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TRADIÇÃO RELIGIOSA E MODERNIDADE: FESTA DE AGOSTO EM MONTES CLAROS

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Academic year: 2021

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TRADIÇÃO RELIGIOSA E MODERNIDADE: “FESTA DE AGOSTO” EM MONTES CLAROS

Ângela Aparecida Souza Acadêmica do 7º período do Curso de Ciências da Religião na Universidade Estadual de

Montes Claros/ UNIMONTES, bolsista de Iniciação Científica PROBIC-FAPEMIG, orientada pelo professor Drº Waway Kimbanda, Profº no curso de Ciências da Religião da Universidade Estadual de Montes Claros/ UNIMONTES e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) na mesma Universidade

angelsouza754@yahoo.com.br

Populações Tradicionais e Processos Sociais RESUMO: O objetivo deste estudo é analisar o contexto tradicional da “Festa de Agosto” em Montes Claros considerando também o aspecto secular trazido por ela, sendo denominado de modernidade. Neste sentido, o presente trabalho se divide em três partes, primeiramente conceitua-se tradição religiosa e modernidade, em seguida, fundamenta-se na teoria da relação

sagrado e profano de Mircea Eliade e finalmente discute-se o contexto da tradição e da

modernidade na “Festa de Agosto”.

1. Conceito de Tradição Religiosa e Modernidade

O termo tradição origina-se do latim, tradito, que designa o ato de entregar alguma coisa. De acordo com Eicher (1993), traditio pode mudar o significado para o uso metafórico, que em autores cristãos é usado em sentido figurado. “Pelo emprego cristão do termo, traditio, corresponde à parádesis, que com o verbo respectivo, já se tinha estabelecido como termo filosófico e possuía largo leque de significados” (EICHER, 1993, 960).

Segundo a autora socióloga Cláudia Luz de Oliveira, para entender o significado de tradição é necessário encontrar sua oposição: a modernidade. Então, para ela, tradicional se associa à idéia de passado, primitivo e arcaico. Isto indica o contrário da modernidade ocidental, que é percebida através da idéia de futuro, progresso e evolução (Cf. OLIVEIRA, 2005, p.5).

Tradição implica de modo ativo, cujo ato de transmitir é considerado passivo, porém, ambos se inter-relacionam. O ato de transmitir é um processo comunicativo (Cf. EICHER,

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1993, p.960). Para este autor, “tradição desenvolve-se em doutrinas, ritos, costumes, normas e narrativas, sendo um constitutivo do que em geral se chama de cultura” (1993, p.960). Eicher salienta que ao passar pelo processo de transmissão ocorrem alterações na forma, no conteúdo e na função, sendo que o homem já nasce em sociedades onde as tradições já estão determinadas. A tradição, segundo ele, tem duas funções: cria grupos, enquanto transmite valores culturais e ajuda o homem a entender-se como ser histórico ao participar desta cadeia cíclica que envolve as gerações.

Para o cristianismo, tradição religiosa significa o elemento aglutinante com a origem de “sua existência, foi, contudo, definida desde o Concílio de Trento para a igreja católica. Assim, tradição é conceito, na verdade, com freqüência usada, mas pouco claro, da linguagem teológica e eclesiástica” (EICHER, 1993, p.961). Os autores dos escritos do Novo Testamento significam regulamentação tradicional, podendo perceber em Paulo o princípio da transmissão de fórmula de confissão de Fé, nele pode-se constatar a função da tradição no campo religioso, pois, ela contribui para a resolução de conflitos, por causa da sua autoridade (Cf. EICHER, 1993, p.161). A tradição religiosa cristã é, “segundo o Concílio Vaticano II, tradição vivenciada, pois é tradição viva e vivificante” (EICHER, 1993, p.965).

De acordo com Pottmeyer (1994), a tradição cristã pode ser examinada sob muitos ângulos: como fenômeno da cultura humana, seguindo uma visão antropológica ou identidade grupal que é transmitida. O teólogo cristão vê o tradicional como herança de uma determinada cultura, na ótica da fé cristã. Distingui-se o conteúdo transmitido (o traditum ou traditio

objectiva), o processo de transmitir e de receber (o actus tradendi et recipiendi ou traditio activa) e os sujeitos da tradição, os tradentes ou traditio subjectiva. Pottmeyer (1994) ressalta

que a idéia de tradição hoje é contraditória, pois há os que contestam sobre o valor da tradição, por outro lado, há os que questionam que ela é indispensável para os indivíduos e para a sociedade. Na discussão da dissertação de mestrado de Colares (2006) ela reflete a visão iluminista sobre a tradição, onde eles a vêem como atraso e empecilho para o progresso e modernidade.

