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Manuella Vieira Reale (PUC-SP) Experiência sensível no descanso habitual: rede de dormir. Sensible experience in usual rest: sleep net

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Academic year: 2021

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Manuella Vieira Reale (PUC-SP)

Experiência sensível no descanso habitual: rede de dormir

Sensible experience in usual rest: sleep net

Resumo: Discorre-se sobre a rede de dormir como escapatória do cotidiano, como experiência sensível

entre sujeitos e objeto de valor. O livro “Da Imperfeição” de Algirdas Julien Greimas configura o eixo central da análise para observar a apreensão de sentido por meio do sensível e, substancialmente, da estesia. A partir de Eric Landowski (2014), foca-se no regime de interação do ajustamento ao pensar a relação de reciprocidade entre sujeitos (indivíduo e rede) estabelecida na lógica da união. Por ser um objeto sincrético advindo da cultura indígena, observa-se os diferentes usos e apreensões da rede — do interior à cidade — na constituição da identidade cultural brasileira.

Palavras-Chave: Experiência sensível 1. Cultura 2. Ajustamento 3. Amazônia. 4. Identidade 5.

Abstract: Sleep net is described as an escape from daily life, as a sensitive experience between subjects

and object of value. The book "Imperfection" by Algirdas Julien Greimas sets the central axis of analysis to observe the apprehension of meaning through sensible and, substantially, esthesis. According Eric Landowski (2014), it is focused on interaction regime of adjustment to think the reciprocal relationship between subjects (individual and sleeping net) established by union logic. Because it is a syncretic object from indigenous culture, it is observed different uses and apprehensions of net - from interior to city - in the constitution of Brazilian’s cultural identity.

Keywords: Sensible experience 1. Culture 2. Adjustment 3. Amazon. 4. Identity 5.

Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam (Pero Vaz de Caminha, 15001).

Ressemantizar objetos gastos — a própria vida — é a provocação de Algirdas J. Greimas em sua última obra de autoria individual, publicada na França em 1987. “Da Imperfeição” convida a enxergar o cotidiano de uma forma diferente, deslumbrar-se. É explorada uma estética presente nos comportamentos cotidianos na construção de

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objetos de valor ressemantizados na valorização do detalhe do vivido. A experiência sensível do deitar na rede de dormir será lida como possível escapatória do “umbral da insignificância” (Greimas, 2002, p. 82) do cotidiano.

O escopo teórico do autor, por meio do programa gerativo de sentido, estrutura a construção da significação em níveis. O nível discursivo (mais superficial e expressivo) passa pelo narrativo e chega ao nível fundamental (mais abstrato e simples). O autor aponta “a abordagem gerativa, o remontar às nascentes do fenômeno, desemboca aqui na decomposição completa do que inicialmente foi percebido como uma totalidade constituída” (Idem, p. 51).

Da Imperfeição

“Todo parecer é imperfeito: oculta o ser” são as palavras iniciais da obra. A imanência (ser) é estabelecida pela manifestação (parecer). O texto propõe como se dá o processo de apreensão estética. Para um acontecimento estético, é necessária que haja uma quebra na cotidianidade da vida. A apreensão estética, neste caso, requer um querer. Para vivenciá-lo, o sujeito é tomado por um objeto mediante seus sentidos. A estesia é ponto chave. A perplexidade diante do desconhecido é tamanha que o sujeito não é mais o mesmo quando volta à normalidade, há uma transformação. O objeto da busca do sujeito em relação é dotado de sentido, ele também é um actante. Tal objeto revela intimidade do ser.

