, 2015, p. 263-274.

______. Discurso, arquivo e corpo. In: MARIANI, B.; MEDEIROS, V.; DELA SILVA, S. (Org.). Discurso, arquivo e... Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, p. 174-183.

OLIVEIRA, P.P. Discursos sobre a masculinidade. Estudos Feministas. N. 6, v.1, p. 91-111, 1998.

ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp. 2002.

______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001a. ______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 2001b. ______. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes, 2012.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Unicamp, 2009.

______. [1983]. Papel da memória. In: ACHARD, P. [et al.]. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 2010, p. 49-58.

SCOTT, J. W. Gênero, uma categorial útil de análise histórica. Educação e realidade. N. 20, v. 2, p. 71-99, 1995.

Referências

Documentos relacionados

A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se baseia no fato de que uma

ATENÇÃO: Para cotação de empresas com vidas a partir de 65 anos, consulte nossa área técnica, pois haverá agravo de valor para toda a massa.. Valores válidos apenas para empresas

A autuada deverá ser informado de que a não interposição de recurso ocasionará o trânsito em julgado, sendo o processo remetido ao Núcleo Financeiro para cobrança da multa.. O

DATA: 17/out PERÍODO: MATUTINO ( ) VESPERTINO ( X ) NOTURNO ( ) LOCAL: Bloco XXIB - sala 11. Horário Nº Trabalho Título do trabalho

Desse valor, R$ 130 milhões serão destinados à construção de novos prédios, demolição e construção de uma nova área de bagagens, e R$ 31 milhões à aquisição

- ter um pico de eficiência espectral de sistema de 3 bps/Hz/célula no enlace de downstream e 2,25 bps/Hz/célula no enlace de upstream;.. Requerimentos

João Vieira da Silva, natural de Portugal, f.o de João Gonçalves da Silva e de s/m.. Maria Gonçalves, moradores na fregue- sia

Estes três eventos envolvem contas de resultado (Demonstração do Resultado) e contas patrimoniais (Balanço Patrimonial).. O resultado apresentado em nada difere das