A crítica em relação à tradição tem uma longa história, começa com a passagem do

mythos para o lógos na filosofia grega, sendo também encontrada no Antigo e no Novo

Testamento (Cf. POTTMEYER, 1994). Para este autor:

“o homem é um ser da tradição. Acolhe tradições e as transmite, cria tradições e as destrói. Transmitir é um evento cultural, social e pessoal. A tradição é um elemento constitutivo da cultura humana. Embasa-se em dois fatos antropológicos fundamentais: por um lado, na finitude, mortalidade, historicidade do homem, por outro, na necessidade de construir sobre experiências, conhecimentos e habilidades adquiridos por outros, para que possa crescer e

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desenvolver-se uma cultura. Transmitem-se habilidades, costumes, ritos, normas, relatos e doutrinas. A tradição está ligada antes de tudo à língua é o medium com o qual se transmite, e ela mesma é tradição” (1994 p.).

Para Pottmeyer, no plano social, tradição é um processo comunicativo diacrônico e sincrônico e desempenha duas funções sociais: cria grupos e trabalha com a libertação e orientação. Mas ela é paradoxal, por um lado, desenvolve a personalidade do indivíduo e por outro, condiciona o sujeito a ponto de obstacular ou impedir o livre desenvolvimento no entender e praticar. Sendo assim, ela é destino e desafio.

O laço da continuidade cria um grupo pela tradição, o comportamento simbólico herdado da tradição se cumpre no interior da mesma.

“a religião é, pois um dispositivo ideológico, prático, simbólico, pelo qual se constitui, se alimenta e se desenvolve o sentido individual e coletivo que pertença a uma linha particular de crença. Por meio da tradição de crenças, estabelece-se a identificação que opera internamente no grupo e externamente o distingue dos outros. Cria-se uma cadeia de crenças, que se organiza, se preserva e se reproduz” (LIBANIO, 2002, P. 91).

Existe um amplo discurso acerca da modernidade, cada autor a vê com características e origens diferentes. Ela está ligada à era digital, explosão cultural, reforma protestante, tecnologia, capitalismo consumista, robótica, secularização e oposição ao tradicional. Enfim, a modernidade possui uma diversidade de pontos de partida, porém, nos limitaremos a partir da data da descoberta da América por Cristóvão Colombo (1492) que marca o fim da Idade Média.

Moderno, vem do advérbio latino “modo” = há pouco, recentemente. Para autores influenciados por Marx, o que modela o mundo moderno é o capitalismo, já Durkheim, acredita que seja a divisão do trabalho, ou seja, a ordem industrial (Cf. GIDDENS, 1991). Este autor trata a modernidade a partir da tradição, pois segundo ele, existem os processos de continuidade. Produzem-se novos elementos a partir dos antigos, este processo é chamado por ele de reflexidade. Repensa as práticas passadas para a criação de novas, é como os símbolos, eles não acabam e sim re-significam, ou seja, o símbolo é substituído com por um novo significado. Para Giddens, é dessa forma que acontece com as práticas tradicionais, por isso ele enfatiza as continuidades entre um período e outro. A modernidade assume a herança cultural aplicando à ela novos sentidos, pois o pensamento do homem moderno é orientado para o progresso e futuro, mas conecta com passado e presente. Segundo Libanio, o crescimento econômico aumenta o consumo,

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“este consumo conspícuo vem de encontro com as necessidades, aspirações, que ele mesmo provoca, gerando uma sensação de felicidade, de bem estar. A felicidade tem o tamanho do mundo dos desejos, da busca da satisfação corporal, psíquica, afetiva, intelectual e espiritual” (1992, p.131)

A valorização e a busca pela felicidade no mundo moderno, encontra-se no ter mais do que no ser, ou seja, quanto mais se tem, mais poder se adquire. Neste ponto entram-se as disputas e o individualismo. A modernidade torna-se sinônimo de felicidade, esta por sua vez é encontrada nas satisfações momentâneas, no consumo exarcebado, nas satisfações de bem estar com o corpo, prazer e poder. O capitalismo consumista é que verifica o grau de felicidade da pessoa e seus status de ocupação na sociedade, sendo assim, estes pontos entram em conflito com a ordem religiosa, pois esta prega exatamente o contrário na visão exposta acima.