É possível pensar a ruptura do cotidiano em Greimas com o “Deslumbramento” de Robison. O texto apresenta a normalidade do cotidiano regrado, controlado e enfadonho da clepsidra. A ruptura ocorre quando o silêncio é instalado pela não queda de uma gota, o que gera a “suspensão do tempo e petrificação do espaço”. Quando a gota recusa-se cair, Robison vivencia um momento de inocência, feliz deslumbramento, êxtase, indizível alvoroço. Ele enxerga uma “outra ilha”, melhor e perfeita. A forma de pêra do objeto assume-se a gota como actante mulher que afeta Robison. O sujeito é tomado pelo objeto sem competência. A gota age como um ator modalizado e patêmico. A aspectualização espacial produz impressões sobre o eixo da verticalidade, o descer e subir da gota. Dois sujeitos (Robison e gota-mulher) são reunidos por um acidente. Tal evento estético é único e efêmero. A relação sensorial entre sujeito e objeto de valor é

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parada no tempo, há uma descontinuidade do discurso e uma oscilação do sujeito. Após evento estético, há esperança na conjunção do advir. São ressaltados os formantes sonoro (silêncio), visual (imagem da outra ilha) e eidético (forma da gota). Esta é uma estética do sujeito. A volta à normalidade é marcada pela mediocridade das preocupações e lembrança nostálgica elaborada cognitivamente. Então em termos do evento estético, o que resta da experiência sensibilizadora? Greimas ressalta pontos importantes revelados neste evento estético:

A inserção na cotidianidade, a espera, a ruptura de isotopia, que é uma fratura, a oscilação do sujeito, o estatuto particular do objeto, a relação sensorial entre ambos, a unicidade da experiência, a esperança por uma total conjunção por advir (Ibidem, p. 30).

“Palomar” de Ítalo Calvino traz a noção que intitula o capítulo “Guizzo”: o farfalhar visual, sonoro e tátil. Guizzo é evento súbito, gesto tremulante, jogo de luz sobre a água. A história começa com o senhor Palomar em uma caminhada na praia para pensar sobre a vida. No trajeto, ele se depara com uma moça de seios expostos e evita encará-los na primeira passagem. Ao retornar, seu olhar desvia-se sobressaltado e rompe com a programação anterior. Há uma fascinação pelo objeto estético quando o olhar avança, retrai, estremece, avalia. A apreensão estética, neste caso, requer um querer. É uma estética da graça. A curva do seio transforma-se (como actante) em visão sobrenatural. A relação proxêmica é definida pela posição e postura dos sujeitos, o que constrói um ponto de vista à distância. Assim como Tournier, o evento estético ocorre no plano visual. O objeto estético produz descontinuidade do contínuo do espaço visual. Contudo, a descontinuidade estruturada pelo Guizzo também é um estremecimento de maneira tátil. Isto marca o sincretismo entre dois actantes (sujeito Palomar e objeto seio) — nesse momento a isotopia da visualidade passa ser isotopia da tatilidade. Vê-se a importância do corpo para entender a relação entre sujeitos. “O tato se situa entre as ordens sensoriais mais profundas, ele exprime proxemicamente a intimidade optimal e manifesta, sobre o plano cognitivo, a vontade de conjunção total.” (Ibidem, p. 36).

Diferente dos europeus (onde sujeito é ativo e empreendedor), em “A cor da obscuridade” há o objeto pregnante que exala energia. O sujeito entra em conjunção com objeto no plano físico da pura sensação. Como ele não toma parte na ação, a luz tem papel de anti-actante. O objeto obscuridade possui (tal como a gota, o seio, o

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parque) uma gestalt, sua cor preta como união de todas as cores é uma figura decomponível em seus traços plásticos. Greimas destaca a plasticidade presente na figuratividade da cena: verticalidade, densidade e uniformidade. No texto, o “ser” é negativado, com tempo descontínuo e espaço circunscrito. Por outro lado, o “parecer” é positivo, uma metáfora da própria essência do objeto. Conclui-se que todo objeto é digno de consideração, seja um cheiro de uma flor, um silêncio em um ambiente, uma luz forte. Esta afirmação amplia a apreensão estética exclusiva à arte para o mundo cotidiano, sugere a possibilidade de contemplar o infinitamente pequeno.