O princípio fundamental da modernidade, para Hegel, é a subjetividade, porque esta explica a superioridade do mundo moderno e as tendências às crises existenciais. Ela determina todas as manifestações da cultura moderna, seja na vida religiosa, no estado, na sociedade, na ciência, na arte ou entre outros. Na subjetividade entra o individualismo que é uma peculiaridade particular à autonomia da ação, pois o indivíduo quer ser fiador daquilo que faz (Cf. OLMOS, 200).

Para Libanio (2002), a tridentinização, ou seja, a romanização do catolicismo brasileiro significou uma espécie de “modernidade eclesiástica”, pois foi retirado o poder dos leigos, passando-o para o clero, centralizando a figura do padre e do papa. Esta foi a primeira modernidade, também chamada intra-eclesial. Mais tarde, acontece a modernidade pós- cristã:

“Essa modernidade trouxe em seu bojo exigências da razão iluminista, autônoma, já não mais preocupada em purificar nenhuma religião de seu sincretismo, mas de destituí-la de qualquer domínio sobre a sociedade, de expulsa-la simplesmente do mundo da razão para reduzi-la ao âmbito da intimidade afetiva das pessoas. Em nome da razão científica, restringem-se ao âmbito da Fé as realidades místicas, pré-científicas, sem consistência teórica. Além do mais, promoveu-se uma valorização crescente do individuo, de sua subjetividade, de sua intimidade. Os setores da religião e da conduta moral especialmente sexual tornaram-se cada vez mais uma opção pessoal e não institucional” (LIBANIO, 2002, p.122)

Segundo Libanio, a primeira modernidade foi eclesiástica e a segunda foi anti- eclesiástica e anti-religiosa, pois provocou muitos efeitos sobre a religião, entre eles: privatização, “reduziu-a em produto do ser humano (L. Feuerbach), destituiu-a de valor científico (cientismo), inflamou-a (Comte), alienação (Marx), fraqueza (Nietzsche), infantilismo (Freud)” (2002, p.122). Essa modernidade pós-cristã leva a teologia à crises, na

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visão do autor. O homem é um ser simbólico, sente necessidade de dar sentido à existência, por isso constrói os elementos simbólicos. A modernidade atinge esses elementos dando-lhe outros significados de origens seculares.

A religião mudou sua função social, ao invés de atender o coletivo e manter a união comunitária, ela passou a responder as necessidades individuais, não desapareceu e sim privatizou esse processo que é caracterizado por secularização (Cf. LIBANIO, 2002, p.125).

Berger e Luckmann (2004) estudam sobre a teoria sociológica da secularização e as crises de sentido provocadas pela modernidade. Eles chegam a chamar as instituições religiosas de comércios geradores de sentido. A ação do indivíduo é um sentido de objetividade. Na sociedade moderna criam-se diferentes formas de valores e interpretações e com isso vêm os diferenciados tipos de sentidos que é o pluralismo moderno, “esta forma, moderna de pluralismo é também a razão básica principal da difusão de crises subjetivas e intersubjetivas de sentido” (2004, p.38). A modernização dificulta o monopólio de valores de sentido, com isso cresce o pluralismo e a diversidade de pensamentos.

Na visão de Libanio (2002), a modernização produziu o pluralismo cultural. A mídia provoca uma aldeia global onde a religião se alimenta, cuja crise da modernidade tem a ver com o crescimento do fenômeno religioso.

2. Relação Sagrado e Profano

A primeira definição que se pode dar ao sagrado é sua oposição ao profano, no entanto, um se manifesta no outro e ambos não vivem isolados. Eliade (1992) propõe o termo “hierofania” para designar manifestação do sagrado. Tanto o sagrado quanto o profano são duas formas de viver no mundo e ambos são assumidos pelos homens como situações existenciais.

Para Eliade (1992), sagrado indica algo separado e consagrado, profano é o que se encontra fora do templo. No espaço da “Festa de Agosto” o sagrado é representado pela tradição religiosa, isto é, levantamentos de mastros, missas, desfiles, cantos e danças, pois estes momentos são considerados sagrados para os grupos religiosos. Já o profano é o que se encontra ao redor do centro e “axis mundi”, ou seja, fora da dimensão religiosa, sendo caracterizado pelo consumismo, capitalismo e relações de política, como já descrevemos no item anterior. Para Miele (2006, p.18.), “o mundo sagrado é o universo das interdições, enquanto o mundo profano corresponde a das transgressões. Neste sentido, é um fenômeno interno que se completa no externo”. O sagrado sempre vai se manifestar no profano, um não

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existe sem o outro, este é um paradoxo que dá sentido a existência humana, nesta consideração concordamos com Mile (2006 p.18), quando ele afirma que “a ambivalência do sagrado e do profano não é mais do que expressão que caracteriza a própria polaridade humana”, ou seja, é da própria tendência do humano ser paradoxal, este sagrado e profano é a representação da luta entre bem e mal, certo e errado, tradição e modernidade. É a dualidade que caracteriza os indivíduos.

Para Eliade (1992), o espaço sagrado é imbuído de significado para o homem religioso e surgiu partindo de uma manifestação sagrada equivalendo a sua criação. Já para a experiência profana, o espaço é homogêneo, não há diferença nas partes de sua massa, é sem estruturas e sem consistência, a existência neste espaço encontra-se em estado impuro. Porém, para Eliade (1992) “o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso”, isto acontece justamente por causa da discussão anterior, pelo fato do homem ser ambivalente, ao mesmo tempo em que ele vive na modernidade e que seguir esta tendência, ele não consegue se desamarrar dos valores tradicionais e dos laços religiosos que traz em si.

Para Catão (2006, p. 10), “o espaço é o lugar em que se faz a experiência religiosa, em que a pessoa é levada a descobrir um sentido transcendente”, o lugar que o sagrado se manifesta é único, é entendido como sagrado na visão de Catão, à medida que interfere na vida das pessoas e da comunidade. Mircea Eliade (1992) entende o espaço sagrado como vazio, ou seja, sem forma e sem poder. A experiência religiosa da diferença entre os espaços constitui uma diferença primordial, que ocorre na “fundação do mundo”, isto é, no tempo das origens, quando a manifestação do sagrado fundou o mundo e revelou o ponto fixo (espaço sagrado). Para Pimenta:

“o sagrado significa este sentido do “outro”, do além, do superior, do melhor e do real. Ao contrário, pois, do profano, que é incompleto, o imperfeito, o irreal, próprios da condição humana. O sagrado é sobrenatural, o que está acima do homem, mas em relação com ele (...). O sagrado, porém, não é simplesmente “outro”, mas o outro de quem dependemos, que pode mesmo ser a explicação de nossa vida e o fundamento de nossa existência” ( 1980, p.135).

O pensamento de Pimenta (1980) se identifica com o de Eliade (1992), no ponto em que descreve o sagrado como real e o profano como incompleto e também quando ele vê o sagrado como o que está superior ao homem, porém, em sintonia com ele. Pois o que concretiza essa comunicação, na manifestação sagrada da “Festa de Agosto”, é o mastro que representa o “axis mundi”, ele faz a mediação entre os religiosos e os santos. Durante a festa, o homem exterioriza todos os seus sentimentos e se une a divindade, “o sagrado é direção

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para fora de nós mesmos, para o mundo onde nossa vida é sublimada” (Pimenta, 1980, p.136). O sagrado necessita de fatos exteriores para se manifestar.

A hierofania tem um ponto fixo, ou seja, um centro. Para os catopês, marujos e caboclinhos este centro onde o sagrado se manifesta é localizado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde tem o mastro que é ponto fixo da hierofania, este é demarcado para se destacar, pois é um espaço diferente porque envolve o sagrado.

Todo mês de agosto os ternos de congado têm a missão de sacralizar o mundo, transformar o caos em cosmos (mundo ordenado ou organizado), isto é, na medida em que reatualizam os gestos e rituais divinos pelas ruas de Montes Claros eles vão sacralizando os espaços profanos pelo ato divino da criação.

Para fazer a passagem de uma região cósmica para outra é necessário uma rotura, definida por Eliade de “abertura” (cf. 1992, p.38), do céu a terra e vice-versa e da terra para o mundo inferior.