Os simulacros de acidentes estéticos explorados por Greimas, demonstram a apreensão de sentido por meio do sensível e, substancialmente, da estesia. Tal como a relação da figuratividade na estética para a construção de um novo sentido. Com esse livro, vários caminhos foram abertos para a semiótica pós-estruturalista, o que permitiu a investigação de objetos mais distintos, de performance artística ao ínfimo fenômeno cotidiano, e aprofundamento na compreensão do próprio ser humano.

A Rede

Entra em casa, passa pela sala, abre a porta do quarto e avista, logo no horizonte do campo de observação, o móvel mais longe da entrada logo abaixo da janela. Distante, flerta a espera de seu acolhimento. O contato tátil será imersivo. A conjunção entre corpos está por vir. “Somente quando repousa sobre a tatilidade em que está unido é que o gosto reencontra sua plenitude” (Ibidem, p. 71). O toque produz impressões sensíveis sobre o sujeito que o leva a sentir um estado de alma patêmico.

Pode parecer apenas pedaço de tecido usurado em forma de meia lua, mas é possível apreender um sentido outro, é possível construí-la objeto de valor. É possível fazer um sentido diferente a cada vez que os “corpos” se encontram. Não raro encontra-se sua preencontra-sença na literatura brasileira, já que é peça constante na construção histórico-cultural desse povo.

O lugar em que se encontra estendida é o espaço mais íntimo/recluso da casa, e o mais ligado com o lado de fora pela extrema proximidade com a janela. Sua posição permite ouvir o barulho dos carros, a conversa de pessoas, a brincadeira de crianças. Gera-se um efeito de sentido de intimidade aproximada ao mundo externo, conforto

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paradoxal de estar só e conectado com a cidade. Permitir-se deitar é resistir à forma de vida veloz e intensa do ritmo urbano. A horizontalidade da rede opõe-se à verticalidade da cidade.

Dependendo da posição ao deitar-se, é possível encarar o restante do quarto, livros, cama e mesa de estudo. Do outro lado, observa-se pela janela as árvores da rua, os fios de eletricidade e a ponta das casas em frente. Sua altura é ajustável para ficar mais ou menos próxima da luz. Em manhã de luz acentuada, é possível ver os raios de sol interrompidos por cada onda formada na extensão do tecido.

O móvel também faz parte da visualidade do ambiente. A cor vermelha geralmente remete a perigo ou sentimento passional, todavia seu tom bordô produz uma frieza à intensidade da cor primária. A textura do tecido liso de fibra natural de algodão permite facilmente a formação de ondas na tensão a partir do punho. Com grossa espessura, dá firmeza no suporte ao corpo. Os dois punhos que ligam o tecido a cada parede e tencionam sua extensão são como pontos de fuga a partir dos quais os fios de tecido se direcionam e, sem perder seu referencial, ajustam-se até o corpo encontrar o lugar desejado.

Possui uma varanda2 feita em crochê que é bela e mostra a delicadeza da costura a mão. Tal detalhe estético é o que diferencia o tipo e estilo de rede, do mais simples ao elaborado. É parte significativa do valor monetário designado a cada rede. O fazer artesanal concretiza o belo contra hegemônico. Desafiados a ter olhar metonímico e demorado a coisas simples, percebemos o quão impressionante é o tecido da varanda, com toque diferente de onde se deita, a rugosidade do entrelaçamento dá volume e marca presença no ambiente.

A tatilidade constante e movente do seu balanço impõe sempre um novo ritmo ao encontro. Seu movimento de embalo é tranquilizante, descontrai a mente pelo deslocamento espacial e ritmização temporal e, como a música, impõe novo compasso cardíaco. O impermanência do ritmo, segundo Greimas, metaforiza a “atualização do deslocamento, que a intensidade do movimento executado no local anuncia a transformação do sujeito de estado em sujeito de fazer” (Ibidem, p. 83).