A comunicação com o céu é feita através do mastro que é localizado no centro do mundo dos grupos religiosos, é um sinal concreto do “axis mundi”, ele une terra e céu, homens e deuses e liga os religiosos aos seus antepassados. Marques (2006, p.71) identificou que “no momento em que dançam e cantam, denotam estado alterado da consciência, principalmente durante o levantamento de mastros quando expressam a devoção ao santo festejado”. Neste sentido, recorremos ao teólogo Rudolf Otto citado por Eliade (1992) e Pimenta (1980), quando ele fala da experiência do mysterium tremendum que é uma vivência fascinante perante o sagrado, ele descreve a objetividade do sagrado e sua relação com a subjetividade humana. O sagrado se apresenta como mistério e provoca comportamentos seja de atração, fascinação ou medo e pavor. O sagrado exala poder e se manifesta diferentemente das realidades naturais. Quando se levanta o mastro é o sentimento de fascinação e mysterium

tremendum, descrito por Otto, que envolve os catopês, marujos e caboclinhos. R. Otto faz

uma descrição fenomenológica do sagrado, segundo ele, o sagrado ora mostra sua face de sedução, ora seu temor misterioso, “o fascinante e o horripilante provocam a experiência religiosa as arrancar-nos do ordinário, da rotina, transpondo-nos para uma cena extraordinária, diferente” (citado por LIBANIO, 2002, p. 92).

De acordo com Eliade (1992, p.39), “encontramos por toda parte o simbolismo do Centro do Mundo”, ou seja, esse simbolismo representa as bandeiras de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo que ficam durante o período de um ano em três casas com localizações distintas, representando o sagrado em cada uma delas.

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A Igreja de Nossa Senhora do Rosário é considerada, para os grupos religiosos, como o ponto mais alto da cidade, pois ela se encontra no meio, isto é, no Centro. Os levantamentos de mastros e as missas acontecem neste espaço porque ele é o espaço sagrado, onde os grupos religiosos se aproximam dos deuses e repetem a cosmogonia (narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo). O universo desenvolve a partir do centro que é o local cujo espaço se torna sagrado, como salienta Eliade, “os modelos transcendentes dos templos gozam de uma existência espiritual, incorruptível e celeste. Pela graça dos deuses, o homem acende à visão fulgurante desses modelos e esforça-se em seguida por reproduzi-los na terra” (1992, p.57). Sendo assim, a igreja de Nossa Senhora do Rosário vem de um modelo espiritual já existente, onde os grupos religiosos apenas repetem e tentam imitar os arquétipos que foram produzidos no tempo das origens. A igreja é vista como lugar sagrado, a casa dos santos que são homenageados: Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo, por isso, ela tem o poder de purificar o mundo. Para Eliade (1992), a pureza do templo não é atingida pela desordem e corrupção terrestre, pois é uma obra dos deuses e encontra-se perto deles.

Portanto, a “Festa de Agosto” em Montes Claros acompanha a dualidade humana, em outras palavras, segue-se em duas formas existenciais: a sagrada e a profana. Sendo a sagrada a representação dos momentos devocionais e tradicionais que envolvem a religiosidade, partindo do espaço sagrado que é o centro, ou seja, a igreja do Rosário; se concretizando com os levantamentos de mastros que é o símbolo da representação que liga o céu e a terra e fazendo a comunicação entre Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo com os catopês, marujadas e caboclinhos.

A experiência profana é marcada pelo que se encontra ao redor ou fora do templo sagrado. Isto é, os elementos e características da modernidade: barracas com bebidas e comidas típicas, artigos para o lar, bijuterias, bolsas, sandálias, todo o consumismo e capitalismo que percebemos durante a “Festa de Agosto”.

De acordo com Libanio (2002), “o profano se torna revelador, da realidade sagrada sem deixar de ser o que é, enquanto a realidade sagrada se reveste das mais variadas formas mundanas camuflando-se. Assim, o jogo paradoxal entre esses pares de opostos, apontava, portanto, para um processo de camuflagem do sagrado” (p.48). Para este autor, a “camuflagem” do sagrado serve de interpretação do aspecto religioso da atualidade. No espaço da “Festa de Agosto” as ideologias capitalistas, políticas e econômicas, servem para ajudar na manifestação do sagrado. Este por sua vez, vem imbuído de elementos profanos, como as luxuosas cortes de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Divino Espírito Santo. Concordamos com este autor quando ele afirma que a camuflagem do sagrado em profano e

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vice-versa é exatamente o choque com a modernidade. “Na camuflagem há um jogo de velamento e desvelamento” (2002, p.48).