Afetado estesicamente, o sujeito de fazer encontra o objeto actante na adaptação do tecido ao desenho do corpo. Encontro que pode ser modificado no mínimo

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movimento. Uma possibilidade ao deitar é que a rede fique em forma de casulo, trazendo um conforto que remete ao retorno ao útero materno e aconchega qualquer aflição sentimental. É totalmente diferente de uma cama que não se ajusta ao seu mais leve movimento. Luiz Câmara Cascudo compara:

O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-se nele, procurando o repouso numa sucessão de posições. A rede não: ela toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos e repete, dócil e macia, a forma do nosso corpo.

A cama é hirta, parada, definitiva. A rede é acolhedora, compreensiva, coleante, acompanha, tépida e brandamente, todos os caprichos da nossa fadiga e as novidades imprevistas do nosso sossego. Desloca-se, incessantemente renovada, à solicitação física do cansaço.

Entre ela e a cama, há a distância da solidariedade à resignação (2012, p. 8-9).

Apoio para sentar, espaço de descanso e — sua maior finalidade — lugar de dormir. Seu uso difere de acordo com cada estação. No inverno torna-se quase inóspita no crepúsculo do dia pela falta de maior cobertura. Já no verão é cativante por não ter o calor exalado da cama. Válido comentar que muitas pessoas não se sentem confortáveis ao usá-la por falta de hábito ou por não se acostumarem com a inconstância do movimento.

Dificilmente dorme-se em uma postura “errada”, pois a própria maleabilidade do tecido ao ajustar-se no corpo impede da fixação em alguma posição demasiada incômoda. Apesar disso, há vários estudos sobre o benefício ou prejuízo biológico em usá-la. Ainda não é possível encontrar um consenso entre os profissionais da medicina sobre tal prática.

Imperativo identitário

Somos interpelados a buscar “eventos estéticos a partir do desvio do funcional” (Greimas, 2002, p. 85). Além de sua funcionalidade, há uma dimensão passional e mítica envolvida diretamente ao objeto dotado de memória. Uma forma de reconexão cultural. Válido ressaltar que é ligada diretamente à tradição indígena, não apenas brasileira, mas há histórico de uso por toda região da América Central e do Sul. Cascudo explicita sobre o seu uso “nas regiões meridionais e centrais do Brasil a rede

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seguira o tupi e contaminara o colono, mameluco, curiboca, brasileiro de seiscentos e setecentos” (2012, p. 29).

Longe de encarar a tal item pertencente a uma cultura tradicional intocada, a proposta desse trabalho é discorrer sobre os diferentes usos e apreensões desse integrante da cultura brasileira contemporânea, do interior à cidade. Considerando que:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. (...) sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades (Hall, 2006, p. 50).

A rede é um objeto sincrético que compõe a identidade brasileira. Entendemos a relação direta da rede com o corpo do sujeito como uma prática popular com traços de uma identidade cultural não apenas relacionada ao indígena, mas também diretamente à complexidade da cidade. A rede está presente no espaço doméstico não apenas no quarto como móvel para dormir. Também está na varanda para descanso, na sala para sentar enquanto socializa-se. O espaço doméstico não se configura à reprodução da força de trabalho. Ele possibilita, pelo contrário, um mínimo de liberdade e solidariedade diferente da competição imposta pelo capital. A multiplicidade do uso (e de facilidade de transporte) da rede vai além do dormir, é também cultural e socializada. A rede também está na praia, na Avenida Paulista, no Restaurante à beira rio.

Ter uma rede na Amazônia é identidade; ter uma rede em São Paulo é mestiçagem cultural. Pensar ela dentro da cidade, não como simples resistência, mas como objeto complexo atravessado pela tradição indígena e pelo cotidiano contemporâneo.

Pensar o popular na cultura não como algo limitado ao que se relaciona com seu passado – e um passado rural –, mas também e principalmente como algo ligado à modernidade, à mestiçagem e à complexidade do urbano (Martín-Barbero, 2009, p. 70).

Ser capaz de parar, em uma cidade como São Paulo, é romper com a prescrição de trabalho constante. Enquanto o neoliberalismo impõe o trabalho, o consumo e aquisição de capital em todos os momentos da vida do trabalhador, inclusive no lazer, optar por descansar de uma forma prolongada em um objeto manufaturado, de baixo custo e sem prazo de validade é irônico, no mínimo. O sujeito, ao lançar-se a essa

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experiência, torna-se seu próprio destinador em oposição ao controle hegemônico do capital. “O destinador do evento estético — o próprio sujeito ou um outro — se põe a serviço de fazer sentir pelo sentir, pelo que o sentir promove ao que o sente” (Oliveira, 2003, p. 6).

A rede também foi e é, como descrito na carta de Caminha, a principal forma de dormir do indígena. Existem diferentes hábitos em cada região. Nas casas no interior da Amazônia3 dá-se preferência por rede, seja pelo hábito, clima quente ou custo. Especificamente para o amazônida, deitar na rede vai além de férias, sesta ou simples dormir. Por ser um povo com raízes indígenas, tal artigo é parte central na cultura popular. O modo de produção artesanal representa a fuga da realidade fabril da produção em série para um tempo mais prolongado e qualificado, o que é uma resistência à rapidez da cidade. Ter uma rede feita a mão é qualificar o tempo e a singularidade prévios ao detalhamento do produto final.

Até hoje boa parte da população transporta-se por vias fluviais. No barco, o lugar procurado não é o assento, mas o armador de rede. Muitas embarcações não têm cadeiras para toda tripulação. Existe a possibilidade limitada de usar a cama no camarote, mas geralmente a rede é quase um imperativo no traslado. Rede não é adendo entretenimento, mas imperativo identitário.

Experiência sensível, rumo à esthésis

A rede em si (matéria) não é objeto de valor, mas sim a experiência estésica do encontro corpóreo em ato. Deitar na rede é uma forma de encontrar-se consigo mesmo, com os desejos e necessidades do próprio corpo. É desprender-se do mundo racional para poder sentir a si mesmo, dores e prazeres. “A tensão (...) é o preço do relaxamento definitivo” (Greimas, 2002, p. 27). O próprio corpo — músculos e pele — é o alhures da racionalidade da mente. Descobre-se a possibilidade de sair do inteligível da realidade de preocupações diárias sem substâncias anestesiantes ou exposição midiática e ser sujeito ativo na construção de sentido.

3 Optamos por considerar a Amazônia Internacional que engloba Brasil, Bolívia, Peru, Equador,

Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Disponível em:

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Abstrai-se dessa experiência o próprio reconhecimento de si enquanto matéria, enquanto carne. É uma fração de tempo efêmera em um espaço imensurável onde é possível ler, sentir, e enfim ser a si mesmo. Permitir-se viver essa convergência pode torná-lo mais humano, deixar o corpo encontrar sentido no desprendimento. Em uma imprevisibilidade de sensações, a apreensão tátil estimula os demais sentidos e abre a outras percepções da luz, do som, do espaço.

É possível ver o hábito como escapatória, um ato que se repete no cultivo dos seu sentido sentido com uma intencionalidade que Oliveira expõe:

Armado pela volição, o hábito, como uma escapatória, é uma prática que redimensiona a condição estésica da significação ordinária das coisas, do mundo, dos seres e do sujeito mesmo com o propósito dele empreender uma construção de vida, de mundo, explorando tanto o sensível como a razão (2004, p.2).

Como esclarece a autora, o que se torna uma busca cultivada pelo sujeito advém do gosto pelo gosto experimentado. Mesmo que seja diário, é improvável deitar-se sem se relacionar com toda carga simbólica que o ato aciona. É a “espera esperada do inesperado” (Greimas, 2002, p. 89), pois o encontro — e eventual junção — com o objeto de valor faz surgir novo sentido. A busca por sentir o sentido no estado de união entre sujeitos, caminho único à esthésis! Deitar na rede é um exercício e esforço de ajuste corpóreo com o tecido de um modo que não repete-se integralmente uma posição anterior. É um fazer de dois actantes à procura do encontro sensível.