Essas duas experiências se misturam. Quando o cortejo sai pelas ruas da cidade o mundo profano assiste o sagrado, ora com sentimento de respeito, pois algumas pessoas fazem o nome do pai e ficam perplexas diante do sagrado; ora com sentimento de impaciência, porque o desfile passa pelo centro da cidade e nas ruas onde se pegam os ônibus percebemos o desespero e a angústia nos semblantes dos que vivem correndo pela vida.

3. Tradição Religiosa e Modernidade no Contexto da “Festa de Agosto” de Montes Claros

Tradicionalmente, em todo mês de agosto, catopês, seguidos de marujos e caboclinhos, conduzem as bandeiras de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e do Divino Espírito Santo. Para o mestre Zanza, a tradição representa os negros, é ter raiz e sangue. A tradição, para ele, é a vida.

De acordo com o mestre de catopês do grupo Santo Expedito, José Expedito, a tradição religiosa é muito importante, pois já recebeu muitas bênçãos e significa a repetição anual da festa dos escravos. A festa é feita para o povo e há muita satisfação em fazê-la. Segundo o contramestre, Tone Cachoeira, do Grupo Marinheiros União, a tradição é a própria festa, envolve o respeito, a religião, a devoção aos santos e o amor em participar. Conforme a porta bandeira dos caboclinhos, Maria do Rosário, a tradição religiosa é a repetição anual, a hereditariedade na participação dos grupos, a fé e devoção ao Divino. Segundo o padre João Batista Lopes, (celebrante da missa congo), a tradição na festa é a mistura das raças e da fé, pois essa miscigenação expressa o povo e sua cultura. Esta festa é a religiosidade do povo e a fé bem inserida na vida.

Partindo dessa diversidade de visões, que foram colhidas do dia 19 a 22 de agosto de 2009 (período da festa), a tradição religiosa identificada na “Festa de Agosto” durante a pesquisa de campo é percebida antes mesmo do evento, pois nos meses de junho, julho e agosto os grupos vão visitar as bandeiras, reis e rainhas todos os sábados, até começar a manifestação, na terceira semana do mês de agosto. Quando os grupos vão visitar ou buscar a bandeira, há todo um ritual na chegada e na saída. Do dia 19 a 21 de agosto, por exemplo, todos os ternos um a um cantam e dançam na porta da casa do festeiro, onde este monta um altar para a bandeira (na casa ou na rua geralmente), este gesto significa a saudação aos santos

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e aos donos da casa. Só após todos saudarem é que partem em direção à igreja do Rosário, este ritual acontece em todas as visitas.

Ao aproximar-se da Igreja do Rosário, toca-se o sino para anunciar a bandeira e os grupos. Ao chegarem vão direto ao lugar do mastro, os grupos cantam e dançam em homenagem e saudação ao santo do dia, só depois levantam a bandeira. Solta-se muitos foguetes e colocam-se velas ao pé do mastro, tanto os participantes quanto os devotos, em agradecimento e oferecimento aos santos. Todos os grupos religiosos têm que cantar e dançar ao redor do mastro em louvor e saudação, sendo este o momento ápice da festa para os catopês, marujos e caboclinhos.

Há também a tradição no reinado diurno. Os grupos se reúnem em frente ao automóvel clube pela manhã e saem desfilando pela cidade em ritmo sincronizado, principalmente os ternos de catopês, pois forma-se a meia lua e de forma alternada cada terno vai até a bandeira, segundo o Mestre Zanza, para louvá-la e saudá-la.

Faz parte da tradição da festa: a caminhada em busca da bandeira até a igreja do Rosário, onde se levanta o mastro; o toque do sino para anunciar a aproximação dos ternos; o reinado com a imagem do santo; as vestimentas; os cantos populares; as cores; a igreja; o levantamento da bandeira; a ornamentação da igreja de acordo com a cor do santo do dia; a dança do cipó dos caboclinhos; os instrumentos; as missas na igreja do Rosário depois do reinado; os passos sincronizados; as visitas aos mordomos e bandeiras; o louvor antes e depois de levantar a bandeira; a devoção à Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Divino Espírito Santo; a procissão com todos os cortejos e grupos no dia de domingo e a missa de agradecimento neste mesmo dia; o almoço oferecido pela corte e a missa à ser direcionada para a festa.

A festa é permeada de tradição religiosa. É caracterizada pela devoção e repetição anual da manifestação que passa de geração em geração recusando-se a “acabar”.