Interação entre sujeitos no ajustamento

Encontrar uma posição agradável na rede exige, diferente da cama, um esforço para chegar ao conforto, quase como uma dança entre sujeitos que acabaram de se conhecer. Mesmo quem dorme dessa forma a vida inteira sempre tem necessidade de ajustar-se para receber uma recompensa tão significativa que dificilmente aceita de bom grado outra forma de dormir. Tal contato produz impressões sensíveis sobre o sujeito que o leva a sentir um estado de alma patêmico.

Nas interações que dependem do ajustamento, o ator com o qual se interage caracteriza-se certamente, também, pelo fato de que seu comportamento

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obedece a uma dinâmica própria, mas essa dinâmica, no estado atual dos conhecimentos de que se dispõe, não é redutível, como no caso precedente, a lei preestabelecidas e objetiváveis. É, ao contrário, na interação mesma, em função do que cada um dos participantes encontra e, mais precisamente, sente na maneira de agir de seu parceiro, ou de seu adversário, que os princípios da interação emergem pouco a pouco. (Landowski, 2014, p. 48).

Dormir na rede pode demorar mais por conta do ajustamento entre corpos, mas é pela descentralização do corpo e não - imperativo da rede que se faz um modo de ser descontínuo com o externo. A lógica da união estabelece uma relação de reciprocidade entre sujeitos. Landowski amplia a gramática narrativa com o regime de interação do ajustamento, fundado na sensibilidade (competência estésica). Para o autor, o ajustamento é a “interação entre iguais, na qual as partes coordenam suas dinâmicas por meio de um fazer conjunto” (Idem, p. 50).

Passa-se do “ter sentido” na dimensão inteligível dos regimes de programação e manipulação para um “fazer sentido” a partir da sensibilidade. O ajustamento requer a “competência estésica”, a possibilidade de sentir junto. O sujeito “enquanto ator ao mesmo tempo estesicamente apto a perceber o mundo e modalmente competente para lhe atribuir sentido”. (Ibidem, p. 53).

Não há como sair desse encontro, enquanto sujeito de fazer aberto à experiência, no mesmo “estado das coisas” prévio ao deitar. A união entre sujeitos gera um efeito patêmico inevitável. É uma possível escapatória da vida usurada, é um dos “diferentes meios de nela [na vida cotidiana] introduzir fraturas” (Greimas, 2002, p. 88). Mesmo feito da maneira pragmática, tal ato dá algo em troca. Seja um descanso físico, seja uma tranquilidade mental, seja um encontro consigo mesmo que o arremessa para o alto.

REFERÊNCIAS

CAMINHA, PV. A carta do descobrimento: ao rei D. Manoel. Disponível em:

http://www.culturabrasil.org/zip/carta.pdf

CASCUDO, Luís da Câmara. Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1959.

GREIMAS, Algirdas J. Da Imperfeição. (Tradução e prefácio Ana Claudia de Oliveira; apres. Paolo Fabbri, Raúl Dorra e Eric Landowski). São Paulo: Hacker Editores, 2002. _________ e COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. Vários tradutores. São Paulo: Contexto, 2008.

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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11a ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LANDOWSKI, Eric. Interações arriscadas. Tradução de Luiza Helena Oliveira da Silva. São Paulo: Estação das Letras e Cores: Centro de Pesquisa Sociossemióticas, 2014.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Prefácio de Néstor Garcia Canclini; Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. 6a ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

OLIVEIRA, Ana Claudia de. A leitura do jornal como experiência sensível. In: Revista da Anpoll 21, v. 1, n. 21, 2006.

_________. Sabor de Sabor Pão de Açúcar, à luz da semiótica. In: 12º. Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação - COMPÓS, 2003, Recife. Anais do COMPÓS, 2003.

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