Ao desfilarem pelas ruas da cidade os catopés, marujos e caboclinhos vão cumprindo a tradição e sacralizando os espaços profanos. A tradição em Montes Claros tem suas particularidades como: a mistura das raças (não somente negros participam da festa), em algumas regiões apenas negros pode participar da congada e ser reis e rainhas e a junção das festas comemoradas em datas diferentes (São Benedito e Divino Espírito Santo).

A modernidade expressa nos grupos, de acordo com o Padre João Batista Lopes, é apenas externa: as roupas e instrumentos, pois a mística continua a mesma, somente os recursos que são cada vez mais modernos. Há mistura de religiosidade, cultura e exaltação do econômico. Para ele, essa modernidade pode ser descrita em dois ângulos: filosófico (busca

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de auto-afirmação e de satisfação pessoal; ou seja, prazer) e o econômico (consumismo). Sendo assim, a modernidade parte destes dois eixos. Conforme o contramestre do grupo de marinheiros União, Tone cachoeira, a tradição sofreu muitas mudanças, pois não há mais a morte do patrão e a dança do lenço, interpretados pelos marujos e a dança das fitas feita pelos caboclinhos, para ele não há mais dança dos catopês no ritmo que era, e sim gingado. Os ternos se inovaram principalmente os componentes: os catopês eram negros, os caboclinhos somente homens e os marujos brancos, porque representam os europeus. Na atualidade acontece à mistura dos grupos, há catopês brancos e marujos negros, então não tem mais divisões. Os instrumentos estão mais modernos e houve mudança até nos mastros.

De acordo com Maria do Socorro, mestre dos caboclinhos, hoje se mudou as fardas e os instrumentos. Antes somente os homens participavam dos ternos e hoje existem mais meninas que meninos, com isso mudou toda tradição da roupa. A modernidade é percebida no consumismo e na grande quantidade de pessoas que é vista na festa.

Para o mestre de catopês do grupo de São Benedito, José Expedito, os festeiros é que estão aos poucos modernizando a festa. A mudança que ele percebe é a melhora no tratamento, hoje há mais respeito por eles e também há ajuda de custo, antes era difícil custear a festa, mas agora tem o apoio da administração.

O que podemos perceber na manifestação é que os momentos religiosos estão cada vez mais tímidos mediante a atração consumista. Há mais espaço para o consumo do que para a expressão religiosa. Um exemplo é o aumento do número de palcos e de apresentações musicais que não respeitam nem a hora do momento sagrado para os grupos devotos. No dia 19/08/09 (quarta-feira) durante o primeiro levantamento de mastro (Nossa Senhora do Rosário), acontecia simultaneamente o show do Instrumental Geraldo Paulista, no palco um da Avenida Coronel Prates, ou seja, até no momento mais importante para os grupos religiosos acontece o descaso, sem contar com os anúncios dos shows que são feitos em momentos inoportunos.

Ao passar pelo local onde acontece o evento, vemos a parte ligada à economia e ao consumismo como: barraquinhas de roupas, calçados, artesanato, artigos para o lar, bijuterias, bebidas e pratos típicos da região (arroz com pequi, feijão tropeiro, tapioca recheada, carne seca, tortas doces e salgadas, bolos entre outros).

O fator político é visto no apoio que a administração dá para realizar o evento, pois são eles que pagam os ônibus que ficam à disposição dos grupos e estão sempre presentes durante a festa para ajudarem quando necessário. A ornamentação da cidade também é por conta da administração.

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De acordo com o mestre Zanza, houve muitas mudanças na festa, principalmente depois que a cidade cresceu, ele usa a expressão: “catopê da poeira” e “catopê do asfalto”. O “catopê da poeira” caminhava descalço em busca da bandeira onde quer que ela estivesse e havia religiosidade no coração, era divertido e todos iam pela fé a Nossa Senhora do Rosário. O “catopê do asfalto” dança por dançar, não tem raiz, para o mestre Zanza, eles têm muita mordomia, pois o ônibus da prefeitura os levam até a bandeira, caminham de tênis e ainda reclamam, então ele percebe como os tempos mudaram, antes havia mais compromisso, as rainhas e reis eram pobres, desfilavam de sandália havaiana e uma roupinha simples e hoje se nota o luxo dos reinados e do almoço oferecido por eles.

A festa também gira em torno do fator turístico, pois durante o evento Montes Claros recebe várias pessoas, grupos folclóricos, congadas, festeiros e simpatizantes de muitas regiões vizinhas que vêm prestigiar a “Festa de Agosto”. Há também os que vêm trazendo artesanato e artigos em geral para vender, são os casos dos barraqueiros, que vem trabalhar e se divertir.

O caráter econômico é a junção de todo consumismo e capitalismo presente na festa, não só no espaço profano, pois percebemos isto também dentro da programação sagrada. Perguntamos aos Mestres Zanza e Miguel quem poderia ser reis e rainhas dos santos, eles disseram que qualquer um, desde que tenha condições financeiras de assumir os gastos, ou seja, os reis negros foram substituídos pelos brancos e ricos, pois somente eles podem arcar com as despesas dos reinados. Este ponto também foi discutido pelas autoras Colares (2006) e Marques (2006) em suas dissertações de mestrado. Elas também perceberam essa substituição e mudança na congada montesclarense.

Na sociedade moderna, as mulheres vêm assumindo um papel muito importante, tanto no mercado de trabalho quanto na visão e no ramo social. Este aspecto atual da mulher ganha atenção também na “Festa de Agosto”, pois há algum tempo não havia a presença feminina nos ternos de catopês, no ano de 2009 contamos seis, no terno de “Zé Expedito” e Zanza afirmou que no ano de 2010 o seu também terá. Chamou-nos atenção o dia 22/08/2009 (sábado), a imagem do Divino Espírito Santo foi carregada por duas mulheres vestidas de catopê. Este fato foi inédito, conforme Zanza, isto nunca tinha acontecido, talvez pelo machismo ainda presente na tradição.

Fazendo uma ponte com os escritos de Eicher (1993), a tradição da “Festa de Agosto” possui ritos, costumes e segue uma narrativa mitológica na qual se originou. Os catopês, marujos e caboclinhos transmitem esses elementos que, de acordo com Pottmeyer (1994), é um evento cultural e social.

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Na visão de Giddens (1991), a modernidade é a continuação da tradição, trazendo esse pensamento para o contexto da festa, a tradição da “Festa de Agosto” é vivenciada a partir das re-significações trazidas por ela. Os elementos tradicionais adquirem novas formas na modernidade, sendo assim, há conciliação “do velho e do novo”, este é apenas uma nova roupagem do antigo. Este aspecto também foi observado por Marques (2007), ela diz que no Brasil existem essas tentativas de conciliação, o novo é apenas a re-significação do antigo. Vemos isso quando Zanza explica sobre os tipos de catopês, o catopê do asfalto é o moderno, sendo este uma nova roupagem do catopê da poeira, os elementos não mudaram apenas modernizaram-se.

4. Referências Bibliográficas:

BERGER, Peter L., LUCKMAN, Thomas. Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentidos: Orientação do homem moderno. Trad. Edgar Orth- Petrópolis-Rio de Janeiro: vozes, 2004. CATÃO, Francisco. Espaço Sagrado. Diálogo. São Paulo: Paulinas, n°42, maio, 2006.

EICHER, Peter. Dicionário de Conceitos de Teologia. In: Tradição. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1993. p. 959-967.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins fontes, 1999.

GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista, 1991.

LIBANIO, João Batista. Teologia da Libertação a partir da Modernidade. São Paulo: Loyola, 1992.

____________________. A Religião do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002.

MARQUES, Ângela Cristina Borges. Umbanda Sertaneja: Cultura e Religiosidade no Sertão Norte Mineiro. 2007. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Ciências da Religião)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

MIELE, Neide. Espaço Sagrado. Espaço Profano. Diálogo. São Paulo: Paulinas, n°42, maio, 2006.

OLIVEIRA, Cláudia Luz de. A Tradição Revisitada. In: Cadernos de Agosto 3: Matrizes Etnoculturais brasileiras, Currículo e Contemporaneidade. Montes Claros: Secretaria de Cultura, 2005.

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OLMOS, A. Prior. Modernidade. In: Dicionário de Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000. P.493-496 (Coleção Dicionários).

PIMENTA, Paulo Emílio. As Origens do Fenômeno Religioso: segundo a história, a ciência e a filosofia. Belo Horizonte-MG: Ed. São Vicente, 1980.

POTTMEYER, Hermann. Tradição. In: FISICHELLA, René Latourelle. Dicionário Teologia

Fundamental. Trad. Luiz João Baraúna. Petrópolis-RJ: Vozes; Aparecida-SP: Santuário,

Referências

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